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Revista do NUFEN

versão On-line ISSN 2175-2591

Rev. NUFEN vol.12 no.3 Belém set./dez. 2020

https://doi.org/10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº03artigo75 

Artigo

DOI: 10.26823/RevistadoNUFEN.vol12.nº03artigo75

 

Repercussões dos determinantes sociais na saúde mental das migrantes haitianas em Goiás

 

Repercussions of social determinants on the mental health of haitian migrants in Goiás

 

Repercusiones de determinantes sociales sobre la salud mental de las migrantes haitianas en Goiás

 

 

Manuella Rodrigues de Almeida Lima; Marta Rovery de Souza; Fernanda Costa Nunes

Universidade Federal de Goiás

 

 


RESUMO

O objetivo deste artigo é descrever e analisar as condições de vida das haitianas e compreender suas implicações na saúde mental dessas mulheres, realizou-se pesquisa tipo exploratória, utilizando instrumentos qualitativos e quantitativos. Participaram do estudo 38 haitianas, moradoras de um bairro de Aparecida de Goiânia, que responderam aos questionários sociodemográfico: SRQ-20, WHOQOL-breef e foram submetidas a entrevistas semiestruturadas, cujos conteúdos foram analisados com ajuda do software WebQDA. Encontrou-se que maioria das participantes tem entre 20 e 30 anos, tem nível escolar fundamental, são casadas, tem filhos no Brasil e no Haiti, estão no país há mais de um ano e menos de cinco anos, não falam português, estão desempregadas. O desemprego foi o principal fator de sofrimento psíquico e estabelecer boas relações com os brasileiros foi o principal fator de proteção à saúde mental. Apesar das dificuldades, a maioria das haitianas tem uma percepção de bemestar vivendo neste país.

Palavras-chave: Saúde Mental, Migração Humana; Qualidade de Vida


ABSTRACT

The objective of this article is to describe and analyze the living conditions of Haitians and understand their implications for the mental health of these women, an exploratory type research was carried out, using qualitative and quantitative instruments. 38 Haitians, living in a neighborhood of Aparecida de Goiânia, participated in the study, who answered the sociodemographic questionnaires: SRQ-20, WHOQOL-breef and were submitted to semi-structured interviews, whose contents were analyzed with the help of the WebQDA software. It was found that most of the participants are between 20 and 30 years old, have elementary school level, are married, have children in Brazil and Haiti, have been in the country for over a year and less than five years, do not speak Portuguese, are unemployed. Unemployment was the main factor of psychological suffering and establishing good relations with Brazilians was the main factor of protection for mental health. Despite the difficulties, most Haitians have a perception of wellbeing living in this country

Keywords: Mental Health; Human Migration; Quality of Life


RESUMEN

haitianos y comprender sus implicaciones para la salud mental de estas mujeres, se realizó una investigación exploratoria, utilizando instrumentos cualitativos y cuantitativos. Participaron en el estudio 38 haitianos que vivían en un barrio de Aparecida de Goiânia, quienes respondieron los cuestionarios sociodemográficos: SRQ-20, WHOQOL-breef y fueron sometidos a entrevistas semiestructuradas, cuyos contenidos fueron analizados con la ayuda del software WebQDA. Se descubrió que la mayoría de los participantes tienen entre 20 y 30 años, tienen nivel de escuela primaria, están casados, tienen hijos en Brasil y Haití, han estado en el país durante más de un año y menos de cinco años, no hablan portugués, están desempleados. El desempleo fue el principal factor de angustia psicológica y el establecimiento de buenas relaciones con los brasileños fue el principal factor de protección para la salud mental. A pesar de las dificultades, la mayoría de los haitianos tienen una percepción de bienestar en este país

Palabras clave: Salud Mental; Migración Humana; Calidad de Vida.


 

 

INTRODUÇÃO

A migração internacional tem sido um dos temas de destaque nas agendas políticas de diversos países, inclusive do Brasil, não apenas pela intensificação dos movimentos populacionais entre países, mas também pelo desafio que impõe às diferentes áreas da gestão pública (Dias & Gonçalves, 2007). Por isso, é importante conhecer as vulnerabilidades desses grupos populacionais e, a partir do conhecimento, dar suporte às políticas públicas.

Os deslocamentos populacionais internacionais do século XXI são desencadeados pelas mudanças econômicas, políticas, sociais e ideológicas e consequente reformulação de blocos econômicos, do mercado de trabalho e das desigualdades econômicas geradas entre nações (Baeninger & Peres, 2017). Estima-se que, em 2015, havia cerca de 244 milhões de pessoas residindo fora do seu país de origem, cerca de 100 milhões a mais do que havia no ano de 1990 (Ministério da Justiça e Segurança Pública, 2017).

Os fluxos migratórios contemporâneos são heterogêneos, em parte compostos por migrantes forçados, que deixam seus países de origem em virtude de conflitos civis, desastres naturais, perseguição política, pobreza, discriminação ou falta de acesso a serviços básicos. Estima-se que no final do ano de 2016, 65,6 milhões de pessoas foram forçadas a sair de seus locais de origem, por diferentes motivos, no mundo todo. Desse montante, 22,5 milhões eram refugiadas e 2,8 milhões eram solicitantes de proteção internacional (International Organization For Migration, 2018).

Embora os fluxos migratórios contemporâneos sejam heterogêneos, os indivíduos que os compõem carregam algumas semelhanças no que diz respeito às vulnerabilidades encontradas, antes, durante e depois do processo. Por outro lado, as comunidades dos países de destino enfrentam o desafio de lidar com a diversidade da população e consequente mudança do seu perfil cultural e de saúde (International Organization for Migration, 2018).

Para que o direito à saúde seja efetivado de forma a permitir a inclusão dos imigrantes na sociedade, é necessário compreender a interação dos diferentes fatores envolvidos no processo saúde-doença dessa população. Estudos sobre o tema evidenciam que os determinantes sociais de saúde variam a depender do tipo de imigração, das condições do trânsito, da situação vivida no país de origem, nos de trânsito e nos de destino (Dias & Gonçalves, 2007; Priebe, Giacco & El-Nagib, 2016).

Além das condições do processo migratório em si, fatores como etnia, raça, religião e gênero também interferem no processo saúde-doença dos imigrantes (Topa, Neves & Nogueira, 2013). E, em se tratando do gênero, apesar das migrações femininas representarem cerca de 48% do total de migrantes internacionais do mundo todo, os estudos sobre elas são insuficientes e, em sua maioria, consideram-nas acompanhantes, não lhes conferindo o papel de agente ativo nos processos de escolha e de produção econômica (Peres, 2017).

Os vários fatores envolvidos no processo migratório, que produzem ou intensificam vulnerabilidades em saúde, implicam riscos não apenas para a saúde física, mas também para a saúde psíquica dos indivíduos. O rompimento de relações sociais, mudanças bruscas nos hábitos, no status social e profissional, entre outros, são fatores que podem interferir negativamente na saúde mental do migrante (Martins-Borges, 2013; Coutinho, Rodrigues & Ramos, 2012).

As pesquisas sobre saúde mental das mulheres imigrantes são escassas (Ventura, 2015), por isso se fazem necessários mais estudos que reflitam sobre migrações femininas e sobre as condições de vida em que vivem essas mulheres; que pensem sobre o lugar social que elas ocupam; que reconheçam as desigualdades às quais elas estão expostas; e que, por fim, subsidiem políticas públicas que defendam seus direitos e respeitem suas especificidades, reduzindo, assim, as desigualdades e vulnerabilidades dessa população (Lussi, 2015).

Nesta pesquisa, não se referiu ao sofrimento mental enquanto categoria diagnóstica, mas utilizou-se do enfoque psicossocial, inspirado nos paradigmas propostos pela Reforma Psiquiátrica, que tem o sujeito como foco de atenção, assim como suas subjetividades e emoções, o que legitima seu sofrimento sem patologizá-lo. Com essa perspectiva, fugiu-se do estereótipo do imigrante como pessoa frágil ou psicologicamente vulnerável e buscou-se compreender as particularidades de um grupo de imigrantes haitianas, residentes em Aparecida de Goiânia.

 

METODOLOGIA

Trata-se de uma pesquisa descritiva e exploratória de abordagem multimétodos, da qual participaram 38 mulheres imigrantes haitianas. Para estudar a população migrante de nacionalidade haitiana residente na cidade de Aparecida de Goiânia, objeto de estudo desta pesquisa, a constituição da amostra seguiu critérios não probabilísticos, segundo os quais a escolha dos indivíduos com características em comum permitiram a formação de um subgrupo que seja representativo de um contexto (Fontanella, Ricas & Turato, 2008).

A população estudada constituiu-se de mulheres haitianas, maiores de idade e residentes de um mesmo bairro da referida cidade. A amostragem dessa pesquisa foi organizada segundo a técnica bola de neve, que utiliza cadeias de referência para captar os participantes. Nesse tipo de amostra, o pesquisador inicia seus contatos por meio de informantes chaves, também chamados "sementes", que são pessoas com o perfil necessário para a pesquisa, dentro da população geral (Vinuto, 2014).

Neste estudo, os primeiros contatos foram feitos com a esposa do pastor da igreja frequentada pelos haitianos e a própria tradutora brasileira, que reside em Aparecida de Goiânia e que já conhecia várias haitianas, por causa do seu trabalho religioso desenvolvido junto àquela comunidade. A utilização de fontes de contato possibilitou o acesso a redes sociais distintas, ou seja, a pessoas que não se conheciam, apesar de estarem no mesmo bairro, consequentemente, alcançando narrativas distintas (Vinuto, 2014).

Este estudo desenvolveu-se em duas etapas, na primeira etapa, foram aplicados os seguintes questionários: questionário sociodemográfico, World Health Organization of Quality of Life Instrument, versão reduzida (WHOQOL-Bref) e Self Reporting Questionnaire 20 (SRQ-20). Na segunda etapa de coleta de dados convidou-se todas as participantes da primeira fase do estudo para participarem das entrevistas semiestruturadas de aprofundamento. No entanto, apenas 15 delas se disponibilizaram a participar. A coleta de ocorreu no período de setembro a novembro de 2018.

Os instrumentos utilizados foram traduzidos para o crioulo, por uma tradutora brasileira e revisada por uma haitiana. As entrevistas foram realizadas com a mediação da mesma tradutora brasileira. O questionário sóciodemográfico foi elaborado pela pesquisadora e continha questões fechadas, que abordavam os fatores demográficos, as condições de vida das participantes relevantes para a saúde mental e a autopercepção das imigrantes sobre sua saúde. Foram levantados os seguintes dados: idade, grau de formação, estado civil, maternidade, tempo de permanência no Brasil, presença de rede social, situação trabalhista atual no Brasil, línguas faladas, autopercepção sobre o próprio estado mental e experiência prévia de cuidados em saúde mental no Brasil.

Com objetivo de rastrear a presença de transtornos de humor, de ansiedade e de somatização, conhecidos como Transtornos Mentais Comuns (TMC) utilizou-se o SQR20, que consiste em um instrumento de rastreamento psiquiátrico que contém 20 questões, todas com duas possibilidades de respostas (sim/não) (Gorenstein, Wang & Hungerbuhler, 2016). O SQR-20 foi validado por uma série de estudos comunitários conduzidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS), por preencher critérios de facilidade na aplicação e ter custo reduzido (Gonçalves, Stein & Kapczinski, 2008).

Aplicou-se o WHOQOL – Bref, que é um instrumento desenvolvido pela OMS para avaliar qualidade de vida. A versão abreviada do instrumento contém quatro domínios (I-Físico, II-Psicológico, III-Relações Sociais, IV-Ambiente) que se agrupam em 24 facetas representada por apenas uma questão. Apenas o domínio geral é composto por duas questões (Gorenstein et al., 2016). Para promover o cálculo dos escores do WHOQOL-Bref utilizou-se a ferramenta desenvolvida por Bruno Pedroso (2010) que utiliza a plataforma Excel e alcança as mesmas pontuações do programa Statistical Package of Social Science (SPSS) (Pedroso, Pilatti, Gutierrez & Picinin, 2010).

Este programa deixa de fazer o cálculo em duas situações: nos domínios compostos por até sete questões, quando duas ou mais questões do mesmo domínio não forem respondidas adequadamente e nos domínios compostos por mais de sete questões, quando três ou mais questões pertencentes do mesmo domínio não tiverem sido respondidas adequadamente (Pedroso et al., 2010). Por causa desses critérios, seis participantes foram excluídas desta etapa do estudo.

A etapa das entrevistas semiestruturadas foi realizada com o intuito de garantir uma abordagem mais assertiva que alcançasse os aspectos relevantes à população e aos objetivos desta pesquisa, apoiados nos pressupostos teóricos e nas hipóteses formuladas a partir da prévia observação em campo. As entrevistas foram registradas por meio de gravação de áudio; após transcritas, foram analisadas com base na categorização do conteúdo das falas das participantes, apoiada nos conhecimentos adquiridos em leitura prévia das referências teóricas sobre o tema.

O critério utilizado para análise do conteúdo foi semântico, por isso os recortes não coincidem necessariamente com unidades formais de frase ou período. Análise qualitativa foi realizada com o auxílio do software WebQDA, utilizado para dar suporte à investigações qualitativas e auxiliar na organização e sistematização dos dados, assim como facilitar a definição de categorias de análise do conteúdo (Costa & Amado, 2018).

Esta investigação foi realizada conforme a Resolução nº 510 do Conselho Nacional de Saúde (2016). O projeto foi submetido à avaliação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Goiás (CEP/UFG), por meio da Plataforma Brasil, e aprovado com os seguintes protocolos nº. 2.030.259/2017, nº. 2.087.276/2017 e nº. 2.920.627/2018.

 

RESULTADOS

Verificou-se que a maior parte das 38 participantes é composta por mulheres adultas jovens entre 20 e 30 anos, casadas, com nível de escolaridade no Ensino Fundamental, completo ou incompleto. A maior parte das mulheres declarou ter filhos no Brasil e/ou no Haiti. Observou-se que apenas um terço das entrevistadas tem conhecimento da língua portuguesa e a maioria das entrevistadas contava com algum tipo de rede de apoio previamente estabelecida em Goiânia ou Aparecida de Goiânia, antes de sua chegada no Brasil e não estão trabalhando atualmente (Tabela 1).

 

 

 

 

Cerca da metade das 38 entrevistadas declarou sentir-se mentalmente doente e essa percepção foi confirmada nos dados obtidos pelo questionário SRQ-20, cujos escores ficaram maiores que 7 para cerca da metade das mulheres que responderam a ele (Tabela 2).

 

 

 

A partir dos dados levantados pelo questionário WHOQOL-bref, esse grupo classifica como "boa" sua qualidade de vida geral, pontuando-a com 59,97, no escore que vai de 1 a 100. Chama atenção as maiores pontuações alcançadas nos domínios psicológico e das relações sociais, o que demonstra maior satisfação nesses aspectos da vida (Figura 1).

 

 

 

Os resultados que serão apresentados a seguir decorrem da análise de conteúdo da transcrição das entrevistas. Nessa análise buscou-se identificar núcleos de sentido que norteassem o recorte do conteúdo. Assim, o texto foi recortado e os fragmentos representam, cada um, núcleos de sentido ou significações, independentemente do seu tamanho ou estrutura formal, sendo distribuídos nos seguintes eixos temáticos (Figura 2).

 

 

 

 

 

Na classe temática Motivação/Expectativa, as perguntas estimuladoras do discurso foram "O que te motivou a vir para o Brasil?" e "O que você esperava encontrar?". Das 15 entrevistadas, 10 responderam que buscavam por emprego e/ou melhor qualidade de vida.

Na Categoria das Condições Positivas da Vida Atual, questionou-se o que a entrevistada entendia como positivo na sua atual condição de vida. Entre os aspectos positivos do Brasil, a receptividade dos brasileiros foi o que apresentou maior número de referências e que foi mencionada pelo maior número de entrevistadas. Algumas delas elencaram o fato de terem o apoio de seus maridos, e fato deles estarem empregados, como algo que as deixava mais tranquilas. A semelhança entre as culturas do Brasil e do Haiti também foi referida por quatro haitianas.

Na Categoria das Condições Negativas da Vida Atual, as entrevistadas foram estimuladas a falar sobre os aspectos negativos da vida no Brasil. O desemprego foi a subcategoria com maior número de referências, em geral, de todas as classes temáticas. Observou-se ainda que as haitianas se queixaram sobre suas experiências nos momentos em que precisaram de algum tipo de cuidado em saúde e os problemas relatados estavam relacionados à qualidade dos serviços e à falta de vagas para os cuidados demandados.

As haitianas foram questionadas sobre como se sentiam residindo no Brasil, ou seja, quais as emoções desencadeadas pelas atuais condições de vida. A partir de suas falas, os sentimentos experimentados e expressos foram divididos em duas categorias, positiva e negativa. Na Categoria das Emoções Positivas, evidenciou-se que, apesar das dificuldades encontradas no Brasil, grande parte das haitianas entrevistadas sente bemestar e segurança no Brasil e na Categoria das Emoções Negativas, preocupações financeiras, frustração e impotência foram as emoções mais referenciadas.

Nas Categorias Livres, as haitianas foram estimuladas a falar sobre sua saúde mental. Oito delas responderam que se sentem adoecidas mentalmente e a maioria descrevia o sofrimento como dificuldade para dormir ou como dificuldade em "parar de pensar"; algumas manifestaram queixas físicas inespecíficas.

 

DISCUSSÃO

Os dados levantados permitiram conhecer as características sociodemográficas da população estudada, assim como revelaram informações sobre fatores que interferem na sua saúde das mulheres haitianas. Verificou-se que o grupo entrevistado é semelhante a outros grupos de imigrantes haitianos existentes no país no que diz respeito à faixa etária. O grupo estudado é composto por mulheres com idade entre 20 e 40 anos, faixa etária predominante em fluxos migratórios econômicos/laborais, independentemente da variável de gênero (Baeninger et al., 2016; Fernandes & Castro, 2017; Monteiro, 2008).

O grau de formação das participantes também está de acordo com a literatura específica; a maioria das participantes cursou apenas o Ensino Fundamental, incompleto para muitas delas. A baixa escolaridade é um dos fatores que dificulta a inserção dessas mulheres no mercado de trabalho e está diretamente relacionado às condições gerais de saúde, especialmente à saúde mental (Baeninger et al., 2016). Essa associação deve-se, provavelmente, ao fato de que mais anos de estudos possibilitam melhores condições socioeconômicas, maior autonomia nos processos decisórios e mais acesso aos cuidados em saúde (Monteiro, 2008).

O baixo nível de escolaridade parece estar também relacionado ao fraco domínio da língua portuguesa e, nesta pesquisa, observou-se que poucas mulheres do grupo tinham domínio da língua. Sabe-se que a fluência na língua do país de acolhida facilita a comunicação, melhora o acesso ao trabalho, enquanto o desconhecimento da língua favorece o isolamento social, prejudica o acesso à saúde, aumenta a dependência das redes sociais de apoio e repercute negativamente na saúde mental dos imigrantes (Coutinho et al., 2012; Gorenstein et al., 2016; Granada et al., 2017; Martins-Borges, 2013; Monteiro, 2008).

No contexto migratório, o emprego é o principal meio de conexão dos imigrantes com a sociedade em um nível mais abrangente. A inserção no mercado de trabalho proporciona estabilidade e segurança psíquica, por garantir a sobrevivência material, por intermediar a inserção social, por viabilizar o projeto familiar e por possibilitar ao imigrante a percepção de corresponder às expectativas da sociedade (Silva & Queiroz, 2006).

A situação do desemprego encontrada neste estudo não difere de outros estudos feitos com haitianos residentes no Brasil. A atual dificuldade de encontrar trabalho é generalizada, para nacionais e estrangeiros, devido à retração da economia, experimentada, há alguns anos, pelo país. Não obstante, a falta de qualificação exigida pelo mercado, o fator linguístico e o preconceito são fatores que aumentam as dificuldades para os estrangeiros (Silva, 2016, p. 207-228).

Na população estudada, ficou claro que a busca por emprego é tema que predomina entre as motivações para migração para o Brasil e a busca por oportunidades de trabalho está intrinsecamente ligada ao anseio por melhores condições de vida. Assim, se por um lado o trabalho figura como expectativa das imigrantes entrevistadas, por outro o desemprego é a realidade de quase todas elas, desempenhando o papel de maior fator de estresse mental para esta população estudada.

A migração motivada pela procura por melhores oportunidades de trabalho extrapola o desejo individual do imigrante, mas configura-se como um anseio familiar. A decisão pela migração mostra-se como um planejamento de um grupo social, no qual elegese quem serão os primeiros a migrarem. Esses geralmente se responsabilizam por enviar recursos financeiros para os demais poderem viver melhor ou para viabilizar a migração dos demais. Quando esses migrantes não conseguem corresponder aos anseios do grupo, a frustração e cobrança dos membros que ficaram no país de origem tornam-se fatores de estresse para aqueles que migraram (Kaiser et al., 2015; Oliveira & Silva, 2016).

Percebeu-se, no decorrer das entrevistas, que foram realizadas dentro das residências das haitianas, e a partir dos dados levantados pelo questionário sociodemográfico, que a maioria tem filhos no Brasil e no Haiti. Essa fragmentação familiar, seja em relação a filhos, pais ou outros familiares, assim como a dificuldade em realizar remessas de dinheiro para o Haiti e assim promover melhor condição de vida àqueles que ficaram lá, é maior causa de angústia para a população estudada.

Quando as mulheres se inserem no mercado de trabalho e passam a participar da renda familiar, aumenta nelas o poder de decisão, o controle da renda e da divisão de trabalhos domésticos (Peres, 2016). Tudo isso contribui de forma positiva para o empoderamento das imigrantes e consequente redução do círculo de vulnerabilidades a que estão expostas (Padilla, 2013).

Geralmente as migrações femininas são abordadas como secundárias, como se as mulheres migrassem apenas para acompanhar seus familiares, para o grupo estudado fica claro que a migração tem objetivos econômicos (Peres, 2017). As haitianas entrevistadas manifestam claramente seu senso de responsabilidade em proporcionar uma vida melhor para aqueles que ficaram no Haiti.

Embora desempregadas, grande parte das participantes desta pesquisa trabalhava informalmente em uma determinada feira da cidade. Nesse ambiente, elas relataram que eram hostilizadas pelos demais vendedores. Elas associaram a hostilidade à xenofobia e não ao preconceito de raça/etnia. Supõe-se que a baixa percepção do preconceito racial passe pelo fato de que as haitianas estejam comparando a situação deste país com a que elas podem ter experimentado em outros países, ou pelo pouco conhecimento da língua portuguesa, o que dificuldade o entendimento de possíveis discursos racistas.

Mesmo não sendo percebido por elas, as hierarquias de gênero, etnia e cor, estão presentes na seletividade dos mercados de trabalho. Em toda sociedade, certos tipos de trabalho são reservados a certos tipos de pessoa e os serviços não qualificados, desprotegidos e mal pagos são reservados a mulheres e pessoas negras (Boyd & Grieco, 2003; Oliveira & Silva, 2016; Villen, 2016).

No que diz respeito à saúde mental, o preconceito percebido impacta de forma negativa a qualidade de vida e a saúde mental do imigrante (Weber, 2019). Estudo feito com haitianos residentes na República Dominicana demonstrou associação positiva entre discriminação percebida e sintomas de doença mental (Kayser et al., 2015).

Várias queixas relacionadas à qualidade dos serviços de saúde e à falta de vagas para os atendimentos demandados surgiram como fatores negativos sobre as condições de vida no Brasil. Algumas haitianas relataram que não conseguiam ser atendidas porque não estavam trabalhando. Sabendo-se que todo indivíduo, independente da sua condição trabalhista, tem direito de ser atendido pelo Sistema Único de Saúde (SUS), pode-se supor que grande parte das dificuldades encontradas pelas imigrantes se dá pela comunicação precária, devido à diferença linguística, e pelo despreparo dos serviços de saúde em lidar com a população imigrante.

Tal relato denota ainda o desconhecimento das haitianas sobre seus direitos em território brasileiro e sobre o funcionamento da rede SUS, o que prejudica o acesso delas aos serviços de saúde. De acordo com a literatura, o uso de recursos em saúde é fator protetor à saúde mental no contexto migratório. Estudo realizado com imigrantes residentes em Portugal apontou que aqueles que nunca usaram o serviço nacional de saúde português tiveram o dobro de patologias psiquiátricas em relação àqueles que já haviam acessado o serviço em alguma ocasião (Monteiro, 2008).

Ao serem interrogadas sobre sua saúde, as entrevistadas apresentaram uma série de queixas físicas, tais como "dificuldade para dormir", "gases" e "dor na barriga", "dor na cabeça", dificuldade em "parar de pensar", que, por serem inespecíficas, podem representar um processo de somatização de sofrimentos psíquicos. Esses sintomas sugerem a presença de Transtornos Mentais Comuns (TMC), conceito criado para designar um conjunto de sintomas não psicóticos que habitualmente estão relacionados com quadros subclínicos de ansiedade, depressão e stress (Coutinho et al., 2012).

Os TMC podem ser rastreados com o questionário SRQ-20, que foi aplicado às participantes da pesquisa e apontou que cinquenta por cento das haitianas alcançaram pontuação acima de 7, o que sugere a presença dos referidos transtornos. Nas entrevistas, esse resultado foi confirmado, pois metade delas declarou que se sente mentalmente adoecida. A importância em se identificar os indivíduos portadores de TMC consiste no fato de que eles têm maior risco de desenvolver algum tipo doença mental, além de apresentarem taxas de mortalidade mais elevadas e importantes prejuízos na funcionalidade social e física (Coutinho et al, 2012).

Entre os aspectos positivos da vida no Brasil, a receptividade dos brasileiros foi o tema mais citado. Aparentemente, as haitianas criam vínculos de amizade e afeto com os brasileiros com certa facilidade, o que favorece a sensação de bem-estar. Em estudo feito por Silva (2016) com haitianos residentes em outros estados brasileiros, as relações estabelecidas entre os imigrantes e os brasileiros também são citadas como amistosas e receptivas. A semelhança entre as culturas do Haiti e do Brasil também foi referenciada como aspecto positivo, pois, provavelmente, facilita as relações entre nacionais e imigrantes.

Segundo a literatura científica, as relações sociais coesas, chamadas de capital social, possibilitam a percepção de suporte e de sentimento de pertença a um grupo, sendo considerado importante arma contra o estresse social e os sofrimentos mentais (Kaiser et al., 2015). Outro fator que promove tranquilidade às haitianas foi o fato de poder contar com o apoio dos seus companheiros/maridos, que estão, em sua maioria, trabalhando no Brasil. Se por um lado os empregos dos maridos trazem segurança financeira, por outro, esta realidade permite às haitianas a percepção de que seus maridos tem menos dificuldades em se inserir no mercado de trabalho do que elas próprias.

Os resultados do questionário WHOQOL-bref, apontam que o grupo estudado classifica como "boa" sua qualidade de vida, pontuando-a com 59,97, no escore que vai de 1 a 100. Nas entrevistas, o sentimento com mais referências é o de bem estar. Ainda de acordo com o questionário sobre qualidade de vida, o domínio das relações sociais foi o segundo com maior pontuação, corroborando para o entendimento de que as relações entre nacionais e imigrantes são vistas como positivas pelas haitianas entrevistadas.

De acordo com os dados levantados pelo WHOQOL-bref, os aspectos da segurança física e proteção alcançaram as maiores pontuações no grupo. Aqui cabe uma reflexão, pois, considerando que o Brasil é um país com altos índices de violência, supõe-se que a sensação de segurança percebida pelas haitianas estabelece-se com base em comparação feita entre as condições de vida neste país e no Haiti, que está entre os países do mundo com maior índice de insegurança humana e é marcado pela violência (Sutter & King, 2012).

Apesar das dificuldades encontradas no Brasil e da percepção de sofrimento psíquico, o bem-estar foi o sentimento predominante nas entrevistas com esse grupo de haitianas. Talvez isso ocorra porque a imigração ainda representa, para essa população, a única possibilidade de mudança de vida. Ou seja, apesar da carência de emprego e das suas consequências, ainda há esperanças de que esta seja uma situação passageira e que oportunidades ainda possam surgir. Esperança essa que parece não existir em relação ao Haiti (Sutter & King, 2012).

 

CONCLUSÃO

Conclui-se que embora haja esse certo equilíbrio entre aspectos positivos e negativos nas condições de vida das imigrantes no Brasil, chama atenção o sofrimento psíquico manifestado por elas e a presença dos TMC que geram elevados níveis de mortalidade e de incapacidade. Esse dado preocupa ainda mais, tendo em vista que essas imigrantes encontram várias dificuldades para ter acesso aos serviços de saúde básica e aos serviços de saúde mental.

Defende-se que sendo o capital social tão importante para a proteção da saúde psíquica dessa população, qualquer política pública que pretenda promover saúde mental deve primar pelo fortalecimento das redes sociais de apoio, o que necessariamente deve passar pela capacitação das instituições, especialmente dos serviços de saúde, para atenderem de forma adequada às demandas da população de migrantes.

O grande limitador dessa pesquisa foi, sem dúvida alguma, a diferença das línguas. O fato de comunicarem-se fluentemente apenas no crioulo fez com que todas as etapas desse estudo fossem, necessariamente, conduzidas na língua haitiana. Os instrumentos utilizados foram traduzidos, mas não foram devidamente validados, o que limita a interpretação dos seus resultados.

Há que se fazer ressalvas quanto à análise qualitativa dos dados extraídos das traduções das entrevistas semiestruturadas. Optou-se por manter a coloquialidade da tradução literal dos discursos, por entender-se que ela transmitiria em palavras escritas algo mais próximo do que estava sendo dito. Ainda assim, o desconhecimento do crioulo, por esta pesquisadora, limitou-a na possibilidade de associar, de forma imediata, tudo o que era dito às manifestações afetivas que acompanhavam cada fala. O que reduziu as possibilidades de intervir com mais frequência, para aprofundar questões ou emoções que surgiam do decorrer da entrevista.

Acredita-se ainda que a escuta da tradução de uma fala não alcança toda a subjetividade do autor da fala. No presente estudo, o discurso verbalizado passou ainda por outro sujeito, a tradutora, que tem sua história, seus valores, que permearam o conteúdo que chegou ao ouvinte final. Especialmente falando dos sentimentos e das emoções, entende-se que nenhuma tradução ou transcrição conseguiria alcançar todo valor simbólico e afetivo contido no que foi verbalizado pelas participantes, não só pela diferença da língua, mas, também pela diferença cultural.

Percebeu-se que, para estabelecer-se relações interpessoais, é necessário mais que dominar a língua e ser capaz de comunicar-se, é preciso haver afinidade e empatia. Embora tenha-se verificado, neste estudo, que grande parte do grupo não tem fluência na íngua portuguesa e tenha-se discutido acerca das dificuldades resultantes da diferença linguística, essa não foi uma queixa manifestada pelas haitianas.

A despeito da diferença da língua e de outras diferenças, as afinidades culturais e a empatia existente entre brasileiros e haitianos parecem facilitar o estabelecimento de relações saudáveis entre eles. Embora não seja surpreendente, pois a literatura evidencia quão importante são as redes sociais de apoio na proteção à saúde mental dos imigrantes, causa admiração concluir que o capital social tenha sido apontado como o fator de proteção mais relevante para saúde mental e para percepção de qualidade de vida dessas mulheres.

Por outro lado, o desemprego, e suas consequências, foi apontado como principal fator de sofrimento psíquico dessa população. Contudo, parece haver um equilíbrio de forças entre aspectos positivos e negativos na vida estabelecida por essas mulheres neste país. Talvez porque elas tenham desenvolvimento mecanismos de resiliência motivados pelas dificuldades prévias vividas no Haiti, ou porque o processo migratório apresenta-se como alternativa, talvez única, de mudança e melhoria de vida, oferecendo, portanto, esperança a essas imigrantes.

 

 

Referências

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Notas sobre as autoras:

Manuella Rodrigues de Almeida Lima - Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Brasil. Médica Psiquiátrica. E-mail: manuella1@bol.com.br

Marta Rovery de Souza - Doutora. Universidade Federal de Goiás, Instituto de Patologia Tropical e Saúde Pública, docente e orientadora do Mestrado Profissional em Saúde Coletiva. E-mail: martary@gmail.com

Fernanda Costa Nunes - Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Goiás, Brasil. Psicóloga. E-mail: ferdsom@gmail.com (autora correspondente)

 

Recebido em: abril/2020
Aprovado em: setembro/2020

 

 

 

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