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Revista Psicologia e Saúde

versão On-line ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.5 no.1 Campo Grande jun. 2013

 

ARTIGO

 

Doença de Alzheimer: o que muda na vida do familiar cuidador?

 

Alzheimer's disease: what changes in the lifestyle of family caregiver?

 

Enfermedad de Alzheimer: ¿qué cambios hay en la vida del familiar cuidador?

 

 

Solange Maria Freire Neumann1; Cristina Maria de Souza Brito Dias1

Universidade Católica de Pernambuco

 

 


RESUMO

Este artigo enfoca as mudanças psicossociais que ocorreram na vida de familiares cuidadores de idosos com a doença de Alzheimer. Participaram desse estudo seis familiares cuidadores que foram recrutados em um hospital da rede pública. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, na qual foi utilizada uma entrevista semi-estruturada que foi analisada de acordo com a técnica de Análise de Conteúdo Temática. Os resultados apontam que várias áreas da vida do familiar cuidador foram afetadas (familiar, social, cuidado com a saúde), o que, muitas vezes, exigiu renunciar ou adiar seus próprios projetos de vida. Sugerem ainda, que eles estão mais vulneráveis a sofrerem transtornos psíquicos, podendo haver um comprometimento também em sua saúde física.

Palavras-chave: Doença de alzheimer; Familiar cuidador; Mudanças psicossociais.


ABSTRACT

This article explores the psychosocial changes that occurred in the lifestyle of family caregivers of patients with Alzheimer's disease. The subjects were six family caregivers, recruited among relatives of patients treated at a hospital in public health system. This is a qualitative study conducted through a semi-structured interviews and analyzed according to the technique of qualitative analysis. The results showed that some areas of lifestyle of family caregivers were affected, which often required to waive or postpone their own personal projects. Even suggesting that they are more vulnerable to suffering psychological disorders, there may be an impairment in their physical health too.

Key-words: Alzheimer's disease; Caregiver; Psychosocial changes.


RESUMEN

Este artículo se centra en los cambios psicosociales que se produjeron en la vida de los familiares cuidadores de personas mayores con enfermedad de Alzheimer. Participaron de este estudio seis cuidadores familiares que fueron reclutados en un hospital público. Tratase de una investigación cualitativa, en que se utilizó una entrevista semiestructurada, analizada de acuerdo con la técnica del Análisis de Contenido Temático. Los resultados muestran que muchas áreas (familiar, social, salud) de la vida de los cuidadores fueron afectadas y que a menudo ellos se ven obligados a suspender o posponer sus propios proyectos de vida. Además, también sugieren que son más vulnerables a sufrir trastornos psicológicos, pudiendo también comprometer su salud física.

Palabras-clave: Enfermedad de alzheimer; Cuidador familiar; Cambios psicosociales.


 

 

Introdução

O presente artigo tem como objetivo investigar as mudanças psicossociais que ocorreram na vida de familiares cuidadores de idosos portadores da doença de Alzheimer. Mais especificamente, buscou-se compreender de que maneira os familiares cuidadores vivenciam o cuidado e as mudanças que ocorreram em sua vida pessoal após assumirem esse papel.

A população mundial está se tornando cada vez mais velha e cabe destacar que o processo de transição demográfica mundial mostra o aumento de pessoas acima dos sessenta anos, sendo o número de pessoas idosas vivendo no mundo de, aproximadamente, seiscentos milhões. Em países pobres e em desenvolvimento, elas representam 70% da população. Além disso, as projeções estatísticas indicam que, em 2050, aumentará o número de pessoas acima dos cem anos (Bertoleti & Carreta, 2008). Neste contexto surge uma questão significativa, pois com o aumento da expectativa de vida, cresce também a possibilidade do aparecimento de doenças neurodegenerativas.

A Doença de Alzheimer (DA) é a responsável por mais da metade dos quadros de demência existentes, e provoca um declínio progressivo e global das funções cognitivas (Forlenza, 2005). Dessa forma, ela leva tanto os pacientes quanto suas famílias a se confrontarem, em seu dia-a-dia, com todas as implicações dela decorrentes, principalmente aquele que se responsabiliza pela tarefa de cuidar.

Embora existam várias definições do que seja um cuidador, optou-se pela definição de Garrido e Almeida (1999) de que ele é o principal responsável por prover ou coordenar os recursos de que o paciente necessita. Ele se envolve em todas as tarefas que permeiam a vida do paciente. Ele ou ela é escolhido (a) ou conduzido (a) a esta função dentro do núcleo familiar, de forma que em torno de 80% dos cuidados são propiciados por esta pessoa (Cruz & Hamdan, 2008).

Estudos apontam que geralmente a função de cuidador é assumida por uma única pessoa a quem cabe a tarefa de cuidar do idoso e, na maioria dos casos, esse papel cabe a uma mulher que é cônjuge ou filha (Cerveny, 1997; Helman, 2003; Caldas, 2003; Selmès & Derousené, 2008). Isto reflete o padrão cultural de que prestar cuidados é uma função feminina. Outro fator importante é que o familiar cuidador pode chegar a dispender oito vezes mais horas por mês de dedicação aos cuidados, ou o equivalente há 60 horas semanais, quando comparado a um cuidador profissional (Selmès & Derousené, 2008). Por sua vez, a sobrecarga faz com que os cuidadores desempenhem funções além de suas capacidades, resultando em uma forma de cuidado desequilibrada, sendo freqüentemente acompanhada de resultados insatisfatórios para o atendimento das necessidades do seu familiar (Fernandes & Garcia, 2009). Outro aspecto importante no processo de cuidar é que a qualidade de vida do paciente está relacionada ao bem-estar do cuidador (Dang, Badiye & Kelkar, 2008). Para Cruz e Hamdan (2008), embora esteja crescendo a literatura sobre a DA, ainda são poucos os estudos sobre o cuidador do paciente com esta doença, o que instigou a realização desta pesquisa.

 

Procedimentos Metodológicos

Foram recrutados para participar da pesquisa seis indivíduos, familiares de pacientes, portadores da doença de Alzheimer que são atendidos em um hospital da rede pública de saúde. O critério de escolha dos participantes foi o de amostragem proposital (Turato, 2003) e como critérios de inclusão adotaram-se as seguintes características: ser familiar cuidador, independente do sexo, nível socioeconômico e estágio da doença. Participaram quatro pessoas do sexo feminino e duas do sexo masculino.

Instrumento e Procedimentos para coleta dos dados

O projeto obteve aprovação pelo Comitê de Ética da instituição que apoiou a pesquisa, sob o número 056/2008. Utilizou-se para a coleta de dados um roteiro de entrevista, conduzido de forma semi-dirigida, composto de questões relacionadas aos objetivos da pesquisa e dos dados sócio-demográficos dos participantes. Antes de aplicar a entrevista, os participantes foram esclarecidos acerca dos objetivos da pesquisa e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Eles foram atendidos individualmente, numa sala do próprio hospital, e foi solicitada a autorização para a gravação da mesma.

Após a transcrição das entrevistas, as mesmas foram analisadas com base na Análise de Conteúdo Temática (Minayo, 2004). Desse modo, foram destacadas as respostas relevantes na fala dos participantes, que possibilitaram a construção das seguintes categorias: 1) o processo de cuidar; 2) sentimentos que permeiam o adoecer; 3) as repercussões do cuidar na vida do familiar cuidador.

 

Resultados e Discussão

O processo de cuidar

Dentre alguns motivos que levam a pessoa a se assumir como cuidador está a sua história de vida ou mesmo a composição familiar (Pavarini et al, 2006). Para ilustrar esta assertiva, destacam-se as seguintes falas:

Minhas irmãs têm um conceito sobre mim, que eu acho que é errado, é... (diz o próprio nome) tem mais tempo de ficar com minha mãe, por que (diz o próprio nome) não tem marido, entendeu? (Entrevistada 1)

O processo se deu assim neste sentido, porque todo mundo se casou, foi fazer sua vida. Então no caso, eu também era bem mais novo, quando aconteceu isso. (Entrevistado 3)

Morava eu, meu pai e minha mãe e esse meu irmão que tá aí (lá fora). O resto casou tudo cedo, casou com 17, 16. Aí esse casou e ficou eu, meu pai e minha mãe. Aí meu pai faleceu, aí ficou eu e minha mãe. (Entrevistado 4)

Pelos relatos acima, pode-se constatar que esse lugar de cuidador não foi uma escolha dessas pessoas, mas muitas vezes foi dado por outros membros da família ou por condições familiares que antecederam a própria doença. Segundo alguns autores, existem fatores que influenciam essa decisão como: ser mulher (esposa, filha ou nora), ser o cônjuge, mais raramente outros membros da família (Neri, 2001; Sena & Gonçalves, 2008; Selmès & Derouesné, 2008). Com relação a esse tema, observa-se que essa "escolha" geralmente não se faz sem conflito, pois com freqüência somente um dos familiares é eleito como o "dono do doente", e, muitas vezes, não conta com a ajuda de outros membros da família (Abras & Sanches, 2004). O relato a seguir sinaliza essa condição:

Porque é o seguinte, como ela tomou conta de todo mundo, aí você pára e analisa: Poxa, por que só eu que tenho obrigação? Todo mundo não tem obrigação? Ela não tomou conta dos outros? Por que é que os outros não quer? Aí ficava um pouco de revolta! (Entrevistado 3)

Por outro lado, verificou-se que o papel de cuidador poderia já ter sido imaginado ou predeterminado (Silveira, Caldas & Ferés-Carneiro, 2006).

E eu gosto de cuidar, sabe? Eu sou um pouco mãe mesmo, eu sempre gostei de cuidar, sabe, de todo mundo de casa. (Entrevistada 1)

Ainda em relação a esse tema, observa-se que apenas uma participante expressou que o convívio anterior à doença não foi vivido de uma forma satisfatória com a sua mãe. Nesse caso, o tipo de relação prévia existente com a mãe doente se refletiu na forma como esse cuidado está sendo vivenciado.

Olhe, o cuidado que eu tenho é porque eu tenho consciência que a gente... Quem não vive para servir, não serve para viver. Você serve até um estranho, entendeu? Quanto mais a uma mãe, quer seja boa ou não, você tem obrigação. O cuidado é mais obrigação, a gente tem que dizer a verdade, é obrigação... Não é assim por amor. (Entrevistada 6)

Percebe-se que esse processo não é linear, pois a avaliação que o cuidador faz da situação, ou mesmo sobre seu bem-estar subjetivo, depende de todo o contexto que foi construído ao longo do tempo, além da capacidade que cada pessoa tem de ajustar-se às perdas e às novas exigências durante os diferentes momentos da doença (Neri, 2001).

Sentimentos que permeiam o adoecer

O familiar cuidador pode experimentar diversos sentimentos diante das perdas que envolvem o adoecer, mas diante da DA também vive as inquietudes pelo fato do paciente não poder dar um feedback adequado (Stuart-Hamilton, 2002). Entre outras consequências da doença, a perda da memória faz com que ela seja devastadora para a família (Rose, 2006). Esse entrevistado corroborara com essas afirmativas quando disse:

É muito triste, eu acho, né? Você está convivendo com uma pessoa, é filho daquela pessoa, está convivendo com ela e chegar ao ponto dela não conhecer você e perguntar: Quem é você? Aí você vai responder o quê? Sou seu filho? Ela pode se lembrar no momento, mas depois ela esquece. Aí fica aquela coisa triste, uma angústia de ver que sua mãe esqueceu você. (Entrevistado 4)

Os familiares de pacientes com doenças degenerativas freqüentemente utilizam a expressão "morte em vida" (Abreu, Forlenza & Barros, 2005), uma vez que elas comprometem tanto psíquica como funcionalmente o indivíduo. Dessa maneira, as famílias, ao enfrentarem o processo de demência, experimentam muito desconforto uma vez que a dor que os familiares vivenciam é por se tratar da "morte antes da própria morte" (Abras & Sanches, 2004). Isto é referido nas falas de alguns participantes, nas quais identificam-se sentimentos de perda, como se o doente morresse um pouco a cada dia, vivendo assim um luto antecipado.

Vem um sentimento de perda, pra mim é de perda. Porque aí eu tenho certeza de que eu tô perdendo a minha mãe, entendeu? É como se eu visse que ela está morrendo, sabe, aos pouquinhos. (Entrevistada 1)

Ontem mesmo eu tava na televisão, aí eu fiquei pensando, eu digo cá comigo, né? Jesus já está me dando esse negócio dele ir embora de mim assim vivo mesmo. (Entrevistada 2)

Alguns entrevistados também relataram experimentar o sentimento de impaciência decorrente do estresse e da dificuldade para lidar com alguém que tem as suas funções cognitivas afetadas. O perigo é que daí pode decorrer a violência contra o doente.

E tem hora que eu perco até a paciência, sabe? Aí na mesma hora eu digo: se eu perder a paciência com ela, ela não tem culpa. Por que às vezes o que ela faz, que ela tenta me agredir, parece que eu quero revidar, sabe? Aí eu disse não, porque não é minha mãe que tá fazendo, é a doença. (Entrevistada 1)

Eu, eu... fiquei grosseira. Tinha hora que eu perdia a paciência, sabe? Aí eu sei que eu fiquei assim muito nervosa. (...) Eu fiquei sem paciência com ele, das teimosias, tá entendendo? (...) Aí eu disse: Dr. eu tô sendo agressiva com (diz o nome do marido). E quando é de noite eu tô chorando e pedindo perdão a Deus. (... ) Porque tinha hora que eu extrapolava mesmo, quando era de noite é como eu estava lhe dizendo, eu ia rezar e pedir perdão. (Risos) Mas Deus disse a mim que já estava cansado de tanto eu tá pedindo perdão e fazendo a mesma coisa. (Entrevistada 2)

Se você não tiver uma cabeça boa, você acaba agredindo, você perde a paciência. Muitas vezes eu cheguei a gritar, não vou dizer que eu fui santo, né? (...) Aí quando eu via que... Que eu começava a gritar, que eu perdia a paciência, saia de junto. Chamava minha irmã e dizia: fica com ela, porque eu não quero gritar não, porque possa ser que eu perca a paciência, sem querer vou pegar nela, machuco, posso até... Sei lá, não sei o que vai passar pela minha cabeça... (Entrevistado 3)

Identificou-se, em outros recortes, o sentimento de pena pelo idoso estar em um estado de dependência e de fragilidade.

Meu sentimento? (voz trêmula) Ah... Eu fico, às vezes, assim olhando pra ele, aquele olhar tão perdido, me dá uma pena...(Entrevistada 2)

Olhe, eu sinto o seguinte: eu sinto pena dela. Pena dela pela.... Pelo que ela mostrava, o que ela era pra gente. Assim... de...de vigor, de saúde...(...) Aí assim, eu fico muito triste, eu fico com muita pena dela e fico imaginando a situação dela em cima de uma cama. (Entrevistado 3)

Constata-se que os familiares cuidadores vivenciam diversos sentimentos diante das frustrações que a doença traz. Por um lado, sentem pena por ver seu ente querido em um estado de total dependência, mas devido à pressão psicológica a que estão sendo submetidos, em alguns momentos sentem que estão perdendo o controle. Ainda relacionado a esses recortes, no processo de cuidar de um ente próximo que se torna dependente existe uma "turbulência de sentimentos", que se originam a partir de sentimentos que envolvem defrontar-se com a fragilidade e a finitude do ser humano (Mendes, 2004).

Defrontar-se com uma doença progressiva de uma pessoa tão próxima, que leva inevitavelmente a perder a sua própria identidade e sua independência funcional, faz aflorar sentimentos de medo de adoecer também e de tristeza devido à possibilidade de perder seu familiar. A verbalização abaixo confirma o que foi dito:

Eu tenho medo de ter Alzheimer, porque eu ando muito esquecida... (Risos) Eu tenho medo que eu tenha essa doença... E eu não quero nem pensar, sabe, porque eu sei que vou ficar à míngua. (...) E eu estou sentindo que eu estou ficando esquecida também. Eu leio uma coisa, às vezes quero me lembrar e eu não consigo, entendeu? Eu digo: Meu Deus será que estou com esse problema de mamãe? (Entrevistada 6)

Estou de pés e mãos amarrados e sei que a doença está evoluindo, evoluindo. E assim... Às vezes eu tenho vontade de perguntar a Dr. (diz o nome do médico assistente) : Dr., quanto tempo mais ou menos?. Mas que pergunta difícil de ser feita... Mas eu sei que está chegando ao fim doutora, eu sei disso. (Chorando) E isso está me matando... (Entrevistada 5)

No caso em que um membro de um casal é o portador da demência, um sentimento também apontado foi o de solidão:

Me sinto sozinha, né? Por que ele só faz dormir, não conversa mais. (Entrevistada 2)

Neste aspecto, salienta-se que, das pessoas que participaram do estudo, existe apenas um cônjuge, uma senhora também idosa que residia sozinha com seu marido. Acredita-se que este fato, além da pouca atividade de lazer em seu cotidiano, contribui para seu sentimento de solidão. Sobre esse tema, Lemos, Gazzola e Ramos (2006) encontraram que os cônjuges são os que sofrem um maior impacto ao cuidar de um paciente demenciado

Repercussões na vida do familiar cuidador

A necessidade de assistência permanente ao doente leva o cuidador familiar a dedicar um número de horas ao cuidado, que pode levá-lo à exaustão e a dispender esforço físico além de suas possibilidades.

É um trabalho de 24 horas contínuo. E vai ser assim até no dia em que ela chegar a ficar de cama, até um dia falecer. Porque daqui pra frente ainda vai ser pior. Porque assim, como o Alzheimer vai... é uma doença que não tem cura, ela é degenerativa, vai chegar um ponto que ela vai ficar de cama. O médico já explicou isso, dela voltar à posição fetal, como uma criança dentro do útero. (Entrevistado 3)

Não é mole você pegar (diz o nome do marido) e dar banho nele, segurando ele. (Entrevistada 2, 73 anos)

Uma vez que a demanda de cuidado exige esforço físico, essa senhora assinalou que sente os efeitos em sua saúde, pois tem problemas de coluna e uma perna está constantemente inchada, o que, muitas vezes, lhe dificulta a realização das tarefas. A esse respeito, ela acrescentou:

Minha filha, estou com a saúde em pandarecos. (...) Quando eu fiquei com essa perna assim (mostra a perna inchada), eu chorava muito porque dizia: Meu Deus não me deixe ficar paralítica; depois que ele morrer, eu posso morrer até sem andar, sem nada, mas eu tenho que ter força agora para ficar com ele o tempo todo. (Entrevistada 2)

Diante desse contexto, percebe-se que o cuidado desempenhado por uma pessoa idosa, que já está com sua própria saúde fragilizada, compromete também o tipo de assistência prestada ao familiar doente, uma vez que quanto mais dependente for o paciente, maior será sua demanda de cuidado. Ademais, devido à sua saúde ficar em segundo plano, o cuidador pode tornar-se uma pessoa dependente, conforme salientaram Brito e Rabinovich (2008) e passível de também adoecer (Schnaider, Silva & Pereira, 2009).

Outro aspecto relevante diz respeito a fatores que dificultam o sono do familiar cuidador, uma vez que os portadores de DA podem apresentar insônia ou agitação durante a noite. Neste sentido, a pesquisa corrobora investigação sobre os fatores que prejudicam o sono dos familiares cuidadores, pois além da interrupção do sono para prestar o cuidado, existe também a preocupação de que algo de ruim aconteça com o paciente durante a noite (Fonseca, Penna & Soares, 2008).

(Risos) Eu durmo com o olho assim (mostra um olho fechado e outro aberto) (...) Porque não tenho coragem de pegar no sono e encontrar (diz o nome do marido) fazendo besteira, porque ele ainda se levanta sozinho. (Entrevistada 2)

Agora ela está mais calma. Porque quando ela não tomava a medicação ela ficava agitada: agredia, mordia ,arranhava, ela não dormia à noite. Eu moro em uma casa que tem escada. Eu ficava sentado na escada, a noite todinha, para ela não subir a escada, porque ela ficava da cozinha para a sala, da sala para o terraço, até dar sono. Quando dava sono, ela ia pra sala se deitava no sofá, já eram cinco, seis horas da manhã. (Entrevistado 3)

Eu já não durmo mais na minha cama por causa dela. Por quê? Se ela se levantar eu vou perceber pela cama, né? Se eu estiver no meu quarto fecho a porta e não vejo, aí justamente estou dormindo com ela. (Entrevistado 4)

Uma das características do paciente com DA são as alterações do ciclo sono-vigília, sendo comuns padrões irregulares de sono, como a deambulação noturna, conforme relatou o entrevistado de número 3. Alguns pacientes dormem mais durante o dia e começam a se agitar ao anoitecer, fato conhecido como síndrome do pôr do sol ou do entardecer, que se caracteriza por alterações no comportamento do idoso e momentos de confusão mental. Ao entardecer, o paciente pode não reconhecer a sua própria casa e tenta sair, ficando agressivo quando é impedido. São esses episódios de agitação noturna que trazem mudanças no ciclo sono-vigília e fazem com que se desregule o ritmo circadiano, aumentando assim o tempo em que o paciente permanece acordado durante a noite.

Alguns participantes perceberam várias mudanças em suas vidas após o aparecimento da doença. Sobre essa questão, Thober, Creutzberg, Viegas (2005) salientaram que a maior mudança que pode acontecer no cotidiano do cuidador é ter a sua vida pessoal e/ou profissional desestruturada pela responsabilidade de cuidar.

(Risos) Aí mudou tudo, porque passei a não, não ter mais tempo pra mim, sabe? Eu esqueci de (diz o próprio nome) e agora só lembro de (diz os nomes dos pais), entendeu? (Entrevistada 1)

Afetou em tudo. Até em relacionamento, porque até em conhecer uma pessoa, em ter um relacionamento com alguém, eu não tenho nem como ter. Afetou em tudo. (Entrevistado 3)

Rapaz, mudou muita coisa... Até quando eu vou para o trabalho eu fico preocupado. Não sei o que ela tá fazendo em casa, não sei se ela já comeu, se já se banhou... Tem que tá sempre acompanhando ela. E realmente mudou muita coisa. Eu era uma pessoa que gostava muito de sair. Não estou podendo mais sair, tenho que estar sempre com ela no final de semana, porque agora ela tá realmente dependendo da gente, né? (Entrevistado 4)

Constata-se que ao assumir esse papel, o familiar cuidador também alterou o seu estilo de vida, consistindo, entre outras coisas, numa diminuição das atividades de lazer ou mesmo numa ruptura em seu convívio social. Nesse sentido, o estudo vai ao encontro ao que pontuaram Falcão e Bucher-Maluschke (2008) acerca do discurso de filhas cuidadoras, pois encontraram que a maioria também tinha essa queixa.

(...) Eu tava até pensando nisso um dia desses... Eu esqueci de mim, sabe? Esqueci mesmo. Eu não marco nada pra mim, eu não vou na casa de ninguém, eu não visito ninguém. Minha vida social acabou, acabou. (Entrevistada 1)

Hoje em dia não sou mais nada, eu só vivo pra ele. Eu não saio pra canto nenhum minha filha. (Entrevistada 2)

(...) Mexe em tudo, mexe em tudo como um todo. Por exemplo, no lazer, num fim de semana, num feriado, eu ia pra outro lugar, agora não vou, fico com ela. (Entrevistada 5)

Não tenho tempo de ler, de fazer um curso, de... De viver só de meu beneficio hoje, entendeu? Que a gente não pode parar, né? Ás vezes eu quero fazer um curso, quero fazer alguma coisa e não tenho condições de fazer... Porque você sabe, o cansaço bate, né? Tem horas que você quer fazer as coisas e não agüenta, porque é muita preocupação, não é? Muita preocupação... Eu não tenho tempo de cuidar de mim. (Entrevistada 6)

Outros se sentem frustrados e preocupados por abandonarem suas atividades remuneradas. Sobre esse tema, um estudo conduzido na Bahia traçou o perfil do familiar cuidador do idoso e encontrou que, entre as conseqüências do cuidado, 47% dos cuidadores têm alguma limitação em sua vida profissional e 58% a abandonam (Vilela et al, 2006).

Eu deixei de trabalhar para tomar conta... (...) Meu problema é o lado do trabalho, porque o que é que aconteceu? Eu parei, cada dia mais estou ficando desqualificado do trabalho e... Fica difícil também porque vai chegando a idade, fica difícil de você arrumar um emprego. Então minha preocupação todinha é essa. (Entrevistado 3, cuidador há 6 anos)

Apesar das queixas e preocupações, esse familiar mostrou certa resignação porque está prestando cuidado a uma pessoa querida e significativa em sua vida:

Então veja só, eu já perdi... Não é que perdi seis anos da minha vida, na verdade eu não perdi, eu ganhei. Eu ganhei porque eu aprendi a tomar conta de uma pessoa que estava morando comigo e que está doente. Mas assim, eu também tenho que fazer a minha vida. Então, é difícil, é uma coisa muito difícil assim de lhe explicar o sentimento que a gente tem assim de... de... de... Por ela, por a gente mesmo. É uma coisa que eu não sei daqui pra frente como vai ser. (Entrevistado 3)

Acredita-se que esse contexto pode favorecer que, no futuro, ele se encontre em uma situação de pobreza e de exclusão social, pois, conforme seu próprio relato, está ficando cada dia mais desqualificado para o mercado de trabalho, e dependente economicamente de seus irmãos.

O estresse psicológico a que estão submetidos os cuidadores pode ser observado nas seguintes falas:

Quando ela está muito agitada eu também perco as sensações, sabe? É como se eu estivesse vivendo o que ela tá vivendo, sabe? (Entrevistada 1)

Quando eu vou pro trabalho fica aquele estresse porque eu não sei o que ela está fazendo lá (na casa deles), aí eu fico assim com uma tensão muito maior. (Entrevistado 4)

Muito estresse na minha vida, muito estresse, muito estresse mesmo. Tem hora que eu não agüento, tenho vontade de ir embora, de sumir. (Entrevistada 6)

Essa sobrecarga contínua de tarefas e de pressão emocional predispõe a que essas pessoas apresentem um elevado risco de também adoecerem, pois não contam, em sua maioria, com o apoio necessário que facilite o cuidado com o familiar doente (Schnaider et al, 2009).

Tá interferindo na minha saúde. Eu emagreci, eu era mais forte, eu perdi peso (...) Eu estou notando que eu estou precisando de um acompanhamento médico. Minha necessidade maior agora é um acompanhamento médico sabe, pra mim. (Entrevistada 1)

Segundo Diogo e Duarte (2002), nos países desenvolvidos, os familiares cuidadores de idosos possuem preparo para a função que desempenham, contando inclusive com a ajuda de uma equipe em situações de crises. Além disso, estimulam situações que promovem uma maior participação dos familiares no cuidado aos idosos como, por exemplo, a identificação dos pontos frágeis e fortes encontrados no sistema familiar, além de encorajá-los a expressar seus sentimentos. Entretanto, no Brasil os familiares carecem de um maior preparo e ainda há poucos recursos sociais de apoio, em que pese a criação de grupos para familiares, que tem a Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAZ) como incentivadora. Observa-se também que existe uma carência para atendimentos voltados especificamente para cuidadores na rede pública e não há como as pessoas de baixa renda recorrerem aos profissionais da rede privada, porque os tratamentos são muito caros (Felgar, 2004).

Diante dessa realidade, percebe-se que os familiares cuidadores que participaram deste estudo, são confrontados com diversas situações que prejudicam sua qualidade de vida, pois seu cotidiano foi totalmente alterado pela existência da doença. Além disso, sabe-se que, com o tempo, as demandas se tornarão maiores, uma vez que o paciente se tornará mais dependente, precisando cada vez mais de ajuda nas suas atividades de vida diária. Desta forma, é imprescindível que essas pessoas recebam mais apoio e que haja uma divisão de tarefas de forma que elas se dediquem a outras atividades, além do cuidado ao paciente. Assim, elas poderão renovar suas energias e ter mais condições de propiciar a atenção que o mesmo necessita.

 

Considerações finais

O presente estudo buscou investigar as repercussões psicossociais que ocorreram na vida de familiares cuidadores de idosos com a doença de Alzheimer. Os relatos obtidos apontaram para algumas questões importantes, pois se constatou que nem sempre esse papel é assumido pela sua vontade. Além disso, existe uma sobrecarga em termos físicos e emocionais, pois muitos não contam com outras pessoas da família para realizar ou dividir os cuidados. Destaca-se também que, como conseqüência de assumir essa função, várias áreas de sua vida foram afetadas (social, afetiva, profissional, saúde física e emocional), o que, muitas vezes, exigiu renunciar ou adiar seus próprios projetos de vida.

Frente aos resultados obtidos, torna-se fundamental que os profissionais das diferentes áreas de saúde (psicólogos, médicos, enfermeiros, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, fisioterapeutas, entre outros) orientem o familiar cuidador sobre como lidar melhor com várias situações que acarretam frustrações e inquietudes, para que eles possam vivenciar esta missão de uma forma mais amena. Neste sentido, acredita-se que é de suma importância a formação e o treinamento dos profissionais para o atendimento não só ao idoso como também aos seus familiares.

Existem associações, como a Associação Brasileira de Alzheimer (ABRAZ), que é formada por vários profissionais da área de saúde, assim como por familiares e cuidadores, que desenvolvem reuniões e palestras com o objetivo de orientar sobre o diagnóstico e o tratamento da doença, bem como propiciar o compartilhar de experiências. Mas a carência de redes de apoio ainda é grande.

Por fim, vale ressaltar que esta pesquisa não pretendeu esgotar o tema, uma vez que os dados foram obtidos apenas de familiares cuidadores de pacientes que consultavam em um ambulatório de um hospital da rede pública. Outro aspecto se refere ao nível socioeconômico dos entrevistados, pois são considerados como pertencentes à camada de baixa renda, o que talvez tenha trazido uma realidade diferente da que se poderia encontrar em classes mais abastadas. Nesse contexto, sugere-se a continuação de pesquisas que aprofundem e que poderão responder questões não contempladas neste estudo. Espera-se ter contribuído para ampliar a discussão e o conhecimento sobre a Doença de Alzheimer, especialmente no que diz respeito ao familiar cuidador.

 

Referências

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Recebido: 18/08/2012
Última revisão: 18/03/2013
Aceite final: 19/03/2013

 

 

Sobre os autores:
Solange Maria Freire Neumann - Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica, da Universidade Católica de Pernambuco. Mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco. Especialista em Intervenções em Psicologia Clínica pela Universidade Católica de Pernambuco e em Neuropsicologia pela Faculdade de Ciências Humanas Esuda. Recife (PE), Brasil.
E-mail: solneumann@hotmail.com
Cristina Maria de Souza Brito Dias - Doutora e Mestre em Psicologia pela Universidade de Brasília. Professora Adjunto II e Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco. Recife (PE), Brasil.
E-mail: cristina_britodias@yahoo.com.br

 

 

Artigo elaborado a partir da dissertação: Doença de Alzheimer na família: repercussões sobre o seu funcionamento, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica, da Universidade Católica de Pernambuco/UNICAP. Recife-PE, Brasil, 2010. Esta pesquisa teve o apoio da Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco - FACEPE.
1 Endereço 1: Universidade Católica de Pernambuco - Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica - Rua do Príncipe, 526 - Boa Vista Cep: 50050-900 - Recife (PE), Brasil.