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Estudos Interdisciplinares em Psicologia
versão On-line ISSN 2236-6407
Est. Inter. Psicol. vol.6 no.2 Londrina dez. 2015
Relato de experiência/Prática profissional
Facetas arquetípicas: análise de caso clínico com suporte na Psicologia Analítica
Archetypal facets: analysis of clinical case supporting the Analytical Psychology
Facetas arquetípicas: análisis de caso clínico apoyando la Psicología Analítica
Odéssia Fernanda Gomes de AssisIi; Fabiana Pinto de Almeida BizarriaIii; Mônica Mota TassignyIiii;
Artur Gomes de OliveiraIIiv; Antônio Jackson Alcântara FrotaIv
I Universidade de Fortaleza
II Instituto Federal de Sergipe
Resumo
O presente trabalho consiste no estudo de caso de uma paciente que procurou atendimento com a queixa de dificuldades no contexto familiar devido ao fato de não conseguir negar nada às pessoas. O caso foi analisado com base no referencial da Psicologia Analítica, fundamentado, principalmente, em Carl Gustav Jung. Foram realizadas sessões de atendimento psicológico, e, após as sessões, foram realizados apontamentos teóricos com base no material trazido pela paciente. As intervenções foram realizadas com o objetivo de possibilitar insights à paciente e que ela buscasse outras formas de se posicionar no mundo e de se relacionar com as pessoas ao redor. Com o decorrer das sessões, a paciente mostrou-se capaz de construir um contexto onde permitir e negar estavam mais de acordo com suas capacidades e possibilidades.
Palavras-chave: psicologia analítica; sonhos; arquétipos; inconsciente; religião.
Abstract
This paper is a case study of a patient who came to us complaining of difficulties within the family due to the fact that he could not deny anything to people. The case was analyzed based on the framework of Analytical Psychology, founded mainly on Carl Gustav Jung. Psychological counseling sessions were held, and after the sessions, theoretical approaches have been made based on the material presented by the patient. The interventions were performed with the goal of enabling the patient and insights she sought other ways to position themselves in the world and to relate to the people around. Over the course of the sessions, the patient was able to construct a context in which allow and deny more in accordance with their abilities and possibilities.
Keywords: analytical psychology; dreams; archetypes; unconscious; religion.
Resumen
Este trabajo es un estudio de caso de un paciente que vino a nosotros quejándose de las dificultades dentro de la familia debido al hecho de que no podía negar nada a la gente. El caso se analizó con base en el marco de la Psicología Analítica, fundada principalmente sobre Carl Gustav Jung. Se llevaron a cabo sesiones de asesoramiento psicológico, y después de las sesiones, los enfoques teóricos se han realizado sobre la base del material presentado por el paciente. Las intervenciones se llevaron a cabo con el objetivo de permitir al paciente y puntos de vista que buscaba otras formas de posicionarse en el mundo y de relacionarse con la gente alrededor. En el transcurso de las sesiones, el paciente fue capaz de construir un contexto en el que permite negar y más de acuerdo con sus capacidades y posibilidades.
Palabras-clave: psicología analítica; sueños; arquetipos; inconsciente; religión.
Introdução
As mudanças tecnológicas observadas nas últimas décadas provocaram reflexos nos costumes e nas relações sociais, assim, novos parâmetros devem ser considerados no estabelecimento das relações entre as pessoas. No intuito de estabelecer laços, muitas vezes, as pessoas terminam por concordar com certas opiniões e ou conceitos, somente para não desagradar o grupo a que pertence. Esse é o caso de M. que buscou atendimento devido ao fato de não conseguir dizer não às pessoas.
Partindo de uma compreensão do caso pelo viés da Psicologia Analítica, buscou-se embasar teoricamente a atuação na área clínica de forma consistente, de maneira a fornecer subsídios a essa prática.
Alguns Conceitos da Psicologia Analítica
A ciência psicológica concebida por Jung descreve que em primeiro plano nos relacionamos com a psique consciente. Em seguida, tratamos do que chamamos de psique inconsciente que é explorada de forma indireta. Segundo Jung (1984), as únicas coisas do mundo que podemos experimentar diretamente são os conteúdos da consciência. Ele também pontua que “[...] tudo o que conhecemos a respeito do inconsciente foi-nos transmitido pelo próprio consciente.” (Jung, 1998, p. 3).
A consciência representa o produto da percepção e orientação no mundo. Sua função “[...] é não só a de reconhecer e assumir o mundo exterior através da porta dos sentidos, mas traduzir criativamente o mundo exterior para a realidade visível.” (Jung, 1984, parágrafo 342).
Outra questão a respeito da consciência, é que seus conteúdos se relacionam a partir de um ponto de referência que Jung denominada como Complexo do ego1. Segundo Franz (2004), a consciência em si é um campo de representações, e estas só são consideradas conscientes à medida que são associadas2 ao complexo do ego. Somente o ego consciente é capaz de realizar conteúdos psíquicos, é um “[...] complexo, o mais valorizado que conhecemos. É sempre o centro de nossas atenções e de nossos desejos, sendo o cerne indispensável da consciência.” (Jung, 1998, p.7). Dessa forma, Jung (1998) define a consciência como a relação dos fatos – conteúdos – psíquicos com o ego.
Apesar de os elementos inconscientes não serem diretamente observáveis, Jung (1998) classifica seus produtos, quando atingem os domínios da consciência, em duas espécies:.
[...] inconsciente pessoal que se compõe, primeiramente, daqueles conteúdos que se tornam inconscientes, seja porque perderam sua intensidade e, por isto, caíram no esquecimento, seja porque a consciência se retirou deles (é a chamada repressão) e, depois, daqueles conteúdos, alguns dos quais percepções sensoriais, que nunca atingiram a consciência, por causa de sua fraquíssima intensidade, embora tenham penetrado de algum modo na consciência e o inconsciente coletivo, que, como herança imemorial de possibilidades de representação, não é individual, mas comum a todos os homens e mesmo a todos os animais, e constitui a verdadeira base do psiquismo Individual (Jung, 1984, p. 30).Esses padrões, possibilidades de representações, foram denominados de arquétipos3. De forma prática, os arquétipos são formas de apreensão, e todas as vezes que nos deparamos com formas de apreensão que se repete de maneira uniforme e regular, temos diante de nós um arquétipo, quer reconheçamos ou não o seu caráter mitológico. Esses caracteres arcaicos, que encerram motivos mitológicos, “[...] surgem em forma pura nos contos de fadas, nos mitos, nas lendas e no folclore.” (Jung, 1998, p. 34). Essas possibilidades se apresentam nos sonhos como forma de imagem arquetípica.
De acordo com Jung (1984), o inconsciente coletivo é a formidável herança espiritual do desenvolvimento da humanidade. A consciência, ao invés, é um fenômeno efêmero, responsável por todas as adaptações e orientações de cada momento, e por isso seu desempenho pode ser comparado muitíssimo bem com a orientação no espaço.
Todo este organismo psíquico corresponde perfeitamente ao corpo que, embora varie sempre de indivíduo para indivíduo, é, ao mesmo tempo, e em seus traços essenciais básicos, o corpo especificamente humano que todos temos e que em seu desenvolvimento e em sua estrutura conservam vivos elementos que nos ligam à humanidade. De acordo com Jung (1984), essa espécie de atividade psíquica supra-individual, um inconsciente coletivo, como o chamou, de forma a distingui-lo de um inconsciente superficial, relativo ou pessoal.
No quadro teórico da Psicologia Analítica, Jung (1998) descreveu dois tipos de mecanismos de funcionamento da Libido. São dois tipos de comportamento que descrevem como essa energia – Libido - se comporta nos sujeitos. Esses movimentos recebem o nome de extroversão e introversão. “No extrovertido, a libido habitualmente flui conscientemente na direção do objeto, mas existe também a ação contrária que volta em direção do sujeito.” (Franz, 2004, p. 31). Essa Ação contrária se revela como um fator inconsciente. “No caso do Introvertido ocorre o oposto, pois o sujeito passa a ter a impressão de que um objeto constantemente o esmaga.” (Franz, 2004, p. 31). Embora a impressão de que tudo esta caindo sobre ele, não se tem consciência de que secretamente está a disperder energia psíquica ao objeto através de sua extroversão inconsciente. Essa orientação de energia em desenvolvimento e diferenciação processam a manifestação das funções psicológicas.
A consciência possui certas funções que orientam sua organização diante dos fatos ectopsíquicos e endopsíquicos.
A ectopsique é um sistema de relacionamento dos conteúdos da consciência com os fatos e dados originários do meio ambiente, um sistema de orientação que concerne à minha manipulação dos fatos exteriores com os quais entro em contato através das funções sensoriais. A endopsique, por outro lado, é o sistema de relação entre os conteúdos da consciência e os processos desenrolados no inconsciente (Jung, 1998, p.9).As funções ectopsíquicas, são também denominadas funções da consciência. A diferenciação dessas funções4 começa na primeira infância, a partir das preferências, atitudes e comportamentos que vão se diferenciando a partir das experiências subjetivas.
Jung (1984) comenta sobre as quatro funções básicas - Pensamento, Sentimento, Sensação, e Intuição - responsáveis pelo processamento dos conteúdos conscientes.
A Sensação é a função que, por via dos sentidos, informa o advento de algo no intelecto. Essas informações chegam como percepções sensoriais que orientam o sujeito a respeito da existência de algo fora. Porém esse algo, mediante um processo chamado por Jung de apercepção torna-se uma complexidade psíquica, a partir da associação de diversos processos psíquicos que combinados, produzem uma representação - imagem.
O reconhecimento desse algo deriva de um processo que exprime o que uma coisa é. Denominamos esse processamento de Pensamento. É o pensamento que nos diz o que a coisa é em si.
Já dizemos que algo é “peculiar”. Quando qualifico qualquer coisa como “peculiar”, eu me refiro a uma tonalidade afetiva especial que a coisa tem. A tonalidade afetiva implica uma avaliação. Em linguagem ordinária este processo se chama sentimento. “Este nos informa, através de percepções que lhe são inerentes, acerca do valor das coisas.” (Jung, 1998, p. 8)
A Intuição, segundo o ponto de vista de Jung (1984), é uma das funções básicas da alma, ou seja, a percepção das possibilidades inerentes a uma dada situação. É um tipo de percepção que não passa exatamente pelos sentidos; registra-se ao nível do insconsciente “[...] é um fator dos mais naturais, dos mais normais e necessários, pois nos coloca em contacto com o que não podemos perceber, pensar ou sentir, devido a uma falta de manifestação concreta.” (Jung, 1998, p. 11).
No que diz respeito ao conceito de complexo do ego já mencionado, enfatizamos o fenômeno dos complexos.
O complexo é um aglomerado de associações – espécie de quadro de natureza psicológica mais ou menos complicada e [...] por ser dotado de energia própria, tem a tendência de formar, também por conta própria, uma pequena personalidade. (Jung, 1998, p.66).
O complexo do Ego também é um aglomerado de conteúdos dotados de energia, dessa forma, não se diferencia em termos de funcionamento dos demais Complexos. Os complexos como unidades vivas, e fazendo parte da constituição psíquica, podem ser comparados, com a célula do organismo vivo. Pode-se pensar numa célula em relação ao corpo. Esta contém informações que associam seus elementos e os fazem uma unidade viva – célula -, porém suas organelas por si só não constitui vida. Todo funcionamento psíquico tem por base, também, as unidades – complexos -, resultando da associação de conteúdos, constituindo-se como unidades vivas do psiquismo.
Os complexos surgiram de experiências realizadas por Jung utilizando o método de associação de palavras. Por meio deste, observou-se uma série de reações até então ignoradas. Estas trouxeram indícios a respeito de perturbações que foram explicadas por ele como de origem psíquica, a partir da assimilação de um complexo, o que justificava seu comportamento autônomo.
Surge então o conceito de constelação. Jung (1984) afirma que exprime o fato de que a situação de experiência desencadeia um processo psíquico que consiste na aglutinação e na atualização de determinados conteúdos. Para Jung (1984), esses conteúdos constelados são determinados complexos que possuem energia específica própria. Um conceito resumido de complexos seria a associação de conteúdos com afeto - a energia própria.
Terapia junguiana
O caminho da terapia Junguiana visa à transformação (e não perfeição), uma vez que os fenômenos psíquicos se manifestam com grande importância para a análise do processo em curso. A palavra perfeição não é apropriada, pois é um ideal cristão que não coincide exatamente com a experiência do processo da individuação. De acordo com Franz (2004), esse processo de individuação parece não tender na direção da perfeição mas sim, da completude, pois “o homem só passa a ser responsável e capaz de agir, quando existe a seu modo.” (Jung, 1985, p. 25).
Para educar um indivíduo para a autonomia e para uma vida plena é preciso levá-lo à assimilação de todas as funções que bem pouco ou mesmo nenhum desenvolvimento consciente alcançou, e, assim, dar vez a própria natureza realizar seu processo natural de individuação. Dessa forma, a terapia utiliza-se de instrumentos subjetivos e o caminho é traçado pelo próprio sujeito em tratamento. Quando os recursos do consciente estão esgotados e o processo psíquico parece estagnado, surgem reações do inconsciente, como, por exemplo, os sonhos.
O sonho é uma criação psíquica e Jung (1984) ao tratar dos aspectos psicológicos do sonho, afirma que a razão para a sua posição excepcional está na forma especial de se originar. O sonho não é resultado, como os outros conteúdos da consciência, de uma continuidade claramente discernível, lógica e emocional da experiência, mas sim o resíduo de uma atividade que se exerce durante o sono. Que o sonho e seu contexto constituem algo de incompreensível é visível durante as experiências vivenciadas, e fica evidenciado, a partir dos estudos de Jung (1984) e da trajetória clínica, que os sonhos possuem um significado intrínseco próprio, Jung (1984) afirma, ainda, que “temos de tratar o sonho analiticamente como qualquer outro produto psíquico, enquanto nenhum outro fato contraditório não nos ensine um caminho melhor.” (Jung, 1984, p. 54).
Todos os sonhos têm um caráter compensador em relação aos conteúdos conscientes, mas Jung (1984) enfatiza que essa função compensadora não se apresenta com tanta clareza em todos os sonhos. Embora o sonho contribua para a autorregulação psicológica do indivíduo, o seu significado compensador muitas vezes não aparece imediatamente. Quanto mais unilateral for a atitude consciente e quanto mais ela se afastar das possibilidades vitais ótimas, tanto maior será também a possibilidade de que apareçam sonhos vivos de conteúdos fortemente contrastantes como expressão da autorregulação psicológica do indivíduo.
Os pontos de vista em relação ao sonho que podem ser trabalhados durante o processo terapêutico analítico são o causal e o final. Jung (1980) descreve que o primeiro tende, por sua própria natureza, para a uniformidade do sentido, isto é, para a fixação dos significados dos símbolos. O ponto de vista final, ao contrário, vê nas variações das imagens oníricas a expressão de uma situação psicológica que se modificou e não reconhece significados fixos dos símbolos, por isto, considera as imagens oníricas importantes em si mesmas, tendo cada uma delas sua própria significação, em virtude da qual elas aparecem nos sonhos.
Ainda durante os sonhos pode surgir o aspecto da atitude religiosa que exerce uma forte atuação no psiquismo. Para Jung (1978) a religião é vista como uma atitude do espírito humano, atitude que, de acordo com o emprego originário do termo “religio”, pode ser definida como uma consideração e observação cuidadosas de certos fatores dinâmicos concebidos como “potências”: espíritos, demônios, deuses, leis, ideias, ideais, ou qualquer outra denominação dada pelo homem a tais fatores.
Dessa forma, desconsiderar tais conteúdos ou mesmos negá-los a existência de sentido, pode se apresentar de forma equivocada pela maioria das abordagens psicológicas. Ter em mãos realidades psíquicas quando deparamo-nos com os fenômenos psíquicos, contribui para o direcionamento do tratamento, pois é a atuação desses fenômenos e os impactos que eles exercem ao mesmo tempo em que são produzidos pelo psiquismo, que orientam o sujeito no seu processo terapêutico.
Durante a terapia ocorrem fenômenos que Jung (1985), de forma didática, delimita como fases do desenvolvimento terapêutico, são elas: a Confissão, o Esclarecimento, a Educação e a Transformação. Na origem de qualquer processo analítico se processa o método catártico que surge durante a fase da confissão e neste há liberação de segredos ocultos, emoções reprimidas, fazendo voltar o que foi recalcado e esquecido de forma a se confessar tudo o que está causando perturbação.
A confissão possibilita não só a constatação intelectual dos fatos pela mente como também a liberação dos afetos contidos: à constatação dos fatos pelo coração (Jung, 1985). A confissão devolve ao ego conteúdos que normalmente deveriam fazer parte do consciente e em seguida surge o fenômeno da transferência e “aquilo que o paciente transfere para o médico deve ser interpretado, isto é, esclarecido [...] o médico é obrigado a submeter a uma análise interpretativa todos os fragmentos disponíveis da fantasia do paciente.” (Jung, 1985, p. 60).
O resultado desse trabalho são a elaboração e a integração dos conteúdos até então sombrios pelo analisando. Nesse momento, o sujeito depara-se com as consequências do esclarecimento. Para Jung (1985), adaptar-se normalmente e ter paciência com a própria incapacidade, eliminando as emoções e as ilusões não se apresenta como tarefa fácil, assim, ignorar o processo de esclarecimento torna-se muito frequente. Daí a necessidade de se trabalhar com a educação para o ser social que não corresponde às expectativas e anseios por um ajustamento apenas, mas conseguir encaminhar-se para uma vida “normal”.
A educação vem, por fim, e mostra que uma árvore que cresceu torta não endireita com uma confissão nem com o esclarecimento, mas que ela só pode ser aprumada pela arte e técnica de um jardineiro. Só agora é que se consegue adaptação normal (Jung, 1985). A transformação, descrita como a quarta etapa, vem preencher as lacunas deixadas pela etapa anterior e não tem a pretensão de ser a verdade.
O tratamento propicia o encontro de duas personalidades e se assemelha a “uma mistura de duas substâncias químicas diferentes: no caso de dar uma reação, ambas se transformam.” (Jung, 1985, p. 68). Assim, as influências a que terapeuta e paciente estão sujeitos, se processam gerando a transformação.
Essas influências são as transferências e contratransferências, “o processo psicológico da transferência é uma forma específica do desenvolvimento mais generalizado da projeção.” (Jung, 1985, p. 127). Sendo que a projeção “é um mecanismo psicológico geral que carrega conteúdos subjetivos de toda espécie sobre o objeto.” (Jung, 1985, p. 128).
Um analista reage a uma “transferência” com uma “contratransferência”, quando a transferência projeta um conteúdo de que o próprio terapeuta não tem consciência, embora exista realmente dentro dele, observando-se daí a necessidade da análise interpretativa dos processos transferenciais e contratransferências, já que esses processos psíquicos, autônomos e espontâneos, fortalecem um laço que pode gerar problemas ao curso da terapia.
Método
O presente trabalho consiste em um estudo de caso, uma técnica que envolve a experiência clínica, em que primeiramente ocorre o atendimento clínico, e, posteriormente, a construção de sentido do que ocorreu nas sessões de atendimento do caso estudado, onde o contato com a fala dos pacientes, verbalizada ou não, guia o analista pesquisador no texto a ser escrito sobre o caso.
Para esse estudo de caso, inicialmente, foram marcadas sessões de atendimento com a paciente, e com base nos dados obtidos, buscou-se seguir o método clínico e atingir uma compreensão dos sintomas que a paciente apresentava. A partir daí, foram realizadas intervenções, baseadas na psicologia analítica, que objetivaram possibilitar a paciente a posicionar-se no mundo e relacionar-se com as pessoas de uma forma mais coerente, negando ou aceitando situações, de acordo com seus próprios valores.
Discussão do caso
M. tem 38 anos de idade, sexo feminino, casada e tem 5 filhos (4 mulheres, 24, 21 e duas de 15 anos – gêmeas e um filho de 17 anos), 4 moram com ela e o atual marido, com quem vive há 20 anos.
Durante o processo terapêutico, M. separou-se e, atualmente, cultiva uma reaproximação em forma de amizade. Ela procurou atendimento apresentando uma queixa relacionada a dificuldades no contexto familiar e, nas primeiras sessões, descreveu alguns fatos do dia-a-dia que retratavam parte de sua angústia. Seu filho mais novo não estudava e não trabalhava, sua filha de 21 anos não se interessava em procurar emprego e seu marido revelava-se uma pessoa descontrolada em relação a dinheiro e muito dependente, M. chegou a relatar que se endividou para tentar ajudá-lo.
Sua angústia se devia ao fato de não conseguir dizer “não” e se sobrecarregar com tarefas, responsabilidades e compromissos com o emprego, com os filhos e o marido que tem 60 anos e possui doença crônica e, além disso, ajudar todos que a procuram, mesmo sem poder.
Foram surgindo aos poucos questões sobre a infância de M., filha única do casamento de seus pais, mas sua mãe tinha mais 3 filhas de um relacionamento anterior. Durante sua infância cuidou da mãe alcoólatra e, após sua morte, passou a morar sozinha aos 14 anos. Sobre esse assunto, M. demonstrou tristeza e disse que nunca se sentiu cuidada por ninguém, o que associou ao fato de querer cuidar de todos que estão ao seu redor, chegando a concluir que prejudicou os filhos por tentar dar-lhes tudo que não teve, protegendo-os do mundo, não os deixando assumir suas responsabilidades.
No caso de M. foi possível perceber que sua idade trouxe-lhe um desejo de “voltar a viver”, cuidar de si e fazer coisas que lhe davam prazer como uma tentativa de compensar os anos que viveu para os “outros”.
Quanto à atitude, foi possível perceber características de introversão de sua energia psíquica, exemplificada com a intensidade de suas fantasias, sempre apresentando os objetos externos como a esmagando constantemente, demonstrando o desejo de recuar.
Segundo Marie Louise Von Franz (2004), o introvertido acredita que tudo está caindo sobre ele, sente-se continuamente esmagado pelas pressões e não possui consciência de que, secretamente, empresta energia psíquica ao objeto através de sua extroversão inconsciente. Dessa forma, a energia que M. libera ao cuidar dos familiares e amigos é consequência de sua função inferior e se manifesta de forma irracional, desajeitada, ou mesmo, semelhante a um bobo, como surge na mitologia.
Em certo momento do processo terapêutico, surgiram as imagens de um sonho que M. tem desde criança, no qual ela relata que sempre aparece uma figura feminina, alta, cabelos pretos compridos e que tem por volta de 30 anos. Esta figura se apresenta em momentos difíceis e sempre a ajuda de alguma forma, ensinando-lhe coisas novas, aparecendo, inclusive, para ensiná-la a cuidar de cabelos, sua nova profissão. M. relatou senti-la como um “guru”, já que não teve quem lhe ensinasse nada, nem teve o cuidado dos pais.
Sentiu-se protegida por ela e durante o processo terapêutico, durante uma viagem rotineira em um transporte urbano, observou uma imagem de Iemanjá e percebeu que era igual à imagem de seu sonho.
Essa figura parece se remeter a sua totalidade psíquica – self -, já que surge como um guia em seu desenvolvimento pessoal. Jung (1985) fala do self como centro da psique, conceito que descreve uma função do ser humano associada ao direcionamento na vida, ao centro do psiquismo que é responsável pelo fluir da vida e pelo processo de individuação.
A figura feminina acima descrita se assemelha a uma função na vida de M. que a direciona e ensina coisas relevantes, além dos sonhos surgirem em momentos importantes de sua vida, como se seu próprio psiquismo construísse essa imagem como uma forma de proteção e orientação, características semelhantes ao self. Em um dos sonhos que ocorreu quando ela já estava em processo terapêutico, M. relatou que a mulher a levou para uma cidade desconhecida e que estava sendo construída; M. viu pedreiros trabalhando, tijolos pelas ruas e, ao fundo, viu o mar. Sua impressão foi de mudança, já que são construções novas e associou ao seu desejo de voltar a morar em sua cidade natal. Pode-se perceber que suas associações se referiam a um movimento de transformação em que o inconsciente está presente e guiando seu processo, através da imagem do mar.
Em outras sessões, M. demonstrou desconforto quando ao seu relacionamento com o marido, muitas vezes referindo-se a ele como ex-marido, já que eles se separaram uma vez e ela o aceitou de volta por estar doente, com o objetivo de cuidar dele. M. mencionou que há bastante tempo a relação estava confusa, porém, havia se acomodado à situação.
Nesse momento da análise, ela pôde considerar quais eram suas reais vontades e como gostaria de ser tratada por ele e trouxe para a terapia muitas das conversas que teve com seu marido que, por fim, resultaram na separação, que foi um momento difícil, porém, ela se surpreendeu com a sua própria coragem e determinação, atitudes que faltaram durante sua vida.
Os filhos de M., de 17 anos e a de 21, ambos acomodados e exigindo os cuidados da mãe, lhe causava preocupação, principalmente pelo fato de não possuírem vontade de crescer, estudar e seguir seu próprio caminho. O filho de 17 anos que já é pai, não trabalha e nem terminou o ensino fundamental, traz receios a M. quanto a seu futuro e da neta. Durante o processo, M. pôde começar a intervir nessa situação, sempre analisando as situações impostas.
Quanto à filha, após uma briga, saiu de casa pela segunda vez, e, quando retornou, M. conversou com ela impondo algumas regras que havia estabelecido em sua casa. Dessa forma, apesar do sofrimento de ser rígida, observou maior abertura e comprometimento da filha, que passou foi aprovada em uma faculdade que, para M., representou um grande avanço, trazendo a sensação de satisfação. Já o filho, ainda queria que a mãe o assumisse com sua namorada e a filha e M. elaborou essa situação com um sonho.
Este foi ampliado e analisado rapidamente durante a sessão, visto sua emoção saltar diante das imagens e por ter percebido como tal sonho a havia mobilizado. Em meio a uma enchente tentava salvar seus filhos que estavam em cima de colchões que flutuavam. Enfatizou que não sabia nadar, mas no sonho, esforçava-se para não se afogar. Mencionou que o filho mais próximo era o de 17 anos e esse dado a fez constatar como vivenciou um momento de angústia quanto à “salvação” de seu filho e seu medo de afogar-se diante da situação.
Em um determinado momento do trabalho terapêutico M. relatou um sonho que havia tido com a mãe de uma de suas amigas, que ela não conhecia e que, no sonho, estava muito doente.
Ainda nele, M. realizou um ritual de “cura”, segundo ela, bebendo a urina da paciente e diagnosticando-a com problema nos rins, a partir daí fez um trabalho com argila e medicamentos com ervas. Ao lembrar-se deste sonho, M. demonstrou muito medo e passou a relatar experiências que julgava difíceis de serem elaboradas, mencionando que, desde criança, tinha visões quando acordada e os sonhos eram muito nítidos, como se ela se transportasse para os lugares que apareciam no sonho.
Ela mencionou ter tido alguns sonhos premonitórios e percebido quando as pessoas não estavam bem, somente por observar as mudanças em suas fisionomias, disse que o ápice ocorreu quando ao ver no rosto aspecto da situação vivida pelas pessoas, pode pressentir a morte de pessoas. Trouxe alguns exemplos sobre suas visões e sobre o medo que carregou durante sua vida, de ficar no lugar da mãe que trabalhava com rituais de cura por meio de espíritos evocados.
M. relatou sua vivencia com a mãe com acentuado impacto emocional, descrevendo situações em que ela tinha que ajudá-la em todos os sentidos. Dessa forma, ao ver sua mãe adoecer fez com que se afastasse de qualquer manifestação de seu psiquismo a respeito das imagens inconscientes.
Durante o processo desenvolvido, M. entrou em contato com suas imagens inconscientes de forte impacto afetivo, iniciando a análise dos sonhos. Com o tempo, ela foi se aproximando do que denominou dom de cura e buscou os significados dessas imagens em sua vida. Como Jung (2001) menciona, em geral, temos medo daquilo que aparentemente pode subjugar-nos, por isso, tememos aproximar-nos de conteúdos de grande intensidade e que sempre foram reprimidos e negados em nossa história de vida.
M. buscou comportamentos que evidenciassem suas habilidades, como, por exemplo, tentar ler no café, sobre a sua situação de vida, prática que sua mãe exercia. Outros aspectos revelaram sua busca pelos sentidos que podem surgir das mais variadas formas já que seu processo de individuação tem exigido de sua natureza integração de tais conteúdos à sua vida psíquica e que resultou em mudança de atitude.
M. foi apresentando progressos diante de seu desconforto por não falar o que sentia às pessoas a seu redor, trazendo fatos do cotidiano em que ela se surpreendeu ao impor alguns limites, como, por exemplo, deixar de comprar não colaborava com as despesas habituais com sua aposentadoria, afirmando que as despesas da casa eram assumidas por ela.
Ao fim do processo terapêutico, M. e o marido vivenciavam um momento de amizade e de reaproximação que ela valorizou em virtude de sua atual postura, mostrando-lhe os limites quanto ao respeito que exige que tenham com ela.
Considerações finais
Pôde-se observar no caso de M., os benefícios que a psicoterapia lhe proporcionou, pois foi possível que a paciente tivesse insights e assim, como os sonhos iam sendo relatados e interpretados por ela mesma, pudesse perceber a dinâmica de sua vida, o que lhe permitiu reelaborar situações vividas e modificar situações que lhe incomodavam.
Somente após perceber isto, ela pôde dar continuidade à sua vida e tornar-se mais segura de si, criando um novo contexto onde o “sim” e o “não” estavam mais em sintonia com seus valores e desejos.
Referências
Franz, M. L. V (2004). Psicoterapia. (2a ed.). São Paulo: Paulus. [ Links ]
Jung, C. G. (1978). Psicologia e religião. Pe. Dom M. R. Rocha, trad. Vol. 9. Petrópolis: Vozes. [ Links ]
Jung, C. G. (1980). Psicologia do inconsciente. M. L. Appy, trad. Vol. 7. Petrópolis: Vozes. [ Links ]
Jung, C. G. (1984). A natureza da psique. Pe. Dom M. R. Rocha, trad. Vol. 8/2. Petrópolis: Vozes. [ Links ]
Jung, C. G. (1985). A prática da psicoterapia (2a ed.). Petrópolis: Vozes. [ Links ]
Jung, C. G. (1998). Fundamentos de psicologia analítica. Vol. 18. 8a ed. Petrópolis: Vozes. [ Links ]
Jung, C. G. (2001). O eu e o inconsciente. D. M. F. Silva, trad. Vol. 7/2. 15a ed. Completas. Petrópolis: Vozes. [ Links ]
Endereço para correspondência
Odéssia Fernanda Gomes de Assis
e-mail: ernandagomesdeassis532@gmail.com
Endereço para correspondência
Fabiana Pinto de Almeida Bizarria
e-mail: bianapsq@hotmail.com
Endereço para correspondência
Mônica Mota Tassigny
e-mail: monica.tass@gmail.com
Endereço para correspondência
Artur Gomes de Oliveira
e-mail: arturgomes1@hotmail.com
Endereço para correspondência
Antônio Jackson Alcântara Frota
e-mail: jacksonfrota@ibest.com.br
Recebido em: 20/11/2014
Revisado em: 18/12/2014
Aceito em: 12/03/2015
1De forma mais fiel à tradução se denomina Complexo do Eu.
2Este complexo exerce uma força de atração que relaciona conteúdos psíquicos, atuando como um imã.
3Segundo Santo Agostinho, significa “Typos” , impressão, marca-impressão.
4Essas funções diferenciadas com a experiência subjetiva, são denominadas tipos psicológicos e irão caracterizar certo mecanismo de funcionamento individual.
iPsicóloga, Mestranda em Psicologia do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza - UNIFOR - e bolsista da Fundação Cearense de Apoio à Pesquisa - FUNCAP.
iiPsicóloga, Especialista em Saúde Pública, Mestre e Doutoranda em Administração (UNIFOR). Bolsista da Fundação Cearense de Apoio à Pesquisa - FUNCAP.
iiiProfessora Titular do Programa de Pós-Graduação em Adminstração da UNIFOR. Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNIFOR. Doutora em Educação pela UFC e pela École des Hautes Études em Sciences Sociales (E.H.E.S.S. Paris).