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Estudos Interdisciplinares em Psicologia

versão On-line ISSN 2236-6407

Est. Inter. Psicol. vol.11 no.1 Londrina jan./abr. 2020

https://doi.org/10.5433/2236-6407.2020v11n1p26 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Concepções sobre a morte e o morrer entre estudantes de psicologia

 

Conceptions about death and the dying process among psychology students

 

Concepciones sobre la muerte y el morir entre estudiantes de psicología

 

 

Vitor Costa Ramos; Adriana Aparecida de Oliveira Godoi Cirino

Universidade de Marília

 

 


RESUMO

Ao longo da vida e do trabalho como psicólogos, o contato com a morte e o morrer sempre estará presente, em qualquer área de atuação. Desse modo, o presente artigo tem como objetivo analisar qual a concepção sobre a morte e o morrer entre estudantes do quinto ano do curso de psicologia de uma universidade particular do interior paulista. Trata-se de uma pesquisa de campo, de abordagem qualitativa, que utilizou a análise de conteúdo, modalidade temática, para tratamento dos dados. Foram entrevistados 21 estudantes do quinto ano da graduação. Conclui-se que os estudantes compreendem a morte e o morrer de modo concreto e simbólico. Além disso, estabelecem relação entre a psicologia e a temática, considerando a importância dos estudantes e profissionais lidarem com seus próprios lutos para entrarem em contato, de modo genuíno, com o outro em sofrimento por perdas.

Palavras-chave: estudantes; morte; atitude frente à morte.


ABSTRACT

Throughout life and work as psychologist, the contact with death is always present, in any field of work. Thus, this paper's goal is to analyze the conception about death and the dying process among fifth year students of a Psychology undergraduate course of a private university in the interior of the state of São Paulo. The study is about a field research with a qualitative approach and content analysis regarding the thematic modality was the technic used for the data treatment. Twenty-one fifth year students of a Psychology undergraduate course were interviewed. The conclusion was that students comprehend death and the dying process in a symbolic and concrete way. Besides that, they establish a relation between psychology and the thematic of death, regarding the importance of students and professionals to deal with their own grieving process to be genuinely in touch with others who are suffering for their losses.

Keywords: students; death; death attitude.


RESUMEN

A lo largo de la vida y del trabajo como psicólogos, el contacto con la muerte y el morir siempre estará presente en cualquier área de actuación. De este modo, el siguiente artículo tuvo como objetivo analizar cuál es la concepción sobre la muerte y el morir entre los estudiantes del quinto ano del curso de psicologia de una universidad particular del interior paulista. Se trata de una investigación de campo, de abordaje cualitativo, que utilizó el análisis de contenido, modalidad temática, para el tratamiento de los datos. Se entrevistó a 21 estudiantes del quinto ano de graduación. Se concluye que los estudiantes comprenden la muerte y el morir de modo concreto y simbólico. Además, establecen relación entre la psicología y la temática, considerando la importancia de los estudiantes y profesionales para tratar con sus propios lutos, para entrar en contacto de modo genuino con el otro en sufrimiento por pérdidas.

Palabras clave: estudiantes; muerte; actitud frente a la muerte.


 

 

INTRODUÇÃO

A morte e o morrer fazem parte do desenvolvimento humano e da própria existência, porém ainda são temas temidos por alguns e negados por outros, provavelmente por fazerem parte de um processo desconhecido, ainda considerado tabu em nossa sociedade ocidental. Diante disso, compreende-se que a morte biológica é um dado universal, um fato inevitável e irrefutável, no entanto, a forma a pessoa reage a ela é fruto de diversos fatores: psicológicos, socioculturais e históricos.

Na antiguidade, vivia-se a morte domada, uma cerimônia pública, organizada, encarada e vista como um acontecimento normal para todos. A ideia de morrer era uma certeza. Nesse contexto, a profunda e rápida socialização não separava o ser humano da natureza e a aproximação do término era um modo de aceitar a ordem natural da vida, tornando seu encerramento familiar e tranquilo, destaca Ariès (1977/2012).

O sujeito era capaz de ter dimensão da sua existência e do mundo de forma mais humana, estar próximo e aceitar sua condição de ser e daquilo que é inerente à vida. Essa atitude diante da morte dura milênios, e após o séc. XIX com as mudanças no mundo ocidental, "não há mais resquícios, nem da noção que cada um tem ou deve ter de que seu fim está próximo [...]. O que devia ser conhecido é, a partir de então, dissimulado" (Ariès, 1977/2012, p. 219).

Diante disso, ao longo da história das sociedades ocidentais nota-se uma mudança progressiva no modo com que a morte é significada e o ser humano passou a se defender de várias formas do medo de morrer, da incapacidade de prever e de se precaver contra ela. Do ponto de vista psicológico é possível negar a própria morte e acreditar na imortalidade, mas isso é temporário, segundo Kubler-Ross (1981/2008). No inconsciente, o indivíduo não aceita sua própria finitude, o que o faz pensar que viverá para todo o sempre.

No entanto, falar sobre morte é falar de vida, é promover o pensar sobre o curso da própria existência. O ser humano está entrelaçado com os processos de vida e morte ao longo do desenvolvimento e não apenas com o final dela, determinando a identidade e o modo de viver de cada pessoa, destaca Kovacs (1992). Reconhecer a própria finitude e a do outro pode levar a pessoa a perceber o real valor da vida e como é possível trazer mais qualidade a ela e às relações.

Nesse sentido, compreende-se o morrer como um percurso do desenvolvimento onde o sujeito já está lançado, assim como nascer, crescer e envelhecer sendo a morte considerada o encerramento da vida material. Como considerado anteriormente, em várias fases da vida e do desenvolvimento se tem uma relação com o que termina, como na adolescência e no início da vida adulta. Esses são momentos singulares no sentido de mudanças profundas na personalidade do sujeito.

Segundo Osório, Piltcher e Martini (2013, p. 193) torna-se visível a superposição "entre os 18 e os 35 anos, de vivências, descobertas e ameaças (inquietações e anseios da adolescência persistindo até os 30 anos), bem como as angústias com o tempo, o envelhecimento e a morte já se insinuando". Desse modo, compreende-se que a questão da morte e do morrer pode ser pensada no sentido de encerramento, finitude e término, não apenas no aspecto biológico, mas também no psicológico e social, estando presente em qualquer etapa do desenvolvimento humano.

Partindo desse pressuposto, pensa-se que, para os profissionais da psicologia, esse é um tema recorrente tanto na clínica quanto nas instituições. Isto ocorre pois se vive cotidianamente situações que, além de envolver a morte concreta, requerem a sensibilidade de lidar com situações tão sofridas quanto ela, como as mortes simbólicas, as separações, as perdas, as mudanças de fase, que demandam um processo de elaboração sobre a própria existência.

Em estudos feitos por Faraj, Cúnico, Quintana e Beck (2013), acerca da produção científica de psicologia com a temática da morte, verifica-se a carência de estudos realizados por profissionais da psicologia em relação ao assunto. Com isso, o interesse por esse estudo partiu do desejo de compreender como ocorre a aproximação do estudante de psicologia, muitos na fase jovem adulta, com essa temática; com o dito e o interdito diante dos encerramentos.

Diante disso, a relevância do tema permeia o desafio de manter a sensibilidade do estudante de psicologia, futuro profissional, com o outro em sofrimento por perdas e também conseguir permanecer saudável e em equilíbrio psiquicamente. Este estudo teve como objetivo geral analisar e identificar qual a concepção sobre a morte e o morrer entre os estudantes do curso de psicologia e objetivos específicos, descrever como os estudantes percebem-se e comportam-se ao entrar em contato com o tema, além de verificar se eles estabelecem uma relação entre a morte e a atuação do psicólogo.

 

MÉTODO

Foi utilizada nesse estudo de campo a pesquisa qualitativa, que "trabalha com o universo dos significados, dos motivos, das aspirações, das crenças, dos valores e das atitudes" (Minayo, 2008, p. 21). Além disso, a autora destaca que a abordagem qualitativa se aprofunda no mundo dos significados, em que o nível de realidade não é visível, pois precisa ser exposto e interpretado, em primeira instância, pelo próprio pesquisador.

Com relação à questão ética que envolve a pesquisa com seres humanos, o projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em pesquisa da universidade, sob o parecer de número 1.522.536, em abril de 2016. Todos os estudantes que participaram da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

PARTICIPANTES

Participaram desta pesquisa 21 estudantes do quinto ano do curso de psicologia de uma universidade particular do interior paulista no ano de 2016, sendo três do sexo masculino e dezoito do feminino. Os estudantes tinham idades entre 21 e 62 anos (média = 29,5 anos), quatro deles eram casados e cinco tinham mais de um filho. O perfil dos estudantes em sua maioria era de jovens adultos.

A escolha de estudantes do quinto ano do curso de psicologia se deu pelos seguintes motivos: terem vivenciado os estágios e atendimentos clínicos e estarem encerrando o curso, isto é, terminando um ciclo que demanda reflexão, elaboração, semelhante às questões envolvidas com o tema em estudo.

INSTRUMENTOS E PROCEDIMENTOS

Compreendeu-se como parte desse trabalho de pesquisa a elaboração de um guia para nortear e focar as questões a serem abordadas, ou seja, um roteiro de entrevista. As entrevistas semiestruturadas são instrumentos de coleta de dados que combinam, "perguntas fechadas e abertas, em que o entrevistado tem a possibilidade de discorrer sobre o tema em questão sem se prender à indagação formulada" (Minayo, 2008, pág. 64).

A partir disso, um estudo piloto foi realizado para verificar a adequação das perguntas, a sequência e a abrangência da temática, a linguagem utilizada, dentre outros aspectos. Após análise de três entrevistas testes, por dois juízes, não se fez necessário realização de alterações no roteiro e foi dado seguimento a pesquisa, com a coleta de dados.

Os estudantes foram convidados pessoalmente, por conveniência, tendo como critério a motivação para participar e a disponibilidade de tempo. O local utilizado para a aplicação das entrevistas foi a clínica escola da faculdade e teve duração média de quinze a vinte minutos. O critério de encerramento das entrevistas foi a saturação das respostas, ou seja, quando elas passaram a ser repetitivas.

Cada entrevista foi realizada num único encontro, a partir do roteiro previamente estruturado, descrito abaixo: 1) O que é morte para você? E morrer? 2) Ao longo do curso, já teve contato com o tema morte e morrer? Onde? Como? 3) Na sua prática ao longo do curso (aulas, estágios) você vivenciou alguma situação de morte? Suscitou em você algum tipo de reflexão? 4) Nos últimos cinco anos morreu alguém próximo a você? 5) Depois da perda, algo mudou quanto a sua forma de pensar sobre o assunto? E quanto a sua forma de viver? 6) Quando você pensa na sua vida, considera a possibilidade de término? Percebe-se em risco com relação a ela? O que faz para preservá-la? 7) Você percebe correlação do tema com o trabalho do psicólogo? De que forma? 8) Gostaria de acrescentar algo ou fazer sugestões?

Além disso, foram coletados os dados pessoais dos participantes como idade, sexo, estado civil, prole (quantidade e idade), o termo em curso, se trabalhavam e qual era a procedência.

COLETA DE DADOS

As entrevistas foram gravadas, transcritas e posteriormente analisadas segundo a técnica de análise de conteúdo, modalidade temática. Para Bardin (1979, pág.105) trabalhar com análise temática "consiste em descobrir os núcleos de sentido que compõem a comunicação e cuja presença, ou frequência de aparição pode significar alguma coisa para o objetivo analítico escolhido". A partir dessa análise pode-se ir em direção à descoberta do que está implícito nos conteúdos manifestos, indo além das aparências do que está sendo comunicado, destaca Gomes (2008).

Para realizar a análise de conteúdo, seguiram-se as seguintes etapas:

1) Pré-análise;
2) Exploração do material;
3) Tratamento dos resultados/Inferência/Interpretação.

Com isso, buscou-se ter uma visão de conjunto, levando em consideração as particularidades e os conteúdos presentes nas falas e os pressupostos teóricos utilizados.

Após a leitura e a interpretação dos relatos, emergiram cinco categorias temáticas:

1) Sobre a morte de si mesmo
2) Sobre a morte do outro
3) Sobre o morrer
4) Interface com a profissão do psicólogo
5) Riscos e preservação da vida

Todos os relatos apresentados pelos estudantes são identificados pela letra E seguido do número 1, 2, 3..., por exemplo, E.1, E.3, E.8... e assim sucessivamente. Além disso, os relatos apresentam legendas como: silêncio ou pausa pequena (...) e corte nas falas [...].

 

RESULTADOS E ANÁLISE

SOBRE A MORTE DE SI MESMO

Frente à dificuldade de falar sobre a própria morte, alguns estudantes dizem preferir não pensar nessa possibilidade.

Não considero, não penso, não penso sobre a morte. É um assunto muito difícil que eu não gosto muito de pensar também (E.1).

Considero que eu poderia morrer, acho que a qualquer momento, a hora que chega a hora dela não adianta. A gente fica meio bitolado se começar a pensar nisso (E.15).

[...]eu procuro não pensar se vou morrer logo, vou vivendo (E.12).

Nota-se que alguns estudantes reconhecem a inevitabilidade do fim, mas pensar sobre isso é sentido como uma ameaça, que pode "bitolar", viciar, fazer perder a medida, adoecer. A possibilidade da própria morte gera desconforto e impotência, acionando mecanismos protetores como a esquiva, a negação e a racionalização. De acordo com Eizirik, Polanczyk e Eizirik (2013), existe dificuldade em discutir o que representa a morte e como as pessoas a encaram, por trazer um significado implícito: o de refletir sobre a própria finitude e como será o seu morrer. Por outro lado, considera-se que a população em estudo é basicamente de jovens, que estão mais ligados aos processos de vida que aos de morte. Se a população fosse mais velha, idosa, as respostas poderiam ser diferentes.

Outro aspecto levantado neste estudo refere-se as influências socioculturais: a morte como assunto proibido e que impede a compreensão e o pensamento dessa realidade irrefutável.

[...] a gente nunca acha que a vida vai acabar, na verdade, é uma coisa cultural que a gente é meio que ensinado (...) de não falar sobre morte, de não encarar a realidade como sendo certo que vai acabar um dia (E.5).

Esse aspecto evidencia a forma como a morte é vista geralmente na sociedade ocidental, que segundo Ariès (1977/2012) passa de uma fase espontânea, de rituais, manifestações dramáticas, de um acontecimento social e público, para um assunto interdito, reprimido. O autor ensina que a morte passa a ser vista como algo distante, com rituais discretos e sem a possibilidade de anunciar o sofrimento advindo dela.

Do ponto de vista externo, considera-se que o contexto social atravessa os sujeitos e subjetivam seus aspectos psicológicos favorecendo esses comportamentos. Entretanto, a forma de reagir frente a morte é muito pessoal, profundamente íntima, relacionada a todos os processos de separação já vivenciados pelo indivíduo.

A morte também é entendida e reconhecida por alguns como um fenômeno biológico e concreto, sob um olhar em que o fim pertence a um ciclo natural do desenvolvimento.

Para mim é o término de um ciclo, a gente nasce, cresce, se desenvolve e depois morre (E.1).

Faz parte da vida, acho que é um processo, que há um começo e um fim (E.8).

Nestes relatos, alguns estudantes atribuem o caráter natural a ela, como uma etapa do desenvolvimento e um fato universal. Keleman (1997) destaca que essa maneira de considerar o fim, é baseada na ideia de que a vida corporal e a vida psicológica são uma coisa só, não há como dissociar mente e corpo tratando-se da morte.

Essa ideia naturalizada da morte faz com que alguns estudantes a compreendam como uma certeza o fim. No entanto, apesar desse reconhecimento, eles consideram a possibilidade com temor.

Pensamentos são constantes sobre a morte, sobre o término, isso é uma possibilidade, isso pode acontecer a qualquer momento... uma doença também é uma possibilidade, mas tenho vontade de viver muitos anos, tenho muito medo da morte (E.2),

Considero a possibilidade, porém com medo, morro de medo, se tem um assunto que eu tenho medo é da morte (E.3).

Nesse sentido, os relatos revelam a falta de qualquer tipo de controle quando estão em contato com o tema e que isso suscita o medo, que segundo Kovacs (1992), é a resposta psicológica mais comum diante da morte e que atinge todas as pessoas, apresentando-se de diversas formas e dimensões. Tem-se medo dela por se desconhecer como e quando será o encontro com ela e o que ela irá representar.

Sob o ponto de vista psicanalítico, o medo da morte é fundamentalmente comparado à angústia de castração, pois é visto como uma repetição daquilo que o ego experimentou como algo em sua própria destruição. "Esse medo emerge já na infância inicial, e sua substância é o medo da repetição do terror mortal experimentado em situações traumáticas" (Eizirik, Polanczyk & Eizirik, 2013, p. 242). Compreende-se que a morte para o jovem adulto é percebida como um viver interrompido, uma vida suprimida.

Outro aspecto que também está presente relaciona-se à identificação com o outro em um contexto de término.

Eu estava com quase vinte e sete anos quando meu cunhado morreu e tinha uma reportagem falando dos artistas famosos que morreram aos vinte e sete anos e que era uma idade marcante (...) e agora eu estou prestes a fazer vinte e sete e eu estou pensando bastante sobre a morte (E.9).

Segundo Eizirik et al. (2013), a finitude como uma realidade que se apresenta desde o nascimento, suscita diversas fantasias inconscientes bem como suas respectivas defesas, dentre elas, se destaca a de caráter persecutório, isto é, a manifestação do medo e raiva, inconscientes. Ao aproximar-se da perda de um familiar, além da identificação, torna-se inevitável pensar sobre a própria morte. Percebe-se que neste momento da pesquisa a consciência dos estudantes sobre a própria finitude atinge seu ápice. Abandona a negação, esquiva, racionalização, a influência social, a persecutoriedade e finalmente aceita a possibilidade de pensar sobre o assunto. Autoriza-se a dizer o que pensa sobre morte.

Diz acreditar que a morte é uma passagem, expressa por uma crença de que há uma continuidade, porém com destino desconhecido.

Para mim é o fim de um ciclo aqui na terra e um recomeço em outra dimensão, para mim a vida não tem fim (E.12).

[...] é você deixar de viver nesse mundo concreto, físico e passar para outra dimensão (...) você vai sair do físico, do presente e ir para outro lugar, não sei qual lugar, mas sinto que é isso (E.19).

Nesse sentido, acreditar que existe uma continuidade e uma passagem para outra vida se apresenta como um mecanismo de defesa para lidar com o terror e desespero frente ao desconhecido. De acordo com Cassorla (1992), tenta-se preencher o não saber com teorias e de forma intelectualizada, tendo que existir algo após a morte para a vida ter a razão de ser. Para o autor, sob o ponto de vista psicanalítico, trata-se de defesas maníacas e de onipotência, pois se torna mais confortável a ideia do fim. Todos criam teorias e fantasias sobre fatos que fogem ao controle.

[...] eu acho que a gente vai para um lugar melhor depois que a gente morre (E.15).

Corroborando com essa ideia, Eizirik et al. (2013) destacam que recriar um mundo desaparecido pode ser uma forma de refazer antigos laços e negar o fato biológico da cessação da vida, pois é mais aceitável criar de modo imaginário uma nova realidade. Por outro lado, a dimensão espiritual faz parte da cultura e da constituição do ser, e oferece uma esperança diante do desconhecido. Kovacs (1992) relembra a ideia freudiana de que a pulsão de morte - Tanatos - sempre vence, e com o tempo todos acabam morrendo. No entanto a vida prevalece, pois a pessoa fica viva através do outro (filhos, produções, pela sua obra, pelas recordações do que com ela foi vivido). Outra forma de considerar esse ponto é o desejo de continuidade, a aceitação da finitude biológica, terrestre, mas que a psique, a alma sobreviva. Ainda considerando que estão em contato com o tema, uma nova categoria foi elencada.

SOBRE A MORTE DO OUTRO

Alguns estudantes em contato com a morte do outro concebem essa experiência como aquela que suscita reflexões e questionamentos sobre a própria vida, a partir de elementos que surgem envolvendo a aceitação da possibilidade do próprio fim, da morte de um familiar com quem se tem um vínculo próximo, e da morte por suicídio vivenciada durante a graduação.

Toda vez que alguém morre, a reflexão que fica é para a gente aproveitar enquanto está vivo, porque depois que morre não adianta, acabou, acabou (E.21).

O contato com a morte do outro pode ser chocante, no entanto, mobiliza emoções adormecidas.

É um choque de realidade, porque às vezes pensamos que a morte nunca vai aproximar-se, é um engano (...) Difícil pensar sobre isso, eu acho que a gente aprende a dar valor na vida (E.19).

As fantasias de imortalidade se dissipam e os estudantes demonstram sentir e sofrer diante das perdas.

Antes eu achava que era um assunto mais fácil de lidar, mas aí quando você perde alguém que é muito próximo, é muito difícil... acho que talvez porque paramos para pensar. Como ele, (o avô) morreu. Beleza... estava com câncer, mas foi muito rápido, (E.16).

No entanto, é importante lembrar que a concepção sobre a morte e o morrer se dão de modo diferente em cada etapa no ciclo do desenvolvimento. Os estudantes que relatam sobre a perda de um familiar se referem a pessoas com mais idade, principalmente que vivem situações de adoecimento e sofrimento. Isso significa que compreendem e aceitam com mais facilidade quando a morte está atrelada à velhice ou ao adoecimento.

Representou muito o fim de um sofrimento, tanto um sofrimento físico quanto a um sofrimento psíquico (...) meu avô já estava a um tempo doente então foi uma coisa fácil de lidar (E.6).

Além disso, no início da vida adulta, as responsabilidades aumentam principalmente no âmbito social, profissional e afetivo, levando o sujeito a um cuidado e investimento maior nas tarefas da vida. Esse processo reforça a ideia da morte distante, afastada do presente e da sua possibilidade cotidiana, destaca Barbosa, Neme e Melchiori (2011).

Os estudantes que participaram dessa pesquisa vivenciaram durante o terceiro ano da faculdade uma situação de suicídio de um colega de sala. As entrevistas suscitaram a reflexão sobre o fato.

Ele (tio avô) já tinha uma certa idade, mais de setenta anos e a outra (tia avó) estava com Alzheimer, foi até um alívio ter parado o sofrimento todo que eles estavam passando. Já o menino da sala eu fiquei muito chocada porque ele se matou mesmo, ele era novo, tinha uns trinta anos. Eles (tio avós) tinham bastante idade então é uma coisa mais aceitável assim (E.12).

A possibilidade da morte para aqueles que são jovens, com sonhos e objetivos traçados na vida parece inaceitável.

Foi uma morte que ninguém estava esperando, porque ele era jovem e geralmente você pensa que quem vai morrer é uma pessoa velha e não uma pessoa jovem, tão novo com tanta esperança e acabou (E.3).

Outros aspectos importantes em relação aos estudantes, que mencionaram o suicídio, são as reações emocionais despertadas.

Com nosso colega de sala, eu acho que ficou um sentimento de impotência, por mais que não tivesse contato com ele. Saber que a pessoa estava sofrendo ali do seu lado e você não viu ou talvez se viu, não pode ou tentou fazer nada é difícil. (E.6).

Querendo ou não a gente se sente um pouco culpado, porque apesar de não ter contato com aquela pessoa, não conseguir perceber que ela estava precisando de ajuda é ruim... (E.15).

Fukumitsu e Kovacs (2016) apontam que a culpa, geralmente é um dos fatores que tornam o luto por suicídio penoso em virtude de ser uma morte que causa impacto e também pelo estigma carregado. Em um estudo realizado pelas autoras acima citadas com pessoas que vivenciam o suicídio dos pais, constatou-se que os enlutados, tentam, por meio de explicações, dar sentido para o fato, engendrar relações da morte com o adoecimento, ou vinculando-a ao desespero. Importante perceber que não se morre apenas por doenças físicas. O sofrimento e o adoecimento mental também matam.

Os estudantes que relataram sobre o suicídio do colega de sala mostraram-se chocados, impactados e inconformados, mesmo aqueles sem relacionamento próximo com ele. Isso significa que essa reação frente à morte, na fase jovem adulta, apresenta-se como adversidade e os estudantes se veem refletidos nessa interrupção do viver.

Assim sendo, compreendem a religião como uma forma de enfrentamento e conforto.

Eu acho que a religião ajuda bastante, a religião é uma forma de conforto, talvez ela não dê, com exceção de algumas religiões, nem todas vão dar uma resposta, o porquê da morte, porque acontece e o que tem depois, mas de certa forma, ela consola (E.4).

Sob essa ótica, reconhecem que a religião se apresenta como um recurso utilizável frente ao contato com a morte das outras pessoas. Um encontro pessoal com a realidade por essa via, conforme destaca Kovacs (2007). Com isso, a pesquisa mostra também que alguns estudantes, em seu enfrentamento, utilizam a religião pelo desejo de aliviar a dor causada pela separação.

Primeiro acho que você sente a dor de perder aquela pessoa, seja por causas naturais ou acidentais, sempre dói (...) ter uma religião, ajuda muito, ter fé em alguma coisa, rezar, orar, (...) cada um tem sua maneira de tentar acreditar que aquela pessoa está bem (E.8).

A religião traz um valor terapêutico com a possibilidade de lidar com as dificuldades que as perdas suscitam, considerando a imortalidade e trazendo nova possibilidade de vida. Um estudo pioneiro realizado por Torres (1986) destacou que a preocupação com o desconhecido e a vida após a morte diminui nos sujeitos intrinsicamente religiosos. À medida que aumenta sua crença na ortodoxia religiosa, uma perspectiva de futuro que ultrapassa a vida dos fenômenos terrestres, vai se constituindo e trazendo a esperança de um reencontro.

Vale a pena enfatizar que os estudantes que trazem essa questão à tona, não mencionam nenhuma denominação religiosa específica, nem tão pouco foram questionados com relação a isso. No entanto, isso significa que para alguns deles, a espiritualidade e o suporte de uma crença podem ser utilizados para lidar com as dificuldades da morte e do morrer.

Um estudo realizado por Barbosa e Leão (2012) sobre a influência da religião diante da morte e os recursos de enfrentamento utilizados pelos indivíduos revelou que, embora a religião desempenhe um papel relevante na elaboração do luto, ela se mostra insuficiente, sendo necessários outros suportes subjetivos. Os fatores relacionados à capacidade psíquica do enlutado em elaborar perdas parecem ser mais determinantes que a religiosidade.

Alguns estudantes percebem que ao entrarem em contato com a morte do outro, a capacidade de ter empatia e de obter crescimento pessoal se faz presente.

Se você não passar por essa experiência você nunca vai conhecer essa sensação, você nunca vai conseguir se colocar no lugar do outro de forma genuína e pensar sobre essas questões de finitude da vida (...) me tornei uma pessoa muito mais responsável, amadureci bastante (E.2).

Nesse momento, as representações do mundo interno e os aspectos relacionados ao investimento libidinal em si próprio, a onipotência, o isolamento, a dor e o medo por deixar de ser amado quando existe uma perda, a busca de proteção e refúgio em si e as diversas vivências narcísicas, dão lugar a percepção do outro em sofrimento, a uma postura mais altruísta, amadurecida, de revisão, de alteridade e de maior acolhimento à dor do próximo.

Uma das nossas reflexões foi: até onde estamos preocupados com o outro, até onde a presença do outro é importante, respeitar o outro, tanto que mudou minha percepção a partir da morte dele (colega). Eu comecei a ficar mais atento ao que estava acontecendo ao meu redor (...) fiquei mais sensível (E.4).

Entende-se, neste estudo, que os estudantes ao se aproximarem da morte do outro, têm seu narcisismo decrescido para dar lugar ao amor objetal, à capacidade de olhar e cuidar do outro.

Nessa direção, outro aspecto que obtém destaque entre alguns estudantes é o amparo e o apoio que têm que ter e oferecer quando vivenciam a morte de um familiar próximo. De acordo com os relatos, há necessidade de inibir alguns sentimentos em favor da realidade externa e daquele que precisa lidar com a perda.

Tive que amparar minha mãe e cuidar do trâmite burocrático do enterro, funerária, cemitério, essas coisas (E.10).

Minha posição na época foi de não sentir, de fazer... está tudo bem, vamos resolver, vamos fazer o que a gente puder (...) eu sentia que eu não podia sofrer tanto, tinha que conter para ajudar quem estava pior (E.17).

A morte é vista como aquela que propõe um novo olhar, mais amplo sobre a realidade interna e externa além de promover transformações significativas na vida da pessoa. "Essas experiências podem trazer amadurecimento, crescimento e a construção da identidade pessoal e profissional" do estudante, além da aquisição de novos recursos internos para lidar com o sofrimento psíquico (Cirino, 2013, p. 39).

SOBRE O MORRER

Os estudantes expressam e destacam a concepção do morrer como sendo:

[...] diferente da morte, mais objetiva. Morrer é subjetivo (E.2).

A gente pode morrer todos os dias em vários momentos, em várias coisas (...) é uma sensação de não ver mais graça na vida, parece que nada faz sentido, mas continua vivendo... acho que isso seria uma morte em vida. Finais de relacionamento, perder uma amizade, são exemplos disso (E.9).

Os relatos revelam que os estudantes compreendem além da morte concreta, do ponto de vista biológico, a existência de uma morte simbólica, do ponto de vista subjetivo, pessoal e íntimo, evocando a reflexão sobre a relação de finitude ao longo da vida. Constatam que o morrer pode estar relacionado a todos os momentos de perdas, rupturas e frustrações ao longo da vida, principalmente no que tange aos sentimentos de desesperança e desvalia em viver.

Morrer eu acho que é o fim (...) dos seus sonhos (...) de esperança, de tudo o que você fez, que você batalhou (E.3).

(...) acho que o morrer é quando você perde essa vontade de viver também (E.6).

Eu acho que a gente pode morrer estando em vida ainda (...) morre mentalmente, tem muita gente que apesar de estar vivo, ter tudo, morre (E.15).

Corroborando com essa ideia, Kovacs (1992) mostra que as várias fases do desenvolvimento são também experiências de morte em vida. São perdas por separações, mudanças de casa, de emprego, da infância para adolescência, da vida adulta para velhice e várias outras mortes simbólicas. A autora afirma que essas situações suscitam sentimentos equivalentes aos despertados pela morte biológica.

(...) acho que lido pior com as simbólicas do que com as concretas, se eu for pensar assim. Tive a perda de uma amiga que se distanciou de repente... tive que lidar com o fim e tive que aceitar isso, mesmo ela estando viva (E.13).

Vê-se que a dificuldade de lidar com as perdas simbólicas também é evidente, no entanto, depende da capacidade psíquica de representação de cada sujeito. Além disso, mostra-se latente a questão narcísica, pois o término pressupõe a perda da condição de ser amado. Isso significa que, segundo Campos (2013), uma perda atual é sempre ligada a um conjunto de fantasias inconscientes que ativam impulsos e defesas, desestabilizando o funcionamento dinâmico da estrutura da personalidade.

Do ponto de vista psicanalítico, a história de simbolizações de cada sujeito é que irá ressignificar os eventos traumáticos da vida e esse novo sentido poderá trazer um conjunto de fantasias e afetos inconscientes. Isso expressa o porquê de algumas perdas serem tão disruptivas em relação a outras (Campos, 2013). Ou seja, alguns estudantes concebem o morrer como parte dos processos mórbidos e autodestrutivos que vivenciam durante a vida, nem sempre de modo consciente. Com isso, o rompimento de vínculos incita processos de mudança que necessitam de recursos psíquicos singulares.

Outro aspecto semelhante e importante envolve a concepção do morrer enquanto um processo.

Morrer é você vivenciar a morte, é falar de morte como uma experiência. (E.7).

Como se tivesse alguém morrendo, morrer parece que está acontecendo (E.13).

A pessoa vai morrendo e acho que é por etapa sabe, vai degradando (E.20).

Com esse relato, nota-se que o morrer também remeteu a morte em vida em uma perspectiva simbólica, no entanto, indica também que a palavra morrer suscitou em alguns estudantes a ideia de movimento e continuidade, como se estivessem vivenciando o morrer em vida de algum modo. Neste momento, questiona-se se a noção de movimento dos estudantes se refere às sucessivas perdas simbólicas passadas ao longo da vida ou se trata de uma morte iminente, como o morrer de um doente terminal. De qualquer modo, embora a ideia seja de movimento, retratam um morrer que deteriora e adoece, que caminha para o fim, antes mesmo dele efetivamente ocorrer.

[...] eu acho que a questão da alma, a alegria, a felicidade, as coisas morrem, né, mesmo antes dessa morte física, né (E.4)

Observa-se, nessa categoria temática, que os estudantes acreditam que, de certo modo, simbolicamente é possível vivenciar e reagir frente ao morrer a partir das experiências de términos e encerramentos vividos. São momentos que trazem aproximação da ideia da morte e que demandam elaborações internas e recursos psíquicos análogos ao contato com a perda, muitas vezes apresentando-se de forma mais complexa e intensa.

INTERFACE COM A PROFISSÃO DO PSICÓLOGO

Quanto à relação sobre morte e morrer com a profissão do psicólogo, a maioria dos estudantes consideram que o assunto é pouco estudado na faculdade e que existe necessidade de ampliar e abordar mais o tema nos espaços acadêmicos.

Esse é um tema que precisa ser muito mais discutido, acho que quando a gente fala sobre a vida, sobre a morte, sobre ciclos, sobre começo, meio e fim deveria ter alguma discussão, introduzir mais esse tema na faculdade (E.2).

Compreende-se que a necessidade de ter mais conhecimentos sobre a temática pode estar relacionada ao receio dos estudantes em lidar com pacientes com esse tipo de sofrimento, solicitando mais informações.

Durante o curso a gente não tem muito contato com esse tipo de assunto, é um assunto mais delicado, então eu acho que os estudantes têm um pouco de receio, ainda mais com os pacientes, mas é importante a gente ter esse conhecimento (E.7).

Infere-se, também, que o enfrentamento da morte e do morrer, entre outros aspectos, está relacionado ao quanto essa temática pode ser expressa ou comunicada e a ausência dela nos espaços acadêmicos favorecem e reforçam as defesas frente ao tema, como a negação apresentada em outras categorias.

Além disso, todos os estudantes entrevistados atendem na clínica-escola e o estágio neste contexto gera questionamentos, angústias e incertezas. As inquietações e inseguranças, tanto da prática profissional quanto do sofrimento manifestado pelos pacientes e o manejo necessário para cada situação, tornam-se mais intensas no quinto ano. Estão relacionadas tanto a conhecimentos "teóricos adquiridos ao longo do curso, que em certa medida mostram-se distintos na prática, quanto a habilidades pessoais e relacionais, visões de mundo e demais aspectos subjetivos que ressoam no trabalho" (Kichler & Serralt, 2014, p. 63). Tais conflitos e aspectos foram observados neste estudo, e influenciam as concepções dos estudantes sobre a morte e o morrer.

Alguns estudantes apontam que, no atendimento em clínica, espera-se que o psicólogo tenha sensibilidade para com o que o paciente compartilha.

Nós lidamos muito com o luto dos outros, isso sempre nos faz pensar, sentir com o paciente o que ele vive, significar, separar o que é da vida dele e o que é da nossa e colocar em palavras... as pessoas nos tocam (E.11).

Infere-se com isso que a maioria compreende ser importante a interface morte, morrer e psicologia, pois considera esses assuntos inerentes ao trabalho do psicólogo. A maioria cita a clínica, porém são situações ocorridas em todos os contextos, seja na escola, na faculdade, na empresa, nas comunidades, a morte está sempre presente. No entanto, concebem a morte de si na primeira categoria como distante, preferindo negá-la por suscitar medo. Isso significa que os estudantes se contrapõem, pois, embora eles tenham que lidar profissionalmente com a questão apresentada como inerente, pessoalmente preferem não pensar.

É algo muito importante, porque muitas pessoas nos procuram, nos momentos de luto, de perda, de sofrimento, (...) acho que o tempo que a gente debate sobre isso é restrito, pela extensão do tema e pelo quanto vamos lidar com isso (E.8).

Observa-se aqui que, além da necessidade de o estudante conhecer sobre a morte, o luto e as reações frente à perda no tratamento do outro, evidencia-se a necessidade do próprio conhecimento sobre as emoções suscitadas quando em contato com a temática. A busca e exigência do debate desse tema parecem ser para ajudar o outro, mas, sobretudo, para ajudar a si próprio.

O estudante de psicologia é o futuro profissional que lidará com o sofrimento humano, permeado de representações. Estudos feitos por Cambuí e Neme (2014) acerca do sofrimento psíquico contemporâneo no imaginário coletivo de estudantes de psicologia, tiveram como um dos campos de sentido o encontro humano com o outro, em que a representação do sofrimento se constitui como algo próprio do ser. Ou seja, neste encontro, um sujeito reconhece no outro sua própria humanidade, fragilidade e vulnerabilidade. As autoras concluem o estudo considerando que "o conjunto de análises permitiu a apreensão de um imaginário coletivo no qual o sofrimento humano é constituído, essencialmente, por situações de solidão, desamparo, angústias, impotência, futilidade e vazio existencial" (Cambuí & Neme, 2014, p. 87). Esses aspectos se mostram presentes nessa pesquisa, uma vez que os estudantes ao entrarem em contato com a morte também apresentam sentimentos semelhantes, o que caracteriza uma identificação no sofrimento do outro frente à finitude.

Como condição premente para que o trabalho do psicólogo aconteça no sentido de auxiliar ao outro, os estudantes ressaltam a importância de o profissional cuidar de si e de desenvolver recursos internos como a condição de ouvir, sentir, pensar, e elaborar seus próprios lutos.

Eu acho que a gente lida com a morte todo dia, a morte de um sentimento, a morte da relação que a pessoa traz, eu acho que há mortes que a gente tem que ter para atender alguém, a gente tem que matar nosso lado julgador para estar ali, com aquela pessoa. (E.13).

Para tanto, há a necessidade dos futuros e atuais profissionais estudarem, com profundidade o assunto, de sucessivas aproximações com os processos de vida e morte pessoais, assim como as ansiedades despertadas frente à finitude. Desta forma, ajudar nossos semelhantes a se familiarizarem com tais conceitos e vivências se tornará consistente e significativo, diz Kubler-Ross (1981/2012).

Neste trabalho não é questionado se os sujeitos se submetem a psicoterapia pessoal, todavia,

O psicólogo precisa estar bem resolvido (...) avaliar a própria estrutura psicológica para aceitar ou não, acompanhar situações sobre morte. (E.21).

Kichler e Serralt (2014) investigam as percepções de universitários sobre a psicoterapia pessoal e sua influência na formação de psicologia e constatam que a busca por psicoterapia complementa a formação e promove o autoconhecimento, auxiliando na compreensão e escuta intersubjetiva, além de unir a teoria com a prática.

Desse modo, os estudantes em formação, quando em contato com o sofrimento inerente a perdas e morte, devem manter-se atentos aos seus conteúdos pessoais, discernindo os limites necessários que viabilizem uma melhor observação e escuta, de si e do outro. Infere-se que os estudantes diante do conflito de negar e temer a morte pessoalmente e ter que enfrentar seus próprios lutos e dificuldades para lidar com o tema profissionalmente, encontram na psicoterapia e na avaliação do próprio mundo interno, uma saída para compreender a temática e comunicar o interdito.

RISCOS E PRESERVAÇÃO DA VIDA

Nessa última temática evidenciam-se as concepções que os estudantes têm em relação aos cuidados da saúde e qualidade de vida. Observa-se que os estudantes percebem os diversos riscos a que estão expostos e que, com isso, eles preservam a vida com cuidados preventivos e hábitos saudáveis.

Procuro ter hábitos saudáveis, principalmente na alimentação [...] eu tento comer bem, exercício físico (...) a terapia eu acho que é uma coisa que ajuda muito a viver melhor, ter mais qualidade de vida (E.6).

Eu me cuido, já fiz academia, faço exames constantes, tudo que é necessário, não bebo, não fumo (E.21).

Inferimos com isso que os estudantes referem cuidar dos aspectos biológicos e psicológicos, apresentando o desejo de viver com mais qualidade, de obterem equilíbrio, mas sem exageros. Dizem buscar a preservação da vida e identificam quando não estão se cuidando adequadamente, procurando reverter a situação. Não se percebem atualmente em risco, no entanto, não é possível dimensionar se estão em negação, racionalização ou se, de fato, não se expõem a situações graves neste sentido.

Desse modo, identifica-se que os alunos concebem que não há controle sobre a morte, que mesmo cuidando-se, a vida não é garantida.

Acho que quando tem que acontecer, não tem como teoricamente, você evitar, é possível prevenir. Mas eu acho que quando tem que morrer você vai morrer e ponto (E.16)

Consideram que podem ter uma boa qualidade de vida e que possuem uma parcela de responsabilidade pela preservação dela, mesmo conscientes, nesse contexto, da própria finitude.

 

DISCUSSÃO

Na primeira categoria "Sobre a morte de si mesmo", a pesquisa mostra que, embora os estudantes de psicologia concebam a morte como inevitável, fazendo parte do fim de um ciclo natural, vital, e com consciência da possibilidade do morrer, ainda assim preferem não pensar e se questionam sobre o que ocorre após esse fenômeno, considerando a morte como uma passagem para outra vida, com intenso temor. Expressa-se nessa categoria que a morte de si foi pensada e imaginada como distante e, talvez, por esse motivo as falas reflitam a negação e o medo diante dessa possibilidade. A partir desse contato com o desconhecido, alguns constatam a crença na continuidade da vida, o que ratifica o aspecto adaptativo da negação e o distanciamento da perspectiva de finitude.

Por outro lado, com a segunda categoria "Sobre a morte do outro", constata-se que nos relatos dos estudantes estão presentes reflexões e questionamentos sobre a própria vida, a partir da morte do outro, que confirmou a crença na ideia da morte atrelada ao envelhecimento e a doença física, em detrimento da possibilidade de morrer a qualquer tempo. Uma nova aproximação com a temática inicia-se nesse momento da pesquisa, pois pensar ou imaginar a possibilidade da morte do outro, mostra-se mais confortável e agradável do que falar sobre a própria morte. De modo geral, constata-se que a morte do outro traz a possibilidade de relativo aprendizado, questionamento e reflexão sobre a própria vida e finitude e que a religião, no contexto de perdas, representa um recurso de enfrentamento e conforto.

Além disso, há destaque também para a morte de outras pessoas, envolvendo o suicídio do colega de sala e os sentimentos de culpa e impotência gerados. Observa-se nos relatos que há um processo de identificação e a dificuldade de aceitação é mais complexa em detrimento das perdas familiares relatadas por adoecimento ou velhice. Com isso, mesmo os sem vínculo afetivo com o estudante que cometeu suicídio, sentem a perda e passam a ficar mais atentos ao outro em sofrimento. Aspectos narcísicos afastados dão espaço aos altruístas, possibilitando amadurecimento pessoal e estimulando a capacidade de cuidado e atenção ao próximo. São relembradas histórias de vida, com relatos que revelam dificuldades e obstáculos enfrentados frente a morte do outro, que exigem atitudes de acolhimento com relação aos que sofrem intensamente com a perda. Isso indica que a partir da morte do outro é possível reagir e enfrentar o sofrimento inerente a esse processo, tanto pensar quanto sentir.

Na terceira categoria "Sobre o morrer", a concepção dos estudantes perpassa o caminho do simbólico e subjetivo, expressando a existência de uma morte em vida e de experiências ao longo desta que são análogas ao morrer, como os processos de separação e as perdas; vivências que tecem sentido e valor à própria vida e às relações. Observa-se que os estudantes admitem o morrer com a ideia de movimento e processo, que representam as experiências de perdas e rompimento de vínculos vividos ao longo da vida e que demandam recursos psíquicos singulares no modo como cada um reage às mortes simbólicas.

A partir disso, a pesquisa mostra que definir e diferenciar as palavras morte e morrer não é precondição para compreender a finitude, haja vista que são palavras que embora distintas, estão interligadas e fazem parte de um mesmo fenômeno. Entretanto, o objetivo de pensar de modo diferenciado nestes dois termos, é analisar em que medida há a percepção entre morte como processo biológico e espiritual e o morrer na perspectiva subjetiva e simbólica. Verifica-se que os estudantes constatam que morrer e morte não são sinônimos, mas eventos distintos, separados e interligados. Neste ponto das entrevistas, revela-se nos relatos a reação de sentir a perda, a angústia dos entrevistados e o envolvimento com as dores inerentes e a aproximação das emoções suscitadas pelo tema.

Na quarta categoria "Interface com a profissão do psicólogo" analisa-se que as questões sobre a morte e o morrer estão intrinsicamente relacionados à psicologia, sendo apresentados como inerentes à prática profissional nos mais diversos contextos. O sofrimento decorrente de perdas, encerramentos, do fim, é intrínseco ao ser humano e compõe o campo de encontro entre o psicólogo e a outras pessoas que o procuram. No entanto, a análise constata a aproximação sutil da aceitação da morte, uma vez que os estudantes se contradizem ao relatar que preferem não pensar em relação a própria morte, mas consideram intrínseco o tema ao trabalho do psicólogo.

Além disso, alguns estudantes relatam acerca da necessidade de o tema ser mais abordado e sua discussão ampliada nos cenários acadêmicos, pois constata-se que a proposta de pensar e refletir sobre a temática promove o contato com os lutos e as dificuldades pessoais dos estudantes, possibilitando uma aproximação da questão da morte e do morrer e das repercussões que a finitude traz para si e para o seu trabalho. Observa-se que a necessidade de discutir mais sobre o tema reflete o desejo dos estudantes expressarem e comunicarem suas próprias dificuldades em relação à finitude, e que a negação inicial de falar sobre o assunto possa se transformar e, com isso, viabilizar a exposição de suas experiências para que lhes seja possível falar abertamente sobre suas angústias e temor frente à ideia da morte.

Desse modo, na quinta e última categoria "Os riscos e a preservação da vida" a concepção dos estudantes perpassa pelos cuidados com a própria saúde de modo a prevenir-se dos possíveis riscos e adquirir hábitos saudáveis. Os estudantes entendem que os cuidados preventivos são importantes e reconhecem sua parcela de responsabilidade pela própria vida, no entanto, enfatizam que isso não exclui a realidade de um fim. Nesse contexto, os estudantes puderam constatar, que embora se defendam da possibilidade da finitude e de todas as reações expressas frente à morte de si e do outro, é importante ter prudência com alguns modos de vida e manter a prática do exercício do autocuidado, de modo geral, evitando riscos.

Enfim, constata-se que os estudantes, embora se aproximem da sua própria morte com negação e temor, eles estabelecem relação entre a psicologia e os processos de vida e morte e apontam a necessidade desse assunto ser mais abordado na academia, e do psicólogo cuidar desses aspectos na sua psicoterapia ou análise pessoal para auxiliar de modo genuíno o outro em sofrimento por perdas.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Comumente a reação frente ao assunto morte e morrer é complexa e singular, porém a realização desta pesquisa possibilita aos estudantes envolvidos sucessivas aproximações e expressões de seus sentimentos, pensamentos, angústias, recordações, experiências de vida e com a morte, possibilitando a compreensão de como lidam e reagem com relação ao contato com o tema finitude.

Nesse sentido, pensa-se que o fato de os estudantes estarem, no momento desse estudo, no fim da graduação e em processo de elaboração de um término, a identificação está implicada na sua concepção sobre a morte e o morrer. Talvez os relatos fossem diferentes se a pesquisa fosse realizada com estudantes do início da graduação ou profissionais recém-formados, o que possibilitaria novas concepções, olhares e reflexões sobre o tema. Isso significa que as defesas apresentadas frente ao contato com o tema podem ser diferentes de acordo com o momento e contexto em que se vive.

Com isso, questiona-se como o tema pode ser dialogado nos espaços acadêmicos de modo que os estudantes possam falar abertamente, reduzindo o interdito sobre a morte? Que estratégias podem ser pensadas para dirimir as angústias e temores frente ao tema no processo de formação em psicologia? Seria a análise pessoal uma forma de possibilitar a expressão de sentimentos que influenciam no enfrentamento da morte? Essa compreensão pessoal facilita nossa tarefa, enquanto psicólogos, de educar para a morte e ampliar a discussão e transformação de atitudes frente à morte e o morrer?

Diante disso, as análises presentes nesse trabalho apontam para aqueles encontrados na literatura sobre a temática. Contudo, os questionamentos suscitados pela pesquisa sugerem a produção de outros estudos e novas releituras podem ser desenvolvidos a partir do material coletado, ampliando os limites do presente estudo e aprofundando os conhecimentos sob a luz de outras correntes psicológicas, filosóficas, culturais e sociológicas.

 

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Recebido em: 18/02/2017
1ª revisão em: 30/03/2018
Aceito em: 26/05/2018

 

 

AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem ao Núcleo Integrado de Pesquisa e Extensão (NIPEX) da Universidade de Marília (UNIMAR) pelo financiamento da pesquisa durante o Programa Institucional de Iniciação Científica (PIIC) no período de 2016-2017. Agradecem, ademais, os estudantes do quinto ano da graduação em Psicologia da instituição em 2016 pelo apoio na colaboração com a pesquisa.
CONFLITOS DE INTERESSE
Não há conflitos de interesse.
SOBRE OS AUTORES
Vitor Costa Ramos é acadêmico do curso de Psicologia da Universidade de Marília (UNIMAR).
vitor.crramos@gmail.com
Adriana Aparecida de Oliveira Godoi Cirino é psicóloga pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Mestre em Ensino em Saúde pelo Programa de Pós-Graduação em Ensino em Saúde da Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA). Docente do curso de Psicologia da Universidade de Marília (UNIMAR).
adrianagodoicirino@gmail.com
A contribuição de cada autor pode ser atribuída como se segue: ambos os autores contribuíram para a conceitualização, investigação e visualização do artigo e foram responsáveis pela obtenção de financiamento; VCR fez a redação inicial do artigo (rascunho) e AAOGC foi responsável pela redação final (revisão e edição).

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