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Revista Psicologia e Saúde

versão On-line ISSN 2177-093X

Rev. Psicol. Saúde vol.13 no.3 Campo Grande jul./set. 2021

https://doi.org/10.20435/pssa.v13i3.972 

ARTIGOS

 

Autoeficácia ocupacional, fatores de risco psicossocial do trabalho e mal-estar físico e psicológico

 

Occupational self-efficacy, psychosocial risk factors at work and physical and psychological malaise

 

Autoeficacia ocupacional, factores de riesgo psicosocial del trabajo y malestar físico e psicológico

 

 

André de Figueiredo Luna; Sonia Maria Guedes Gondim

Universidade Federal da Bahia (UFBA)

Endereço de contato

 

 


RESUMO

Cresce o interesse da gestão de saúde ocupacional em compreender melhor as relações entre fatores de risco psicossociais do trabalho (FRP), o adoecimento e as variáveis que contribuem para esta relação. O objetivo do estudo foi avaliar o efeito mediador da autoeficácia ocupacional (AEO) na relação entre FRP e sintomas de mal-estar físico e psicológico (MFP). Os instrumentos utilizados foram uma versão reduzida do COPSOQ II (Copenhagen Psychosocial Questionnaire) e de uma escala de AEO, ambos com evidências de validade para o contexto brasileiro. Trata-se de um estudo transversal de caráter exploratório, do qual participaram 391 trabalhadores industriais. Os resultados indicaram mediação da AEO na explicação da relação entre FRP e MFP. Foram encontradas diferenças em função do sexo, nível educacional, cargo e status do emprego. Adicionalmente, discutem-se implicações teóricas e práticas.

Palavras-chave: fatores de risco psicossocial do trabalho, autoeficácia, saúde ocupacional


ABSTRACT

There is growing interest of the occupational health professionals on the relationships among psychosocial risk factors at work (PRF), sickness and the determinants of this relationship. The aim of this study was to assess the mediating effect of occupational self-efficacy (OSE) on the relationship between PRF and symptoms of physical and psychological malaise (PPM). Instruments were an short version of COPSOQ II (Copenhagen Psychosocial Questionnaire) and an OSE scale, both with evidence of validity for the Brazilian context. This is an exploratory cross-sectional study involving 391 industrial workers. Results indicated the mediation of OSE in the explanation of the relationship between PRF and PPM. Also differences according to gender, educational level, job title and employment status were found. Additionally, theoretical and practical implications are discussed.

Keywords: psychosocial risk factors at work, self-efficacy, occupational health


RESUMEN

Crece el interés de la gestión de la salud ocupacional por comprender las relaciones entre factores de riesgo psicosociales del trabajo (FRP), enfermedades y los determinantes de dicha relación. El objetivo del estudio fue evaluar el efecto mediador de la autoeficacia ocupacional (AEO) en la relación entre FRP y síntomas de malestar físico y psicológico (MFP). Se utilizaron una versión corta del COPSOQ II (Copenhagen Psychosocial Questionnaire) y una escala de AEO, ambos con evidencias de validez para el contexto brasileño. Se trata de un estudio transversal exploratorio del cual participaron 391 trabajadores industriales. Los resultados indicaron la mediación de la AEO en la explicación de la relación entre FRP y MFP. Se encontraron diferencias en función del sexo, nivel educativo, cargo y status del empleo. Adicionalmente, se discuten implicaciones teóricas y prácticas.

Palabras clave: factores de riesgo psicosocial del trabajo, autoeficacia, salud ocupacional


 

 

Introdução

As sociedades industrializadas buscam cada vez mais entender o papel dos aspectos psicossociais no adoecimento laboral, impulsionadas pelo aumento do número de afastamentos e dos custos previdenciários e seus prejuízos para a produtividade, o bem-estar do trabalhador e os gastos públicos (Leka & Jain, 2010; Rick, Briner, Daniels, Perryman, & Guppy, 2001).

Os fatores de risco psicossociais do trabalho (FRP) são os aspectos psicossociais relacionados ao trabalho que podem interferir direta ou indiretamente na saúde, positiva ou negativamente, prejudicando ou promovendo saúde. Dentre as dimensões mais consideradas, estão intensidade e tempo de trabalho; exigências emocionais; falta de autonomia; relações sociais no trabalho ruins; conflitos de valores e insegurança empregatícia (Costa & Santos, 2013). Trata-se de aspectos dos âmbitos individual, do contexto e conteúdo do trabalho, social e grupal nas unidades de trabalho, organizacional, interface trabalho e não trabalho, e societário (Zanelli, 2015). Num esforço de síntese, podem-se considerar pelo menos três eixos: um que coaduna os riscos psicossociais derivados da atuação direta dos líderes e sua capacidade de mediar o acesso a recursos; outro relacionado à percepção de sentido e significado do trabalho; e um terceiro ligado às demandas físicas, cognitivas e emocionais da tarefa (Nübling, Stößel, Hasselhorn, Michaelis, & Hofmann, 2006). Em outras palavras, existem três principais fontes de risco psicossocial no trabalho quando os fatores estão desequilibrados em desfavor do sujeito: uma derivada das relações interpessoais, sobretudo com as lideranças; outra da relação simbólica com o emprego e a vida laboral; e, uma terceira, das exigências e demandas das tarefas especificamente. No intuito de compreender melhor as relações entre FRP e o adoecimento, o foco dos estudos voltados para o adoecimento deslocou-se ao longo dos anos dos fatores intrínsecos à tarefa, a lesões e a acidentes laborais, para aqueles fatores do contexto ou das relações do trabalhador com seu trabalho, com colegas e outras interfaces (Pejtersen, Kristensen, Borg, & Bjorner, 2010). Reconhece-se então que o adoecimento no trabalho relacionados a esses fatores de risco resultam de multicausalidade. Tendo em vista tais aspectos subjetivos, passou-se a estudar também o papel de variáveis do nível do indivíduo como a autoeficácia nesse processo. A autoeficácia é um recurso psicológico pessoal, cujo desenvolvimento depende de variáveis de contexto, com grande potencial de interferir na probabilidade de retorno ao trabalho ou na duração do afastamento por motivo de doença (Black, Sim, Collie, & Smith, 2017; Lagerveld, Blonk, Brenninkmeijer, & Schaufeli, 2010; Silva-Junior, Griep, Lagerveld, & Fischer, 2017). A autoeficácia refere-se à avaliação da capacidade pessoal de executar de maneira bem-sucedida os comportamentos necessários para alcançar um objetivo, sendo um construto psicológico com estreita interdependência contextual (Bandura, 1982).

A investigação sobre a autoeficácia no ambiente de trabalho se baseia na suposição de que a autopercepção do trabalhador sobre sua capacidade para o trabalho oferece pistas sobre sua saúde e os efeitos do contexto sobre ela, uma vez que a condição de saúde e as constrições contextuais podem reduzir a capacidade de agir do indivíduo e afetar a sua autoavaliação. O autogerenciamento tem ganhado espaço no contexto das organizações de trabalho, o que precisa ser analisado criticamente (Heuvel, Demerouti, & Peeters, 2015). As principais causas de incapacidade para o trabalho atuais são de natureza biopsicossocial e, sobretudo nos casos crônicos, exige-se do indivíduo maior habilidade para aprender a lidar com sua nova condição (Loisel & Côté, 2013). No Brasil, crescem as doenças crônicas, osteomusculares e mentais, que demandam participação ativa do indivíduo em todas as fases do adoecimento e na busca de melhores formas de manter e recuperar suas capacidades (Marinho, Passos, & França, 2016). Nesse sentido, buscar recursos internos e externos, ou perceber-se desamparado ou sem poder de agir, influiria diferentemente no curso do adoecimento, em forte articulação com o contexto em que se incluem os fatores de risco psicossocial (Assunção, 2003; Bendassolli, 2011). Além disso, o mal-estar vivido por um trabalhador no contexto de trabalho tem efeitos tanto no desencadeamento de outras doenças quanto na produtividade, pois o trabalhador sente-se menos capaz de realizar suas tarefas. Perigos do ambiente ocupacional podem levar ao adoecimento, mas também poderiam ser evitados por ações de gestão organizacional que modificam o contexto e o trabalho (Franche & Krause, 2002).

Entre os estudiosos sobre o estresse, prevalece a crença de que a autoeficácia é central para entender os efeitos do contexto sobre a sintomatologia, especialmente em saúde mental, conforme exemplificado a seguir. A baixa autoeficácia reduz a busca de alternativas para solucionar os problemas que afligem o indivíduo, alimentando o ciclo de prejuízos à saúde mental. A autoeficácia elevada reduz a atribuição do estresse ao contexto, pois o indivíduo se percebe com controle sobre o ambiente. Os efeitos dos FRP estariam associados aos mecanismos perceptivos de estresse (Huang, Feuerstein, & Sauter, 2002), e a autoeficácia modularia a reatividade neuroendócrina e psicológica aos estressores (Schönfeld, Preusser, & Margraf, 2017). Menor percepção de FRP pode estar associada à maior autoeficácia, pois o indivíduo autoeficaz busca ou identifica soluções para os problemas, deslocando sua atenção para aspectos não ansiogênicos da experiência vivida (Barbaranelli, Fida, Paciello, & Tramontano, 2018).

Foi demonstrado empiricamente o papel de mediação da autoeficácia na relação entre estressores diários e saúde mental, atenuando os danos à saúde (Schönfeld, Brailovskaia, Bieda, Zhang, & Margraf, 2016). As estratégias de avaliação e enfrentamento protegeriam o indivíduo do impacto patogênico do estresse. A baixa autoeficácia poderia tanto derivar de uma condição de saúde quanto contribuir para o adoecimento dentro das complexas relações envolvidas no mundo do trabalho, na medida em que o indivíduo com menor autoeficácia estaria em piores condições para recusar a exposição a determinados perigos, bem como manejá-los a seu favor. Nesse sentido, as queixas, os desconfortos, a busca por atendimento médico, ou o absenteísmo poderiam ser pistas acerca dos efeitos do FRP sobre os indivíduos. No bojo da busca de elementos para subsidiar intervenções preventivas no ambiente de trabalho, as crenças de autoeficácia podem ser observadas em comportamentos de esquiva (ex.: absenteísmo) ou de enfrentamento eficaz (ex.: negociar condições de trabalho) ou ineficaz (ex.: presenteísmo) das dificuldades de seu entorno, a depender do quanto o indivíduo se avalia capaz de enfrentar a situação que se lhe apresenta.

Revisões apontam que autoeficácia percebida desempenha um papel protetor para saúde mental e física (Bandura, Caprara, Barbaranelli, Gerbino, & Pastorelli, 2003). Autoestima, realização bem-sucedida de tarefas (mastery experience) e relacionamentos sociais amenizam efeitos negativos de condições crônicas, incluindo distúrbios mentais como depressão. Tomando-se o tempo de vida gasto no trabalho e interfaces, a percepção de fatores de risco nesse campo afetaria a construção da autoeficácia. Espera-se encontrar indivíduos mais autoeficazes em contextos que apresentam desafios e recursos que aumentem as chances de sucesso na tentativa de superar adversidades, o que retroalimentaria a percepção de autoeficácia (Bandura, 1982). As constrições podem ser, no entanto, desproporcionais às possibilidades do indivíduo, enfraquecendo sua autoeficácia. Não está claro se essa deterioração seria causa, efeito, ou o próprio adoecimento, visto que maior nível de estresse, ansiedade ou depressão mostra-se associados clinicamente à menor autoeficácia, o que também se observa no exercício de ocupações (Lagerveld, Blonk, Brenninkmeijer, & Schaufeli, 2010).

A interação entre autoeficácia e sintomatologia de trabalhadores (ou incapacidade) também tem sido demonstrada transculturalmente (Nauta, Liu, & Li, 2010; Sardá, Nicholas, Asghari, & Pimenta, 2009). No Brasil, já foi apontada relação com qualidade de vida no trabalho (Coelho, Antloga, Maia, & Takaki, 2016) e burnout (Souza, Torres, Barbosa, Lima, & Souza, 2015). No campo das doenças crônicas, a autoeficácia aparece como fator de proteção à saúde (Jackson, Wang, Wang, & Fan, 2014; Schüz, Wurm, Warner, & Ziegelmann, 2012; Diemen et al., 2017), reiterando a importância do enfrentamento individual e autoeficácia nesse tipo de adoecimento.

Diferentemente dos riscos físicos, os psicossociais são mais complexos, pois podem tanto levar ao adoecimento como agravá-lo, ou mesmo ser um subproduto do adoecer (Jacques, 2007; Zanelli, 2015). Apesar de termos apontado alguns estudos que sinalizam que a autoeficácia poderia atuar como moderadora nas relações entre fatores estressores e o adoecimento, neste estudo procurou-se testar o efeito mediador da autoeficácia na relação entre FRP e a percepção de mal-estar físico e psicológico (MFP). A suposição é de que, em vez de a autoeficácia interagir com os fatores de risco psicossocial protegendo o trabalhador de sintomas de MFP, os efeitos dos FRP sobre o MFP poderiam ser mais bem explicados pela fragilização da autoeficácia do trabalhador. Os FRP fragilizariam a autoeficácia, que, por sua vez, aumentaria o MFP do trabalhador. Em outras palavras, a percepção de que o ambiente de trabalho oferece potenciais riscos para o adoecimento leva o trabalhador a se questionar sobre a sua autoeficácia para enfrentá-los e, em decorrência da constatação desta fragilidade, levaria a sintomatologias físicas e psicológicas. Dito isso, o objetivo do estudo foi de testar o papel mediador da autoeficácia ocupacional (AEO) - definida como a crença do trabalhador sobre sua capacidade de desempenhar o trabalho apesar das adversidades e constrições em sua realidade laboral - na relação já demonstrada entre FRP e adoecimento (neste estudo, abordado pelo recorte do mal-estar físico e psicológico percebido).

O teste do modelo foi realizado com trabalhadores da indústria de Salvador e Região Metropolitana. No Brasil, o setor industrial está bastante familiarizado com os riscos legalmente reconhecidos, mas pouco com os riscos psicossociais. Isso se deve, em parte, pelos riscos psicossociais estarem relacionados à percepção individual, apresentando-se como um novo desafio para os profissionais habituados ao paradigma biomédico ou a uma menor participação do trabalhador na avaliação e decisão das questões de saúde. Ainda prevalecem explicações sobre o desgate orgânico (Paparelli, Sato, & Oliveira, 2011), muita embora se saiba que não é apenas a condição clínica de saúde que impacta na capacidade para o trabalho, na probabilidade de afastamento e no tempo transcorrido para o retorno ao trabalho (Franche & Krause, 2002). O estudo descrito neste artigo oferece contribuições para a compreensão conceitual e formulação de ações preventivas mais participativas na indústria, um dos setores que lidera a concessão de benefícios previdenciários por doença no Brasil (Viegas & Almeida, 2016). Adicionalmente, considerando a escassez de estudos com esse público específico, será apresentada a caracterização da amostra mais detalhadamente e algumas comparações estatisticamente significativas de médias nos construtos, com o objetivo de inspirar estudos futuros na formulação e teste de hipóteses.

 

Método

Participantes

Participaram do estudo 391 trabalhadores. Dos 284 casos válidos, 73,2% eram homens, com idade média de 34 anos (DP = 9,43; variando de 18 a 68 anos); 64,3% tinham nível educacional médio ou técnico; 32,7%, nível superior ou pós-graduação; 50,4% eram casados; 66,3% com filhos; 46,3% não compartilhavam a responsabilidade financeira da casa com outra pessoa; 65,6% estavam em cargos operacionais; 17,3% exerciam outro trabalho formal ou informal; 34,1% trabalhavam em regime de turno; 24,4%, em turno noturno; 14,1% estiveram afastados do trabalho por doença no último ano.

Instrumentos

Fatores de risco psicossociais do trabalho (FRP): utilizou-se a versão curta do Copenhagen Psychosocial Questionnaire (COPSOQ II), adaptada e validada em amostra de trabalhadores brasileiros por Luna e Gondim (2019). A medida tem 21 itens distribuídos em três dimensões: i) REL (9 itens; α = 0.90) - relativo a potenciais riscos à saúde oriundos de ações das lideranças (ex.: ". . . ajuda e apoio do meu superior imediato"); ii) INF (6 itens; α = 0.79) - que aborda sentidos, significados e importância do trabalho (ex.: "Sinto que o meu trabalho é importante"); iii) DEM (6 itens; α = 0.78) - que inclui demandas do trabalho (ex.: "Preciso trabalhar muito rapidamente"). A medida apresentou bons índices de ajuste (X2/gl = 2,15, RMSEA = 0.07; CFI = 0,940; TLI = 0.932; IC90% = 0.06/0.08) para a amostra deste estudo. A escala de resposta era do tipo Likert, variando de 1 (Discordo completamente) a 6 (Concordo completamente), em que os participantes avaliavam o quanto os aspectos apresentados caracterizavam seu ambiente atual de trabalho.

Autoeficácia ocupacional (AEO): utilizou-se uma versão adaptada por Luna e Gondim (artigo submetido) da escala Return-to-Work Self-Efficacy Scale (RTW-SE). A escala contém 11 itens distribuídos em três dimensões: (i) 'WC-Work Completion' ou completude da tarefa (3 itens; α = 0.83) - relativo à capacidade de cumprir com seu trabalho diante das demandas físicas (ex.: Conseguiria executar bem minhas tarefas no trabalho); (ii) 'AW-Affective Work' ou manejo afetivo (5 itens; α = 0.88) - referente à capacidade de realizar o trabalho diante das demandas emocionais relacionadas ao adoecimento (ex.: Conseguiria controlar minhas emoções em situações difíceis no trabalho); e (iii) 'SS-Work Social Support' ou suporte social no trabalho (3 itens; α = 0.80) - referente a comportamentos de busca de suporte social de colegas e supervisores no contexto de adoecimento e retorno ao trabalho (ex: Poderia conseguir apoio dos meus colegas de trabalho se eu precisasse). Essa solução de três fatores apresentou bons índices de ajuste (X2 = 75.24, p < 0.01; RMSEA = 0.06; CFI = 0.992; TLI = 0.989; IC90% = 0.04/0.08) para a amostra deste estudo. A escala de resposta era do tipo Likert, variando de 1 (Discordo completamente) a 6 (Concordo completamente). Os participantes eram instruídos a imaginar a situação de estarem sentindo algum sinal de adoecimento no trabalho ou estarem retornando para o trabalho após afastamento por doença.

Mal-estar físico e psicológico (MFP): foram utilizados os sete itens referentes à saúde e ao bem-estar do COPSOQ II, versão curta de Portugal (Silva, 2012). Exemplo de itens: "Se sentiu fisicamente esgotado", ". . . emocionalmente esgotado, ". . . irritado", ". . . triste". Os itens sofreram alguns ajustes para o português brasileiro, e o índice de consistência interna de α = 0,83 na amostra deste estudo permitiu utilizá-los como uma variável. A escala de resposta era do tipo Likert, variando de 1 (Nunca) a 6 (Sempre).

Procedimento de Coleta de Dados

Os procedimentos seguiram a Resolução do Conselho Nacional de Saúde e foram aprovados pelo Comitê de Ética do Instituto de Psicologia da Universidade Federal da Bahia (Certificado de Apresentação de Apreciação Ética [CAAE]: 74487317.5.0000.5686). Os trabalhadores assinaram os termos de consentimento livre e esclarecido. O período de coleta foi de seis semanas, entre julho e agosto de 2017, e realizou-se numa instituição que presta serviços de saúde ocupacional para empresas da Região Metropolitana de Salvador. Em acordo com a instituição, não foi solicitada, no questionário, informação alguma que identificasse o trabalhador. A aplicação dos questionários foi feita nas áreas de espera por atendimento de medicina ocupacional, por meio de questionário impresso, urnas para depósito e auxílio, se necessário, de psicólogas treinadas.

Procedimento de Análise de Dados

Na base de dados, não foram encontrados indícios de violação da distribuição normal dos resíduos considerando escore Z acima de 3,29 (critério de Mahalanobis), o que permitiu o uso de técnicas paramétricas. Foram excluídos 107 casos com missings, não tendo sido observados posteriormente outliers uni e multivariados (Hair, Black, Babin, Anderson, & Tatham, 2009). Restaram 284 casos válidos. Para as análises descritivas e inferenciais, foi utilizado o SPSS 23 e, para as análises de mediação, a macro PROCESS para SPSS (Hayes, 2016).

 

Resultados

A Tabela 1 apresenta os resultados das correlações entre os construtos e ilustra a correlação positiva entre as dimensões de FRP e MFP; e negativas entre as dimenões de AEO, MFP e as dimensões de FRP, em linha com aspectos teóricos e achados empíricos precedentes.

O modelo de mediação mostra impacto direto de FRP sobre MFP positivo, β = 0,45, t(284) = 7,95, p = <. 001. O efeito indireto pela mediadora AEO foi de β = 0,06 (IC: -0,0232/0,1099), dando suporte para a hipótese de mediação. Mais detalhadamente, observou-se que FRP foi responsável por cerca de 25% da variação em MFP [R=0.50, R²ajustado= 0.25, F(1,283)=93,499, p<0.001] e de outros 13% em AEO [R=0.36, R²ajustado= 0.13, F(1,283)=42,482, p<0.001], ao passo que AEO explica cerca de 12% na variação de MFP [R=0.34, R²ajustado=0.12, F(1,283)=36,890, p<0.001]. A análise aponta que o efeito do FRP sobre o MFP pode ser mais bem explicado pela via da AEO.

Embora o objetivo deste estudo não tenha sido o de testar hipóteses envolvendo dados sociodemográficos, apresentam-se as diferenças estatisticamente significativas encontradas em variáveis de caracterização da amostra à guisa de discussão crítica e subsídio para estudos futuros e ações de gestão nas empresas. Houve diferenças para sexo no escore geral de MFP [F (1,276) = 14,663; p<.001], em que as mulheres (M=3,25;DP=0,848; p<.001) relataram mais mal-estar do que homens (M=2,83;DP=0,804; p<.001). O cargo diferenciou grupos em cada uma das dimensões de FRP [FREL (2,282) = 4,331; p<.01], [FINF (2,282) = 4,881; p<.01], e [FDEM (2,282) = 4,487; p<.01], mas não para o escore geral. Participantes em cargos administrativos obtiveram maiores médias em riscos relacionados à liderança (REL) (M=2,93; DP=1,262) e aos aspectos simbólicos (INF) (M=1,82; DP= 0,957), em comparação aos operacionais [(MREL=2,79; DP=1,223) e (MINF =1,78; DP= 0,884)] e gestores [(MREL=2,20; DP=0,973) e (MINF=1,31; DP= 0,425)]. Inversamente, os gestores apresentaram maiores médias em demandas (DEM) (M=4,15; DP=1,168) que os operacionais (M=3,67; DP=1,223) e os administrativos (M=3,37; DP=1,198).

Quanto ao nível educacional, observaram-se diferenças nos escores de AEO [FAEO (4,260) = 9,932; p<.001] e MFP [FMFP (4,260) = 4,400; p<.05]. Participantes de nível médio ou técnico obtiveram média em AEO superior (M=4,41; DP=1,012) à dos participantes de nível superior ou pós-graduação (M=3,96; DP=1,151). Inversamente, os primeiros obtiveram médias menores em MFP (M=2,15; DP=0,963) do que os segundos (M=2,42; DP=0,922). Maior nível educacional, portanto, esteve associado à menor AEO e ao maior MFP neste estudo. Interações da variável nível educacional com outras variáveis não foram estatisticamente significativas.

 

Discussão

Em conjunto, os resultados sugerem que maior percepção de fatores de risco psicossociais no trabalho está relacionada à maior percepção de mal-estar físico e psicológico, e que isso pode ser mais bem explicado pelo prejuízo dos FRP sobre a autoeficácia ocupacional. Por se tratar de um estudo de corte transversal, esses resultados merecem ser analisados com cautela. Há de se considerar também que as correlações negativas entre FRP e AEO (r=-0,362) e entre AEO e MFP (r=-0,340), e positiva entre FRP e MFP (r=0,499), ilustram a interdependência entre os construtos, o que poderia ser mais bem explorado futuramente em estudos longitudinais ou com mais variáveis de controle. Muito embora estudos correlacionais não apontem a direção de causalidade, há evidências crescentes de que condições psicossociais precárias de trabalho, ou "estressores" (ex.: FRP), aumentam o risco de sintomas de depressão, ansiedade, esgotamento e sofrimento (alguns dos aspectos contemplados na medida de MFP) (Fida, Laschinger, & Leiter, 2018; Harvey et al., 2017; Joyce et al., 2016).

Nesse contexto, a autoeficácia seria um recurso psicológico com potencial de ter efeitos protetores sobre a saúde (Schönfeld et al., 2016), ajudando a explicar a correlação negativa de AEO e MFP. A correlação negativa entre esses construtos indica que, quanto maior a percepção de autoeficácia, menor a percepção de mal-estar físico e psicológico, ou inversamente, maior mal-estar físico e psicológico está relacionado à menor percepção de autoeficácia. Embora não se tenha testado neste estudo o efeito da interação entre AEO e FRP, é preciso considerar que níveis muito altos de autoeficácia, às vezes sugerem uma estimativa irreal da capacidade individual, podendo levar ao aumento nas respostas de estresse neuroendócrino e psicológico e à diminuição no desempenho (Schönfeld et al., 2017). Em outras palavras, a AEO poderia fazer com que o trabalhador ignorasse os riscos a que está sendo exposto em seu trabalho. Neste caso, é importante levar em conta questões de natureza ética por parte da organização que, porventura, venha a adotar políticas de fortalecimento da AEO dos trabalhadores, deixando de atuar em fatores das condições e formas de organização do trabalho que de fato provocam o adoecimento e prejudicam a produtividade individual e coletiva.

Tais aspectos chamam atenção para o papel das organizações e das lideranças no suporte contínuo à construção de ambientes de trabalho com melhor controle de fatores de riscos psicossociais, oferecendo mais oportunidades de desenvolvimento de capacidades individuais em base realistas. Intervenção de incentivo ao redesenho e planejamento do trabalho com participação e voz do trabalhador é capaz de aumentar a autoeficácia e o bem-estar e reduzir os afetos negativos (Heuvel, Demerouti, & Peeters, 2015), em uma linha de atuação mais ética. A participação ativa do trabalhador no processo parece ser aspecto-chave nessa abordagem (Oakman & Chan, 2015), colocando em destaque o testar, errar e aprender (mastery experience), como fundamentos da construção da autoeficácia (Bandura, 1982). Evidências apontam tanto para o efeito direto da autoeficácia na saúde mental quanto para o efeito mediado pelas cognições (Leeuwen et al., 2012), campo no qual as organizações e lideranças podem intervir a partir da construção de uma cultura que favoreça posturas saudáveis de enfrentamento das demandas do trabalho.

Mesmo com população clinicamente acometida, o estudo de Secker e Membrey (2003) trouxe evidências de que os "suportes naturais" no trabalho, tais como treinamento, apoio para aprender, boas relações interpessoais, cultura e clima organizacional favoráveis e efetiva gestão de pessoas, aumentaram a efetividade do retorno ao trabalho e evitaram novos afastamentos. Adicionalmente, outros achados empíricos ilustram que a inclusão de recomendações de prevenção, ferramentas práticas ou conselhos (intervenções que incentivam o aprendizado de alternativas), e também adaptações coletivas (para além das recomendações individuais) repercutem em melhores níveis de saúde laboral (Memish, Martin, Bartlett, Dawkins, & Sanderson, 2017). As estratégias supracitadas poderiam fomentar a autoeficácia ocupacional e evitar que a deficiência na gestão desses aspectos viesse a enfraquecê-la. Em síntese, os resultados do estudo aqui proposto permitem concluir que a ausência de uma política que monitore e controle os fatores de risco psicossocial no ambiente de trabalho pode fazer com que a AEO se deteriore, impactando no aumento de sintomas de mal-estar físico e psíquico. Sendo assim, apesar de a AEO poder estar negativamente associada à percepção de fatores de risco psicossocial, a inobservância de tais fatores pode vir a minar um dos principais e mais preciosos recursos pessoais do trabalhador, com impactos no seu futuro adoecimento e previsível afastamento do trabalho.

Adicionalmente, as variações observadas por variáveis sociodemográficas apontam para a importância de os profissionais de saúde e segurança ocupacional monitorarem a percepção do trabalhador sobre os riscos psicossociais do ambiente de trabalho, levando em conta o sexo, o nível de escolaridade e a posição que ocupam na empresa. Isso permitirá adotar ações preventivas mais eficazes. Os dados indicam que a questão do sexo ainda merece atenção, observando o tipo de trabalho realizado por mulheres em comparação com os homens, e como cada uma dessas categorias sociais lida com a interface vida-trabalho. As diferenças encontradas também sugerem que os riscos psicossociais repercutem de modo distinto, a depender da posição que o trabalhador ocupa na organização.

Outrossim, quanto aos cargos, sabe-se que os operacionais tendem a ser ocupados por indivíduos com menor escolaridade no contexto de indústria, o que permite problematizar: o que explicaria que os trabalhadores operacionais ou menos escolarizados da amostra deste estudo tivessem percepção de autoeficácia mais elevada? Isso sinalizaria que esses públicos estão expostos a diferentes níveis de pressão, autonomia, e controle sobre o trabalho? E o que explicaria que os mais escolarizados, supostamente com maior acesso a recursos, se percebessem com menos autoeficácia? Seria efeito de estar em contato com problemas de maior alçada que fogem do escopo do papel individual, e que, portanto, não faria sentido considerar a possibilidade de resolvê-los? Poderia ser efeito do tipo de cargo que ocupam (ex.: liderança)? São todas questões importantes que o estudo levanta e que merecem ser exploradas com diferentes desenhos de investigação.

É certo que a amplitude do tema dos impactos dos FRP na saúde necessita de maior delimitação conceitual para explicar melhor as interações entre variáveis de diversos níveis (individual, coletivo, organizacional, social), sobretudo no eixo de promoção da saúde. No entanto, isso não é óbice para a tomada de decisão no âmbito da empresa e da criação de condições de trabalho eticamente mais saudáveis, ainda que essas ações foquem inicialmente no controle dos riscos, a fim de minimamente preservar a saúde enquanto não se encontrem os caminhos para promovê-la.

Cabe então levar em consideração na prática a diferenciação entre risco (probabilidade de dano), perigos e danos (Rick et al., 2001). A questão de riscos psicossociais é mais complexa, quando comparada com o risco biológico, químico ou físico, pois a percepção de haver risco no primeiro caso cria um fato psicológico que desencadeia processos autorregulatórios saudáveis ou reações patogênicas relacionadas aos mecanismos de estresse e ansiedade. É indispensável que os gestores atuem no ambiente de trabalho para diminuir as possibilidades de o trabalhador perceber riscos ou perigos para a saúde. Os resultados sugerem que, quanto maior a percepção, maior a chance de tais riscos fragilizarem a autoeficácia do trabalhador, aumentando os sintomas de mal-estar físico e psicológico, que poderão desencadear o adoecimento futuro.

Dentre as limitações, destaca-se que o modelo foi testado em uma amostra de trabalhadores da indústria apenas de Salvador e Região Metropolitana. Não se sabe o quanto a amostra representa de fato a população de trabalhadores da indústria do Brasil, especialmente no que se refere às indústrias de médio e pequeno porte. Também se reconhecem as limitações de um estudo transversal correlacional, pois não permitem inferir haver relação causal entre FRP e MFP, apenas a força da associação entre as duas variáveis. Adicionalmente, levantam-se considerações sobre as análises de mediação aplicadas, vez que o número de casos completos (sem dados faltantes) e as diferentes escalas usadas nas medidas limitaram a aplicação de métodos e índices de ajuste mais robustos. Reconhece-se, no entanto, o desafio de obter autorização de indústrias para pesquisa com seus trabalhadores, sobretudo envolvendo temas sensíveis, como adoecimento e avaliação das condições de trabalho (representadas pelos itens da medida de FRP), de modo que se faz importantes novos estudos para contrapor ou contribuir às discussões apresentadas neste estudo, bem como incentivar empresas a se engajarem em investigações nesse campo.

Para estudos futuros, recomenda-se a utilização de desenhos experimentais, longitudinais ou ainda multiníveis, que ajudem a esclarecer as relações entre os construtos e permitam explorar melhor a influência dos diferentes níveis de variáveis (individual, do trabalho e do contexto psicossocial mais amplo). Ademais, sugere-se investir em estudos que incluam dados auto e heterorreferidos, de modo a depurar a imprecisão e os conflitos que emergem dessa discussão sobre a validade do dado obtido por autorrelato. Dados de afastamentos, acidentalidade, perfil de adoecimento, levantamento de riscos ergonômicos, custos associados à saúde ocupacional, dentre outros, poderiam contribuir para melhor entendimento dos fenômenos e suas associações.

 

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Endereço para contato:
André de Figueiredo Luna
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Recebido em: 09/04/2019
Última revisão: 04/07/2019
Aceite final: 21/08/2019

 

 

André de Figueiredo Luna: Mestrado em Psicologia Organizacional e do Trabalho pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Graduação em Psicologia pela UFBA. Atualmente é profissional de recursos humanos e saúde ocupacional em empresa privada e consultoria.
E-mail: andre_luna_@hotmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0002-1497-2885
Sonia Maria Guedes Gondim: Doutorado em Psicologia Social e da Personalidade pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestrado em Psicologia Social pela Universidade Gama Filho (UGF). Especialização em Gerência de Pessoas pela Faculdade Machado Sobrinho (FMS). Graduação em Psicologia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (CES/JF). Atualmente é professora titular aposentada da Universidade Federal da Bahia (UFBA), atuando apenas na Pós-graduação. Grupo de pesquisa: emotrab.ufba.br.
E-mail: sggondim@gmail.com
Orcid: http://orcid.org/0000-0003-3482-166X

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