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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.12 no.1 Belém jan./abr. 2020

https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº01ensaio54 

Ensaio

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº01ensaio54

 

O mito da gênse e da catábase do homem: uma análise eliadeana do Corpus Hermeticum 1. 12-15

 

The myth of the genesis and catabasis and of the man: na eliadean analysis of the Corpus Hermeticum 1.12-15

 

El mito de la geneisis y la catabasa del hombre: un análisis eliadeana del Corpus Hermeticum 1.12-15

 

 

David Pessoa de Lira

Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

 

 


RESUMO

O presente artigo trata de um estudo das estruturas discursivas da récit mythologique (narrativa mitológica) e especificamente de uma análise do mito do Corpus Hermeticum1.12-15, no que se refere ao princípio da coincidência dos opostos ou pela biunidade incidente no texto. O mito que será analisado, no presente artigo, é estritamente a narrativa mitológica do episódio da catábase do Homem (Corp. Herm. 1.12-15). Para proceder metodologicamente, faz-se necessário expor a compreensão sobre o homo religiosus hermeticus e sua categoria em relação ao fato religioso. Assim, analisa-se o mito do Corp. Herm. 1.12-15, tendo como principais aportes teóricos as ideias eliadenas. E, finalmente, busca-se caracterizar a incidência da divina biunidade, da oposição dos opostos bem como o motivo último do relato do mito para explicar por que os homens são mortais, qual é a causa mortis do ser humano e as implicações do o amor-sexo (ερως)

Palavras-chave: Homo Religiosus Hermeticus; Mito; Catábase; Mircea Eliade.


ABSTRACT

The present article deals with a study of the discursive structures of the récit mythologique (mythological narrative) and specifically an analysis of the myth of Corpus Hermeticum1.12-15, in regards to the beginning of the coincidence of the opposites or by biunity incident in the text. The myth that will be analysed, in the present article, is strictly the mythological narrative of the episode of the catabasis of the Man (Corp. Herm. 1.12-15). To proceed methodologically, it is necessary to expose the understanding on the homo religiosus hermeticus and his category regarding the religious fact. So, the myth of the Corp is analysed. Herm. 1.12-15, having like principals dock theoreticians the eliadean ideas. And, finally, it is looked to characterize the incidence of the divine bi-unity, of the coinciding of opposites as well as the motif of the report of the myth in order to explain why the men are mortal, what the cause is mortis of the human being and the implications of the love-sex (ερως)

Keywords: Homo Religiosus Hermeticus; Mith; Catabasis; Mircea Eliade


RESUMEN

El presente artículo aborda un estudio de las estructuras discursivas de la récit mythologique (narrativa mitológica) y específicamente un análisis del mito del Corpus Hermeticum1.12-15, con respecto al principio de la coincidencia de los opuestos o el incidente de la biunidad en el texto. El mito que se analizará, en este artículo, es estrictamente la narración mitológica del episodio de la catabasis del hombre (Corp. Herm. 1.12-15). Para proceder metodológicamente, es necesario exponer la comprensión del homo religiosus hermeticus y su categoría en relación con el hecho religioso. Así, se analiza el mito de Corp. Herm 1.12-15, teniendo como principales aportaciones teóricas las ideas eliadeanas. Y, finalmente, buscamos caracterizar la incidencia de la biunidad divina, la oposición de los opuestos, así como la razón última del relato del mito para explicar por qué los hombres son mortales, cuál es la mortis del ser humano y las implicaciones del amor-sexo (ερως).

Palabras-clave: Homo Religiosus Hermeticus; Mito Catabasis; Mircea Eliade.


 

 

INTRODUÇÃO

12 O Pai de todos, o Nous, sendo vida e luz, gestou um Homem idêntico a ele, o qual ele amou como seu próprio rebento; pois era mui lindo, tendo a imagem do Pai; pois também, deveras, Deus amou sua própria forma, e entregou todas as obras de si mesmo, 13 e quando o Homem avistou a criação do Demiurgo no fogo, quis criar também, e foi permitido pelo Pai; quando veio a estar na esfera demiúrgica, enquanto estava para ter toda a autoridade, avistou as obras do irmão, e os i o amaram, porém cada um compartilhou de sua própria ordem; e aprendendo da essência desses e tendo comungado da natureza deles, quis romper a periferia dos ciclos, e compreender o poder do que se impõe sobre o fogo.

14 E tendo ele toda a autoridade do mundo dos mortais e viventes irracionais, olhou para baixo através da harmonia das esferas planetárias, tendo rompido a couraça, também mostrou à substância elementar inferior a bela forma de Deus; o qual tendo uma beleza insaciável e toda energia dos regentes em si mesmo e a forma de Deus, ela tendo visto, sorriu com amor, já que ela tinha visto a visão da mui linda forma do Homem na água e a sombra sobre a terra. Porém o mesmo vendo a forma semelhante a ele estando nela e na água, amou e quis habitar lá. Porém com a vontade foi feita a energia, e ele habitou a forma irracional; porém a natureza tendo recebido o amado, enlaçou toda e se misturaram; pois eram amantes. 15 E, por isso, de todos os viventes sobre a terra, o homem é duplo: mortal por causa do corpo, porém imortal por causa do homem essencial; pois sendo imortal e tendo a autoridade de todos, os mortais sofrem estando submetidos à heimarmenē. Portanto, mesmo estando acima da harmonia das esferas planetárias, sendo harmonioso, tem vindo a ser escravo; e sendo macho10.26823/ fêmea, de um pai sendo macho-fêmea, e insone de um insone. É dominado. (Corpus Hermeticum 1. 12-15) (tradução própria).1

O presente texto trata de um estudo das estruturas discursivas da récit mythologique (narrativa mitológica) e especificamente de uma análise do mito do Corp. Herm. 1.12-15, no que se refere ao princípio da coincidência dos opostos ou pela biunidade incidente no texto. O mito que será analisado, no presente artigo, é estritamente a narrativa mitológica do episódio da catábase do Homem (Corp. Herm. 1.12-15).

Delimita-se a analisar o mito com base na teoria eliadeana, lidando com o próprio texto no que diz respeito às formas de expressão e ao conteúdo religioso. Ao analisar o mito da antropogênese e da catábase do homem no livro do Poimandrēs (Corp. Herm. 1.12-15), tomando como procedimento hermenêutico a teoria de Mircea Eliade, procura-se levar a efeito um estudo acurado dos conceitos, ideias e crenças, perguntando pelo sentido e pela aplicação de tais crenças e ideias que incidem no texto hermético. Segundo Robert A. Segal, o Poimandrēs, sendo analisado em uma perspectiva eliadeana, é um mito da criação e da salvação. Trata-se da explicação da gênese do mundo profano. O ser humano, obviamente, dentro dos vários fenômenos hierofânicos e sacrados, é posto em evidência (Segal, 1986, p. 73).

Em um primeiro momento, faz-se necessário expor a compreensão sobre o homo religiosus hermeticus e sua categoria em relação ao fato religioso. Assim, pode-se dizer se o autor hermético fundamenta sua crença em um mito ou se é um homem histórico-religioso. A partir da teoria classificatória das categorias do homem frente à religião e busca definir isso em termos do homo religiosus que é autor dos tratados herméticos (SEGAL, 1986, p. 74).

O Homem Primevo é uma das emanações divinas, as quais são parcialmente personificadas. O Demiurgo, a Palavra e o Homem são emanações que servem como uma ligação entre o sagrado e o profano, sendo cada qual criada pelo sagrado ou emanada do sagrado. Essa ligação de opostos é praticamente irreconciliável, estabelecendo, assim, uma coincidência de opostos (Segal, 1986, p. 73). Em um segundo momento, faz-se necessário entender o percurso teórico de Eliade a respeito do mito.

Por fim, procurar-se-á analisar o mito do Corp. Herm. 1.12-15, tendo como principais aportes teóricos as ideias eliadenas, considerando os aspectos do sagrado no desenrolar da narrativa mitológica. Assim, busca-se caracterizar a incidência da biunidade, da coincidência dos opostos bem como o motivo último do relato do mito para explicar por que os homens são mortais, qual é a causa mortis do ser humano e as implicações do o amorsexo (ερως).

 

O HOMO RELIGIOSUS HERMETICUS E O MITO.

Em geral, os herméticos não eram muito interessados em mito, exceto o autor de Poimandrēs (Corp. Herm. 1). No caso de seu autor, ele empregou um modo mais imaginativo para estabelecer seus ensinamentos assim como usou mais livremente os mitos (DODD, 2005, p. 30; LIRA, 2015, p. 282). Em todo caso, comparado a outros movimentos religiosos, o hermetismo não se prendia a mitologias. Assim, C. H. Dodd afirma:

Esta filosofia foi empregada para interpretar ou racionalizar a mitologia e o ritual de várias religiões do Oriente Próximo, sobre a compreensão corretamente entendida que eles todos comunicavam a γνώσις divinamente revelada. Os Hermetica, em geral, são documentos desse tipo de filosofia religiosa (tradução própria).2

Segundo Jean-Pierre Mahé, as sentenças herméticas primitivas constituíam os elementos mais antigos, constantes e imutáveis, aos quais se prendiam os mais variados acréscimos redacionais posteriores. A partir da tipologia e taxonomia redacionais dos escritos filosófico-religiosos, propostas por Jean-Pierre Mahé, através dos graus de intervenção redacional, pode-se distinguir os diversos tipos redacionais, e determinar o nível redacional de incidência e intervenção dos elementos doutrinais secundários na sua ordem textual (dualista-transcendentalista-pessimista ou monista-panteísta-otimista) (Mahé, 1982, t. 2, p. 41-43; Lira, 2015, p. 100-101).

Sendo assim, os tratados herméticos, segundo o grau de sua elaboração redacional, são constituídos tipologicamente de sentenças justapostas, encadeadas, comentadas e mitificadas.3 Sentenças comentadas mitificadas são sentenças interpretadas em termos de mitologia ou transformadas em mito. As sentenças comentadas mitificadas podem apresentar uma aparente característica narrativa ao empregar o tempo aoristo por decorrência da junção da forma das sentenças herméticas primitivas (com aoristo gnômico4) a um mito adaptado. Neste sentido, a sentença hermética é comentada com ajuda de materiais mitológicos. No entanto, ela não é alterada e o mito é apenas evocado sem qualquer desenvolvimento narrativo propriamente dito. É impróprio designar de mito um texto que não apresenta nenhuma estrutura mítica. Mahé define de mitificado aquilo que não é mito propriamente dito (Lira, 2015, p. 284).

Sentença mitificada é um tipo de motivo mitológico que que não pode ser considerado necessariamente um mito, mas pode ter sido empregado como um mitologema, que, segundo Károly Kerényi, pode ser constantemente utilizado para criar novas narrativas míticas (Jung; Kerényi, 2012, p. 15-17; Lira, 2015, p. 217, 282-283). Segundo o filólogo e historiador das religiões, Károly Kerényi, "o mitologema é um material mítico que vem a ser continuamente revisitado, remodelado e plasmado, como um filme de imagens sem fim (tradução própria)". Ou seja, é um material mítico (arquetípico) que constantemente tem recebido elementos característicos de variadas culturas, originando vários mitos com o mesmo tema recorrente.5

Em todo caso, são poucos os materiais mitológicos incidentes no Corpus Hermeticum. Os textos, amiúde, são pouco figurativos, apresentando discursões abstratas sobre temas teológicos, antropológicos e cosmológicos.6 O texto de Poimandrēs (Corp. Herm. 1) é uma das exceções. Não obstante, o que não se pode negar é que alguns autores herméticos têm interesse por mito ou mitificação de sentenças.

Partindo da teoria eliadeana a respeito da categorização ou classificação da religião, ao tentar correlacionar as concepções de Deus, levaria em consideração a diferenciação entre o homem 'mítico' e o homem 'histórico' a partir da natureza do tempo (SEGAL, 1986, p. 74). Segundo Anna Van den Kerchove, as palavras divinas do Corpus Hermeticum pertencem a um jogo de tempos diferentes que se interconectam: o tempo histórico, o tempo hermético e o tempo mítico. O tempo histórico é aquele no qual está inserido o escritor (redator) e o leitor do tratado hermético. O tempo hermético é aquele em que estão inseridas as dramatis personae (Hermes, Asclépio, Ísis, Hórus, Amon e Tat). O tempo mítico, no qual está inserido Deus, Poimandrēs, Demiurgo, Agathos Daimon, regentes etc., trata-se de um tempo primordial e anistórico (a-histórico) (Van den kerchove, 2012, p. 78, 289-290; Lira, 2015, p. 281).

No entanto, o tempo hermético tem uma relação muito próxima com o tempo histórico. Eles tratam de assuntos comuns aos seres humanos e são ensinamentos de um mestre aos seus discípulos. Não se pode negligenciar o fato de que o tempo hermético é qualquer tempo na história em um determinado contexto.

Deve-se concordar com J. Peter Södergård "que a leitura ativa uma função performativa latente do texto, e que essa função mantém e até manipula a mente do Leitor Empírico para experimentar isto: a mudança dêitica na comunidade dos hermetistas toma lugar no aqui agora no processo de leitura (tradução própria)".7

A preocupação primeira de Södergård teria como ponto principal demonstrar que os leitores são conduzidos pelo próprio texto para dentro do diálogo como se eles assumissem o papel das personagens, sendo autoiniciadas via texto. Mircea Eliade também defendia a teoria da autoiniciação pelo texto hermético, mas Södergård defende, de forma inovadora, por meio da semiótica, que a leitura do escrito hermético exerce uma função textual performativa (Van den kerchove, 2012, p. 13, 131-132; Eliade, 2011, v. 2, p. 258; Södergård, 2003, p. 68- 70, 112-120; Lira, 2015, p. 95).

Nos diálogos do Corpus Hermeticum, as dramatis personae são geralmente Hermes Trismegistos (como mestre), Asclépios, Tat e Amon (como discípulos), mas pode haver outras personagens, como Poimandres, Nous e Agathos Daimon (como entidades ou mestres divinos). As dramatis personae foram deuses egípcios (pseudonímia): Tat; Asclépios (Imhotep); Ammon; Agathos Daimon (Kneph); e Nous (Ptah).8 No entanto, as dramatis personae são humanas e não possuem nenhum caráter mitológico. Apenas se utiliza pseudonimicamente os nomes das divindades para ocultar os nomes dos mestres e discípulos.

De acordo com as características doutrinárias, os traços imanentistas e monistas estão presentes no Corp. Herm. 2, 5, 8 e 14; os traços transcendentalistas e dualistas se evidenciam no Corp. Herm. 1, 4, 6, 7 e 13. Em todo caso, percebe-se um imanentismo que não exclui o transcendentalismo nem um transcendentalismo que exclui o imanentismo dentro de um mesmo tratado. Sendo assim, os tratados podem ser agrupados, segundo suas doutrinas teológicas, em monistas, dualistas e mistos. Segundo Luke Johnson, os tratados herméticos diferem no que se pode chamar de elementos mitológicos, não em suas exortações.9

Destarte, ao lidar com qualquer que seja o tratado hermético, deve-se averiguar qual é a categoria do homo religiosus hermeticus que redigiu o texto. Para isso, faz-se necessário acolher a teoria classificatória de Mircea Eliade. Em vários textos, Eliade defende a classificação da humanidade, dividindo-a em duas categorias, a saber: 'mítica' e 'histórica'. O homem mítico é o homem 'primitivo', 'arcaico', 'tradicional' ou 'pré-moderno'. Essa categoria se refere ao homem pré-letrado e antigo da Ásia, Europa e América. Já o homem histórico, esse se refere ao homem ocidental, começando não necessariamente com a cultura grecoromana, mas com a cultura judaico-cristã (Segal, 1986, p. 64-65).

No que se refere à primeira categoria, essa não se trata necessariamente de uma escala primitiva, mas de um ser religioso que fundamenta conscientemente sua existência a partir de mitos. Só o homem dessa categoria acredita que a humanidade é verdadeiramente mítica. Assim, por um lado, essas categorias podem ser uma tendência ou uma etapa no processo de desenvolvimento. Por outro lado, não se pode aventar que religiosos nessa etapa possuem pensamento menos desenvolvido. O fenômeno pode acontecer em vários âmbitos religiosos (Segal, 1986, p. 65).

Quanto ao homem histórico, Eliade dividiu em duas subcategorias, a saber: o religioso e o secular. O religioso é aquele semelhante ao judeu ou ao cristão. O secular conscientemente é ateu e inconscientemente carrega elementos simbolicamente religiosos e contextuais. O homem histórico religioso é conscientemente religioso (Segal, 1986, p. 65). Em todo caso, Eliade considera que toda a humanidade, per se, é tão mítica quanto religiosa. Qualquer que seja o posicionamento do homem religioso histórico, ele buscará voltar aos acontecimentos e feitos primordiais (Segal, 1986, p. 66).

Não obstante se possa considerar a classificação dos escritos herméticos quanto às características doutrinárias em dualista-transcendentalista-pessimista ou monistapanteísta- otimista, procura-se, aqui, levar classificação eliadeana no que diz respeito às categorias do ser humano frente à religião (Lira, 2015, p. 99-100). Pode-se buscar o grau de uso do mito por parte do autor hermético enquanto homo religiosus hermeticus, categorizando, assim, sua tendência em mitológica e histórica. Em geral, a tendência do homo religiosus hermeticus, autor dos tratados do Corpus Hermeticum, é histórica e pouco mítica. Destarte, é possível verificar a semelhança com textos judaico-cristãos e com a filosofia grecoromana em detrimento dos aspectos mitológicos.

 

TEORIA ELIADEANA SOBRE O MITO

Para Mircea Eliade, a religião é a experiência do sagrado, do reino que está além do mundo natural, cotidiano e profano. No entanto, o sagrado é a preeminência do real, tratase de uma realidade última, não necessariamente profunda ou interna. Eliade fala de uma realidade com a qual o homem procura ter contato. Essa realidade existe extra hominem e não intra hominem (Eliade, 2011, p. 18-19, Segal, 1986, p. 62, 91-92). O profano é ilusório, não porque ele não existe, mas porque ele é menor do que o todo real. A maior parte dessa experiência se dá no mundo profano. As manifestações assumem inúmeras formas chamadas de hierofanias: objetos, lugares (Segal, 1986, p. 62). No entanto, o sagrado, sendo impessoal, é diferente dos deuses. Os deuses residem no sagrado e são secundários. Assim, os agentes do sagrado criam o mundo profano (o ser humano só existe porque seres divinos agiram) (Segal, 1986, p. 62).

O ser humano descobre a existência do sagrado por meio das hierofanias, mas só através do mito o ser humano descobre a criação do mundo profano. Nesse sentido, as hierofanias dão a experiência e o mito dá a informação. Assim, o mito explica como o sagrado, através dos deuses, criou o mundo profano. O mito explica a origem do mundo, não sua função. Quando se trata de origem, isso deve ser aplicado a todos os fenômenos naturais, inclusive o homem (Segal, 1986, p. 62-63). Segundo Mircea Eliade:

O mito conta uma história sagrada, quer dizer, um acontecimento primordial que teve lugar no começo do Tempo, ab initio. Mas contar uma história sagrada equivale a revelar um mistério, pois as personagens do mito não são seres humanos: são deuses ou Heróis civilizadores. Por esta razão suas gestas constituem mistérios: o homem não poderia conhecê-los se não lhe fossem revelados. O mito é, pois, a história do que passou in illo tempore, a narração daquilo que os deuses ou os Seres divinos fizeram no começo do Tempo. "Dizer" um mito é proclamar o que se passou ab origine. Uma vez "dito", quer dizer, revelado, o mito torna-se apodítico: funda a verdade absoluta (Eliade, 2011, p. 84).

O mito é o que é dito (λεγόμενον) em interação com o rito, com o que é realizado (δρώμενον), na linguagem da expressão religiosa. A ritualização é dramática e está na esfera do fazer, do agir ou do atuar (Croatto, 2010, p. 330-334), daí o verbo δράω [drao], que origina o δραμα [drāma]. Ao falar ou recitar o mito, realiza-se um ato, não de puramente relatar, mas de explicitar um δρãμα, uma ação ou feito (δρώμενον) (Eliade, 2011, p. 85-86; Eliade, 2010, p. 334, 339-340, 350; Croatto, 2010, p. 210-211, 330-334).

Ademais, pelo mito pode-se criar impacto aos ouvintes e leitores, como sentimento de promessa, de advertência.10 É por causa do mito que os ritos são executados como uma espécie de forma de imitatio ou μίμησις [mimēsis]:11 os participantes do rito querem participar também da narrativa mitológica.

O mito pode soar como um ato perfomativo de alguém (em terceira pessoa) em relação a algo no passado, in illo tempore,12 pois a pessoa é inserida em um tempo arquetípico.13 Outrossim, o mito ou a narrativa mitológica é de ordem da narração ou do relato. Ou seja, relata-se o que é dito ou falado (λεγόμενον).14 Narrar um mito é um ato fático, com construção específica segundo uma determinada gramática e em conformidade com ela, com uma dada entonação etc. Assim, o mito constitui um φήμη [phēmē], o resultado desse ato de enunciação. Em última análise, o mito compreende o objeto do disse, do relatou, do assim disse. Logo, ele é um ato locucionário ou locucional, é aquilo que se diz que é assim.15 Daí que o ato de narrar o mito tem uma força atualizadora dos acontecimentos primordiais, deixando para o rito a repetição da ação divina mimetizada como uma liturgia. É justamente nas cenas rituais que os atos divinos (míticos) são atualizados.16

Deve-se levar em consideração que o relato mítico interessa ao homem religioso (homo religiosus). A função do mito é estabelecer modelos exemplares dos gestos rituais e de qualquer atividade do ser humano, imitando os gestos exemplares dos deuses e heróis. Assim, o homem religioso procede em conformidade com os mitos como imitatio dei. Esse homem se interessa pelas histórias sagradas incidentes nos mitos, e não exclusivamente pela história humana. Em última análise, as atividades humanas, não só religiosas, como sexualidade, trabalho e educação, são realizadas como gesta divinos (ELIADE, 2011, p. 87- 89; ELIADE, 2010, p. 334, 338-339, 351).

Segundo Eliade, para o homo religiosus, a essência precede a existência. O ser humano só é o que é porque um conjunto ou uma série de eventos e fatos se deu ab origine ou ab initio. Os mitos têm a função de lhe contar sobre esses eventos e lhe dar explicação de como e por que ele é constituído de tal maneira. Assim, para o homo religiosus, a existência real tem início quando lhe é comunicada a história primordial, aceitando suas consequências. Essas histórias são sempre divinas, porque suas personagens são deuses e/ou ancestrais míticos. Um exemplo para isso é o relato da queda do homem primordial (ancestral mítico), o qual veio a ser dotado de mortalidade e sexualidade depois de um determinado evento, dando as causas para a existência real hoje (Eliade, 2016, p. 85-86).

Mito é um precedente para o real de uma forma geral (Eliade, 2010, p. 339). Em todo caso, existem mitos, cuja estrutura real é inacessível ou distante de uma compreensão racionalista.17 Por exemplo, mitos da polaridade, da biunidade e da reintegração (Eliade, 2010, p. 339). No entanto, convém ressaltar o modelo eliadeano do mito utilizando o princípio da coincidentia oppositorum18 (inclusive, muito incidente nos escritos herméticos). Do ponto de vista da semiose hermética, segundo Umberto Eco:

O pensamento hermético diz que nossa linguagem, quanto mais ambígua e polivalente for valendo-se de símbolos e metáforas, tanto mais habilitada estará a nomear o Uno no qual se realiza a coincidência dos opostos. Mas onde triunfa a coincidência dos opostos, cai por terra o princípio da identidade (Eco, 2004, p. 25).

Como exemplo, segundo Eliade (2010, p. 341), todos os mitos se revelam ou se manifestam duplamente: 1) Através da polaridade de dois seres provenientes de uma mesma realidade e que se reconciliam in illo tempore. 2) Do ponto de vista do princípio da oposição dos opostos, na estrutura profunda, os mitos manifestam na estrutura profunda da divindade, em que se apresentam forças, aspectos ou atributos contrários ou opostos.

 

ANÁLISE DO MITO DO CORP. HERM. 1.12-15.

Para o homo religiosus hermeticus, a catábase do Ανδρωπος [Anthrōpos], por ter sido atingido pelo amor-sexo (ερως), e sua relação com a Natureza (φύσις [Physis]), constituem a causa da humanidade vir a ser mortal, submetida ao destino (heimarmenē), escrava das esferas, submetida ao sono e dividida entre machos e fêmeas (Corp. Herm. 1.14- 15, 18-19). Isso seria a explicação para o hermético entender por que o ser humano é o que é. Outro passo seria procurar restabelecer o processo inverso em busca do essencial que é o Homem Primevo antes da catábase, o qual ainda reside em cada pessoa (αδάνατος δξ δια τον οúσιώδη άνδρωπον). Por esta razão, diz-se que "e o sensato reconheça a si sendo imortal, e reconheça que a causa da morte é o ερως (erōs), e reconheça todos os seres (και άναγνωρισάτω ά εννους αυτον οντα άδάνατον, και τον ατιον του δανάτου ερωτα, και πάντα τά οντα) (Corp. Herm. 1.18-19)". 19

Convém começar pelo princípio da coincidência dos opostos ou pela biunidade incidente no texto do Corp. Herm. 1.15. Nesse texto, pelo nível profundo do texto, uma oposição é constituída pela imortalidade versus mortalidade e os elementos textuais axiologicamente negativos e positivos se organizam em torno do eixo semântico homem ou a humanidade.

Antes mesmo de comentar sobre a biunidade mortal-imortal do ser humano, fazse necessário voltar ao tema de sua bissexualidade. No Corp. Herm. 1, é muito comum a ocorrência da coincidência dos opostos em biunidade por androginia divina. Por exemplo, o Nous Deus é masfemina, macho-fêmeo (άρρενόδηλυς [arrenothēlus]).20 O conceito de biunidade divina e dos seres míticos in illo tempore também é descrito, no Corpus Hermeticum 1, de forma metafísica (como ser e não ser) e teológica (manifesto e imanifesto). No entanto, a forma mais antiga de biunidade é retirada dos conceitos biológicos da sexualidade (bissexualidade). A androginia é a fórmula mais antiga da biunidade divina. Em suma, a fórmula binária da androginia tem a intenção única de exprimir em termos biológicos (bissexualidade) a coexistência dos contrários (macho-fêmea) no âmago da divindade mítica. Em todo caso, no Poimandrēs (Corp. Herm. 1), embora se descreva que Deus é bissexual por 'gestar', de fato, conota-se a ausência de sexo (assexual), sendo livre das paixões.21

Deve-se levar em consideração que os aspectos contraditórios do ser divino são representados por mitos e ritos correspondentes à androginia humana. Nota-se que o mito divino é assaz paradigmático para a experiência religiosa (Eliade, 2010, p. 344). Ainda mencionando sobre o mito como modelo exemplar, deve-se considerar que o mito como elemento revelador pode gerar inconsistência segundo a compreensão racionalista (Eliade, 2010, p. 339), principalmente quando se menciona a biunidade (androginia) humana. Outrossim, menciona-se o Homem Primevo, primordial, o antepassado andrógino, em que se pode salientar sobre os pares primordiais (gêmeos, irmão e irmã). Em última análise, faz-se necessário também perceber como se ritualizou o mito do Homem Primevo e a Natureza: a linguagem ritualizada iria evocar o mito da 'androginização' do homem através do amor (ερως), em que cada sexo iria se apropriar das qualidades e atributos um do outro, como a devoção do amante (do homem amoroso). Mas nada disso é tematizado no Corp. Herm. 1.15 (Eliade, 2010, p. 346).

Saindo da esfera do mito da biunidade (androginia) divina, passa-se agora para o mito da biunidade (androginia) humana.22 No Corp. Herm. 1.15, fala-se também do homem como masfemina como seu Pai (o Nous Deus). Ao mencionar que o ser humano é duplo (homo duplex)23, há uma demarcação dessa biunidade.

Dessarte, pode-se afirmar que, no Corp. Herm. 1.15, a biunidade, como uma coincidência dos contrários que mais chama a atenção é a duplicidade mortal-imortal (ELIADE, 2009, p. 350). Assim, o homem se torna mortal pelas razões que foram mencionadas no mito, as quais serão mencionadas posteriormente no Corp. Herm. I.18: as paixões (ερως) constituem a causa mortalitatis (τον αττιον τοű δανάτου ερωτα) do ser humano (HERMÈS TRISMÉGISTE, 2011, t. 1, p. 13). Como andrógina (bissexual), ele não deveria ter sido influenciado por esse sentimento, mas, ao mesmo tempo, o ερως é o tema principal para a ritualização do mito - é o ato com o querer (άμα τň βουλň έγένετο ένέργεια).

A coincidência dos opostos constitui uma das maneiras mais antigas de se descrever a realidade divina. Embora se entenda que os contraditórios se coincidem, de fato, eles transcendem os atributos da divindade, sendo uma definição mínima da divindade em relação ao ser humano (ELIADE, 2010, p. 341). No entanto, a coincidência (transcendência) dos contraditórios é um modelo que pode ser imitado por todos os seres humanos em diversas modalidades religiosas (ELIADE, 2010, p. 341).

No nível mais figurativo, no Corp. Herm. 1.14, o mito não se manifesta pela coincidência dos opostos, mas pela reintegração dos elementos polarizados (em uma estrutura mais discursiva) provenientes de uma mesma origem ou regidos pelo mesmo elemento (ερως): o Ăνδρωπος e a φύσις. Ao que tudo indica, o Homem Primevo já tinha sido influenciado pelo amor desde sua descida pelas esferas onde se encontram os regentes, e tenha recebido a autoridade (ou a energia) de Vênus. O engano ou o erro do ερως já o havia dominado (SCOTT, 1985, v. 2, p. 39, 47-48, 55; DODD, 1954, p. 154), de tal maneira que veio a se deixar apaixonar pela Natureza. É plausível que a moral da história desse mito mesmo não seja a explicação do Corp. Herm. 1.15 sobre a biunidade mortal-imortal, mas a significação do Corp. Herm. 1.18-19 (COPENHAVER, 2000, p. 110), onde ocorre a causa da mortalidade (τòν αňτιον τοŭ δανάτου ερωτα) do homem e o engano proveniente do amor (εγ πλάνης ερωτος).24

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

No nível mais superficial e dos elementos internos da ficção, pode-se constatar que o assunto do mito no episódio da catábase do Homem (no Corp. Herm. 1.14-15) é justamente a catábase ou a queda do Homem Divino (personificação da Humanidade), o Aνδρωπος [Anthrōpos], homo divinus ou herói mítico. As imagens ou as unidades visuais são explicitadas pelas expressões 'a bela forma de Deus'; 'a beleza insaciável'; 'a mui linda forma do Homem'. O principal topos ou lugar-comum desse mito é o amor-sexo (ερως). O episódio ou a cena retrata a catábase do Homem para o mundo dos mortais e dos viventes irracionais; o elogio (adulação) da sedutora, neste caso, da Natureza (φύσις [Physis])25 – personificação da natureza material e terrena. A personagem principal é do tipo homo divinus, herói mítico, o qual sofre as consequências de sua grandeza e superioridade através de um sacrifício em nome do amor. Justamente por ter sido atingido pelo amor-sexo (ερως), é iludido ou enganado e passa a ser dominado. Como acontece, amiúde, na catábase, toda superioridade deve cumprir as penas. Trata-se do mito do herói que se inicia com as catábases, em que se dá a descida ao mundo dos mortos ou ao mundo dos mortais. No que se refere ao ser humano (não divino), sua catábase se dá no mundo dos mortos; em relação ao homo divinus, sua descida se dá no mundo dos meros mortais. O enamoramento, o casamento e o amor-sexo compreendem o tema fundamental que se sobrepõe ao motivo (Guillén, 2015, p. 234; Defina, 1975, p. 75ss).

Ademais, convém salientar que o homo divinus se apaixonou pela Natureza e habitou lá não necessariamente porque ele a viu, mas porque ele viu a si mesmo refletido na água. Ele, ao contrário, apaixonou-se por si mesmo porque tinha visto sua forma refletida na água e na sombra sobre a terra. Não é nenhuma coincidência certa semelhança com o mito de Narciso. Existe uma evocação ao mito de Narciso sem qualquer récit mythologique na íntegra. Ele surge como um aporte para o autor de Poimandrēs. No entanto, o tema fundamental é o relacionamento amoroso entre o Homem e a Natureza. A catábase ou a queda do Homem está fundamentada na paixão cúpida e luxuriante. Para Walter Scott, essa passagem de Poimandrēs não é mais do que uma evocação aos mitos pagãos do casamento do Céu com a Terra (que se figuram sob vários nomes, Urano e Gaia, Zeus e Hera, Hylas e as ninfas, entre outros).26 Em todo caso, ele se apropria da alusão do mito de Narciso como tema também da superioridade e do amor (ερως). Em suma, o tema do engano, da superioridade e da paixão relacionada ao motivo de Narciso está presente como mitologema27, mas a estrutura básica do mito remonta ao mitologema do casamento ou do enamoramento entre o Céu (homo divinus) e a Terra (a forma irracional e material) (Lira, 2014, p. 280).

Não obstante, a explicação do Corp. Herm. 1.15 abstrai em um nível mais profundo de significação e não está nas estruturas discursivas. Assim, percebe-se que, pelo nível profundo do texto, uma oposição é constituída: imortalidade versus mortalidade (autoridade versus submissão). Cada um desses extremos ou pólos pode ser investido de algum sentido axiologicamente positivo (qualificação, apreciação) ou negativo (desqualificação, depreciação) (Fiorin; Savioli, 2012, p. 37, 45-49; Bertrand, 2003, p. 172-183). Sendo assim, os elementos textuais axiologicamente negativos e positivos do Corpus Hermeticum 1.14-15 se organizam em torno do eixo semântico homem ou a humanidade.

 

 

Referências

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Nota sobre o autor

David Pessoa de Lira: pós-Doutorado no Programa de Pós-Graduação em Letras (área: Teoria da Literatura) da UFPE. Professor Adjunto da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Línguas Clássicas (Grego e Latim), e em Literatura Greco-Romana. Professor de Língua e Literatura Latinas do Departamento de Letras da UFPE. Atua no ensino de Língua Grega no Departamento de Filosofia da UFPE. Professor do PPGL/UFPE na área de Teoria da Literatura. Líder do Grupo de Pesquisa Hermeneia (da UFPE). Full Member of the European Society for the Study of Western Esotericism (ESSWE). Membro associado da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos (SBEC). Graduação em Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST - 2006), Mestrado em Teologia (EST - 2006) e Doutorado em Teologia pela (EST - 2014). Email: lyrides@hotmail.com

 

 

Recebido em: 22/01/2020
Aprovado em: 12/02/2020

 

1

2 O grifo em itálico na tradução é do autor. This philosophy was employed to interpret or rationalize the mythology and ritual of various religions of the Near East, on the understanding that rightly understood they all communicated divinely revealed γνώσις. The Hermetica in general are documents of this kind of religious philosophy (DODD, 1954, p. 244).
3 Sobre os aspectos tipológicos das sentenças, cf. MAHÉ, 1982, t. 2, p. 41, 416-427; LIRA, 2015, p. 100-101, 284-285.
4 Sobre o aoristo gnômico, cf. RAGON, 2012, p. 270; BETTS; HENRY, 2010, p. 56; BLASS; DEBRUNNER; FUNK, 2009, p. 171-172, 177-178, 192, 259; JAY, 1994, p. 250, 252.
5 Il mitologema è un materiale mitico che viene continuamente rivisitato, rimodellato e plasmato, come un fiume di immagini senza fine. JUNG; KERÉNYI, 2012, p. 15-17; LIRA, 2015, p. 282.
6 As figuras são palavras, termos e expressões que designam algo existente no mundo natural, tais como substantivos concretos, verbos que indicam atividades físicas e adjetivos que descrevem qualidades físicas (FIORIN; SAVIOLI, 2012, p. 71-72; BERTRAND, 2003, p. 154, 214). Exemplos de figuras: Homem, mundo, viventes, sombra, olhar, harmonia planetária, couraça, mostrar, Natureza, sorrir, ver, água, terra, energia, regentes, Deus e habitar. A humanidade, o Ăνδρωπος, e a natureza, a φύσις, foram personificadas, perdendo seu caráter mais abstrato e geral, dando espaço às figuras mais concretas. O Ăνδρωπος e a φύσις passam a ser substantivos próprios. Relativo à palavra Ăνδρωπος, pode significar tanto a espécie humana como cada indivíduo humano. Essa distinção só é possível pelo uso do artigo, mas, sobretudo, pelo contexto (RAGON, 2012, p. 172; BETTS, 2010, p. 11). Quanta à harmonia das esferas ou à harmonia planetária (άρμονία), diz respeito à estrutura do universo, e não a uma palavra abstrata (LIDDELL; SCOTT, 1996, p. 244; SCOTT, 1985, v. 2, p. 41-42; DODD, 1954, p. 138-141). Os regentes são os astros (ou os deuses astrais) (DODD, 1954, p. 138-141, 154; SCOTT, 1985, v. 2, p. 47-48; DODD, 2005, p. 31; COPENHAVER, 2000, p. 133).
7 …that reading activates a latent performative function of the text, and that this function supports, and even manipulates the mind of the Empirical Reader to experience that the deitic shift into the community of Hermetists takes place in the here and now of the reading-process (SÖDERGÅRD, 2003, p. 68).
8 O nome Tat apresenta uma grafia diferente, pressupondo que Hermes-Thoth seja uma figura com personalidade independente de Tat. NOCK; FESTUGIÈRE, 2011, t. 1, p. IV; DODD, 2005, p. 13; SCOTT, 1985, v. 1, p. 2-3; MAHÉ, 2005, v. 6, p. 3940; LIRA, 2015, p. 98.
9 JOHNSON, 2009, p. 85-88; ELIADE, 2011, v. 2, p. 431; COPENHAVER, 2000, p. xxxix, lii; FERGUSON, 1990, p. 250; FILORAMO, 1992, v. 1, p. 378; MAHÉ, 2005, v. 6, p. 3940; MAHÉ, 1982, t. 2, p. 15, 29, 314, 441; DODD, 2005, p. 17-25, nota 2 na página 20, nota 1 na p. 33; SCOTT, 1985, v. 1, p. 7, 8-9; DODD, 1954, p. 245; LIRA, 2015, p. 99.
10 Cf. Corp. Herm. I.16 (HERMÈS TRISMÉGISTE, 2011, t. 1, p. 12): Καϊ μετα ταúτα, Νοúς á εμός; καϊ αúτδς γαρ ερώ τοú λόγου (E depois dessas coisas, ó meu Nous? Pois também eu mesmo estou apaixonado pelo discurso (tradução própria)). Por causa do relato do mito no episódio da catábase do Homem, o visionário se sente tomado pelo mesmo sentimento (ερως [erōs]) que permeia o discurso (mito) ou o λόγος.
11 ELIADE, 2011, p. 85, 87-90, 92-94; ELIADE, 2010, p. 338-339, 350-352; CROATTO, 2010,p. 330-331.
12 LIRA, 2015, p. 41; ELIADE, 2011, p. 85, 89- 90, 92-94; ELIADE, 2010, p. 338-339, 350-352; CROATTO, 2010, p. 212-216.
13 Antes de se narrar o mito (Corp. Herm. I. 9-23), o visionário é levado aos tempos arquetípicos (Corp. Herm. I. 1-8) através de uma visão (ELIADE, 2011, p. 85, 89- 90, 92-94). Assim, no Corp. Herm. 1. 8 (HERMÈS TRISMÉGISTE, 2011, t. 1, p. 9), Poimandrēs diz ao visionário: Εīδες Εν των ω τδ άρχέτυπον εīδος, τδ προαρχοντňς άρχňς τňς άπεράντου... (Viste na mente a visão arquetípica, o pré-princípio do começo infindo... (tradução própria).
14ELIADE, 2011, p. 84; ELIADE, 2010, p. 338, 351; CROATTO, 2010, p. 210-212, 331.
15 No Poimandrēs, o verbo φημί, dizer, narrar, relatar etc., incide para narrar o mito, o acontecimento mítico. A partir do Corp. Herm. I. 8, o mito é narrado explicitamente: cosmogonia (Corp. Herm. I. 9-11) e antropogonia (Corp. Herm. I. 12-23). Antes, havia uma visão e as explicações da visão (tudo era meramente constativo) (cf. HERMÈS TRISMÉGISTE, 2011, t. 1, p. 2-5, 7-9). A partir do Corp. Herm. I.8 (HERMÈS TRISMÉGISTE, 2011, t. 1, p. 9), a narrativa mítica começa: – Τά ουν, έγώ φημι, στοιχεĩα τňς φύσεως πόδεν Ùπέστη; – πάλιν εκεινος πρδς ταúτα... (Então, eu disse [ou digo]: os elementos da criação, de onde se hipostasiaram? – Novamente ele [disse ou diz] sobre essas coisas... (tradução própria). O mito é narrado como uma resposta ao como, ao porquê, ao donde etc. (ELIADE, 2011, p. 86). Embora φησί, isto é, ele disse [diz], esteja elíptico ou oculto, ele deve ser subentendido. Sobre esse verbo, cf. MORWOOD; TAYLOR, 2002, p. 339. Sobre a palavra φήμη (palavra, resposta, dito, relato, discurso), cf. MORWOOD; TAYLOR, 2002, p. 339.
16 ELIADE, 2011, p. 84; ELIADE, 2009, p. 339. 16 ELIADE, 2011, p. 85, 87-90, 92-94; ELIADE, 2010, p. 338, 350-352; CROATTO, 2010, p. 332.
17 Sobre os princípios racionalistas que constituem o modus ponens, cf. ECO, 2004, p. 21-22; DURAND, 2008, p. 174-175; LIRA, 2012, p. 138-139. A linguagemhermética coloca por terra os princípios racionalistas através da coincidência dos contrários e do princípio de similitude (ECO, 2004, p. 23-26; DURAND, 2008, p. 174-175).
18
Expressão herdada de Nicolau de Cusa (1401-1464), o qual se colocava contra a lógica aristotélica escolástica, principalmente do princípio lógico de não contradição (ABRÃO, 2004, p. 137-138).
19 .HERMÈS TRISMÉGISTE, 2011, t. 1, p. 10-12.
20Corp. Herm. 1. 15 (HERMÈS TRISMÉGISTE, 2011, t. 1, p. 9): á δĚ Νοúς á δεός, άρρενόδηλυς ŵν, ζωή καϊ φώς úπάρχων, άπεκύησε λόγώ ντερον Νοúν δημιουργόν, ãς δεδς τοú πυρδς καϊ πνεύματος ών, εδημιούργησε διοικητάς τινας επτά (Porém o Nous Deus, sendo macho-fêmea, sendo vida e luz, gestou com uma palavra outro Nous Demiurgo, que, sendo Deus do fogo e do ar, criou uns sete regentes... (tradução própria)). Cf. sobre o ser e o não-ser, cf. Corpus Hermeticum 2.13, 14; V.9, (HERMÈS TRISMÉGISTE, 2011, t. 1, p. 37, 63). Sobre manifesto e imanifesto, cf. Corpus Hermeticum V (HERMÈS TRISMÉGISTE, 2011, t. 1, p. 60-65).
21 DODD, 1954, p. 133, 138, 146, 151, 159-160, 165; SCOTT, 1985,v. 2, p. 45; COPENHAVER, 2000, p. 110; ELIADE, 2010, p. 341-343.
22 Sobre a androginia do Homem Primevo, cf. Platão, Symposium 189e (PLATO 1925, p. 143).
23
Cf. Asclepius 7 (HERMÈS TRISMÉGISTE, 2011, t. 2, p. 304).
24 Platão menciona o amor (ερως) e seu engano em Phaedrus 238b- 238c.PLATÃO, 2011, 86-87 .
25
Não se deve entender, no mito, Physis como mulher necessariamente. Mulher, em textos míticos, nunca remete à mulher, pois aponta sempre para o princípio cosmogônico que é incorporado por ela. Ademais, muitas divindades relacionadas à natureza, vegetação, por exemplo, são divindades bissexuadas. Ademais, até mesmo divindades tipicamente masculinas ou femininas são andróginas (ELIADE, 2009, p. 342-343).
26 SCOTT, 1985, v. 2, p. 41-44; COPENHAVER, 2000,p. 109; ELIADE, 2011, v. 1, p. 50-54, 149-150, 238-243, 265-267; ELIADE; COULIANO, 2009, p. 163-164; ELIADE, 2010, p. 39-101, 164-168, 193-212; ELIADE, 2011, p. 100-109, 116-129. LIRA, 2015, p. 280. Cf. o mito de Adão e Eva e sua influência no Corp. Herm. 1. 14 (DODD, 1954, p. 152-160).
27
Sobre o motivo, leitmotiv, motif, cf. LIRA 2014, p. 289; DEFINA, 1975, p. 81-82. O motivo, constantemente utilizado para criar novas narrativas míticas, Károly Kerényi designou como mitologema (JUNG; KERÉNYI, 2012, p. 15-17; KERÉNYI, 2015, p. 221-224, 232-235; ).

 

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