Introdução
Tratar da temática da saúde mental em articulação à realidade de minorias sexuais e em cenários como o Brasil, situados na periferia do capitalismo, requer abordagens abrangentes que não desconsiderem as profundas adversidades que as atingem. A pandemia da covid-19, conforme Bordiano et al. (2021), tem sido um catalizador de sofrimento psíquico, porém, com agravantes para determinados grupos sociais, como é o caso de homens gays, acirrando vulnerabilidades prévias e sofrimentos crônicos que marcam suas vidas. O presente trabalho foi desenvolvido no intuito de conhecer esses impactos provocados pela pandemia na saúde mental, partindo do recorte das experiências de homens gays.
Entende-se que a saúde mental não é efeito apenas de componentes de ordem individual, mas tem causalidade complexa, associada a cenários de vulnerabilidades prévias e de sofrimentos crônicos. Dessa forma, o cruzamento das desigualdades com saúde mental revela a indissociabilidade entre sofrimento psíquico e o modo de organização social. Neste trabalho, compreende-se a produção de sofrimento psíquico de homens gays, levando-se em conta o entrecruzamento de várias determinações coletivas, constitutivas das subjetividades: as desigualdades estruturais e iniquidades sociais que condicionam suas vidas; as experiências negativas relacionadas ao estigma, à violência, à discriminação, à exclusão e ao preconceito; e, por último, os efeitos psicossociais gerados ou potencializados pela pandemia da covid-19.
Sobre a primeira delas, o Brasil ocupa a 10ª posição de um conjunto de 143 países no ranking da desigualdade. Está posicionado como o segundo país do mundo com a maior desigualdade na distribuição de renda (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento [PNUD], 2019). Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2018), 75% das pessoas que vivem na extrema pobreza no país são autodeclaradas como negras ou pardas, as quais registram maiores proporções de restrições sociais, quando comparadas às pessoas brancas, e maior participação em ocupações informais, comparativamente a trabalhadores de outra cor ou etnia (IBGE, 2020).
Os efeitos de precarização sobre a vida produzidos pela desigualdade social e pela pobreza atingem ainda mais fortemente as minorias sexuais pretas, pobres e periféricas. No âmbito da promoção e proteção dos direitos humanos, encontram-se em situação de extrema vulnerabilidade, visto que enfrentam todo tipo de dificuldades para terem seus direitos reconhecidos, a homofobia nos serviços de saúde e barreiras de acesso ao cuidado integral, de acordo com suas demandas e especificidades. No governo bolsonarista ultraconservador, observam-se esses direitos – em constante disputa em uma sociedade machista e patriarcal – serem ainda mais atacados e negligenciados em inúmeros setores sociais: saúde, educação, lazer, trabalho, proteção social, moradia (Town et al., 2021). Um exemplo disso é publicação do decreto n. 9.883, em abril de 2019, que extinguiu o Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD/LGBT).
O segundo feixe de determinações indica que, entre os homossexuais, há sofrimentos crônicos produzidos por estigma, discriminação, segregação, rejeição familiar e homofobia, assim como em relação à violência física, sexual, verbal e psicológica de que são alvos ao longo de toda a vida (Town et al., 2021). Como sofrimento de longa duração, que impõe ao sujeito viver cotidianamente lutando por sua integridade física e subjetiva, empenhando-se no enfrentamento dessas opressões, não à toa, registram-se altos índices de analfabetismo, de abandono escolar, de desemprego, mas também de ansiedade e depressão, de dependência de álcool e/ou outras drogas, de suicídio e histórico de internação psiquiátrica (Carvalho et al., 2019).
A história de pessoas homossexuais é marcada pela maior exposição à violência, ao bullying, à morte, à violação de direitos e à falta de proteção institucionalizada (Bordiano et al., 2021), aumentando, assim, as chances de sofrer agressão motivada pela aversão à orientação sexual ou presenciar situações de intolerância e violência – psíquica ou física – em seus lares, escolas, ambientes de trabalho ou nos diversos espaços em que circulam. Desse modo, jovens gays consistem em um dos grupos que têm grandes chances de vivenciar eventos estressantes na vida, como discriminação e violência, quando comparados a seus pares heterossexuais cisgêneros, o que, inevitavelmente, leva a problemas de saúde mental.
Os acentuados índices de violência de cunho homofóbico e de preconceitos costumam forçar esses indivíduos a fugirem de casa ou a esconder sua homossexualidade com medo da violência que podem sofrer (Gomes et al., 2014). O relatório brasileiro sobre violência perpetrada contra minorias sexuais proveniente de denúncias feitas ao Disque Direitos Humanos (DDH) (Ministério da Saúde, 2012) afirma que essa violência tem um forte componente de destruição psicológica e física, invade os espaços emocionais e psicológicos, potencializando sintomas somáticos, reduzindo a autoestima, ou seja, visando obliterar pessoas gays no plano concreto e simbólico.
Um dos poucos relatórios sistemáticos existentes – de iniciativa não governamental – é o do Grupo Gay da Bahia (GGB), entidade que registra anualmente dados de violência contra pessoas gays no Brasil. O mais recente levantamento, de 2021, indica que os episódios de mortes violentas de LGBTQIA+ no Brasil, desde 1980, contabilizam mais de seis mil mortes, dos quais 300 casos ocorreram somente em 2021. Segundo o relatório, o Brasil é campeão mundial em crimes contra as minorias sexuais. Dentre as regiões brasileiras, o Nordeste despontou como a de maior violência impetrada ao grupo (GGB, 2021). Dados levantados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e divulgados no Atlas da Violência mostram um aumento de 127% das denúncias de homicídio de minorias sexuais em 2018 no Brasil (Cerqueira et al., 2019). Contudo, o Atlas da Violência mais recente (Cerqueira et al., 2021) aponta uma queda significativa no número de denúncias de homicídios e de tentativas de homicídios contra as minorias sexuais, redução essa que não necessariamente reflete uma diminuição real do número de casos, e sim uma provável falta de confiança e de conhecimento sobre os canais disponíveis para acolher essas denúncias. Trata-se, portanto, de uma subnotificação favorecida pela falta de prioridade e comprometimento do governo bolsonarista de enfrentar a violência contra essa parcela da população. Além de o país registrar um dos maiores índices de crimes por homofobia, as minorias sexuais estão mais propensas a experiências de insegurança, hostilidade e violência, uma vez que a institucionalização e a aplicação das leis que visam coibir os crimes de homofobia ainda são insuficientes no Brasil (Pereira et al., 2021).
É nesse cenário de vulnerabilidades prévias que a pandemia vem fazer parte de uma complicada equação. Segundo Salerno et al. (2020), as experiências relacionadas à pandemia se sobrepuseram aos estressores relacionados às minorias sexuais e de gênero. As medidas de restrição sanitária impostas durante a pandemia geraram importantes impactos econômicos, sociais e de saúde, aprofundando as desigualdades sociais, políticas e de gênero preexistentes (Santos et al., 2020). O distanciamento físico, a restrição da mobilidade e o confinamento, além do medo de contágio/morte, a insegurança sobre o futuro, dentre outros, exacerbaram os processos de sofrimento psíquico.
No plano macropolítico, a pandemia da covid-19 se instaura no Brasil em um momento de crise econômica, política e institucional, derivada do recrudescimento de uma agenda política neoliberal, reacionária e sem alinhamento com a diversidade sexual e de gênero (Town et al., 2021). Já no plano micropolítico, a gestão da pandemia tem se dado a partir de estruturas locais de poder que potencializam as desigualdades vivenciadas pelas minorias sexuais. Ou seja, evidencia-se a relação entre vulnerabilidade social e maiores prevalência e letalidade do vírus, tornando mais vulneráveis determinados grupos que fazem parte do mercado informal, que realizam ocupações potencialmente mais expostas à infecção – como trabalho em bares e restaurantes – e aqueles que têm menor renda e menores condições de acesso à saúde, aspectos esses que são mais observados em indivíduos que fogem do padrão cis-heteronormativo do que entre os que conseguem se encaixar nesse padrão (Bordiano et al., 2021).
Em termos de impactos das restrições sanitárias na saúde mental, há a exacerbação de transtornos psiquiátricos preexistentes e o desenvolvimento de novos quadros, além do aumento do risco de suicídio, dos casos de violência doméstica e de consumo de álcool, associados ao aumento dos estressores psicossociais na pandemia. Os distúrbios do sono e do comportamento alimentar, a depressão e o transtorno de estresse pós-traumático são alguns dos sintomas observados, constatando os prejuízos à saúde física e mental ocasionados pelo isolamento social, mas também pela situação de desgovernança pública em relação à pandemia no país (Brito et al., 2021).
Dentre as formas de sofrimento, destacam-se os Transtornos Mentais Comuns (TMC), também chamados de transtornos mentais não psicóticos, que dizem respeito a um conjunto de sintomas decorrentes de atividades consideradas estressoras que são desempenhadas no dia a dia. De acordo com Goldberg e Huxley (1992), os TMC estão associados a sintomas de insônia, fadiga, irritabilidade, esquecimento, dificuldade de concentração e queixas somáticas, que podem gerar incapacitação funcional e diminuir a qualidade das interações sociais. Tendo em vista esses cenários de vulnerabilidades prévias e sofrimentos crônicos vivenciados pela população gay, propõe-se investigar a incidência de TMC entre homens gays, especialmente em função das restrições vividas nesses tempos pandêmicos.
Considerações Metodológicas
Este artigo é produto de um doutorado que procurou investigar a experiência urbana gay afeminada e se insere em um dos eixos da pesquisa que emergiu durante o período pandêmico, o qual procurou compreender os rebatimentos da pandemia na saúde mental de homens gays. Trata-se de um estudo exploratório, de natureza quantitativa. Seguindo o critério de conveniência, definiu-se a capital Natal e região metropolitana como lócus de realização da pesquisa. A proposta inicial, que pretendia assumir caráter exploratório e etnográfico, necessitou adequar-se à realidade de intenso confinamento social trazida pela pandemia da covid-19 no Brasil e passou a adotar estratégias remotas de produção dos dados. Mesmo sendo em formato remoto, o que permitia ampliar a abrangência dos sujeitos alcançados pela pesquisa para outras cidades do Brasil, decidiu-se manter a circunscrição territorial originalmente pensada, visto que tal recorte poderia refletir com maior acuidade a realidade de determinados sujeitos espacialmente situados – o que, obviamente, não inviabiliza a partir de tais dados articular a outros contextos com recorte semelhante.
A primeira etapa da pesquisa consistiu em formulário online, aplicado por meio do Google Forms, entre os meses de agosto e setembro de 2020. O formulário estava composto por 51 questões: 9 perguntas relativas ao perfil dos respondentes, 13 referentes ao eixo Cotidiano, 18 referentes ao eixo Sociabilidade e 11 referentes ao eixo Efeitos do Isolamento Social. Para o recorte deste artigo, utilizaram-se dados das 11 questões referentes ao terceiro eixo dessa ferramenta, a qual se voltava especialmente para os rebatimentos da pandemia no adoecimento mental.
O recrutamento dos participantes na primeira etapa se deu pela divulgação da pesquisa tanto nas redes sociais do pesquisador, tais como Instagram e WhatsApp, como, sobretudo, nas maiores comunidades do Facebook e do Twitter voltadas para o público gay na cidade de Natal, durante os meses de novembro a dezembro de 2020 – período em que se alcançou um total de 240 respondentes, quantitativo satisfatório para uma análise descritiva consistente. Ter mais de 18 anos, residir na capital ou região metropolitana e identificar-se gay foram os critérios de inclusão adotados.
Os dados desse formulário foram codificados, categorizados e armazenados em um banco de dados, utilizando-se o Statistical Package for the Social Sciences, vigésima terceira versão (SPSS-23), do qual provêm as análises descritivas apontadas no texto. A escolha pela não utilização de testes estatísticos na análise quantitativa se justifica por dois motivos principais: primeiro, pela homogeneidade da amostra alcançada – predominantemente de adultos jovens, com elevada escolaridade e baixa renda –, segundo, sobretudo, porque se entendeu ser nos dados qualitativos que essas nuances parcialmente sinalizadas pelos dados numéricos se tornam mais enfáticas.
Como os impactos psicossociais à saúde mental provocados pela pandemia ainda estavam sendo investigados em nível mundial desde 2019, apresentando-se como uma lacuna no conhecimento, sentiu-se a necessidade de investigar mais detidamente a situação de saúde mental de homens gays. Portanto, a segunda etapa da pesquisa – o rastreamento de TMC – foi realizada junto a 43 sujeitos que, dentre os 240, concordaram, ao final do formulário, em colaborar na segunda etapa da investigação. Estes foram contatados via e-mail e número telefônico. Para o rastreamento, foi utilizado o Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20), versão validada e recomendada pela World Health Organization (WHO) (Beusenberg & Orley, 1994). O SRQ-20 é composto por 20 questões do tipo sim/não, divididas em quatro fatores: humor depressivo/ansioso, sintomas somáticos, decréscimo de energia vital e pensamentos depressivos. O SRQ-20 foi aplicado também de forma remota, por meio eletrônico, no Google Form. Adotou-se o ponto de corte 7 como indicativo de TMC, com base em autores que adaptaram essa ferramenta para o contexto brasileiro (Gonçalves et al., 2008). Reitera-se que o intuito em utilizar essa ferramenta não foi produzir um diagnóstico clínico fechado, mas mostrar evidências de sofrimento psíquico nesse grupo.
A terceira e última fase constituiu a etapa qualitativa da pesquisa, a qual consistiu em 8 entrevistas remotas realizadas e gravadas de forma virtual, por meio do Google Meet. Essas entrevistas tiveram duração aproximada de uma hora e exploraram, além de questões relativas aos dois primeiros eixos que compunham o questionário, os aspectos relacionados aos impactos da pandemia no cotidiano, na sociabilidade com a comunidade LGBTQIA+ e na saúde mental. O tratamento dos dados qualitativos foi feito a partir da modalidade de Análise Temática (Souza, 2019), procedendo os seguintes passos: familiarização com os dados, codificação dos dados, busca e revisão dos temas à luz da literatura especializada, consolidação dos temas e dissertação dos resultados. A presente pesquisa foi submetida e aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (CEP-UFRN), CAAE: 38143220.7.0000.5537.
Resultados e Discussão
Fizeram parte dessa investigação 43 homens cisgêneros e homossexuais. Partindo da categoria afeminado como fundamental, analisaram-se os sujeitos que se identificam mais e os que se identificam menos com esse atributo; assim, utilizou-se a afirmação “Eu me considero ‘afeminado’, apresento ‘trejeitos’ e/ou estilos considerados femininos”, com três opções de respostas: não afeminados (46,5%), neutros (34,9%) e afeminados (18,6%). A idade variou entre 18 e 53 anos, decupada nas faixas entre 18 e 28 anos (76,7%), 29 e 39 anos (18,6%) e acima de 40 anos (4,7%). Autodeclaram-se como brancos (51,2%), pardos (32,6%) e pretos (16,3%). São solteiros (60,5%), estão namorando (37,2%) e casados (2,3%). Têm ensino superior completo ou incompleto (55,8%), pós-graduação concluída ou em andamento (27,9%), ensino médio completo ou incompleto (14%) e ensino fundamental completo ou incompleto (2,3%). Possuem renda individual de até um salário mínimo (41,9%), de 1 a 2 salários mínimos (27,9%), de 2 a 4 salários mínimos (27,9%) e mais de 4 salários mínimos (2,3%). Sobre o local de moradia, 81,4% residem na cidade de Natal e 18,6% na Região Metropolitana. Ou seja, a maioria é de jovens, solteiros, com elevada escolaridade e baixa renda, brancos e moradores da cidade de Natal.
A incidência de TMC entre os participantes foi de 60,5%, acionando um alerta em termos do estado de saúde mental. Por um lado, gays mais jovens (66,7%), solteiros (65,4%), com menor escolaridade (66,7%) e de cor/etnia preta (100%) apresentaram indicativo de TMC mais alto. Por outro lado, a incidência foi menor entre os que possuem maior renda (33,3%) e moradores na Zona Sul (47,1%) – região da cidade com os melhores indicadores sociais. Acerca da performance sexual, identificar-se como gay afeminado emergiu como um determinante para a incidência de TMC (87,5%), em comparação aos 55% que se identificaram como não afeminados e que ficaram acima do ponto de corte. Tais dados apontam como potenciais fatores de vulnerabilidade para TMC a idade, o status de relacionamento, escolaridade, renda, raça, local de moradia e ser gay afeminado, revelando uma possível intersecção entre a pobreza, os discursos dominantes sobre a heteronormatividade e o sofrimento mental desse grupo.
A partir dessas diferenças nos índices de TMC encontrados nesta pesquisa, é possível supor que a chegada da pandemia da covid-19 no Brasil, em meados de 2020, acirrou vulnerabilidades prévias e provocou fortes repercussões à saúde mental, mas com diferentes tonalidades entre a população e, até mesmo, dentro de um mesmo recorte social, como é o caso de homens gays cisgêneros. Como dito anteriormente, a pandemia abalou o mundo e desorganizou a vida no planeta do ponto de vista econômico, social e sanitário. Contudo, segundo Dimenstein et al. (2020), ela tem se expressado de diferentes formas e intensidades nos variados cantos do mundo, entre os diferentes grupos sociais.
Dessa forma, na realidade dos países periféricos, os impactos negativos nos grupos mais pauperizados e vulneráveis, como as minorias sexuais, destacam-se (Souza, 2020). Assim, nesse grupo, a experiência social dessa pandemia tem sido devastadora em muitas dimensões da vida, especialmente para gays jovens, pretos, periféricos e afeminados, tal como encontrado neste estudo. Corroborando esses dados, Daldegan et al. (2021) apontam que, na pandemia, os sujeitos que mais sofreram profundas modificações nos hábitos cotidianos e nas relações sociais foram pessoas pardas ou negras, estudantes universitários, entre 20 e 30 anos. Portanto, estruturas desiguais favorecem a particularização da disseminação do vírus, produzindo a agudização das dessemelhanças e iniquidades que são, muitas vezes, interseccionadas pela etnia/cor, etnia, gênero, orientação sexual e classe social (Town et al., 2021).
Em termos das dimensões avaliadas pelo SRQ-20, encontrou-se o seguinte resultado, em ordem decrescente: 1. Pensamentos Depressivos (88,4%) – desinteresse (62,8%), ideação suicida (55,8%), sente-se incapaz (44,2%), o trabalho causa sofrimento (37,2%), sente-se inútil (32,6%); 2. Humor Depressivo Ansioso (86,0%) – com destaque para o nervosismo/preocupação (72,1%), tristeza (55,8%) e medo (37,2%); 3. Decréscimo de Energia Vital (81,4%) – fica cansado com facilidade (67,4%), não encontra satisfação com as tarefas (55,8%), dificuldade em tomar decisões (48,8%), dificuldade de pensar (41,9%); 4. Sintomas Somáticos (48,8%) – dorme mal (48,8%) e sente dor de cabeça (30,2%). Em todas as dimensões, o subgrupo dos afeminados pontuou mais em comparação ao dos não afeminados.
As entrevistas revelaram ser diversos os efeitos psicossociais gerados ou potencializados pela pandemia, tais como indisposição/apatia/preguiça, baixa autoestima, ansiedade, sofrimento mental, angústia, desamparo, desânimo, desgaste emocional, desatenção, desmotivação, negatividade, pensar excessivamente, insônia, dificuldade em planejar tarefas futuras, acúmulo de trabalho e piora nas condições gerais de vida. Esses aspectos se intensificaram no cenário pandêmico, em que o estudo e o trabalho remoto assumiram centralidade na vida desses sujeitos, como se observa no relato a seguir.
Quando eu tava na [empresa de telemarketing], por exemplo, eu trabalhava em casa o tempo inteiro. Depois que eu terminava de trabalhar eu ia jogar com meus amigos da Teleperformance, então eu passava metade do meu dia trabalhando e a outra metade do meu dia falando mal do trabalho com eles. Porque era horrível. Minha vida girava em torno daquilo, quanto eu tinha o meu dia de folga não podia sair, não tinha pra onde sair e eu não tinha energia pra sair. Então foi ladeira abaixo: não me sentia bem, não me sentia com energia. Eu acordava, eu geralmente não tomava banho, eu só ligava o computador e começava. Até realmente ter minhas pausas e me cuidar (Entrevistado 1, branco, 21 anos, desempregado).
Daldegan et al. (2021) encontraram resultados semelhantes, que confirmam um aumento significativo de sofrimento mental (ansiedade, depressão e estresse), resultante das mudanças de hábitos provocadas pelas medidas restritivas de circulação, aliadas aos avanços tecnológicos e à possibilidade de trabalho remoto. Segundo as autoras, essa nova realidade exigiu uma readaptação da rotina que, muitas vezes, acaba levando à sobrecarga de trabalho e à diminuição das opções de lazer e de convívio social, podendo gerar excesso de preocupação e sentimento de incapacidade para lidar com as novas condições impostas pela pandemia. As alterações no cotidiano também se associam ao afastamento das redes de apoio, uma vez que, para as minorias sexuais, seus locais de trabalho e de estudo funcionam como um meio de fuga de suas casas, em que podem socializar e interagir com a comunidade LGBTQIA+ (Bhalla & Agarwal, 2021).
Neste estudo, a maioria dos participantes da pesquisa adotou medidas de isolamento social, as quais impactaram fortemente no cotidiano e na sociabilidade com a comunidade LGBTQIA+, ou seja, deixaram de ir ao trabalho, à universidade, de praticar esportes, de encontrar parentes/amigos e de usar transporte público. Indicaram não sair de casa, evitar contato corpo a corpo e manter encontro de forma virtual mais intensamente, especialmente entre os afeminados. Assim, o cenário de confinamento implicou a perda dos espaços de sociabilidade, lazer e de encontros/trocas, os quais funcionavam como protetores da saúde mental:
Eu percebo que eu estou muito ansioso, fico pensando demais, minha cabeça “fica a mil”, não consigo dormir direito porque eu penso muito. E eu percebi que isso começou depois da pandemia. Apesar de eu ter contato com meus familiares, não é a mesma coisa, você não tem uma “válvula de escape”. Poder sair com meus amigos, ir pra festa, poder estar junto deles, fazer alguns programas diferentes, ir ao cinema... essas coisas. Eu tou trabalhando em casa, então não tem a diferenciação do ambiente de trabalho pra o de descanso: eu trabalho no meu quarto, eu descanso no meu quarto, então isso impactou bastante (Entrevistado 1, branco, 21 anos, desempregado).
Dessa maneira, os efeitos das restrições sanitárias e das medidas de isolamento social reverberaram na incidência de TMC, tanto para quem realizou isolamento quanto para quem não realizou, em função das exigências de trabalho. No entanto, o sofrimento mental é mais evidente aos participantes que sofreram alterações mais intensas no seu cotidiano de vida, no deslocamento pela cidade, no trabalho, no lazer/autocuidado e estudo, bem como nas relações sociais, familiares e comunitárias.
[Me sinto] ocioso. Porque, tipo assim, eu tinha uma rotina que era bem mais agitada, eu sempre estava fazendo alguma coisa, às vezes eu não tinha tempo pra fazer tudo que eu tinha pra fazer e agora tenho tempo de sobra e pouca coisa pra fazer. Isso pra mim não é legal, porque acaba que você desenvolve muitos pensamentos que não são legais (Entrevistado 6, 21 anos, negro, atendente de telemarketing).
Outro aspecto detectado neste estudo, o qual também foi evidenciado por Sousa et al. (2021), diz respeito à dimensão familiar como um fator gerador e potencializador de adoecimento mental, em função do estigma, do preconceito, da rejeição e violência que fazem parte do cotidiano de vida dos gays – dimensão familiar que tem como pano de fundo a homofobia e as expectativas sociais em torno do padrão cis-heteronormativo. No recorte das minorias sexuais, a afeminação de homens gays desponta neste estudo como um claro exemplo de como as performances abjetas ao padrão cis-heteronormativo se tornam um catalisador para o sofrimento mental, uma vez que os tornam alvos facilmente identificáveis como sujeitos fora das normas de sexualidade e de gênero.
Em relação a minha mãe: ela tem uma homofobia muito velada hoje em dia, porque ela não acha errado eu ser gay, inclusive ela me acolhe e acolhe meu namorado lá em casa. Só que quando vai pra questão de ser mais feminino, aí ela já tem problema. Eu não posso ser espalhafatoso, não posso ser mais afeminado, não posso falar abertamente sobre minha sexualidade (Entrevistado 3, branco, 24 anos, técnico de informática).
Portanto, o confinamento em lares e famílias que rechaçam a homossexualidade representa uma das consequências mais notáveis dos impactos indiretos da pandemia para as minorias sexuais, visto que as medidas de distanciamento social podem levar ao confinamento em lares e famílias sem apoio, aumentando a exposição desse grupo à discriminação, à rejeição (Barrientos et al., 2021) e, consequentemente, ao sofrimento mental. Desse modo, nesse período pandêmico, gays que retornam ao convívio intenso com sua família são forçados a ocultar suas orientações sexuais, uma vez que nesses espaços sua sexualidade é vivenciada como um tabu (Pereira et al., 2021). Em outras palavras, o confinamento forçado com a família acirrou vulnerabilidades prévias e sofrimentos psíquicos crônicos presentes nas vidas desses sujeitos. Tal como apontado em outros estudos, as alterações impostas à moradia produziram uma elevação significativa nos sintomas de ansiedade e depressão (Silva et al., 2021) e aumento da suscetibilidade à descompensação de condições psicopatológicas preexistentes (Ferracioli et al., 2021).
Em outras palavras, tais vulnerabilidades prévias e sofrimentos psíquicos crônicos não se originam com a pandemia. A precarização nas condições gerais de vida e trabalho, atrelada à vivência de relações sociais hostis em função de assumirem uma identidade contra-hegemônica em termos de gênero e sexualidade, já fazia parte da história de indivíduos gays, especificamente nos recortes deste artigo, de homens gays cisgêneros e, sobretudo, de gays afeminados. Tais precariedades recrudesceram, expondo ainda mais esses sujeitos a ambientes hostis e a uma ordem social e relacional historicamente e culturalmente instituída, as quais veem a atração sexual pelo mesmo sexo e as performances sexuais contra-hegemônicas como desvio de caráter e algo negativo, que devem ser combatidas e enfrentadas a todo custo. Por esses motivos, de acordo com Carvalho et al. (2019), gays apresentam grande prevalência de ideação e comportamento suicida, em comparação aos pares heterossexuais. Segundo os autores, as crenças religiosas acerca da homossexualidade como um pecado e as relações familiares permeadas pela rejeição e violência consistem nos principais fatores geradores de desfechos negativos para a saúde mental nas minorias sexuais.
Logo, para as minorias sexuais, o medo de discriminação torna-se um dos fatores que mais geram sofrimento mental, componente que cerca suas vidas muito precocemente, antes mesmo de assumirem sua identidade sexual e de gênero, ou seja, na adolescência e, inclusive, na infância, o que leva jovens gays a desenvolverem estratégias individuais para autogerenciarem os problemas em saúde mental, sendo a principal delas a ocultação de seu gênero e sexualidade (Town et al., 2021). Outra estratégia consiste em buscar na comunidade um ponto de apoio no processo de descobrir-se e revelar-se gay, de modo que o apoio dos amigos e dos grupos LGBTQIA+ gera menos estresse no cotidiano e mais qualidade de vida, independentemente do apoio ou não da família (Nascimento & Scorsolini-Comin, 2018). Portanto, o suporte social e comunitário LGBTQIA+ funciona como facilitador do autocuidado e de melhores condições de saúde mental (Town et al., 2021), aspecto esse que pode ser observado no relato a seguir:
É bem mais flexível, porque, por ser um espaço LGBT [sic], muitos héteros vão, porque se torna confortável também pra eles. É uma coisa que ainda não perceberam, mas um espaço LGBT [sic] friendly ou feito por LGBTs [sic] é um espaço mais seguro e mais confortável, porque todo mundo se sente mais à vontade. . . . A gente tinha muita liberdade de estar lá [no bar gay friendly] a hora que fosse, claro, respeitando que ali moravam pessoas ao redor. Ia com os amigos a hora que queria. Mas você estar num lugar que sai a hora que quer e que você não vai ser agredido ou tomar grito ou xingamento são coisas que pra mim são muito boas (Entrevistado 4, 28 anos, pardo, desempregado).
Dada a impossibilidade de um contato mais ativo e presencial com seus afetos e territórios, em razão das medidas de distanciamento social, produz-se a experiência de isolamento e de solidão, o que consiste em um fator de angústia (Bordiano et al., 2021; Daldegan et al., 2021). Concorda-se com Sousa et al. (2021) que, no contexto pandêmico, as repercussões negativas geradas pela covid-19 são intensificadas por ações biopolíticas, as quais precipitam e intensificam as vulnerabilidades e iniquidades em saúde mental de pessoas gays. De acordo com esses autores, isso se concretiza também pelo afastamento de seus laços de acolhimento, apoio e convívio com outras minorias sexuais.
Tinha todo um trajeto, e você está fisicamente com as pessoas, eu sinto muita falta disso. . . . Sentir o calor humano, sabe? Eu gosto muito disso e isso me faz muita falta. Antes da pandemia a gente tinha isso, e agora isso simplesmente “se foi” [sic], agora são só imagens numa tela de computador, uma representação do que seria uma pessoa (Entrevistado 3, branco, 24 anos, técnico de informática).
As medidas de lockdown forçaram muitos indivíduos gays a cessar o acesso aos grupos sociais e comunitários, os quais eram importantes fontes de suporte, conexão e resiliência, produzindo efeitos psicossociais como a ansiedade e sintomas depressivos (Barrientos et al., 2021; Pereira et al., 2021). Um claro exemplo de espaço acolhedor e facilitador dos encontros gays era a escola/universidade, o que pode ser observado no relato a seguir.
Alguns [ficantes] eu encontrava na própria escola e tinha uns que eu saía. Mas não durante a aula, geralmente era depois da aula. Ou até mesmo antes. Porque, como eu pagava dependência [cursar novamente uma matéria], eu passava o dia todo na escola. Então, eu tinha uns “crushizinhos” [interesse afetivo-sexual] por lá. Aí, depois que começou a pandemia, é difícil, porque mãe sempre foi superprotetora e depois que eu saí do armário, ela é mais ainda. E eu não consigo mentir para ela (Entrevistado 5, 18 anos, negro, estudante).
Como apontam Salerno et al. (2020), as escolas/universidades são frequentemente a primeira oportunidade para os jovens gays viverem de forma independente e autêntica como eles próprios; essa liberdade de se distanciar de suas famílias e de comunidades de origem permite que explorem suas identidades de gênero e orientações sexuais, participem da comunidade LGBTQIA+ e de relacionamentos românticos, e desenvolvam um forte senso de identidade e de autoaceitação.
Considerações Finais
Os resultados desta pesquisa sobre saúde mental de minorias sexuais, em particular de homens gays, reforçam a existência de diferentes fatores e processos como potenciais geradores de TMC. Portanto, este estudo contribui com os esforços recentes em se avaliar as experiências, condições de vida e de saúde/saúde mental das minorias sexuais e de gênero segundo uma análise interseccional dos marcadores sociais da diferença. Desse modo, ser de cor/etnia preta, apresentar baixa escolaridade, ser jovem e morar em regiões periféricas da cidade mostraram-se importantes fatores de vulnerabilidade. Para além dos marcadores da diferença convencionalmente utilizados pelos estudos em saúde mental com homens gays (raça/cor, renda e idade), este estudo avança ao trazer para o debate o marcador “afeminação”, majoritariamente desconsiderado quando se focaliza a comunidade gay masculina. Nesse sentido, identificar-se como afeminado consistiu em um elemento que se associou ao adoecimento psíquico.
Esses aspectos estão relacionados a precariedades e vulnerabilidades prévias à pandemia, as quais são catalisadoras de sofrimento mental para as minorias sexuais, mas que se aprofundam no cenário pandêmico. Assim, a pandemia impôs o isolamento social e o convívio familiar pouco acolhedor às sexualidades dissidentes, que têm frequentemente na violência um forte dispositivo de controle. Concomitantemente, o confinamento impôs o afastamento dos espaços de acolhimento e dos laços de apoio comunitário, em que podiam se expressar e assumir sua identidade sexual e de gênero com maior liberdade e autenticidade. Nesse cenário, o isolamento com a família se mostrou como um fator de vulnerabilização para esses sujeitos, visto que os efeitos dessa reviravolta pandêmica ainda não estão completamente dimensionados.
Portanto, para que se efetivem medidas de proteção à saúde mental para gays, durante e após a pandemia, é fundamental que haja o efetivo interesse do Estado em diminuir e erradicar a homofobia, por meio de respostas tais como a inclusão de grupos vulneráveis nas respostas e o planejamento em cenários como a pandemia da covid-19; a institucionalização da vigilância e da intervenção nos casos de violência doméstica contra as minorias sexuais; a implementação de abrigos/espaços seguros para gays em situação de vulnerabilidade; o incremento de acesso aos serviços de saúde e suporte online e de forma remota; e políticas de apoio econômico às minorias sexuais.