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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.4 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2012

 

RESENHAS

 

Uma coletânea imperdível!

 

 

Christianne Otero

Psicanalista, Psicóloga e jornalista. E-mail: otero.chris@gmail.com

 

 

Livro: "Psicanálise e Outros Saberes", Ana Maria Rudge & Vera Besset (orgs), Cia de Freud, Faperj, Rio de Janeiro, 2012, 268 pgs.

Desde sua fundação, o modo de presença da psicanálise no mundo convoca ao diálogo com outros saberes implicados na reflexão sobre o humano. A disciplina freudiana está sempre em movimento, fora do espaço da maioria, em muitos outros espaços: frequenta o país da ciência, o da arte, o da estética, o da filosofia, o da literatura, o da religião e o do mito, ao mesmo tempo em que exige o repensar de todos esses topos com base em seus princípios norteadores.

De um modo geral, o que Freud revelou numa série de escritos sobre a relação da psicanálise com outras disciplinas é que qualquer estimativa do alcance da Psicanálise estará incompleta se os analistas não ousarem ir além de suas relações com as ciências médicas e estabelecer uma conexão com outros saberes. E ninguém pode ignorar o fato de que, na década de 30, quase no final da obra, o pai da psicanálise não apenas apontava para a expansão de sua disciplina, mas para um alcance promissor no futuro. Atento a essa expectativa freudiana e profundamente engajado no movimento de transmissão da psicanálise, Jacques Lacan levantou a bandeira de que aquele que estiver desatento às transformações da subjetividade de sua época deveria desistir de exercer o ofício de analista.

Psicanálise e outros campos do saber, coletânea organizada por Ana Maria Rudge e Vera Besset, apresenta uma série de textos de autores que se dedicam ao ensino e à pesquisa na área da psicopatologia e da psicanálise no seio de instituições universitárias e de pesquisa no Brasil e no exterior. Fruto da iniciativa do Grupo de Trabalho Psicopatologia e Psicanálise da ANPEPP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós- Graduação em Psicologia), tem como objetivo incrementar e promover a divulgação da produção referente à psicanálise desenvolvida em ambiente acadêmico, enfatizando suas relações com outros campos de saber e sua aplicação em outros domínios que não os da estrita clínica psicanalítica.

Na obra em questão é possível encontrar uma discussão bastante rica sobre o lugar e a função da psicanálise na realidade social, bem como pesquisas e práticas clínicas que visam a formação de profissionais reflexivos, críticos e engajados em contribuições efetivas ao tratamento do mal- estar do sujeito contemporâneo. A relevância desse debate se evidencia, especialmente, porque o cenário social contemporâneo, com suas patologias singulares e as novas formas de configurações familiares, tem nos levado a criar dispositivos de escuta e de intervenção que fogem aos padrões clássicos da psicanálise. Um outro aspecto que chama atenção no livro é que os autores apresentam suas contribuições teórico- clínico-metodológicas inseridas majoritariamente no entrelaçamento de diversos campos de saber, como Psicanálise e Medicina, Psicanálise e Direito, Psicanálise e Linguística, Psicanálise e Antropologia.

Mas atenção: o objetivo da coletânea é o de divulgar não só pesquisas interdisciplinares, em que relações de cooperação ou de oposição entre a psicanálise e outros campos diversos de saber estão em questão, como também a reflexão sobre experiências de psicanálise aplicada em instituições.

Abrindo o debate, Amelia H. Imbriano mostra como o chamado "discurso capitalista" destitui o sujeito do inconsciente e como o inconsciente funciona como um antídoto para a desumanização que nos ronda. Ana Maria Rudge aborda em seu trabalho, sem que a incomensurabilidade entre diversos campos de saber seja ignorada, as contribuições que os estudos da linguagem têm trazido à psicanálise. Glacy Gonzales Gorski reflete sobre a influência do discurso cientificista da atualidade sobre o tratamento de crianças autistas, ilustrando com um caso clínico os efeitos danosos de um tratamento que se funda numa concepção autoritária e ortopédica, visando prioritariamente a integração do autista na família, na escola e na sociedade. Ilka Ferrari, no artigo "Interface psicanálise e direito", apresenta interessante relato histórico sobre as tentativas de diálogo entre essas áreas de saber, detendo-se posteriormente nas contribuições da psicanálise para a abordagem do ato criminoso, em que a dimensão da responsabilidade subjetiva é central, apostando no valor dessa contribuição para o campo do direito. Junia de Vilhena e Carlos Mendes Rosa abordam a produtividade da psicanálise como instrumento de crítica da cultura.

Essa coletânea conta com dezenas de artigos primorosos, Marisa Schargel Maia ilustra, com o caso do suicídio de um rapazinho ligado a uma rede social, a necessidade de uma ética do cuidado para fazer resistência à tendência à coisificação do outro que impera nos dias de hoje, pela qual desde a infância o brincar compartilhado é substituído pela lógica individualista da competição. Jean- Luc Gaspard discute a eliminação progressiva do sujeito em práticas de feitio normativo, e enfatiza a urgência de o psicanalista tomar a defesa do sujeito para amortizar as consequências das rejeições promovidas pelo discurso da ciência. Marcelo Veras, tomando como referência o Seminário 20 de Lacan e a lógica do não- todo, na qual o simbólico é tomado como insuficiente e aponta para um significante sempre faltante - A mulher -, discute o feminino na contemporaneidade, para além da lógica da castração. Maria Facó e Anna Carolina Lo Bianco tratam da angústia desencadeada por um diagnóstico de câncer e, através de um caso clínico, discutem a abordagem da angústia quando se apresenta esse lembrete da finitude e da morte, já que o inconsciente se acredita imortal. Raul Albino Pacheco Filho traz uma crítica à noção de um sujeito pós-moderno que invalidaria formulações teóricas e conceituais desenvolvidas para a compreensão do sujeito de períodos históricos precedentes.

Ruth Helena Pinto Cohen e Cássio Eduardo Soares Miranda relatam a clínica em hospital pediátrico no qual se desenvolve um trabalho, apoiado no discurso psicanalítico, efetuado com crianças com câncer. Apresentando fragmentos de casos clínicos, os autores indicam como a psicanálise aplicada pode oferecer espaços onde a fantasia, como lugar privilegiado do prazer, promove um tratamento possível àquela espécie de dor de existir. Assim valorizam a interlocução, através da heterogeneidade, entre psicanálise e medicina no ambiente hospitalar. Sonia Alberti mostra como se associam a psicanálise e a psicopatologia na contramão da cientifização da psiquiatria. Desenvolvendo a história da psiquiatria clássica e sua interlocução com a psicanálise, chega às contribuições de Lacan ao entendimento psicanalítico das psicoses. Susane Vasconcelos Zanotti e Isabella Lopes Monlleó apresentam uma experiência de atendimento clínico integrado no SUS em que a interlocução entre psicanálise e genética se mostrou produtiva no atendimento a sujeitos portadores de Distúrbios do Desenvolvimento do Sexo (DDS). Inicialmente tendo focado no saber teórico de cada área, o grupo escolheu trabalhar sobre situações clínicas particulares, nas quais se parte do não saber. Nesse caminho, reconstruir a relação de colaboração entre integrantes de equipe é um desafio enfrentado caso a caso.

Por fim, resta dizer que a fidelidade dos autores à Psicanálise leva o leitor a um duplo mergulho: enfrentar as questões clínicas da maior importância na contemporaneidade e se posicionar enquanto crítico da cultura que testemunha. Isso realmente faz do livro uma coletânea de textos imperdíveis.

 

 

Recebido em: 05/09/2012
Aprovado em: 12/12/2012