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Estudos Interdisciplinares em Psicologia
versão On-line ISSN 2236-6407
Est. Inter. Psicol. vol.8 no.1 Londrina jan.-jun. 2017
Artigos
A corrupção no contexto atual da mídia
Corruption in the context of the current media
La corrupción en el contexto actual de los medios
Ana Carolina Gonçalves RossoniI i; Roberta Fin MottaII ii
ICentro Universitário Franciscano
IIPontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)
Resumo
O artigo teve o intuito de suscitar o debate acerca do fenômeno da corrupção na sociedade brasileira. Para tal, realizou-se uma análise de discursos veiculados em matérias do jornal Zero Hora/RS, destacando-se o que se produz a partir deles. Temos como base a Hermenêutica de Profundidade e se discorre acerca das influências ideológicas, das relações de poder e de dominação que se apresentaram. Percebeu-se a influência que a mídia exerce na produção de subjetividade contemporânea e na disseminação de algumas propostas. A pós-modernidade também traz atravessamentos que se acredita serem fundamentais para a compreensão do momento atual. Constatou-se que é necessário ter uma visão dialética acerca dos problemas, com a participação ativa de todos, relativizando opiniões e pensamentos distintos, mantendo um diálogo e troca entre os saberes. É necessário também um investimento na educação da população em geral, para que as pessoas possam pensar e questionar a realidade por si mesmas.
Palavras-chave: corrupção; meios de comunicação; política; psicologia social.
Abstract
The article intended to raise the debate about the phenomenon of corruption in Brazilian society. We carried out an analysis of discourses produced in the newspaper Zero Hora/RS, highlighting what is produced from them. We have as basis the Critical Hermeneutics, talking about the ideological influences, relationships of power and domination that could be presented. The influence of the media on the production of contemporary subjectivity and in the dissemination of some proposals is demonstrated. Postmodernity also brings issues that are fundamental in the understanding of the contemporaneity. It is necessary to have a dialectical view of the problems with the active participation of all those who are involved, questioning views and different thoughts, keeping a dialogue and exchanging the knowledge. It is also necessary to invest in education of the general population, so that it is possible to form a population that think and question the reality itself.
Key words: corruption; media; politics, social psychology.
Resumen
El artículo estaba destinado a elevar el debate sobre el fenómeno de la corrupción en la sociedad brasileña. Para tanto, se llevó a cabo un análisis de los discursos producidos a través del periódico Zero Hora/RS, destacando lo que se produce a partir de ellos. Tenemos como basela Hermenéutica de la Profundidad, hablando de las influencias ideológicas, las relaciones de poder y dominación que se presenta. Se dio cuenta de la influencia que los medios tienen en la producción de la subjetividad contemporánea y la propagación de algunas propuestas. El posmodernismo también trae los cruces en los que creemos que será fundamental en la comprensión de la actualidad. Se puede decir que es importante una visión dialéctica de los problemas, con la participación activa de todos, cuestionando distintos puntos de vista y diferentes pensamientos, manteniendo un diálogo e intercambio entre el conocimiento. También es necesario invertir en la educación de la población general, por lo que se tenga una población que sepa razonar y cuestionar la realidad.
Palabras-clave: corrupción; medios; política; psicología social.
Introdução
Atualmente, a corrupção no Brasil inspira múltiplas análises e debates, o que causa uma sensação de mal-estar coletivo, que se alia a um clamor por esclarecimentos e explicações. Curiosamente, essa situação ocorre de modo concomitante à comemoração pelo mais longo ciclo de vida democrática da história do Brasil. Tal ciclo já chega aos trinta anos e marca um avanço conquistado a duras penas, porém, hoje, encontra-se ameaçado. Devido ao fato de a corrupção ser um produto histórico-cultural, é importante que não seja negligenciada ou banalizada, devendo o seu combate estar entre as principais pautas das políticas públicas, tendo em vista suas implicações na sociedade. Os estudos da Psicologia social publicados sobre a corrupção são ainda incipientes, sendo que se pode considerar este fenômeno um aspecto importante na cultura brasileira. Por isso, tornam-se imprescindíveis trabalhos acerca do tema, os quais possam trazer contribuições ao entendimento das racionalidades que organizam o discurso e a prática da corrupção na sociedade. Diante disso, buscaram-se fontes plurais para compreender a questão a partir da diversidade de concepções e discursos.
A presente pesquisa realiza uma revisão histórica sobre a corrupção a partir de autores clássicos e contemporâneos. Autores como Campos (1967), Torres (1973), DaMatta (1986) e Holanda (1995), possibilitaram a problematização acerca do cerne da corrupção e das condutas antiéticas na nossa sociedade. Procurou-se também, entender como se configura a subjetividade do cidadão brasileiro no nosso espaço social, principalmente no que se refere às vicissitudes do “jeitinho brasileiro” (Itaqui & Iensen, 2014).
Buscou-se em Bauman (2001), as contribuições da Modernidade ao fenômeno da corrupção e à relação dos sujeitos no espaço social. Problematizou-se da mesma maneira, as ideias de Guareschi (2012), Thompson (2009) e de Gramsci (2001) quanto a aspectos relacionados ao papel da grande mídia e sua contribuição em questões como a alienação, ideologia, poder, naturalização de comportamentos na sociedade e formação de opinião pública, as quais são respectivamente abordadas pelos autores.
A preocupação, nesse artigo, não se dá somente no sentido de identificar como se chegou à situação atual, mas também em buscar o que não está sendo questionado sobre a corrupção no país. Para tanto, é importante resgatar sucintamente a história da sociedade brasileira a partir das circunstâncias particulares que presidiram sua formação e que permitem analisar o presente como parte de um processo que remonta ao passado e se projeta no futuro, o que permitirá compreender seus reflexos na política atual e a sua ideológica subjacente.
Etimologicamente, segundo Tanzi (1998) o termo corrupção é derivado do verbo latino rumpere, que significa romper, quebrar. É o que se rompe em sua organização; estava associado e se solta. Seria o rompimento de uma regra, uma lei, um código moral ou social. Embora tal descrição possa parecer simples, ela revela uma série de dificuldades já na definição uma vez que se trata de definições subjetivas, abrangentes do termo. Segundo Carvalho (2008), no Brasil, o próprio sentido da palavra corrupção variou conforme o período de sua história, o que traz, inclusive, a sensação de imprecisão em sua definição. O autor ainda complementa que “uma das causas de nosso pobre desempenho analítico pode estar na dificuldade de precisar o que cada um entende por corrupção” (Carvalho, 2008, p.69).
Considera-se a ideia de Novaes (2009), acerca de uma concepção do papel da mídia, na contemporaneidade, como um dos mais potentes aparelhos de produção de subjetividade e coletividade, muitas vezes utilizada como instrumento de influência e de exercício do poder específicas da sociedade, particularmente em sua forma oligopolizada, a qual conduz à usurpação do espaço público em prol dos seus interesses e posição ideológica.
Assim, o presente artigo pretendeu analisar o lugar ocupado pelo discurso a respeito da corrupção, difundido pelo jornal Zero Hora. Tentou-se desvelar o que se produz a partir desse discurso e da sua dimensão central nos diversos âmbitos da sociedade moderna. Uma vez que, a mídia tem o alcance aos mais diversos grupos sociais de maneira rápida e real devido às suas proporções alarmantes, o que pode suscitar a reprodução de discursos que são atravessados e marcados pela influência dos meios de comunicação de massa, sendo este entendimento importante para que a cidadania seja de fato exercida. Deste modo, foram analisados os discursos produzidos pelo jornal Zero Hora, no ano de 2015. A escolha deu-se por ser este um dos meios de comunicação de massa de maior circulação no Estado do Rio Grande do Sul, o que demonstra sua abrangência. Além disso, um outro fator que justifica a escolha pelo referido jornal refere-se ao fato de o mesmo ser reconhecido pelo seu posicionamento político, histórico e ideológico, de caráter conservador. O jornal Zero Hora é um dos mais conhecidos veículos de comunicação do Estado, constituindo-se parte do hegemônico Grupo RBS. Tal grupo vem crescendo cada vez mais e é responsável por grande parte da comunicação escrita, falada e televisionada do Rio Grande do Sul.
Acredita-se que o tema escolhido abarca diversos atravessamentos e, por conta disso, buscaram-se diversas áreas do conhecimento, as quais, acredita-se tornaram-se indispensáveis a partir do que foi aos poucos se apresentando e configurando desdobramentos em torno do tema da corrupção. Também se discorreu acerca da história da corrupção, expondo-se o cerne deste fenômeno e das condutas antiéticas na sociedade brasileira, seus desdobramentos e especificidades referentes à cultura pós-moderna, através de processos que estão imbricados na própria sociedade pelo impulso modernizante. Tais fatores possibilitam relacionar a história da corrupção na nossa sociedade com a atualidade. Tentou-se, portanto, refletir sócio-historicamente, assim como analisar os discursos de modo a poder interpretá-los e reinterpretá-los, no sentido de que haja uma construção criativa de possíveis significados e diferentes possibilidades.
Método
O levantamento dos artigos sobre o tema corrupção foi feito online, desde julho de 2015, a partir da proposta, caracterizada como uma análise de discurso com base em artigos publicados online no jornal Zero Hora. Nesta pesquisa contemplaram-se somente os discursos expostos no Blog Opinião ZH, que inclui editoriais, artigos e debates na internet, porém foram selecionados especificamente artigos escritos por diversos autores que escrevem a pedido do jornal.
A pesquisa qualitativa online foi a base para o levantamento dos artigos disponíveis no site do referido jornal. Este tipo de pesquisa é de importante relevância para os estudos sociais, pois, ”trabalha com valores, crenças, hábitos, atitudes, representações, opiniões e adequa-se a aprofundar a complexidade de fatos e processos particulares e específicos a indivíduos e grupos” (Paulilo, 1999, p. 135). Portanto, contribui amplamente na compreensão dos fenômenos individuas e coletivos através dos seus procedimentos racionais e intuitivos.
Escolheu-se analisar o material pesquisado no período entre março de 2015 e abril de 2015, adotando-se como palavras de busca os termos “corrupção” e “corrupção e ética”, o que totalizou 12 artigos, os quais foram utilizados na discussão e análise. Além disso, também considerou-se estes meses como um período extremamente significativo e pertinente para a discussão do tema proposto, pois foi entre março e abril que eclodiram as manifestações “anticorrupção” propriamente. Em junho de 2013, já surgia uma grande mobilização nas ruas do país, de forma espontânea a população reivindicava reformas, tais como o aumento das passagens, contra a repressão policial e contra os gastos da Copa do Mundo. O movimento era diverso em seu foco e em sua composição, justamente por resultar de uma nova forma de mobilização na esfera pública, por meio das redes sociais. Porém, somente em 2015 as manifestações se tornaram mais expressivas e claras em seu objetivo, voltadas especificamente ao repúdio à corrupção, marcadas fortemente por pedidos de justiça, investigação e punição. Em razão disso, demarcou-se esse período e a necessidade de se repensar a corrupção e todos os seus atravessamentos no país e de ressignificar a própria participação política.
Como base para análise dessas reportagens utilizou-se como método interpretativo, a Hermenêutica de Profundidade (HP), por possibilitar uma análise criteriosa do modo como os sujeitos percebem sua realidade, sendo isso o ponto de partida para a reconstrução de ideologias, crenças e compreensões, oferecendo um aprofundamento nas condições contextuais do fenômeno. Portanto, a HP aparece como uma produção inovadora, permitindo uma produção de conhecimento específica baseada em um referencial teórico, no qual traz um rigor a esse conhecimento (Thompson, 1998).
De acordo com Thompson (1998), a HP é composta por três movimentos analíticos. O primeiro deles abarca a análise sócio-histórica ou contextual, muitas vezes relacionada a uma “análise externa”, na qual se pode compreender que as formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas em condições sociais específicas.Quanto à sua operacionalização, nesse primeiro momento reconstituímos as condições sociais de produção, circulação e recepção das formas simbólicas, nas quais provêm de um lugar, espaço e tempo os quais buscamos resgatar, para depois podermos argumentar de modo fundamentado as implicações. Comtemplamos deste modo, uma interpretação dos padrões de significado incorporados aos discursos de maneira subjacente.
A segunda fase, conforme o referido autor, seria a análise formal ou discursiva, muitas vezes relacionada a uma “análise interna”. Neste momento da HP, foram analisadas as formas simbólicas presentes nos artigos publicados no jornal Zero Hora. O ato narrativo pressupõe a exposição de uma visão de mundo e de experiência. Portanto, os discursos foram examinados na perspectiva da sua estrutura interna, ou seja, sempre relacionando ao seu contexto sócio histórico e às condições de sua produção.
Finalmente, chega-se à interpretação/reinterpretação, que se constrói sobre as fases de análise formal e sócio-histórica e se apresenta complexa, conflituosa e aberta à discussão, já que as formas simbólicas possuem significados por vezes obscuros e difíceis de interpretação. Esse momento é de construção criativa, sendo uma tentativa de compreensão do mundo social e de construção de saberes com um potencial crítico, por meio de explicação interpretativa e fundamentada. Esse momento configura-se através de uma síntese, na qual se integra o conteúdo das formas simbólicas à análise do contexto que se produziu.
Optou-se, neste artigo, pelo trabalho com as fases da HP articuladas de modo conjunto. Por isso, elas não foram desenvolvidas separadamente, mas sim considerando-se os seus atravessamentos ao longo de todo o trabalho. Embora as fases se liguem a momentos distintos, estão integradas em suas diversas expressões e seus significantes. Buscou-se, então, fundamentar e alinhavar as fases, objetivando demonstrar as suas especificidades, mas também possibilitar a compreensão do que vem do aspecto histórico e cultural e do que é constituído socialmente, levando-se em conta a influência no momento atual da sociedade.
Resultados e discussão
No que se refere especificamente à sociedade brasileira, segundo estudos de alguns autores, como Campos (1967), Torres (1973), DaMatta (1986) e Holanda (1995), o cerne da corrupção e das condutas antiéticas é uma herança da vinda da corte Portuguesa para o país, em 1808, ou seja, liga-se aos princípios culturais da colonização. A burocracia e a corrupção da corte portuguesa deixaram marcas profundas, que perduram até os dias de hoje, caracterizadas por relações de favorecimento e compromissos entre os nobres e a burocracia estatal que os acompanhava. Nota-se uma tendência para transformar a coisa pública em privada, o que faz com que se possa identificar, no cerne da nossa sociedade, um funcionamento que já focava em benefícios próprios, em detrimento do coletivo. Em contrapartida, o que foi possível perceber, através do discurso da maioria dos artigos analisados, é uma particularidade no sentido de expor a corrupção como fenômeno moderno, estritamente atual:
“No Brasil, tempos de desgoverno e corrupção institucionalizada como algo normal, parece haver uma verdadeira falência das instituições. O desrespeito ao próximo parece ser a tônica da sociedade em crise de valores” (Stürmer, 2015).
No trecho citado acima fica exposta uma expressiva tendência, nas publicações, de afirmação da ideia de corrupção como fenômeno estritamente contemporâneo, que ainda se associa diretamente a representantes do governo atual, como se o comportamento fosse uma característica exclusiva do agrupamento político que está no poder. Isso é percebido em alguns discursos que destacam o momento atual como não tendo precedentes:
“O Brasil vive uma crise ética sem precedentes. Hoje sobram recursos para a corrupção e faltam para políticas públicas básicas como saúde, educação, segurança e saneamento básico” (Lamachia, 2015).
Tais conceitos são inerentes à construção da cena pública brasileira e à constituição das instituições nacionais. Há, ainda, o âmbito em que a corrupção se torna, concomitantemente, um tipo de prática cotidiana, chegando mesmo a ser legitimada e explícita no âmbito de uma tradição estamental e tradicional herdada do mundo ibérico. Em torno disso, ressalvamos que não se pode esquecer as corrupções históricas e as desigualdades promovidas no Brasil, mantidas e naturalizadas pelo poder dominante, sobretudo pelas elites nacionais e internacionais que exploram as minorias e impõem novas formas de colonialismo e exclusão (Mourão, 2015).
O que se infere, a partir dessa constatação nos discursos, é a falta de historicidade da sociedade em geral. Na contemporaneidade, o agir ético das pessoas, assim como a própria forma de experienciar a vida vem sofrendo diversas mutilações, os sujeitos cada vez mais descrevem sua realidade através de um discurso distanciado. Mesmo que de forma indireta, os discursos mostram-se como uma tentativa de isentar a sua responsabilidade e apropriação do que ocorre na sociedade, assim evidencia-se uma naturalização da dessemelhança e expurgo do outro, há claramente uma falta de implicação do sujeito com fenômenos como a corrupção, o que também caracteriza uma falta de historicidade. Segundo preceitos da Teoria Crítica de Adorno e Horkheimer, há no funcionamento social um raciocínio instrumental de um indivíduo “empobrecido de experiência”, “esvaziado pela socialização da sociedade”, inserido e compondo a ordem social (Adorno, 1993, p.16). Aludindo aos preceitos de Horkheimer (2002), na sociedade atual, em que a racionalidade e a alienação predominam, acaba-se por impossibilitar a consciência e a autonomia, impossibilitando-se também a moralidade, o que faz com que a moral existente apareça apenas como um reflexo da vida atual esvaziada.
Não se pode, da mesma forma, isentar a grande mídia dessa contribuição, no que se refere à alienação e à formação de opinião pública de maneira persuasiva, já que os meios de comunicação de massa tiveram e têm um papel primordial como “aparelho privado de hegemonia”, como menciona Gramsci (2001). O autor concebe a atuação desses órgãos como agentes político-ideológicos voltados à organização dos interesses de determinadas classes e segmentos sociais, assim como à formação e vetos das agendas dos governos. A mídia acaba, então, interferindo na conformação do imaginário social e nas disputas de sentido e de poder na contemporaneidade. É, portanto, uma atuação que privilegia interesses privatistas, ou seja, que atua na lógica de consumo da empresa capitalista, ligada a interesses privados, privilegiando os interesses de determinados grupos sociais e econômicos representados pelos meios de comunicação, em detrimento da esfera pública, ocultando interesses ao promover informação à opinião pública (Thompson, 1998). Enquanto um fenômeno típico do capitalismo contemporâneo, há uma clara centralização da mídia nas mãos de alguns, obedecendo certamente à lógica privada de seus proprietários. Fonseca (2000) esclarece que isso acontece por meio de “fusões e incorporações, fazendo com que uma elite seleta, economicamente falando, de empresários privados domine o que o público, em nível não mais apenas local, deva saber sobre os acontecimentos cotidianos”. As manipulações feitas pela grande mídia e os imperialismos reproduzidos pelo sistema capitalista atualmente reforçam a estigmatização de grupos, e não apenas isso, tornam-se um claro atentado à democracia, bem como um grande perigo, já que, significantemente, constroem a realidade, legitimam o cotidiano. Além disso, a diferenciação e o expurgo do outro se mostram como estratégias de diferenciação, na medida em que as diferenças e divisões dos grupos são utilizadas para impedir o acesso ao poder ou para estigmatizar os sujeitos. Os artigos pesquisados demonstram contradições importantes, aparentes nos seus discursos, como demonstrado a seguir:
“Nosso objetivo foi e segue sendo o de atuar como grupo que influencie positivamente a pauta dos protestos, defendendo sempre a democracia, as liberdades individuais e o Estado democrático de direito. Somos contra qualquer ditadura, seja de cunho político ou econômico” (Bandeira, 2015).
No mesmo artigo, porém, o autor coloca: “Nossa pauta seguirá sendo o impeachment da presidente Dilma Rousseff” (Bandeira, 2015). Tais trechos mostram-se contraditórios e tendem a negligenciar o fato de que a corrupção, em suas diversas dimensões, é também um fenômeno sociológico. O final do mesmo artigo citado acima evidencia as marcas de uma sociedade pós-moderna que parece acentuar a irracionalidade, o acriticismo e a massificação: “Em Porto Alegre, foram 120 mil pessoas saindo às ruas por um Brasil melhor, mais justo e verdadeiramente livre e democrático. ” (Bandeira, 2015). Nesse contexto coloca-se uma pergunta para reflexão: um Brasil melhor e mais justo para quem? Sabe-se que o que está em pauta nem sempre é o falho sistema político ou a reforma política, tão necessária: estes aspectos muitas vezes são deixados em segundo plano. O que se percebe é o predomínio de um discurso que demonstra um repúdio ao próprio governo, preocupante na medida em que pode disseminar a intolerância e a escassez de debate. Em apenas um dos discursos analisados foi possível perceber essa constatação, acerca da corrupção propriamente vinculada ao poder e aos jogos políticos no Brasil: “em verdade, a corrupção se presta a um projeto de poder, financiar futuras e caríssimas eleições e manter pelo bolso, e não pela convicção, a base aliada” (Coletto, 2015). Essa ampliação no debate é ainda consideravelmente insuficiente, se comparada aos outros artigos pesquisados, porém já questiona outros aspectos importantes a serem debatidos.
Nesse aspecto, torna-se relevante, ao se abordar a influência dos meios de comunicação, trazer a concepção de ideologia de Thompson (2009), compreendendo-a criticamente como o uso de ideias, estratégias e formas simbólicas que, em determinados contextos, servem para instituir e sustentar sistematicamente desigualdades sociais, entendidas como relações de poder ou de dominação que se encontram permeadas por conflitos e assimetrias de diversos tipos, como classes, gênero, cultura, etc. Um dos modos de operação da ideologia, encontrado na maioria dos artigos pesquisados, diz respeito à própria legitimação, que se caracteriza por diferenciadas formas de validar as relações de dominação e apresentá-las como justas. Observa-se isso nos seguintes discursos:
“Mais do que nunca, nesta hora tormentosa e extremamente difícil da vida nacional, manifestamos que a advocacia deverá ser a voz e o clamor da cidadania e com ela estaremos sempre irmanados nas vigílias cívicas que a nação necessita e espera de nós” (Lamachia, 2015).
Fica marcada, no discurso apresentado, a utilização de um saber ou papel social – no caso, o saber jurídico e o lugar social de representantes de entidades consideradas idôneas, tidos socialmente como especialistas. Esse tipo de discurso transforma-se em um elemento que confere poder, já que, como observado por Weber (1999), relações de dominação podem ser estabelecidas e sustentadas pelo simples fato de serem representadas como legítimas, isto é, como justas e dignas de apoio. A ideologia como legitimação pode ser expressa em formas simbólicas através de diferentes estratégias, como a racionalização, que contribui para persuadir as pessoas de que uma ideia é digna de apoio. Guareschi (2012) parte do pressuposto de que o que se faz tem de ser legitimado. Neste momento facilmente escamotea-se a realidade, afirmando coisas ou trazendo informações que mostram uma parte apenas dos fatos, ao mesmo tempo em que se escondem muitas outras.
Considerando que a grande maioria dos artigos apresentou discursos advindos de um único saber, deixando à margem o posicionamento e o entendimento oriundos de outros saberes – e que poderiam fomentar um debate mais plural –, o que se percebe é um combate à corrupção centrado no corrupto, o que acaba por somente demonstrar que se tenta resolver todos os problemas criminalizando-os, criando ainda mais leis pouco amarradas que não têm dado certo: tais medidas acabam não resolvendo o problema em si. O que se infere com isso é que essa tendência pode ajudar no sentido de que se repitam sempre os mesmos padrões de comportamentos corruptos, e não da erradicação deles. Questões como essa foram levantadas por alguns artigos:
“Em vez de reforçar a investigação do crime de corrupção passiva ou peculato, a proposta induz ao erro a população, criando mais um crime, quando o real problema não é a falta de figuras penais, mas sim de efetiva punição nos casos em que for devida. É tendência nacional o apelo à criminalização de uma conduta quando os aparelhos administrativos são incompetentes” (Callegari, 2015).
Há certas “verdades” legitimadoras que são consideradas, pela população em geral, como sendo absolutas e inegáveis. Uma delas ocorre quando, por exemplo, afirma-se que alguma coisa é resultado de “pesquisa científica”. A ciência e o científico são apresentados como se fossem a última palavra, quando, na verdade, o que se quer, muitas vezes, é garantir proveito ou lucro particular (Guareschi, 2012, p.3). Caso se empreender uma análise histórica, logo se perceberá que no Brasil algumas entidades, por muitas vezes, lideraram os grandes movimentos políticos justamente por possuírem uma formação dogmática, assim podendo ter forte influência social através de discursos nos quais conseguem exaltar uma instituição social e privilegiar interesses de classes. Da mesma forma, fica clara, nos discursos acima, a utilização de uma estratégia de universalização, em que os interesses de alguns são apresentados como de todos, reforçando uma ideia de que se busca o bem comum, enquanto, na verdade, o que se vê aí refletido são os interesses de um determinado grupo.
Em outro momento também aparece, no artigo, essa lógica distorcida de criminalizar massivamente, que seria responsável “pela sobrecarga do Judiciário, pelo atual estado das penitenciárias e presídios, e, consequentemente, pela impunidade das condutas que realmente deveriam ser criminalizadas” (Callegari, 2015). O que se observa atualmente, no Brasil, é que, de um lado, o Estado responde acerca da corrupção com discursos improfícuos e meramente superficiais, com isso negligencia a complexidade desta prática e ignora o que está além do seu caráter delituoso. De outro lado, os cidadãos restringem a corrupção à caricatura da figura política de hábitos ilícitos. Porém,“diferentemente do que se pensa comumente, a corrupção não é um fenômeno circunscrito a uma elite política perversa e sem ética, mas revela valores fortemente arraigados na população brasileira” (Almeida, 2007, p. 109).
Destaca-se um trecho encontrado em outro artigo, que será usado para apresentar outro aspecto observado: “Onde está a ordem? Onde está o respeito às instituições? Alguém vai pagar a multa? E a população, como fica? ” (Stürmer, 2015). Evidentemente, ao se falar do clamor pela “ordem e progresso” deve-se nos questionar sobre o verdadeiro sentido dessa frase, vinculada às intervenções militares na política: esse seria o ideário que foi se constituindo, ao longo do tempo, acerca da sociedade brasileira. A dimensão político-ideológica presente nessa perspectiva remete a uma concepção positivista, que tenta adequar os sujeitos à sociedade em que vivem, legitimando passivamente a hierarquia instituída (Oliveira & Silva, 2013). Deste modo, o regime autoritário e as elites burguesas dominantes garantiriam a manutenção da ordem (Santos, 2012). Torna-se necessário, portanto, um esquema que represente essas teias e deixe mais clara, assim, a ligação entre os fenômenos. É preciso entender os processos que estão entrelaçados na própria sociedade pelo impulso modernizante e que acredita-se estarem intimamente relacionados à corrupção. Houve, então, o que Bauman (1999) definiu como sentimento de horror à desordem e ao caos, mas, paradoxalmente, o que a Modernidade produziu foi exatamente o caos e a desordem da sociedade humana, fato que o autor designa como “ambivalência”. Em termos processuais, por causa das ambivalências produzidas pelo impulso da ordem, deixou-se, aos poucos, de confiar nos sólidos ditos “bons e duradouros” (Bauman, 1999). Com o decorrer da história, esse projeto chegou ao extremo, com ações estatais trágicas por conta do horror ao diferente, ao não previsível, ao não regular. Se a modernidade sólida foi uma tentativa de controle racional do mundo, a modernidade líquida, pode-se dizer, é o mundo em descontrole. Como estratégia para superar esse “trauma”, surgiram então novos discursos em favor da liberdade e da individualização. O autor afirma que os poderes de derretimento da Modernidade “[...] passaram do ‘sistema’ para a ‘sociedade’, da ‘política’ para as ‘políticas da vida’ – ou desceram do nível ‘macro’ para o nível ‘micro’ do convívio social” (Bauman, 2001, p. 14).
O discurso de dominação aparece, da mesma forma, como uma estratégia de simbolização, no caso de unidade, que envolve “a construção de símbolos de unidade nacional como bandeiras, hinos nacionais” (Thompson, 2009, p. 86) O que ocorre é o envolvimento dos indivíduos em uma identidade coletiva, independentemente das diferenças e divisões que possam existir e que não ficam explicitadas. Com relação a isso, Thompson (2009) esclarece que, “ao unir os indivíduos de uma maneira que suprima as diferenças e as divisões, a simbolização da unidade pode servir, em circunstâncias particulares, para estabelecer e sustentar relações de dominação”. Nota-se na sociedade atual um considerável aumento da individualização, juntamente com um aumento da impessoalidade nas relações humanas. A diferença se torna, a partir disso, uma exigência: todos devem ser indivíduos particulares, o que acaba transmitindo um sentimento de não pertencimento a lugar algum, bem como a um enfraquecimento das comunidades, quebrando-se qualquer vínculo com a sociedade da qual se faz parte. Em meio ao medo e à incerteza, a estratégia de vida que aparece, então, como a mais sensata, efetiva e produtiva é a busca por segurança em uma identidade comum. No entanto, essa “identidade comum” não necessariamente leva à formação de uma comunidade em sentido pleno (Bauman, 2001). A crítica que o autor faz a este aspecto, e que acaba por tornar-se um grande problema, é justamente o fato de que esse tipo de mecanismo faz com que os indivíduos se sintam “livres de culpa” por não se preocuparem com os problemas da “sociedade maior”. Elas são, ao invés disso, “[...] pequenos grupos para o seu próprio desfrute” (Bauman, 2001, p. 243). A liberdade total mostra-se culturalmente tão assustadora quanto uma cruel limitação: “poder tudo” é tão angustiante quanto “não poder nada” (Chevitarese, 2001).
O discurso anticorrupção sempre se manteve presente na política brasileira, como traz Ballestrin (2013): a própria ditadura elegeu o fim da corrupção e a derrota do comunismo como metas moralizantes. Aludindo às ideias de Horkheimer (2002), a sociedade atual, em que a racionalidade e a alienação predominam, acaba por impossibilitar a consciência e a autonomia, que redundariam numa verdadeira moralidade de fundo ético. Então a moral existente aparece apenas como um reflexo da nossa vida atual esvaziada.
“O momento é de passar a limpo o Brasil e depurar a classe política, pois é inaceitável a postura dos agentes políticos que traem seus eleitores. Precisamos de homens que sirvam a política e não se sirvam dela, como também de empresários éticos e comprometidos com o desenvolvimento da Nação” (Lamachia, 2015).
No momento que se atravessa hoje, as escolhas passaram a privilegiar o privado, orientadas pela vontade, sem coesão e sem coerência, ainda que se tente obscurecer a disputa entre os interesses públicos e privados. Portanto, no sistema capitalista em que se vive, a busca pelo lucro é legítima e, logo, o interesse individual também. O que se pretende colocar é que existe aí uma questão de valores, também determinada socialmente. Seja em função da busca de um status social, seja de uma melhora de padrões de consumo ou mesmo sem qualquer motivo aparente, a busca pelo dinheiro é, na contemporaneidade, um valor moral. O discurso anticorrupção, ao mesmo tempo em que ataca exclusivamente a ineficiência do Estado, enfatiza o mau caráter individual de seus agentes, desconsiderando uma série de aspectos institucionais, históricos e culturais, o que acaba por conduzir a soluções imediatistas e demagógicas, em nome da salvação da pátria corrompida. Benjamin (2000), provoca uma reflexão ao trazer a concepção do “aniquilamento” do indivíduo em sociedade, momento em que o indivíduo não percebe que está iludido e supõe estar em busca de seus desejos e necessidades, quando, na verdade, encontra-se massificado. O autor ainda coloca que “o dinheiro está, de modo devastador, no centro de todos os interesses vitais, e é exatamente este o limite diante do qual toda a relação humana fracassa” (Benjamin, 2000, p.3).
Por outro lado, ainda encontramos questionamentos, nos artigos, no que diz respeito à corrupção ser inata, algo inerente ao homem, conforme o trecho a seguir:
“A corrupção não está no Legislativo. Tampouco no Executivo, no Judiciário ou na atividade privada. A corrupção está na alma humana” (Moreira, 2015).
Esse tipo de ideia somente contribui com a necessidade de se nomear algo ou alguém como detentores da culpa ou responsabilidade por um fenômeno constante na sociedade. O que é colocado, porém, é que se trata de um comportamento naturalizado e enraizado culturalmente, o qual se passa a acreditar ser inerente aos sujeitos. Guareschi (2012) acredita que no momento em que se naturaliza o comportamento, isto é, passa-se a considerá-lo como algo que é fruto da ação humana, acaba-se tornando escravo da própria consciência. Isto impede o sujeito e o impossibilita de lutar, pois ele se sujeita ao determinismo dessas criações que deixam de ser questionadas e se apresentam como absolutas. O sujeito contemporâneo confronta-se com uma sensação de abandono e de fracasso, o que leva a uma constante do nosso tempo, um sentimento de descrédito com o funcionamento democrático brasileiro que privilegia alguns, conduzindo a uma desconfiança com relação à própria civilização e com o que implica viver em sociedade, com todas as renúncias necessárias. E o consumo, aqui, também tem um importante papel, já que atualmente ele se torna a principal forma de construção da subjetividade, o que acaba levando a uma sociedade individualista, predominantemente narcisista. Conforme Birman (2006), esse modelo de subjetividade surge como tentativa de lidar com o desamparo, conduzindo ao incremento da individualidade, do narcisismo, da violência e da crueldade. Nesse sentido, não se percebe, na sociedade atual, o reconhecimento da importância, nem mesmo da existência do outro, e assim não se pode abrir mão de desejos individuais em detrimento do coletivo.
Outro aspecto que surge nos artigos refere-se à compreensão de que as instituições são o outro, algo distanciado do “nós”. No entanto, a falência das mesmas é uma consequência da falência do sujeito em sociedade, já que somos todos nós que as constituímos. “No Brasil, tempos de desgoverno e corrupção institucionalizada como algo normal, parece haver uma verdadeira falência das instituições” (Stürmer, 2015). No cerne da ética pós-moderna ocorre o que se pode chamar de uma crise de autoridade, como afirma Kerbs (2002), que envolve instituições tradicionais, como a família, escola, igreja, Estado, justiça, polícia, etc.
Compreende-se que o combate à corrupção está estreitamente relacionado à noção de cidadania, não podendo ser reduzido a uma questão criminal ou moral, sendo que só assim poderá sair do campo do discurso vazio. Exercer a cidadania só encontra cenário propício num sistema de fato democrático. No entanto, muitas questões em nosso país deixam claro ainda estarmos longe de uma democracia ideal. Chauí (1986) mostra a distância existente entre a democracia concebida e de discurso e a democracia efetivamente praticada: o Brasil não vive plenamente a sua Constituição, que é democrática em sua formulação e objetivação, mas mostra-se autoritário e hierarquizado, um lugar onde o direito de muitos não é respeitado e onde a elite busca por mais privilégios. Em um dos artigos analisados, expõe-se que, “Numa democracia, o povo(que agora está nas ruas) é o primeiro e principal fiscal. Nosso sistema deveria fazer os políticos estarem perto, e não longe do povo” (Coletto, 2015). Acredita-se que esse tipo de discurso pode contribuir para mais uma vez nos sentirmos distanciados desse fenômeno. Nota-se, como sintoma pós-moderno, também essa falta de responsabilização pelo todo, enquanto sociedade, uma vez que a corrupção não está restrita ao âmbito político. Do mesmo modo, há dificuldade em se ter uma noção efetiva de cidadania e coletividade.
No meio disso, pode-se também considerar uma disputa particularmente de poder, que é conduzida e endossada por uma mídia hegemônica que legitima a ligação do governo com as desveladas corrupções, e isso seria o que mais propriamente fomentou a ida dos brasileiros às ruas, mais do que a própria pauta anticorrupção em prol da reforma política. Há aí, porém, também um claro descontentamento com o nosso sistema político. Souza (2002, p.25) reflete no sentido de que “é preciso confrontá-la com uma alteridade que a instigue, que a transforme, que a questione”.
Carrara (1996) declara que a efetivação da cidadania depende, no Brasil, da boa vontade política, o que, aliado ao descaso com a educação e com cultura, acaba por tornar mais fáceis as ações de usurpadores da consciência popular, que se constituem, dessa forma, em agentes que atravancam o caminho mais curto e mais seguro para a conquista da cidadania, ou seja, a participação de todos em sua diferença. Nesse sentido, quando o debate é estimulado e o consenso é questionado, a tendência passa a ser a de que opiniões radicais se anulem e o bom senso e a justiça prevaleçam (Cavazza, 2008). Mas para que isso realmente funcione não basta somente o diálogo: é necessário também o investimento e um suporte à educação e ao conhecimento para a população em geral, para que então se tenha uma coletividade que raciocine e questione a realidade por si mesma, não deixando que verdadeiras fábricas de produção de subjetividades manipulem sua opinião tão fortemente.
Enfatiza-se o discurso encontrado em um dos artigos, que levanta a questão: “Só o debate constrói. Contrapor ideias ou fatos aos próprios fatos e ideias (num processo dialético) é a única forma de tentar chegar à verdade e ao perene” (Tavares, 2015). Como refere Cindra (1995), uma visão dialética poderia tornar o mundo mais compreensível, apesar de sua complexidade, podendo assim relativizar as opiniões e pensamentos distintos. Essa visão colaboraria, ainda, para a compreensão adequada da relação entre liberdade e necessidade aliada a uma postura racional dialética, sendo estas, de acordo com o autor, possíveis garantias contra qualquer manifestação de obscurantismo e também contra as mistificações políticas e sociais que visam simplesmente confundir e degradar o sujeito, criando dificuldades e obstáculos desnecessários, impedindo o desenvolvimento social. O artigo segue evocando também outras questões, que são primordiais quando se fala de cidadania:
“O falso debate que a minoria de nostálgicos do horror quer criar sobre a volta da ditadura” é um disparate que nem caberia mencionar... Mas há gente de boa-fé (que sem saber o que foi a ditadura) aceita ouvir os cegos e surdos que nada viram ou ouviram sobre o regime que governou com delito” (Tavares, 2015).
O interessante é que possa haver um distanciamento da alienação e do radicalismo e uma aproximação de uma abertura ao diálogo em benefício do coletivo, relativizando os discursos e aceitando as diferenças. Afinal, a sociedade é formada pela interligação entre os sujeitos e suas relações definem os fenômenos sociais, como a corrupção, por exemplo.
Considerações finais
A realização deste artigo possibilitou a compreensão de como a corrupção está sendo pensada, através dos discursos publicados no Jornal Zero Hora, nos seus diferentes vieses, como questões referentes ao social, histórico, econômico e político da conjuntura atual do nosso país. Ao longo da análise dos artigos, foi possível perceber e confirmar que muitos atravessamentos relacionados ao tema não estão em pauta, sendo pouco discutidos de modo amplo e plural pela grande mídia. Isso pode acabar se tornando uma ameaça ao desenvolvimento da nossa democracia, pois atualmente o lugar ocupado pela mídia é extremamente importante para a sociedade moderna em geral, já que ela ocupa uma dimensão central nos diversos âmbitos da vida pública e chega aos mais distintos grupos sociais de maneira rápida e real.
Foi percebido que, mesmo que a democratização da mídia na sociedade brasileira esteja em processo de construção, o que se vê é pouco, pois ela demonstra ainda prestar-se aos interesses de uma elite dominante. Torna-se então uma questão fundamental para a democracia no Brasil que este avanço aconteça, embora ainda se trate de um tema difícil de ser debatido, já que se liga à possibilidade de gerar consciência política e trazer protagonismo social à população em geral. Isso acaba prejudicando o desenvolvimento reflexivo e crítico, pois a mídia acaba por atuar como produtora de consenso, suprimindo toda e qualquer possibilidade de pluralismo e diversidade cultural. Entendida como um mecanismo reprodutor da ideologia, a mídia hegemônica pode repassar, muitas vezes, uma imagem distorcida, uma realidade carregada de interesses que servem muito bem para que a classe dominante continue no poder e para que a classe dominada continue alienada.
O que se torna relevante é o fato de que nossas ações e discursos são influenciados por essa lógica. Como menciona Guareschi (1994, p.19):
A ideologia como um sistema de representações é inseparável da experiência vivencial cotidiana dos indivíduos. Dizer isso significa afirmar que a ideologia impregna hábitos, desejos, reflexos das pessoas; significa, também, afirmar que a grande maioria das pessoas atravessa a vida sem, talvez, nunca se dar conta dos verdadeiros fundamentos dessas representações.
A mídia e os meios de comunicação de massa são primordiais para que se possa reformular a sociedade, desde que se comprometam com os anseios sociais de todos. A partir disso, o que se propõe é que a mídia ofereça informações e pontos de vista diversificados, para que os sujeitos possam efetivamente formar juízos de valor sobre o que lhes interessa. Ela pode também contribuir no fornecimento de mecanismos para que se possa articular opiniões que tenham sido marginalizadas ou excluídas da visibilidade mediada. Portanto, o que ressalvamos é o caráter de relevância do papel da mídia no aspecto social com relação ao incentivo do pluralismo e da diversidade, desde que haja um empenho de todos para que opiniões e verdades não sejam engessadas.
Do mesmo modo, a análise dos artigos possibilitou perceber a semelhança em alguns aspectos de um Brasil-colônia com o país atual, que vem se desenvolvendo como democracia, mas que ainda carrega algumas manifestações de seus primórdios, como as relações de poder e desigualdade e relações de exploração, assim como resquícios do patrimonialismo, nepotismo e compadrio. Portanto, concebe-se a corrupção como herança impregnada na constituição histórica de nossa sociedade, tratando-se de um fenômeno que vem acontecendo desde os primórdios, enraizado culturalmente e que, infelizmente, hoje se encontra naturalizado. As manifestações percebidas refletem à construção da cena pública brasileira e da constituição das instituições nacionais, o que faz com que a corrupção, nesse âmbito, torne-se um tipo de prática cotidiana. Com a análise, demonstrou-se que a mídia difunde a corrupção como fenômeno estritamente atual e específico do governo atuante, o que não traz uma contribuição muito abrangente à população, já que pode servir para a fomentação de discursos de ódio e para a estigmatização de grupos, bem como para conhecermos apenas superficialmente o fenômeno. Tais ideias tendem a negligenciar que a corrupção, em suas diversas dimensões, é também um fenômeno sociológico.
Com os resultados foi possível também se chegar à hipótese de que existem alguns atravessamentos referentes à pós-modernidade que podem estar acentuando o fenômeno da corrupção. Evidencia-se, aí, a afirmação de uma ética pautada pela busca incessante pelo desejo e prazer próprios, que parece não ir além em termos de moralidade. Nota-se, na sociedade atual, um considerável aumento da individualização, juntamente com um aumento da impessoalidade nas relações humanas. Todos devem ser indivíduos particulares, o que acaba transmitindo um sentimento de não pertencimento a lugar algum, bem como uma incessante busca de satisfações de todos seus próprios interesses e desejos, quebrando-se qualquer vínculo com a sociedade da qual o sujeito faz parte. Do mesmo modo, considerou-se com a análise, que o discurso moralista está cada vez mais ganhando força, um tipo de discurso que confronta o que é a democracia de fato, cujo conceito tem como intrínseca a noção de laicidade, aspecto que justamente não se constitui como uma questão de maiorias.
Cabe colocar também, para reflexão, que a grande maioria dos artigos mostrou discursos advindos de um único saber, deixando à margem o posicionamento e entendimento de outros saberes que poderiam fomentar um debate mais pluralista nos meios de comunicação, sem que fosse disseminada apenas uma ideologia dominante à população. O mesmo ocorre com a tendência, muito observada no Brasil, de centralizar o combate à corrupção no corrupto. Nesse sentido, o que vem acontecendo demonstra somente que tentar resolver todos os problemas criando ainda mais leis pouco amarradas não tem dado certo: tais medidas acabam não resolvendo o problema em si. Portanto, trazemos como proposta uma visão dialética dos problemas, com participação ativa de diversos saberes. Tal ideia poderia tornar o mundo mais compreensível, apesar de sua complexidade, podendo-se assim relativizar as opiniões, considerando-se os pensamentos distintos. É preciso que se possa manter sempre uma conversa e troca entre os saberes, mas, para que isso realmente funcione, deve haver também um maior investimento e suporte à educação e ao conhecimento à população em geral, para que então se tenha uma coletividade que raciocine e questione a realidade por si mesma.
Não temos pretensão de generalização com esse trabalho. Tudo o que foi discutido refere-se a um micro que reflete o macro daquilo que é disseminado pela mídia hegemônica. Portanto, não se pretendeu apresentar nada como verdade absoluta; a intenção foi que toda essa construção reflexiva sirva para pensarmos na corrupção de modo mais abrangente e que sirva de inspiração para novas pesquisas sobre o tema. É importante que este não seja negligenciado ou banalizado, devendo o seu combate estar entre as principais pautas das políticas públicas, tendo em vista suas implicações na sociedade. Acredita-se também que, para haver um compromisso social da Psicologia, é necessário o envolvimento em projetos amplos de mudança social, que aprofundem o esclarecimento quanto às dimensões dos fenômenos sociais, não ficando apenas na superfície deles. Atualmente ainda se sente falta de uma participação mais ativa da Psicologia frente a questões da sociedade atual, como é o caso da corrupção. Nesse sentido, concorda-se com a ideia de Martin-Baró (1996) de que o conformismo social não é nada mais que a interiorização das relações de dominação. Assumir que nada se pode fazer diante dos problemas sociais é naturalizar as circunstâncias atuais, desconsiderando seu caráter histórico. Assim, somente com ações comprometidas, políticas e articuladas, visando o empoderamento dos sujeitos, será possível iniciar alguma transformação.
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Endereço para correspondência
Ana Carolina Gonçalves Rossoni
e-mail: rossoni.anacarolina@gmail.com
Endereço para correspondência
Roberta Fin Motta
e-mail: robertafmotta@gmail.com
Recebido em: 12/01/2016
1ª revisão em: 17/05/2016
2ª revisão em: 20/07/2016
3ª revisão em: 18/09/2016
Aceito em: 15/11/2016
i Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário Franciscano, Santa Maria, RS.
ii Mestre e doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). É professora do Curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e Professora Colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).