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Revista Psicologia e Saúde

versão On-line ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.8 no.1 Campo Grande jun. 2016

https://doi.org/10.20435/2177093X2016106 

As categorias da psicologia social comunitária como dispositivo para a construção das práticas no SUS

 

The categories of community social psychology as a device for the construction of practices in SUS

 

Las categorías de la psicología social comunitaria como dispositivo para la construcción de las prácticas en el SUS

 

 

Katia Gregório Bittencourt SilveiraI; Maria Sara de Lima DiasII

IUniversidade Tuiuti do Paraná
IIUniversidade Tecnológica Federal do Paraná

Endereço

 

 


RESUMO

Buscou-se evidenciar a importância das categorias de Psicologia Social Comunitária para a construção das práticas no âmbito do SUS. É preciso compreender que um conceito ampliado de saúde envolve a questão da prevenção e do atendimento integral do sujeito. Foi utilizado como método a revisão, análise e discussão da literatura sobre o tema. Inicia-se com o histórico do SUS em que se apresenta seu marco regulatório de forma hierarquizada desde a Conferência de Saúde; a seguir apresentam-se algumas das categorias da Psicologia Social Comunitária. Considera-se fundamental aos atores sociais que se dedicam à saúde pública conhecer as categorias que visam à autonomia como empowerment, conscientização, processos de participação e fortalecimento. Tais categorias podem ser dispositivos para a construção das práticas do psicólogo e ser norteadoras do modelo de atuação profissional preconizado pelo SUS.

Palavras-chave: Práticas; Psicologia social comunitária; Saúde pública; Psicologia da saúde.


ABSTRACT

The article seeks to show the importance of the categories of Community Social Psychology to the construction of the practices under the SUS. It is required to understand that an expanded concept of health involves the question about prevention and about integral attendance of the person. The method used here was the review, the analysis and the discussion of the literature about the theme. It starts with the SUS's history where it presents its regulatory framework in a hierarchic way since the Health's Conference, here after it presents some of the Community's Social Psychology categories. Considering that it is fundamental to the social actors who dedicate themselves to public health know the categories that seek autonomy like empowerment, awareness, process of participation and strengthening. Such categories may be devices for the construction of the psychologist's practices and be guiding principles of the professional activities's model prescribed by SUS.

Key-words: Practices; Community Social Psychology; Public health; Health psychology.


RESUMEN

Él trató de poner de relieve la importancia de las categorías de Psicología Social Comunitaria para la construcción de prácticas dentro del SUS. Debemos entender que un concepto ampliado de salud implica el tema de la prevención y la atención integral del sujeto. Fue utilizado como un método de revisión, análisis y discusión de la literatura sobre el tema. Comienza con la historia del SUS en la que presenta su marco regulatorio de manera jerárquica de la Conferencia de la Salud, la siguiente es algunas de las categorías de Psicología Social Comunitaria. Es fundamental para los actores sociales que se dedican a la salud pública saben las categorías destinadas a la autonomía como la capacitación, la sensibilización, la participación y el fortalecimiento de los procesos. Estas categorías pueden ser dispositivos para la construcción de las prácticas psicólogo y pueden guiar el modelo de práctica profesional recomendado por el SUS.

Palabras clave: Prácticas; Comunidad psicología social; Salud pública; Psicología de la salud.


 

 

Questionar a importância das categorias da Psicologia Social Comunitária para as práticas no SUS vem ao encontro do reconhecimento da capacidade do indivíduo e da própria comunidade de serem responsáveis e competentes na construção de suas vidas e no processo de saúde e doença. Desse modo, faz-se necessário ao psicólogo e aos demais agentes da saúde pública a compreensão da existência de certos processos de facilitação social baseados na ação local e na conscientização das comunidades sobre os principais problemas que as afligem.

Acredita-se que estudar as categorias teóricas e metodológicas pode contribuir para embasar ações e intervenções previstas nos programas como a Estratégia de Saúde da Família (ESF), o Núcleo de Apoio da Saúde da Família (NASF), entre outras atuações ofertadas pelo Ministério da Saúde que implicam a compreensão de um conceito ampliado de saúde que envolve a questão da prevenção e do atendimento integral.

Ao considerarmos que, em muitos municípios brasileiros, ainda há um cenário de ausência de ofertas desse tipo de serviço, a apresentação deste estudo pode subsidiar debates e reflexões teóricas e metodológicas, bem como o surgimento de ações preventivas de atendimento psicológico no serviço público.

A formação dos psicólogos, segundo Pires e Braga (2009), ainda carece de subsídios, uma vez que a inserção do psicólogo na saúde pública se deu somente 20 anos depois que ocorreu a regulamentação da Psicologia como profissão, porém de forma descontextualizada e vinculada apenas à saúde mental. Desse modo, as categorias da Psicologia Social Comunitária podem orientar as práticas psicológicas no âmbito do SUS e serem norteadoras desse modelo de atuação. Principalmente no que se refere a algumas categorias, tais como: conscientização; empowerment; processos de participação; e a importância fundamental do fortalecimento para se compreender o conceito de comunidade para as práticas do psicólogo no SUS, e para que tais práticas sejam efetivadas de acordo com as diretrizes propostas pelo órgão.

Os profissionais de Psicologia que até então atendiam à população com serviços clínicos ambulatoriais e centralizados em seus ambientes, foram descentralizados. Isto significa dizer que foram distribuídos territorialmente na sua área de abrangência, ou seja, regionalizados. Com isto, surge uma nova exigência de atendimento aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS), voltada para aspectos comunitários e preventivos. Importante enfatizar que esse sistema é destinado a todos os cidadãos, financiado com recursos arrecadados através de impostos e contribuições sociais pagos pela população e que são geridos pelos governos federal, estadual e municipal. O principal objetivo dessa ação de ordem pública é promover a saúde, priorizar as ações preventivas e democratizar as informações relevantes para que a população conheça seus direitos e os riscos à sua saúde.

 

Método

O presente estudo trata-se de uma revisão bibliográfica que, segundo Cervo (2002), procura explicar um problema a partir de referências teóricas publicadas em documentos. Tal método busca conhecer e analisar as contribuições culturais ou científicas do passado existente sobre um determinado assunto, tema ou problema. Na percepção de Gil (2002, p. 48): A revisão bibliográfica é desenvolvida a partir de material já elaborado, constituído principalmente de livros e artigos científicos. Embora em quase todos os estudos seja exigido algum tipo de trabalho desta natureza, há pesquisas desenvolvidas exclusivamente a partir de fontes bibliográficas. Boa parte de estudos exploratórios pode ser definida como pesquisas bibliográficas. As pesquisas sobre ideologias, bem como aquelas que se propõem a análise das diversas posições acerca de um problema, costumam ser desenvolvidas quase que exclusivamente a partir de fontes bibliográficas.

O presente trabalho foi baseado em revisão bibliográfica por intermédio de livros, artigos científicos, além de incluir material proveniente da busca em sites da internet. Desde então, a partir de leitura e análise das partes consideradas relevantes, este artigo foi sendo formado com base na junção dos assuntos que apresentavam o mesmo enfoque.

Esta pesquisa buscou relacionar os marcos regulatórios da história do SUS em referências teóricas publicadas. Em um segundo momento, buscou-se analisar as categorias da Psicologia Social Comunitária que poderiam ser aplicadas aos programas citados no SUS.

 

História do SUS e seu Marco Regulatório

A VIII Conferência de Saúde de Março de 1986, realizada em Brasília, foi um marco na história da saúde no Brasil, que, sendo parte do documento final transformada em lei com a Constituição Federal de 1988, culminou com a criação do SUS - regulamentado dois anos depois pelas leis nº 8080/90 (Lei Orgânica da Saúde) e nº 8.142/90.

É importante destacar dois artigos da Constituição de 1988:

Art. 196. A saúde é um direito de todos e dever do estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e outros agravos e ao acesso universal igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art.198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede de regionalizadas e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado com as seguintes diretrizes:

I-Descentralização

II- Atendimento integral

III- Participação da comunidade

Esse marco da saúde implica compreender um conceito ampliado de saúde que envolve a questão da prevenção e o atendimento integral como responsabilidade do Estado; com relação à Psicologia Comunitária, a ênfase recai na chamada para a participação da comunidade em estratégias de promoção e prevenção da saúde.

Esse conceito ampliado de saúde é considerado pelo Ministério da Saúde (2006) e pelo Movimento Reforma Sanitária - presente na Carta Constitucional (Brasil, 1988) - preceito de uma transformação radical do Sistema de Saúde Brasileiro. Tendo em vista a compreensão acerca da total inadequação do sistema de saúde vigente até então, foram apontados os seguintes aspectos:

• Quadro de doenças de todos os tipos, condicionada pelo tipo de desenvolvimento social e económico do País e que o SUS não conseguia enfrentar;

• Excessiva centralização levando a decisões que, muitas vezes, foram consideradas equivocadas;

• Recursos financeiros insuficientes em relação às necessidades de atendimento e em comparação a outros países;

• Baixa cobertura assistencial da população, com segmentos populacionais excluídos do atendimento - especialmente os mais pobres e nas regiões mais carentes;

• Insatisfação dos profissionais da área de saúde, principalmente devido aos baixos salários e à falta de políticas de recursos humanos justos e coerentes;

• Baixa qualidade de serviços oferecidos em termos de equipamentos e serviços profissionais;

• Ausência de critérios e transparência dos gastos públicos;

• Falta de participação da população e na gestão das políticas públicas de saúde;

• Falta de mecanismos de acompanhamento, controle e avaliação dos serviços e imensa insatisfação e preocupação da população com o atendimento à saúde.

De acordo com Andrade (2001), quando se analisa o SUS em seus princípios doutrinários (universidade, integralidade e equidade) e organizativo (descentralização, participação, regionalização ou hierarquização, resolubilidade e complementaridade do setor privado), estamos diante de uma resolução tardia que ainda não chegou de forma efetiva e eficaz. Pode-se afirmar, portanto, que tem sido implantada com muita dificuldade.

As noções de universalidade, equidade e integralidade têm estado presentes em documentos doutrinários e técnicos da área da saúde divulgados nos últimos sessenta anos. O SUS teve seus princípios estabelecidos na Lei Orgânica de Saúde de 1990, com base no artigo 198 da Constituição Federal de 1988 (Ministério da Saúde, 1990; Paim, 2002). Os princípios da universalidade, integralidade e da equidade também chamados de princípios doutrinários - em relação aos propósitos idealistas - e os princípios da descentralização, da regionalização e da hierarquização de princípios organizacionais (Ministério da Saúde, 1990).

No Brasil, os três termos dos princípios doutrinários do SUS vêm sendo progressivamente utilizados em documentos técnicos e normativos. A equidade aparece como sinónimo de igualdade mesmo não constando entre os princípios SUS, seja na Constituição, seja na Lei Orgânica da Saúde. Os princípios e diretrizes nesses marcos legais são a igualdade, a universalidade e a integralidade (Ministério da Saúde, 1990). Assim, o SUS é, de direito e de fato, a grande conquista dos movimentos de saúde, o caminho democrático da saúde do nosso país e "um dos maiores avanços de política social no Brasil na sua história recente" (Andrade, 2001, p.15).

Por um lado, pode ser considerada uma resolução tardia, mas também com ampla importância política e social para o povo brasileiro, sendo que, nessa relação à comunidade, entra no sistema pela Unidade Básica de Saúde. Bleicher (2003), afirma que é a partir do SUS que falamos sobre atenção primária, que é a porta de entrada do sistema e um espaço de atuação de profissionais de saúde que, necessariamente, precisam estar voltados para a resolução dos problemas. Ao tratar da questão da unidade básica de saúde como porta de entrada no sistema, precisamos apontar os princípios fundamentais da atenção básica no Brasil, que são a integralidade, qualidade, equidade e participação social.

Seu desafio é o de ampliar suas fronteiras de atuação visando a uma maior resolubilidade da atenção, na qual a Saúde da Família é compreendida como a estratégia principal para a mudança desse modelo, que deverá sempre se integrar a todo o contexto de reorganização do sistema de saúde, trabalhar com e para a população, e cujos objetivos são promovê-la, preveni-la e recuperá-la tanto no âmbito físico quanto no social. É garantir, entre outros aspectos, a integralidade das ações em consonância com a visão integral do ser humano, configurando a luta contra a ideologia de submissão e resignação, e a desconstrução da identidade de oprimido e explorado.

Esses programas foram uma estratégia criada pelo Ministério da Saúde com o objetivo de reorientar o modelo assistencial de saúde, implementando equipes multiprofissionais em unidades básicas de saúde para o acompanhamento de um número de famílias, localizados em determinada área geográfica, com o apoio do Núcleo de Apoio da Saúde da Família (NASF).

Conforme o Ministério de Estado da Saúde, Portaria nº 1.886/1997, foram criados o Núcleo de Apoio da Saúde da Família (NASF), a Estratégia de Saúde da Família (ESF), O Programa Saúde da Família (PACS) e os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) abaixo descritos:

• O Núcleo de Apoio da Saúde da Família (NASF)

- Segundo Starfield (2004), a Atenção Primária à Saúde é complexa e demanda uma intervenção ampla em diversos aspectos para que se possa ter efeito positivo sobre a qualidade de vida da população, necessita de um conjunto de saberes para ser eficiente, eficaz e resolutiva. Visando apoiar a inserção da Estratégia Saúde da Família, o Ministério da Saúde criou o Núcleo de Apoio da Saúde da Família (NASF), com a Portaria nº 154, de 24 de janeiro de 2008, republicada em 4 de março de 2008.

- O Núcleo de Apoio da Saúde da Família I (NASF I) - Deverá ser composto por, no mínimo, cinco das profissões de nível superior (Psicólogo; Assistente Social; Farmacêutico; Fisioterapeuta; Fonoaudiólogo; Profissional da Educação Física; Nutricionista; Terapeuta Ocupacional; Médico Ginecologista; Médico Homeopata; Médico Acupunturista; Médico Pediatra e Médico Psiquiatra) vinculadas de oito a vinte Equipes Saúde da Família.

- O Núcleo de Apoio da Saúde da Família II (NASF II) - Deverá ser composto por, no mínimo, três profissionais de nível superior de ocupações não coincidentes (Assistente Social;

Profissional de Educação Física; Farmacêutico; Fisioterapeuta; Fonoaudiólogo; Nutricionista; Psicólogo e Terapeuta Ocupacional), vinculados a, no mínimo, três Equipes da Saúde da Família. Excepcionalmente, nos Municípios com menos de 100.000 habitantes dos Estados da Região Norte, cada Núcleo de Apoio da Saúde da Família I (NASF I) poderá realizar suas atividades vinculado a, no mínimo, cinco equipes de Saúde da Família, e a, no máximo, vinte equipes de Saúde da Família.

• ESTRATÉGIA DA SAÚDE DA FAMÍLIA (ESF)

- O Programa Saúde da Família (PSF) surge no Brasil como uma estratégia, conhecida hoje como "Estratégia da Saúde da Família", que teve início, em 1994. Na sua composição é recomendado que a equipe seja composta por, no mínimo, um médico de família ou generalista, enfermeiro, auxiliar de enfermagem e Agentes Comunitários de Saúde (ACS).

A consolidação dessa estratégia precisa, entretanto, ser sustentada por um processo que permita a real substituição da rede básica de serviços tradicionais no âmbito dos municípios pela capacidade de produção de resultados positivos nos indicadores de saúde e de qualidade de vida da população assistida.

• O AGENTE COMUNITÁRIO DE SAÚDE (ACS)

- no Programa do Agente Comunitário de Saúde (PACS), esta pessoa que vive e trabalha no território é o elo entre o sistema de saúde e a comunidade. Este programa foi criado para garantir o acesso a serviços baseados na promoção da saúde e no fortalecimento do vínculo com a comunidade.

Todos esses programas configuram a política da reestruturação do Programa Saúde da Família (PSF), hoje Estratégia de Saúde da Família (ESF), cuja responsabilidade central é atuar e reforçar nove diretrizes na atenção à saúde: a interdisciplinaridade; a intersetorialidade; a educação popular; o território; a integralidade; o controle social; a educação permanente em saúde; e a promoção da saúde e a humanização.

Esses programas citados vêm ao encontro de uma nova maneira de trabalho, na qual o profissional da saúde deve estabelecer vínculos de compromisso com a população para que possa desenvolver atividades de prevenção de doenças e promoção de saúde.

Desse modo, o profissional de saúde deve estimular a organização das comunidades para que possam exercer o controle social das ações e dos próprios serviços de saúde. Ao estudar as categorias da Psicologia Social Comunitária, percebe-se que estas respaldam aquele modelo de atuação ao privilegiar o trabalho grupal em suas categorias analíticas. Desse modo, o empowerment, conscientização, processos de participação e fortalecimento comunitário são instrumentos importantes para trabalhar o tema das práticas do psicólogo no SUS.

Assim, a Psicologia Social Comunitária contribui com este novo olhar do atendimento psicológico voltado ao serviço público. Passa-se a discutir algumas das categorias da Psicologia Social Comunitária que podem contribuir tanto para os profissionais como para os usuários dos serviços oferecidos - de acordo com as diretrizes reforçadas pelo SUS.

 

Categorias da Psicologia Social Comunitária

A Psicologia Social Comunitária fornece subsídios epistemológicos, teóricos, metodológicos, éticos e políticos na construção de uma abordagem que pode ser norteadora desse modelo de atuação preconizado pelo SUS. As categorias utilizadas como referencial para a práxis do psicólogo compreendem o desenvolvimento da autonomização dos sujeitos em relação aos seus contextos de vida, ou seja, a comunidade.

A abordagem da Psicologia Social Comunitária parte do pressuposto de que os grupos marginalizados e discriminados na sociedade sofrem de uma falta de poder que os impede de lutar pelos seus direitos e usufruir de benefícios econômicos e sociais, assim como de participar das decisões políticas que interferem nas suas vidas. Para alterar essa situação, é necessário que esses grupos aumentem as suas competências e o seu poder. Assim, a categoria empowerment - aliada ao desenvolvimento de processos de conscientização, participação e fortalecimento -, justifica-se além de ampliar o contexto no qual o psicólogo pode atuar.

De acordo com Pinto (1998, p. 247), Empowerment pode ser definido como:

Um processo de reconhecimento, criação e utilização de recursos e de instrumentos pelos indivíduos, grupos e comunidades, em si mesmos e no meio envolvente, que se traduz num acréscimo de poder - psicológico, sociocultural, político e económico -que permite a estes sujeitos aumentar a eficácia do exercício da sua cidadania.

O psicólogo, por meio de ações educativas individuais e coletivas, pode promover o empowerment, atuando diretamente na comunidade. Também pode colaborar para a formação de uma consciência crítica sobre o sistema de saúde favorecendo a participação do sujeito na gestão da saúde e contribuindo para a construção de uma identidade autónoma dentro de sua comunidade.

É nesse contato direto do psicólogo com a comunidade que ocorre o momento de mudar as estratégias, através de uma abordagem de empowerment e de participação, sendo que Rappaport (1990, p. 144) cita:

Esta abordagem [...] procura o fortalecimento das pessoas através de organizações de interajuda, nas quais o papel dos profissionais é colaborar com as pessoas em vez de controlá-las.

A ação prática do psicólogo nos contextos comunitários é fundamental para o fortalecimento psicológico dos sujeitos que passam de assujeitados para atores sociais. Outra categoria importante é a conscientização, ou melhor, o desenvolvimento de processos que sejam facilitadores da conscientização. Segundo Martin-Baró (1998) - que foi influenciado por Paulo Freire -, a conscientização é reafirmada como processo fundamental no trabalho de mudança e de apropriação de novas zonas de sentido. Desse modo, considera-se que o psicólogo que começa a trabalhar com a conscientização possibilita à população o desenvolvimento de uma visão crítica sobre a educação permanente, a promoção da saúde e a humanização no atendimento à saúde.

Autores como Martin-Baró (1996) e Prilleltensky (1989) sugeriram que a conscientização é uma atividade necessária para o psicólogo. A partir das ideias de Freire, trata-se e compreende-se a conscientização como um processo gradual em que o homem, na medida em que conhece e age no mundo, transforma-o e transforma a si mesmo, sendo agente de sua própria história.

O conceito de conscientização configura-se como possuidor de diversas influências teóricas e práticas (Góis, 1994; Lane, 2003). Entre essas influências, encontra-se a Educação Libertadora, desenvolvida por Paulo Freire. Esse conceito se refere ao processo de tomar consciência do mundo que Freire (1980, p. 29) define da seguinte maneira:

[...] tomar posse da realidade [...], é o olhar mais crítico possível da realidade, que a 'desvela' para conhecê-la e para conhecer os mitos que enganam e que ajudam a manter a realidade da estrutura dominante.

Tomar consciência do mundo e da realidade é conduzir consigo, não apenas a compreensão lógica da realidade, mas também de ações concretas frente a ela, transmitindo nessa definição uma concepção política e concreta de transformação desta.

Tal condição para a conscientização torna-se, ainda, mais urgente em contextos como o latino-americano, sobre o qual uma grande maioria da população vive realidades extremamente desiguais e opressoras em que o direito de pronunciar a própria palavra lhe é constantemente negado, ou permitido na forma de um imenso favor (Freire, 1981, 1984; Martin-Baró, 1996).

Em contextos comunitários, o psicólogo deve viabilizar a fala do sujeito e utilizar a conscientização como uma prática diária, urgente e necessária, aliada ao pensamento crítico que afirma: "[...] processo de transformação pessoal e social que experimentam os oprimidos latino-americanos quando se alfabetizam em dialética com o seu mundo" (Martin-Baró, 1996, p. 15-16).

Nessa perspectiva, o trabalho do psicólogo estaria voltado a facilitar que as pessoas pronunciassem suas palavras. Dar a palavra ao outro é saber ouvir, é facilitar o diálogo em uma relação dialógica, é trabalhar com o sujeito e com a comunidade e, para tanto, é preciso, segundo Martin-Baró (1996, p. 16):

[...] que as pessoas assumam seu destino, que tomem as rédeas e sua vida, o que lhes exige superar a falsa consciência e atingir um saber crítico sobre si mesmas, sobre seu mundo e sobre sua inserção nesse mundo.

Ao analisarmos a construção social da doença e a visão de impossibilidade de mudança de condições sociais de vida opressoras, podemos perceber que o problema não está somente na relação entre saúde e enfermidade. Assim como o problema da saúde pública não se situa somente na prevenção da doença e no seu tratamento, mas antes disso, o problema se situa na construção da pessoa humana como um sujeito da realidade. Como uma pessoa que se assume responsável por sua história e pela história da comunidade da qual faz parte e que as constrói mediante sua atividade prática e coletiva de construção da saúde.

Conceber a pessoa como sujeito da realidade é afirmar sua autonomia e autoria de sua própria existência, fomentar a participação do sujeito tanto dentro da comunidade - como um ator social ativo e não passivo da realidade. Capaz de atuar dentro da saúde pública como beneficiário do sistema de saúde e também no controle das ações desenvolvidas na mesma. Deste modo, portanto, em consonância com a visão integral do ser humano, configura-se a luta contra a ideologia de submissão e resignação do sujeito com a sua condição de saúde e vida.

Na Pedagogia da Libertação, assim como na Teoria Histórico-Cultural da Mente, [...] o ponto de partida para o desenvolvimento do indivíduo é sua ação transformadora do mundo [...] Para ambos, a consciência se origina no ato de transformar a realidade e não na adaptação (Góis, 2005, p. 111).

A participação popular está voltada para a conscientização, pois é um processo que incita à população de modo efetivo a superar a mera cidadania dos direitos, ir em direção a uma cidadania ativa (Benevides, 1991), na qual o povo passa a se pronunciar acerca de quais direitos quer ter, e não apenas usufruir dos direitos elaborados de modo alheio às suas reais necessidades.

O sucesso dos trabalhos comunitários depende do significado que tais trabalhos representam para aquela população, por isso há necessidade da participação ativa da população em todo o processo interventivo, considerando toda sua complexidade e dinamicidade (Freitas, 1998; Spink & Medrado, 1999).

Em relação ao fortalecimento, de acordo com Montero (2003), este é uma ideia que começou no final da década de 1970, em países latino-americanos. O fortalecimento pode ser visto como uma direção fundamental de ação da psicologia comunitária para se alcançar as transformações sociais desejadas.

Segundo Kieffer (1984), o fortalecimento é um processo contínuo e em longo prazo do desenvolvimento do adulto, com ações que permitam às pessoas serem sujeitos de sua própria história e dependam de três dimensões interligadas: desenvolvimento de um conceito mais positivo, ou competência; compreensão crítica do ambiente social e político; promoção e organização de recursos coletivos e individuais para ação política e social.

Refletir sobre as categorias da Psicologia Social Comunitária com discussões teóricas traz novos caminhos e entendimentos para o que está acontecendo em termos de mudança de concepções de saúde e doença. Fortalece a produção do conhecimento para que ações sejam tomadas nessa nova perspectiva de atuação para as práticas psicológicas no SUS.

 

Considerações Finais

Fica evidente que, a partir das mudanças que vêm ocorrendo na saúde com os programas implantados, novas exigências surgem como desafios para os profissionais em questão. Se, por um lado, a constituição cidadã garante, mesmo que tardiamente, direitos universais aos sujeitos sobre a integralidade de sua saúde, o aparelho do Estado pretende regionalização e territorialização como forma de garantir a acessibilidade da população aos seus direitos. Observa-se, por outro lado, uma grande pressão do capital para que o Estado abra mão do SUS - que é reconhecido como mundialmente exemplar. A pressão constante é exercida por lobistas das grandes empresas e convênios de saúde que empurram parte da população para apoiar a privatização do próprio sistema.

As categorias da Psicologia Social Comunitária vêm ao encontro dos programas do Ministério da Saúde enquanto construções teóricas, permitem uma prática interventiva e preventiva na comunidade. Esse processo pode ser auxiliado de diversas maneiras, enriquecendo os projetos e o desenvolvimento de ações de comunicação, fomentando a participação comunitária e o controle social dos serviços.

Tem-se claro que o psicólogo na comunidade deve envolver a todos na busca de solução de seus problemas, trabalhando em uma perspectiva da execução e da mediação comunitária, que, antes de tudo, é uma ação política e social.

Através de práticas éticas e de reclames da justiça social, a Psicologia Social Comunitária é capaz de atuar no território local envolvendo todos os atores sociais que trabalham no âmbito do SUS.

Nessas categorias, estão presentes as concepções da capacidade do indivíduo e da própria comunidade de serem responsáveis e competentes na construção de suas vidas, necessitando a presença de certos processos de facilitação social apoiados na ação local e na conscientização, compreendendo a importância das categorias da Psicologia Comunitária como um processo de facilitação dentro de um contexto agregador - como uma rede complexa de interações. O trabalho de psicólogos, assistentes sociais e outros profissionais inseridos no SUS pode ter um sentido fortalecedor, contribuindo nas mudanças exigidas pelos programas implantados, demonstrando dessa forma o valor dessas categorias da Psicologia para o sistema de saúde público brasileiro.

 

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Endereço de Contato:
Katia Gregório Bittencourt Silveira
Rua: Romário Martins, 40, Jardim Social
Curitiba, PR, CEP 82520-140

Recebido: 22/05/2013
Última revisão: 18/04/2016
Aceite final: 26/04/2016

 

 

Sobre as autoras:
Katia Gregório Bittencourt Silveira - Mestre em Psicologia pela Universidade Tuiuti do Paraná (2012) e possui graduação em Psicologia pela Universidade Tuiuti do Paraná (1983). Especialista em Sexualidade Humana pela Universidade Tuiuti do Paraná (2000), Especialista em Psicopedagogia (2005), Especialista em Educação Especial, Especialista em Educação Inclusiva (2006) pelo Centro Universitário Internacional, UNITER, Brasil, Especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial de Crianças e Adolescentes (2012), pela Escola de Saúde Pública do Paraná. Atualmente é Psicóloga - Secretaria Municipal de Saúde de São José dos Pinhais, representante do CRP-08 no Conselho Municipal de Saúde , Presidente do Conselho Municipal de Saúde no Município de São José dos Pinhais - gestão 2010/2012. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Psicologia Cognitiva, atuando principalmente nos seguintes temas: Depressão, Doenças Sexualmente Transmissíveis e AIDS.
Maria Sara de Lima Dias - Pós-Doutora em Psicologia pela Universidad Autónoma de Barcelona (2016), Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (2009) possui mestrado (2004) em Psicologia da Infância e Adolescência e graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Paraná (1990). Especialista em Pedagogia Social pela Universidade Católica Portuguesa. Trabalha com projetos de Orientação Profissional e Planejamento de Carreira, e no Diagnóstico e implantação de Redes Sociais. Desenvolve os seguintes temas: planejamento de carreira, psicologia social e comunitária, psicologia do trabalho, estudos sobre violência e gênero. Colabora com o Programa de Pós -Graduação do Mestrado em Psicologia Social Comunitária na UTP, atua na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, como professora do Departamento de Estudos Sociais (DAESO). E-mail: maria.dias@utfpr.edu.br

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