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Saúde & Transformação Social

versão On-line ISSN 2178-7085

Saúde Transform. Soc. vol.5 no.1 Florianopolis  2014

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Os trabalhadores de saúde diante do nervosismo: uma perspectiva a partir da etnografia institucional

 

Health workers facing nervousness: an institutional ethnography perspective

 

 

Luciana Fernandes de Medeiros Azevedo

Professora adjunta, Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Natal, RN – Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo é analisar as concepções dos trabalhadores de saúde acerca de queixas como nervos e identificar suas práticas de cuidado. Foram realizadas entrevistas com 06 trabalhadores de saúde da Estratégia Saúde da Família em Natal/RN e um grupo focal com 04 agentes comunitários. A análise do material está fundamentada na perspectiva da Etnografia Institucional e da análise do discurso. Os participantes compreendem nervos como um sofrimento relacionado às condições de vida. Nem sempre conseguem proporcionar intervenções em função das condições de trabalho e da formação técnica. Alguns buscam conversar com os usuários e aconselhá-los, mas não conseguem fazer uso da intersetorialidade. Intervenções também podem ser desenvolvidas por psicólogos que quando possuem uma visão crítica da saúde, podem inovar com práticas de cuidado usuário-centradas e focadas nas necessidades da comunidade. Faz-se necessário fortalecer os dispositivos de cuidado como os Núcleos de Apoio à Saúde da Família, bem como a formação dos psicólogos.

Palavras-chave: Nervosismo; Profissionais de Saúde; Etnografia Institucional; Práticas de Cuidado.


ABSTRACT

The study aims at analyzing the conceptions of health workers about nerves and identify their practices of care. 06 in-depth interviews were conducted with health workers in Natal/RN and a focus group with 04 agents community. The analysis of material is grounded in perspective of Institutional Ethnography and discourse analysis. The survey participants understand nerves as a suffering related to living conditions. They are not always able to provide interventions in the light of working conditions and training technique. Some participants seek to talk to users and advise them, but cannot make use of intersectoral approach. The psychologists are usually prepared for therapeutic listening and, once they have a critical view of health, can also innovate with care practices user-centered and focused on the needs of the community. It is necessary to strengthen care devices as the nuclei of support for family health (NASF), but also invest in wider training of psychologists.

Keywords: Nervousness; Workers Health; Institutional Ethnography; Daily Practices.


 

 

1. INTRODUÇÃO

A doença dos nervos é uma queixa popular, bastante comum nas unidades de saúde da família e outros serviços de saúde, inclusive de atenção primária. É uma queixa caracterizada por inúmeros sintomas físicos e psíquicos, denotando um sofrimento complexo e polissêmico. As pessoas que sofrem com nervoso e outras situações semelhantes tendem a sentir os sintomas de diferentes formas e a expressá-los de acordo com o contexto social e cultural em que se encontram.

Em geral, as pessoas em sofrimento procuram as unidades de saúde como uma maneira de encontrar maior alívio com relação aos sintomas físicos e psíquicos que trazem significativa interrupção nas atividades do cotidiano. Alguns autores como Finkler1, Silveira2, Fonseca3 e Azevedo4 consideram os problemas de nervos como um sofrimento permeado pelas condições de vida e situações de violência e privações que normalmente fazem parte do cotidiano da maioria das pessoas, principalmente daquelas de baixa renda. Esse é um problema que perpassa toda a discussão sobre determinantes sociais da saúde, pois esses obstáculos vividos no cotidiano das pessoas são justamente aqueles que mais prejudicam os níveis de saúde e bem-estar5.

Nesse sentido, considera-se que as queixas de nervos devem ser prioridade nos serviços de saúde, sobretudo naqueles da atenção primária e na atenção básica em saúde mental. Isso por que, além de comum nesses contextos, a falta de cuidados pode gerar um agravamento maior do problema, culminando em transtornos mentais mais severos e crônicos.

Consequentemente, as pessoas ficam muito dependentes de medicamentos psicotrópicos, normalmente prescritos pelos médicos para aliviar a ansiedade e o mal estar generalizado. O agravamento do problema também tende a causar ainda mais disrupturas na vida cotidiana da pessoa e também de sua família.

Contudo, embora existam diretrizes do Ministério da Saúde para lidar com as questões de saúde mental na atenção básica, as intervenções voltadas para esses tipos de queixas ainda são muito tímidas no contexto brasileiro, sobretudo na região Nordeste do país. Azevedo4, numa perspectiva macrossocial, coloca que as principais dificuldades se referem a diferentes problemas estruturais do Sistema Único de Saúde (SUS), tais como problemas de gestão, má-utilização ou mesmo desvio de recursos em alguns contextos, interesses políticos que culminam com o desmonte de dispositivos de cuidado. Numa análise microssocial, observa-se que a formação dos profissionais de saúde ainda é muito voltada para o hospitalocêntrico e médico-centrado, e nem sempre estão atentos ou suficientemente capacitados às dimensões subjetivas das queixas dos usuários. Ademais, as intervenções comunitárias, em grupo, que visam autonomia e corresponsabilização como sugerem Campos; Guerrero6 ainda são muito tímidas no contexto brasileiro. Mesmo com a política de educação permanente, instituída em 2004 pelo Ministério da Saúde, que visa à capacitação dos profissionais, não houve ainda uma consolidação em relação a práticas de cuidado mais voltadas ao sofrimento psicológico dos usuários e suas repercussões na vida cotidiana.

Em pesquisas anteriores4 7 2, observa-se que muitos profissionais de saúde desconhecem os pormenores da saúde mental e não compreendem muito bem o que os usuários querem dizer quando se queixam dos nervos. Em geral, os profissionais da atenção básica apenas prescrevem medicamentos para o alívio dos sintomas e/ou encaminham para especialistas, sobretudo os profissionais de psicologia ou psiquiatria8.

Diante deste cenário, o presente artigo propõe analisar as concepções dos trabalhadores de saúde acerca de queixas como a doença dos nervos e identificar suas práticas de cuidado diante de usuários com essas queixas. Essa análise está fundamentada na perspectiva da etnografia institucional que será apresentada no percurso teórico-metodológico do trabalho e, em seguida, a discussão acerca do material construído durante o processo da pesquisa. Por fim, nas considerações finais, retomam-se aspectos importantes identificados e discutidos por meio da pesquisa e sinalizam-se algumas sugestões que podem alterar a relação dos profissionais da saúde com a denominada doença dos nervos.

 

2. PERCURSO TEÓRICO - METODOLÓGICO

As perspectivas etnográficas permitem, num sentido geral, conhecer o cotidiano e o senso comum a partir da perspectiva de quem os vivencia, bem como as ideias, os hábitos e os sistemas simbólicos de uma cultura9. No caso específico da Etnografia Institucional (EI), perspectiva teórico-metodológica sistematizada pela socióloga canadense Dorothy Smith, o objetivo é compreender como as ações e as práticas do cotidiano são socialmente construídas e organizadas tornando visível o que as pessoas fazem e por que o fazem em determinado tempo e lugar10 11 12.

Assim, a ideia central da EI é explicitar, através da análise dos textos do cotidiano e das práticas sociais realizadas, como as pessoas vão construindo sua realidade social, agindo e reagindo conforme essas construções. Por textos, os autores supracitados entendem como sendo os comportamentos, os documentos e outros materiais que, permeados de normas e valores, dão o direcionamento às ações das pessoas em determinado contexto. As ações das pessoas tendem a se coadunar com o esperado, com o que é normatizado naquele determinado contexto. É o que Campbell; Gregor10 denominam de ações textualmente mediadas.

As construções ajudam a explicitar a rede de significados e os diferentes caminhos que as pessoas utilizam para dar sentido ao mundo e também para nortear suas práticas cotidianas. O que as pessoas fazem e como fazem não são frutos do acaso, mas de toda uma rede inter-relacional onde sentidos, normas, valores, discursos institucionalizados e relações de poder são ativados ou desativados de acordo com o contexto da interação em questão.

A partir dessa perspectiva, foram realizadas visitas em 06 unidades de saúde com equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) do município de Natal/RN. As 06 unidades de saúde visitadas estão localizadas em diferentes distritos sanitários da cidade, mas a maioria se situa em bairros de classe socioeconômica menos abastada. Esses serviços se caracterizam pela presença de equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF) e prestam serviços da atenção primária em saúde. O projeto de pesquisa foi apresentado nesses serviços e todos os trabalhadores foram convidados a participar da pesquisa. A pesquisa se destinou tanto aos profissionais de nível superior como os de nível técnico, tal como os agentes comunitários de saúde. A partir dessa apresentação do projeto, foram realizadas entrevistas em profundidade com 06 trabalhadores de saúde lotados em diferentes unidades e um grupo focal com 04 agentes comunitários de saúde de um destes serviços que se dispuseram a participar da pesquisa. As entrevistas e o grupo focal foram gravados mediante autorização e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) previamente aprovado pelo Comitê de Ética/HUOL (CEP/HUOL Parecer 056/07).

Inicialmente, o trabalho de análise das 06 entrevistas e do grupo focal com os 04 agentes comunitários de saúde se deteve na leitura e releitura das mesmas que foram transcritas, bem como do diário de campo que contém anotações sobre as visitas e conversas informais de cada contexto. Todo o material foi lido exaustivamente com o foco principalmente nos "insights" que emergiram nesses momentos de leitura e reflexão10. A análise do material se pautou, principalmente, nos aportes teóricos da análise do discurso13,15. Ou seja, que ideias surgiram a partir das leituras, que temas mais se repetiram e que trechos mais se aproximaram dos objetivos da pesquisa. Essa atitude coincide com o que Spink; Menegon13 denominam de reflexividade do processo de análise, importante para dar sustentação epistemológica e metodológica ao material encontrado.

A segunda etapa do processo de análise das entrevistas consistiu em identificar as construções discursivas, ou seja, os temas apresentados no material que se relacionavam com os objetivos da pesquisa14. Considerando a perspectiva da EI, identificou-se também como tais construções discursivas se inter-relacionam com os textos institucionalizados no contexto da atenção básica, isto é, buscou-se identificar a articulação dos discursos dos participantes com os documentos da atenção primária em saúde e ESF..

A terceira etapa consistiu em identificar a orientação para a ação, ou seja, o que o discurso "está fazendo"14. Isso significa dizer que as pessoas não só "dizem" com o discurso, mas também indicam sua intencionalidade e suas ações diante das demandas do cotidiano, mesmo que não reflitam sobre isso. A quarta e última etapa consistiu em analisar o posicionamento ideológico dos participantes, considerado como um processo fluido, que determina as ações sociais. Considera-se que as pessoas assumem determinado posicionamento diante de quaisquer situações do cotidiano14 15. Dessa maneira, é possível também identificar as relações de poder e dominação presentes na dinâmica de trabalho dos participantes da pesquisa.

 

3. A CONCEPÇÃO DOS TRABALHADORES DE SAÚDE SOBRE AS QUEIXAS DE NERVOSISMO

Na análise das entrevistas e do grupo focal fica evidente que os trabalhadores de saúde conhecem diversos usuários com problemas de nervos e outras queixas psicológicas. Em geral, eles conseguem identificar essas pessoas a partir da consulta, em que elas se queixam de nervos e dos diferentes sintomas que se seguem ou reconhecem esses pacientes em sofrimento por ocasião das visitas domiciliares que realizam periodicamente. É interessante observar como os trabalhadores relacionam as queixas de nervoso com a situação de vida da maioria dos usuários:

ACS 1: Mulher, hoje em dia são vários os fatores. Pelo seguinte: hoje a gente vê, como você disse, uma situação financeira muito difícil, né? É um dos fatores. A violência, muito grande. Aí...

ACS 2: As drogas...

ACS 3: As drogas que é um caso sério, né? Aí então, o pessoal fica absorvendo todos esses problemas...

ACS 2: A falta de educação.

ACS 3: Com todos esses problemas, né? Aí, vão somando, somando, somando.

ACS 1: As pessoas sem um lazer, sem nada, né?

ACS 2: A falta de educação...(grupo focal - agentes de saúde)

Observa-se no trecho acima que os agentes de saúde identificam os diferentes problemas sociais e econômicos que perpassam o sofrimento dessas pessoas. Esses problemas tanto podem ser as causas do nervoso, como podem contribuir para o agravamento do sofrimento. Essas constatações corroboram a discussão sobre os determinantes sociais da saúde (DSS) e apontam como as questões de saúde mental estão relacionadas à situação da vida cotidiana. Os DSS têm sido entendidos como os aspectos socioeconômicos, culturais e ambientais que interferem nos níveis de saúde da população e/ou aumentam o risco de doenças e/ou da morbimortalidade5 17. Esses autores5 17 consideram que as condições sociais e econômicas contribuem sobremaneira para o adoecimento e a busca de cuidados médicos.

Nesse sentido, no contexto pesquisado há um significativo índice de situações de violência e de uso de drogas que são bastante complexas e exigem abordagens de diferentes setores para a diminuição dos índices em praticamente todos os municípios de médio e grande porte do Brasil. Já a educação e o lazer, poderiam ser resolvidos parcialmente com ações intersetoriais proporcionadas através do contato da equipe de saúde com escolas, centros comunitários e secretarias municipais. Por outro lado, fica subentendida uma certa impotência diante de tantas dificuldades que afetam a vida das pessoas e que "caem nas mãos" dos profissionais de saúde. Essa impotência pode contribuir para uma dificuldade ainda maior na resolutividade dos problemas.

A equipe de saúde precisa ser corresponsável pelo usuário, mas também deveria contar com a colaboração de outros setores e de outros profissionais como professores, líderes comunitários, religiosos. Dessa maneira, o atendimento à pessoa em sofrimento seria mais completo, holístico, proporcionando uma mudança global no cotidiano da mesma. Essa é uma das premissas da intersetorialidade, presente nas diretrizes do SUS e que ainda não é totalmente aplicada no cotidiano dos serviços, em função de uma série de dificuldades. Uma dessas dificuldades é a falta de uma cultura mais interdisciplinar presente desde a formação dos diferentes profissionais, inclusive gestores.

Na verdade, os profissionais de saúde aprendem sobre a complexidade das queixas de nervoso através da própria experiência em seu cotidiano de trabalho e não durante sua formação:

(...) Começa com o relacionamento dela com o marido. Por que a mulher, que não tem um pouco de cultura, ela coloca na cabeça que quando deixa de menstruar ela deixa de ser mulher, plena para o marido. Ela, ela, a mulher, da nossa clientela, ela coloca isso, que quando ela deixa de menstruar, ela coloca na cabeça que deixou de ser mulher para o marido e vem a questão também não só, a questão cultural, mas vem também a questão hormonal, que contribui. Aí vem o ressecamento da vagina, as questões psíquicas, das doenças de nervo, né? Aí, vem o marido que também é muito machista, arranja outra lá fora, sendo velho também e no lugar de aumentar a autoestima dela, o contrário, coloca a autoestima dela lá pra baixo, porque ela vai reclamar porque ele ta saindo com outra, "ela é mais bonita, é mais nova...", diz na cara dela. Tem a questão do alcoolismo do marido, que é importante. Aí, depois de toda essa guerra que ela tem com o marido e de toda essa transformação desse período que ela vai passando na fase de pré-menopausa que ela vai entrando no climatério mesmo, aí vem a questão dos filhos e dos netos. Aí, é uma outra barra! (entrevista - médico)

Apesar de identificar aspectos sociais na gênese do nervoso, observa-se que o médico também procura explicações de cunho mais biológico para o surgimento de doença dos nervos. Esse amálgama entre o que estudou na faculdade e a experiência in loco com os pacientes do serviço aponta para a necessidade de levar esse tipo de discussão para a sala de aula, ou seja, discutir não só os aspectos técnicos, mas culturais e contextuais do processo saúde-doença. No caso do participante acima, há uma percepção das questões sociais e psicológicas envolvidas no adoecimento tais como a traição e a perda da autoestima. Observam-se diferentes aspectos sobre o sofrimento psicológico considerados pelo participante, mas não fica claro como ele lida com essa situação no decorrer do seu trabalho na unidade de saúde.

Evidencia-se ainda a relação entre as doenças crônicas e o sofrimento psíquico:

Sem contar que esse problema trazem outros, trazem outros, abala o sistema nervoso (...). Quem tem problema de pressão, piora. Não consegue controlar a sua hipertensão, até porque uma pessoa com esse problema toma medicação, então não tem como. Não tem paz, não tem sossego, é hipertenso, é diabético. (grupo focal - agentes de saúde)

Na citação acima, fica clara a articulação entre a doença orgânica diagnosticada e o sofrimento – aparentemente vago, sem maiores explicações – que contribui para a piora da doença. Nesse sentido, o sofrimento é incorporado, pois não se vê o real significado, quais as origens dele1. A doença orgânica é visível e é "abalada pelo sistema nervoso". Constata-se que não é possível distinguir claramente quem vem primeiro: se a hipertensão ou o nervoso.

Em geral, o que há efetivamente nos serviços de saúde são programas específicos para a prevenção e o cuidado à hipertensão, mas muito pouco no que se refere à saúde mental dos pacientes. Muitas equipes de saúde, apesar de lotadas em serviços dentro das comunidades, não conseguem desenvolver ações mais focadas nas questões somáticas e psíquicas. Normalmente, as práticas de cuidado são muito mais centradas no protocolo sugerido pelas instâncias administrativas como as secretarias de saúde do que nas especificidades de cada lugar e de cada pessoa.

Ah, eu acredito... a gente vê muito a parte social, né? Que referem relação à doença dos nervos, né? Às vezes, é, é, a, a falta de alimentação, de comida. Às vezes, é, a falta de um bom relacionamento que não tem em casa, às vezes fica a desejar. Por aí. Eu sinto dificuldade em falar nisso porque eu não sou médica, né?(entrevista - gestora 2)

Observa-se que a participante acima consegue vislumbrar as possíveis causas dos problemas de nervos, mas ainda é difícil se apropriar desse discurso, pois segundo a mesma este não pertence à sua esfera profissional. Essa tendência em dividir as tarefas e os saberes em compartimentos especializados contribui para dificuldades no trabalho interdisciplinar. Isso por que alguns participantes, em conversas informais, comentam não poder realizar determinadas intervenções por não serem de sua área de especialidade, embora se sintam competentes para tal. Há certo receio em "invadir" o campo do saber do colega. Obviamente que existem os saberes e práticas específicos de cada profissão. Porém, o trabalho em equipe, tal como defendido nos textos organizados por Campos; Guerrero6, pode ter poucos ganhos quando os profissionais se isentam de participar ativamente dele. Ou seja, se o trabalhador de saúde se sente competente para tomar uma iniciativa e resolver um problema em que não há outra possibilidade de solução, deveria ser incentivado, e não recriminado por, teoricamente, invadir o espaço do colega.

Uma das participantes, psicóloga, concebe a doença dos nervos como uma expressão do psíquico, da psicodinâmica da pessoa, mesmo admitindo que esse problema caracteriza-se por vários sintomas. Observa-se aí a predominância do discurso técnico, tal como o médico que enfatiza a dimensão biológica, o psicólogo focaliza nos aspectos psíquicos.

(...) daí a gente pergunta: nervoso como? O que é ser nervoso pra você? Pra pessoa poder falar da sintomatologia, do sofrimento, dos sentimentos, enfim. Ser nervoso, enfim, é tudo isso, né? É toda a psicodinâmica, é tudo! Engloba, né, a área afetiva. (...) Vários sintomas. As mais variadas patologias. Tudo se resume a ser doente dos nervos. "To doente da cabeça"... Não é uma coisa assim dos sentimentos, é uma coisa dos nervos, da cabeça, mental. (entrevista - psicóloga)

Os participantes consideram os aspectos sociais e as condições de vida como relacionados ao problema sem, no entanto, problematizar essas questões e sem ter muita certeza de como lidar com elas. A questão é que em relação à dimensão social e cultural fica muito mais difícil manejar dentro das ferramentas aprendidas na formação tradicional do psicólogo e do médico. De fato, tais profissionais não têm como resolver todos os problemas sociais e econômicos que atingem boa parcela da população, mas eles podem buscar dispositivos na própria comunidade que proporcionem um maior suporte a essas pessoas.

Interessante observar como os trabalhadores de saúde conseguem identificar a relação das queixas de nervoso com outros problemas de saúde, bem como as consequências do agravamento da situação psíquica dos usuários:

Enfermeira: É isso que a gente nota, quando chega um dia aí dá...

Médico: Aí explode.

Enfermeira: É, explode.

Pesquisador: Aí explode como, como é que elas chegam aqui?

Enfermeira: Tem ataque, aí como elas dizem, né, tem ataque, a gente vê (...) tem muito aqueles piti, né. Fica tendo assim aquelas convulsões aparente né,

Médico: Que a gente chama DNV, né?

Enfermeira: A pressão alta, a pressão chega aqui muito alta...

Médico: Altíssima.

Enfermeira: A pressão. Elas têm também muito assim, choros. Falta de, aí a insônia, e elas tiram como diagnóstico doença dos nervos. (entrevista - médico e enfermeira)

Essas falas vão evidenciando como o nervoso é um sofrimento difuso conforme apontou Fonseca3 e a necessidade de buscar compreender o significado do problema para cada usuário que sofre. Infelizmente, os trabalhadores de saúde e a própria organização do SUS ainda não encontraram uma maneira de possibilitar um atendimento mais individualizado a esses usuários. Nem todos têm acesso ao psicólogo, tanto pelo pouco número de profissionais na rede quanto pela tímida participação desses profissionais nos dispositivos de apoio matricial e NASF. A falta de abordagens mais efetivas para o cuidado dos usuários em sofrimento psicológico acaba interferindo na saúde dos participantes da pesquisa como fica evidente no trecho abaixo:

ACS 1: Eles não dormem, a noite com as pernas duras, doendo, de noite que não dorme com a dor. Tem que dar alguma coisa!

ACS 2: Ah, meu Deus, pensando nesses problemas, eu já estou com dor de cabeça...

ACS 1: Porque nem dorme o idoso, nem dorme o cuidador. (grupo focal - agentes de saúde)

Isso significa dizer, de um lado, que os trabalhadores de saúde também estão vulneráveis a situações de sofrimento psicológico e nem sempre conseguem atendimento para eles. Por outro lado, essas falas apontam para uma dificuldade em colocar em prática o princípio da intersetorialidade. Talvez falte aos trabalhadores de saúde conhecer melhor a comunidade em que trabalham no sentido de buscar dispositivos de apoio tais como conselhos comunitários, escolas, serviços de lazer e profissionais de outros serviços que possam fornecer um apoio mais efetivo aos usuários e às equipes.

Eu acho o seguinte: vem aqui uma pessoa com um transtorno desses, acho que a primeira vista a gente tem que saber, no... por exemplo, ai vem, você fica, só passa remédio para dormir, remédio para tranqüilizar, né? E você vai ficar a vida inteira fazendo isso, sabia? Se você pensar só por esse caminho. Era o que acontecia, toma remédio, fica às vezes dopado, alivia, mas volta de novo. A gente tem que ver a causa daquilo que está acontecendo. A gente vê como? Fazendo um trabalho com a equipe sobre o problema daquela pessoa. Tem que fazer uma visita na casa da pessoa/ vai depender de cada pessoa. Às vezes o problema está no relacionamento com a família, às vezes. Uma coisa que está provocando aquilo, às vezes é uma coisa que já vem de muito tempo. Como já falei, você participou da reunião, pode até uma coisa que já tem nascido com aquilo, né? Às vezes é uma coisa que não tem cura, vamos dizer assim, mas sim pode ser trabalhada, entendeu? Para ele continuar tomando a medicação, mas ao mesmo tempo, ser uma coisa mais aliviada. De acordo com que? Com o tratamento que você pode proporcionar aquela pessoa. Você pode fazer que aquelas pessoas que convivam com ele, percebam isso. Que não é só o remédio, às vezes está necessitando de alguma coisa a mais do que estão fazendo. Aí, a pessoa não se sente abandonada. (entrevista - dentista)

Esse último trecho aponta para uma compreensão maior do nervoso como um sofrimento que não vai ser resolvido somente com medicação, devido sua relação com as diferentes situações do cotidiano. O participante se mostra sensível à dor e ao sofrimento do paciente, e procura proporcionar algum tipo de cuidado a mais para o mesmo. Fica evidente que ele se sente responsável pelo cuidado, para que a pessoa não se sinta abandonada.

Sendo assim, observa-se que os participantes procuram superar em seus discursos a dicotomia mente-corpo quando consideram as diferentes dimensões presentes na gênese do sofrimento psicológico. Isso contribui para que procurem agir de forma mais coerente com esse pensamento, no sentido de refletir sobre possíveis ações que podem favorecer um maior alívio do sofrimento do usuário:

Eu acho que às vezes o que falta é só uma conversa, o apoio deles, para eles. Que, às vezes, a família está dentro de casa e a família não vê. E você tem uma pessoa de fora que chega, conversa, tanto para a pessoa quem está doente como para a pessoa que está lá, cuidando, né? Já é uma atenção que ele está vendo que as pessoas estão dando a ele. (entrevista - gestora 1)

E eles se sentem tão bem, quando o auxiliar ou a enfermeira vai, só em conversar e verificar a pressão. Conversar, no lugar de ficar tomando remédio, já é bom. Porque às vezes ele até se sente abandonado. (grupo focal - agentes de saúde)

(...) eu tive um caso de uma senhora que ela, não chegou a perder a família, ela perdeu a família depois, porque ela não saía de casa jamais. Eu vi as visitas da agente de saúde e a gente foi na casa dessa pessoa. Aí, chegamos lá, ela estava com depressão (...). Com depressão, não saía mais de casa, não ia para lugar nenhum, inclusive a casa onde ela estava não era dela, ela estava morando com um dos filhos porque ela não tinha condição de ficar nem em casa. Por conta dos problemas, ela não ia mais nem para igreja, estava até descalça e desarrumada com o cabelo todo assanhado, sabia? Entendeu? (...) Aí eu fui várias vezes lá, para conversar com ela, para ver como ela estava, tentando elevar a autoestima dela, sabia? A autoestima. (entrevista - dentista)

O último discurso evidencia justamente o quanto chamou à atenção do dentista a atitude da paciente quando ele chegou para visitá-la: o descaso da usuária para com sua própria aparência. Ou seja, mesmo sem falar, a paciente estava comunicando algo com o corpo. Essa comunicação não verbal usava dos símbolos reconhecidos socialmente como de problemas, fato que logo fez o dentista procurar realizar um cuidado maior. O fato de dar atenção a essa usuária, acolhendo o seu sofrimento da melhor forma possível, é percebido como uma intervenção importante pelos participantes da pesquisa.

Ouvir, conversar, dar uma atenção, proporcionar um cuidado a partir da necessidade percebida são importantes e corroboram com a ideia de Emerson Mehry sobre as tecnologias leves. Carvalho; Freire; Bosi16 consideram ainda a importância da ética do cuidado: colocar-se no lugar do outro, buscar compreender sua vivência e desenvolver práticas de cuidado que valorizem a alteridade. Mesmo não tendo o instrumental para ouvir de forma terapêutica, alguns participantes sentem a necessidade de conversar e abrir um espaço de fala para o usuário em sofrimento. Essa atitude é essencial para o desenvolvimento de uma prática de cuidado mais voltada às necessidades do usuário e para romper com o discurso hegemônico focado na doença.

 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo objetivou identificar como os trabalhadores de saúde da atenção básica e da ESF percebem as queixas como nervosismo e identificar as práticas de cuidado adotadas por esses profissionais numa perspectiva da etnografia institucional. Ao longo do percurso da pesquisa, ficou evidente que os participantes consideram o nervosismo como um sofrimento significativo, caracterizado por diferentes tipos de sintomas.

Observou-se que há uma compreensão por parte de boa parte dos participantes de que esse tipo de sofrimento tem relação com as condições de vida e com as dificuldades do cotidiano enfrentadas pelas pessoas. Ao mesmo tempo, fica clara a dificuldade em lidar com esses tipos de problemas que são muito subjetivos e, às vezes, falta um instrumental técnico e afetivo que favoreça a escuta, o acolhimento e a intervenção. Em geral, os trabalhadores de saúde preferem encaminhar os pacientes aos psicólogos e aos psiquiatras, até mesmo pela angústia que sentem diante de tal sofrimento. Parece ser mais fácil encaminhar os pacientes do que pensar em projetos terapêuticos ou espaços de reflexão sobre a problemática tão comum no cotidiano. Observa-se também uma tendência ao modelo curativo e medicalizador, embora as diretrizes da atenção primária em saúde preconizem a promoção de saúde. Não há efetivamente ações de promoção em saúde nesses contextos. Mesmo os psicólogos e outros profissionais de saúde mental quase não realizam ações de cunho mais comunitário. Isso só foi identificado em um dos serviços participantes.

Alguns participantes se sentem mais disponíveis para a escuta e para orientar/aconselhar os usuários em sofrimento. Em geral, esses participantes conseguem estabelecer um vínculo mais duradouro com o paciente e só assim conseguem alguma eficácia em seus aconselhamentos. Se, de um lado, os conselhos podem partir da experiência pessoal do profissional e nem sempre se mostram adequados às necessidades do usuário, por outro, o usuário pode se sentir acolhido, cuidado. Nesse caso, o profissional de saúde precisa ter discernimento para emitir conselhos que realmente sejam úteis para o usuário. Para isso, é preciso conhecer minimamente a história dessa pessoa, suas perspectivas e condições de vida. Com o atual sistema de trabalho, em que se exigem metas e determinado número de consultas a serem realizadas, é bem mais difícil estabelecer vínculo com os usuários. Isso por que vínculo demanda tempo, qualidade de atendimento e não consultas de 10 minutos. Quem mais tem vínculo com os usuários são os agentes comunitários de saúde por que estes moram na localidade e não por que dispõem de mais tempo.

Em geral, os profissionais de saúde mais disponíveis são aqueles que acreditam e compartilham com os princípios e diretrizes da atenção básica. Nota-se, inclusive, que os participantes mais comprometidos com as diretrizes são aqueles que apresentam maior envolvimento afetivo com o trabalho na ESF, na escuta dos usuários e compreendem melhor a situação de sofrimento.

Alguns participantes sentem-se extremamente angustiados diante do sofrimento das pessoas. Isso denota uma situação de vulnerabilidade por parte dos próprios profissionais, que também podem adoecer e entrar em sofrimento psíquico diante da precariedade das condições de vida dos usuários. Para melhorar essa situação, seria importante a implantação de dispositivos de cuidado também para o trabalhador de saúde de forma mais eficaz e acessível. Além disso, faz-se mister fortalecer a prática da intersetorialidade para que os trabalhadores de saúde tenham com quem contar nesses momentos difíceis. Na atualidade, a rede de serviços se ampliou com a progressiva implantação dos Centros de Referência em Assistência Social (CRAS) e dos Centros Especializados de Assistência Social (CREAS), fortalecimento de equipes do NASF e interiorização de ações em saúde mental com esses dispositivos. Contudo, na época em que as entrevistas foram realizadas (2008/2009), a utilização desses dispositivos ainda não fazia parte dos discursos dos participantes. Na realidade, o que ficou muito claro na época é que os trabalhadores de saúde se sentiam despreparados e impotentes diante de problemas de saúde mental. Muitos evitavam, inclusive, o contato com famílias cujo membro era portador de algum transtorno psicológico.

Esse quadro analisado sugere, cada vez mais, a necessidade de maior diálogo entre os trabalhadores na rede pública de saúde. Não só maior engajamento sócio-político dos profissionais, no sentido de se apropriarem dos princípios e diretrizes do SUS, como também relacionar melhor a saúde coletiva com a clínica de saúde mental, para que possam desenvolver um trabalho mais abrangente, acessível e efetivo. Diversas práticas podem ser desenvolvidas pelos trabalhadores de saúde como grupos terapêuticos, rodas de conversa e outras ações de promoção de saúde., acolhimento. É preciso trabalhar em equipe, criar práticas de cuidado mais voltadas às necessidades da comunidade e desenvolver uma perspectiva mais ampla do processo saúde-doença.

Por fim, reitera-se a importância de fortalecer os dispositivos oficiais de cuidado como os Núcleos de Atenção à Saúde da Família (NASF), investir em melhores condições de trabalho para esses profissionais e enriquecer a discussão da clínica ampliada. Aos psicólogos, se faz necessário, no processo de formação, de uma maior articulação com a saúde coletiva, uma vez que esta perspectiva valoriza a interdisciplinaridade e os dispositivos de cuidado que envolvem a comunidade e a coletividade

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Endereço para correspondência

Luciana Fernandes de Medeiros Azevedo
Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN
Av. Rio Branco, S/N– Centro – Santa Cruz/RN
CEP: 59200
Telefone: (84) 3291-2411
Email: lumedeirospsi@hotmail.com

 

Artigo encaminhado 29/06/2013
Aceito para publicação em 22/05/2014