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Analytica: Revista de Psicanálise
versão On-line ISSN 2316-5197
Analytica vol.5 no.8 São João del Rei jun. 2016
ARTIGOS
Origens da psicossomática e suas conexões com a Medicina na Grécia antiga
Origins of Psychosomatic and their connections with the Medicine in Ancient Greece
Origines de psychosomatique et leurs liens avec la Médecine en Grèce antique
Orígenes de la psicosomática y sus conexiones con la Medicina en la antigua Grecia
Leonardo Tadeu José de Lima
Discente do curso de Psicologia da Universidade Paulista (UNIP), Campus Sorocaba, com interesse em pesquisa de base psicanalítica. ltls15@hotmail.com
RESUMO
A origem da Psicossomática pode ser remontada a Hipócrates, mas a compreensão moderna em tal área tem seu início no começo do século XX, a partir dos estudos de Georg Groddeck e Sandor Ferenczi e, posteriormente, uma fundação oficial, nos EUA por Franz Alexander. Objetivou-se com este estudo uma revisão bibliográfica no sentido de analisar se os caminhos tomados até o nascimento da Psicossomática dos nossos tempos foram capazes de resgatar o que se praticava como Medicina na Grécia Antiga. Para tanto, a presente pesquisa percorreu os pensamentos desenvolvidos por Groddeck; depois averiguou-se as teses desenvolvidas por Sandor Ferenczi e os desdobramentos posteriores da Psicanálise americana. Por fim, foi proposta uma discussão a respeito das implicações desses pensamentos, concluindo-se que a corrente americana carrega pressupostos da Biomedicina moderna, enquanto Groddeck é o responsável pelo maior resgate da Medicina grega, por meio das noções de simbolização, interpretação e da indistinção entre mente e corpo.
Palavras-chave: Psicossomática; Medicina; Hipócrates; Alexander; Groddeck.
ABSTRACT
The origin of Psychosomatic can be traced back to Hippocrates, but the modern understanding in this area has its beginning in the early twentieth century, from the studies of Georg Groddeck and Sandor Ferenczi, and later an official foundation in the USA by Franz Alexander. The objective of this study, a literature review in order to analyze if the paths taken to the birth of Psychosomatic of our times were able to rescue what was practiced as Medicine in ancient Greece. Therefore, this research has come the thoughts developed by Groddeck. Then it was examined the theses developed by Sandor Ferenczi and the further unfolding of the American Psychoanalysis. Finally, it proposed a discussion of the implications of these thoughts, concluding that the USA current carries assumptions of modern Biomedicine, while Groddeck is responsible for the largest rescue of Greek Medicine, through notions symbolization, interpretation and lack of distinction between mind and body.
Keywords: Psychosomatic; Medicine; Hippocrates; Alexander; Groddeck.
RÉSUMÉ
L'origine de psychosomatique peut être retracée à Hippocrate, mais la compréhension moderne dans ce domaine a son début dans le début du XXe siècle, à partir des études de Georg Groddeck et Sandor Ferenczi, et plus tard, une fondation officielle aux États-Unis par Franz Alexander. L'objectif de cette étude, une revue de la littérature afin d'analyser si les chemins empruntés à la naissance de psychosomatique de notre temps ont été en mesure de sauver ce qui était pratiqué la médecine dans la Grèce antique. Pour ce, cette recherche est venu les pensées développées par Groddeck. Après il a été établi la thèse développée par Sandor Ferenczi et le déroulement ultérieur de la Psychanalyse américaine. Enfin, il a proposé une discussion sur les implications de ces réflexions, en concluant que le courant des États-Unis porte hypothèses de la biomédecine moderne, tandis que Groddeck est responsable de la plus grande sauvetage de la médecine grecque, à travers les notions de symbolisation d'interprétation et de l'absence de distinction entre l'esprit et le corps.
Mots-clés: psychosomatique; Médecine; Hippocrate; Alexander; Groddeck.
RESUMEN
El origen de la psicosomática puede remontarse a Hipócrates, pero la comprensión moderna en esta área tiene su inicio a principios del siglo XX, a partir de los estudios de Georg Groddeck y Sándor Ferenczi, y más tarde una fundación oficial en los EE.UU. por Franz Alexander. El objetivo de este estudio, una revisión de la literatura con el fin de analizar si los caminos tomados al nacimiento de Psicosomática de nuestro tiempo fueron capaces de rescatar lo que se practicaba como medicina como en la antigua Grecia. Para esto, esta investigación ha llegado a los pensamientos desarrollados por Groddeck. Después de que se estableció la tesis desarrollada por Sandor Ferenczi y el despliegue adicional de la psicoanálisis americano. Por último, se propone una discusión de las implicaciones de estos pensamientos, concluyendo que la corriente de Estados Unidos lleva supuestos de la biomedicina moderna, mientras que Groddeck es responsable del mayor rescate de la medicina griega, a través de las nociones de simbolización de la interpretación y la falta de distinción entre la mente y el cuerpo.
Palabras clave: Psicosomática; Medicina; Hipócrates; Alexander; Groddeck.
Os fenômenos psicossomáticos dão origem a uma problemática médica frustrante, tanto para o paciente, não correspondido em sua esperança de cura, quanto para os médicos, que não encontram meios de atender às demandas desses pacientes na perspectiva tradicional. Essa frustração geralmente é combatida de duas maneiras: pela desistência de tratar, em especial por vias de encaminhamentos, reacendendo a experiência do desamparo infantil nos pacientes (Volich, 2013, p. 324), ou pelo uso indiscriminado de remédios, que silenciam o problema (e o sujeito), mas que, muitas vezes, não eliminam o sofrimento (Morais et al., 2008; Santos & Martins, 2013).
Ainda hoje, faz-se necessária a difusão da consideração desses processos afetivos do adoecer, pois, mesmo quando se considera a possibilidade da influência das emoções na saúde, de modo geral, os profissionais ainda não conseguem se desvincular da epistemologia fisiológica; ou a substituem radicalmente por concepções psicogenéticas que, no fim das contas, também levam a um tratamento medicamentoso.1 (Morais et al., 2008. Santos & Martins, 2013.). Esses limites são marcados por uma dificuldade metodológica histórica para abordar tais fenômenos, precisamente, pelo fato de que eles parecem ocorrer tanto no âmbito psíquico (presumivelmente de "responsabilidade" do psicólogo) quanto no orgânico (a "área" médica). Essa divisão por especialidades, ao contrário da crença geral, não existia na origem grega da Medicina (Volich, 2013, p. 23 et seq.). Basta apenas um pequeno passeio por alguns autores da Grécia Antiga para perceber que não era costume o estabelecimento de limites epistemológicos. Por exemplo, o tratado hipocrático ares, águas e lugares, citado por Ivan Frias (2004), poderia ser considerado, segundo o autor, mais do que um tratado médico, um estudo antropológico. Esse tratado estabelece influências da geografia física e da política sobre a saúde e o caráter do homem, apontando diferenças entre os povos de regiões da Grécia e do resto da Europa. Portanto, estendendo-se para a "área" da Geologia, Sociologia e Psicologia, "estabelecendo, pela primeira vez na história da cultura ocidental, a relação entre physis e nómos, entre natureza e cultura" (ibid, p. 64).
Como nos aponta Frias (2004), a Medicina grega é precedida pela Filosofia, mais precisamente, os físicos.2 Alcméon de Crotona, no século V a.C., foi o primeiro a defender que o cérebro é a origem das sensações e que a saúde é o resultado do equilíbrio entre forças, tais como úmido/seco, frio/quente, etc. Empédocles de Agrigento, também no século V a.C., defende que a natureza é constituída de quatro elementos primordiais: terra, fogo, água e ar, que se atraem e se separam de acordo com dois outros princípios cosmogônicos: o amor e o ódio. Empédocles se vale desses princípios para explicar a natureza, mas também o homem, sendo o primeiro a explicar a fisiologia da respiração e da visão. Além disso, construiu uma teoria da inteligência, atribuindo ao princípio dos semelhantes a origem da sabedoria que, tal como as sensações, sabe pela semelhança elementar com o sabido (amor) e ignora o dessemelhante (ódio) (p. 19-32).
O chamado corpus hippocraticum3 tem grande influência desses pensadores, porém, há nele uma "interiorização das causas das enfermidades" (Frias, 2004, p. 53). Já havia, segundo Volich (2013), na concepção da saúde e da doença como fenômenos naturais, a "possibilidade de o homem ser responsável por sua doença" (p. 27), sendo assim, a concepção de causas internas aproxima o homem ainda mais dessa autorresponsabilização, uma vez que suas origens se encontram naquilo que lhe é próprio. Inspirado em Empédocles, mas não lhe sendo totalmente fiel, a concepção hegemônica da natureza do homem no corpus hippocraticum é a doutrina dos humores, na qual se concebe que o homem é constituído de quatro humores: sangue, flegma, bile amarela e bile negra que devem estar distribuídos quantitativa e qualitativamente pelo corpo e misturados harmoniosamente para se manter o estado de saúde (Frias, 2004, p. 53). Deve-se esclarecer que, ao contrário da ciência moderna, a Medicina, originalmente, construía doutrinas simbólicas. Como explica Frias (2004, p. 41):
As descrições hipocráticas são, para Laënnec (1823),4 comparáveis às fórmulas da álgebra: destinadas a representar as incógnitas. As palavras traduzem uma realidade desconhecida e que é compreendida pelo médico grego por meio de seu sistema de doutrinas, mas as descrições revelam uma autonomia, os sinais clínicos adquirem um caráter simbólico que pode ser apreendido por um outro sistema teórico. (itálico meu)
Ou seja, as descrições gregas não podem ser desmentidas simplesmente pela "descoberta" posterior de que não existem, fatualmente, os tais humores no interior do homem. Essa constatação nos permite perguntar se o caráter interpretativo dos diagnósticos e anamnese clássicos continham uma profundidade que foi obscurecida pela técnica moderna. Mais adiante, Frias (2004, p. 62) amplia este ponto ao afirmar que
quando o autor do tratado Da arte confere à inteligência o poder de captar o que está oculto nas profundezas do corpo, está implícito que a abordagem clínica não se esgota na visibilidade. Os fenômenos observados precisam ser interpretados, pois ver a profundidade "é tornar o que se vê evidentemente não pelo ser, mas por um reflexo do ser, por um sinal".5 (itálico meu)
Enfim, encontramos no corpus hippocraticum uma doutrina preocupada com os doentes, mais do que com as doenças (Frias, 2004, p. 47), que trata do corpo sem deixar de cuidar da alma, pois tal distinção não está estabelecida. Por isso, a reflexão sobre a loucura é posta pela mesma doutrina que explica o corpo (p. 72). Tal distinção, na verdade, ainda segundo Frias (2004), é feita por Platão que, no Timeu, apresenta sua metafísica da criação do mundo pelo Demiurgo e volta a descrever a doença e a saúde a partir de princípios externos, embora tenha sido um exímio leitor dos tratados médicos. O texto percorre o caminho platônico da criação do mundo, que objetiva apresentar uma doutrina médica baseada em sua metafísica (p. 79 et seq.). Frias (2004) demonstra que, para Platão, a alma do homem e seu corpo são cópias imperfeitas da alma e do corpo do mundo. Por esse motivo, o corpo morre por estar sujeito ao devir das coisas sensíveis, uma vez que sua criação é feita pelo empréstimo das partículas que constituem a matéria, mas a alma permanece (p. 113). Dessa forma, o olhar dualista de Platão foi que sedimentou o corpo e a alma. O dualismo platônico, no entanto, permite relações entre a alma e o corpo, na medida em que a alma, em suas múltiplas divisões, se localiza no corpo. A alma imortal, criada pelo próprio Demiurgo, é a alma racional que dirige o corpo, está localizada na cabeça e domina as outras duas divisões da alma, que são mortais. Essas foram criadas pelos astros-deuses, filhos do Demiurgo, colocadas uma no tórax e outra no abdome e separadas da primeira pelo pescoço para protegê-la de suas paixões fatais (p. 114-115); a do tórax é a alma irascível, portadora da "coragem e do ardor guerreiro" (Platão, 1977, citado por Frias, 2004, p. 115); a do abdome é a alma concupiscente, portadora dos "desejos e deve seguir o comando das duas categorias superiores" (FRIAS, 2004, p. 114). Já no dualismo de René Descartes, em O discurso do método, "o corpo seria um autômato puro, uma máquina que se moveria por si mesma" (Volich, 2013. p. 49) e a alma, corresponderia apenas ao que Platão concebia como a alma racional.
Podemos perceber, assim, um movimento histórico contraditório. Hipócrates considerava o homem como um todo, afirmando que "nada é demasiado insignificante para ser registrado... nada que emane do paciente pode ser ignorado" (Hipócrates, citado por Sousa & Sousa, 1996, p. 33). O grego considerava todas as formas possíveis de tratamento, tendo efetuado curas por meio de tratamentos que abarcam aspectos claramente psicoterapêuticos, de modo que Sousa e Sousa (1996) o consideram como uma origem comum entre Medicina e Psicoterapia; disciplinas que se dividiram graças ao surgimento da modernidade, época em que se questionou veementemente as autoridades medievais e se buscou metodologias mais objetivas na investigação científica. Essas tentativas e o aumento da prática da dissecação dos corpos, proibida na Idade Média, marcaram a Medicina pela ênfase no aspecto anatomofisiológico do corpo e por uma mecanicidade fruto do dualismo cartesiano. Tendência que, segundo Volich (2013), produz frutos até hoje (p. 48-68).
Da mesma forma, com a migração dos estudos psicanalíticos em Psicossomática para os EUA, cresceu, no país, o interesse em outras áreas sobre o assunto, tendo sido efetuadas inúmeras pesquisas, em sua maioria para encontrar explicações biológicas para esses fenômenos (Volich, 2013, p. 123-141). A compreensão da Psicossomática em termos puramente fisiológicos e nervosos, que daí se segue, devolve para a discussão da relação mente/corpo uma visão técnica e orgânica de homem comum na Biomedicina moderna (Santos & Martins, 2013).
É seguindo esse caminho que se pretendeu, com a presente pesquisa, uma revisão bibliográfica que traga à luz os esforços em elucidar as dinâmicas, o desenvolvimento e as interligações da questão, de modo a refletir se o surgimento da chamada ciência Psicossomática, com suas raízes psicanalíticas, foram capazes de resgatar o que se praticava como Medicina na Grécia Antiga no enfrentamento das doenças atuais. Para tanto, buscou-se resgatar os modos explicativos para responder tais questões, resultantes de dois diferentes modelos originais de compreensão desses fenômenos, representados pelos pensamentos de Franz Alexander e Georg Groddeck.
Dadas as diferenças teórico-culturais tão vastas entre as posições, fez-se necessário uma apreensão particular de cada constructo teórico para depois constituir uma possível correlação, entendendo que uma leitura unificante das teses levantadas sem se considerar os berços culturais na qual eles se constituíram não seria satisfatória, em especial quando se leva em conta o caráter contraditório entre elas.
Abrindo caminhos...
Para Volich (2013, p. 47), com o avanço da Medicina moderna "mergulhando nas entranhas do corpo, esperou-se ali encontrar as respostas para todos os enigmas da vida, do funcionamento do organismo e mesmo para a compreensão do pensamento, dos afetos e da vontade humana". Já desde 1895, antes mesmo de entrar em contato com a Psicanálise, Georg Groddeck (1994, citado por Santos E Martins, 2013), médico alemão, formulava grandes críticas a essa tendência em Medicina que, segundo ele, acabava por dar ênfase à doença e não ao doente:
A ciência que lá [na universidade] se ensina não conhece doentes, somente grupos de doenças. Não conhece o indivíduo, conhece apenas casos. Não sabe nada de diagnóstico pessoal, ensina o diagnóstico em palavras, nomes de doenças. Nada suspeita de tratamento individualizador do ser humano, mas ensina o remédio contra as doenças. Ela ensina erudição, mas nenhum saber-fazer (p. 14).
Dessa forma, na contramão da Medicina de sua época, Groddeck foi o primeiro a fazer um estudo e, principalmente, uma prática médica Psicossomática. Por isso, Volich (2013) o considera como o pai da psicossomática moderna, embora, como veremos, haja contrariedades a essa definição.
Na universidade, Groddeck conheceu o Dr. Enst Schweininger, seu professor preferido, conhecido pelo seu caráter tirânico (Grotjahn, 1981b, p. 351). Seguidor da Medicina hipocrática, Schweininger lhe ensinou a reconhecer a primazia da natureza diante da ciência médica com um lema cujas sílabas iniciais seriam, em 1913, título de um livro pioneiro de Groddeck: "Natura sanat, medicus curat" [a natureza cura, o médico trata] (Avila, 1997, p. 46). Inspirado no exemplo do professor, Groddeck construiu uma postura médica severa, mas por trás dessa postura ocultava uma polidez contida (Grotjahn, 1981b, p. 352). Essa ambiguidade e sua íntima relação com Lina, sua única irmã, mais próxima em idade e companheira de brinquedos, ajudaram-no "a entender a natureza bissexual do homem, a inveja da gravidez nos homens, a criatividade e como ser um bom terapeuta - um 'mãe-pai.'" (Grotjahn, 1981b, p. 351). Depois de se casar, Groddeck se mudou com a família, de Berlim, para Baden-Baden e tornou-se proprietário de um pequeno sanatório criado por Schweininger. Ali começa a fazer uso de métodos alternativos para cuidar dos pacientes, controlando as suas rotinas e receitando dietas e massagens, aplicadas, muitas vezes, por ele mesmo. Ainda insatisfeito, continuou a buscar maneiras mais eficazes de auxiliar na cura de seus pacientes até chegar aos métodos psicológicos (Grotjahn, 1981b, p. 352).
Quando começou a refletir a respeito dos simbolismos relacionados às doenças, sem saber, estava se aproximando da Psicanálise (Grotjahn, 1981b). Mas somente em 1917 mandou a sua primeira carta para Freud, na qual reconhece que este o precedeu no método, porém reivindica que a noção do Inconsciente seja alargada. Desse início de contato resulta a primeira obra psicanalítica de Groddeck, publicada no mesmo ano: Condicionamento psíquico e tratamento das moléstias orgânicas pela Psicanálise (Avila, 1997, p. 47). Ao final desse trabalho ele afirma que "A Psicanálise não pode e não irá deter-se diante das enfermidades orgânicas. Ainda veremos até onde chega o seu alcance" (Groddeck, 1992a, p. 28).
Uma das principais inovações de Groddeck para o campo da Psicanálise foi o termo "Isso" (do alemão: das Es), retirado de um trecho de uma obra de Nietzsche (Santos, 2013) e que foi incorporado pelo próprio Freud em sua segunda tópica do aparelho psíquico. Nas principais traduções dos textos freudianos no Brasil, o termo é traduzido pelo vocábulo latino Id, enquanto em todas as traduções dos textos de Groddeck no país é empregado o termo Isso. As diferentes traduções para o mesmo conceito empregado por ambos parecem estar coerentes, uma vez que o conceito tem significados bem diferentes nos dois autores (Santos & Martins, 2013). Freud era um cientista disciplinado, por isso se preocupava em explicar objetivamente os fenômenos que se lhe apresentavam e descrevia sua criação, a Psicanálise, como uma ciência natural, buscando explicar a psiquê tal qual Newton na física e Darwin na biologia (Mezan, 2014, p. 543-575).
Como nos lembra Ávila (1999), Freud compara essa ciência a um telescópio, que "vê longe", "volta-se para as estrelas, perscruta o espaço desconhecido". Por outro lado, Groddeck se vale de outra metáfora: o Caleidoscópio, "mutante e multicolorido instrumento que re-cria continuamente o que se vê" (Ávila, 1999). Groddeck (1992f) não se importa em separar o homem em instâncias, forças que se opõem, como faz Freud (Mezan, 2014). Em Os desejos de castigos divinos e terrenos e sua satisfação, por exemplo, não cita uma pulsão de morte para explicar a suposta ausência do princípio de prazer, mas apresenta a criatividade do Isso, que mesmo por meio de uma dor consciente goza à custa do Eu (Groddeck, 1992f, p. 53-63). O Isso groddeckiano, ao contrário do Id de Freud, que compõe o sujeito a partir da relação com o Ego e o Superego, representa a totalidade do indivíduo, sua substância única, mas, ao mesmo tempo, múltipla, que pode se manifestar de forma consciente ou inconsciente, saudável ou doentia (Santos & Martins, 2013.). Por esse motivo, Santos e Martins (2013) afirmam que Groddeck não foi o pai da Psicossomática, como constantemente se aponta, pois para se conceber tal ideia é necessário aceitar a existência da psiquê e do soma separadamente e se estabelecer uma relação causal entre os dois. Afirmam que Groddeck não acredita que ao se intervir no psiquismo ele possa curar o corpo, mas sim que tanto a utilização de remédios, por exemplo, quanto as relações afetivas influenciam o Isso que pode vir a se curar:
Doença e saúde são tidos por opostos. Mas não o são, do mesmo modo que o frio e o calor não são opostos. Assim como essas duas sensações são a expressão de diferentes comprimentos de ondas de um mesmo raio, a doença e a saúde são diferentes expressões de uma só vida. A doença não vem de fora, não é um inimigo, mas sim uma criação do organismo, do Isso - ou chamemo-lo de força vital, de si próprio ou do organismo - esse Isso, do qual nada sabemos e não reconhecemos senão uma ou outra forma de manifestação, deseja expressar alguma coisa com a enfermidade; ficar doente tem que ter um sentido (Groddeck, 1992c, p. 97).
Por esse motivo, Groddeck se vale da mesma técnica empregada por Freud no tratamento das doenças neuróticas para tratar das doenças orgânicas, pois não vê distinção entre as duas categorias. Em O livro d'Isso, ele diz:
Dei por acaso com a ideia de que além do inconsciente do pensamento cerebral existem inconscientes análogos em outros órgãos, células, tecidos etc. e que graças à união íntima entre esses inconscientes e o organismo, obtém-se uma influência curativa sobre cada um deles ao se analisar o inconsciente cerebral. (Groddeck, 1991, p. 217)
Ou seja, a simbolização, conceito largamente usado nos textos groddeckianos, não se restringe ao "mundo psíquico", mas se estende ao ser humano inteiro. Diz ainda:
Durante meus tratamentos, a uma certa altura, estou habituado a ressaltar para os meus doentes que o sêmen humano e o óvulo humano provocam o nascimento de um ser humano e não de um cão ou um gato, e observo que existe nesses germes uma força capaz de formar um nariz, um dedo, um cérebro. Esta força capaz de façanhas tão incríveis assim pode muito bem provocar dores de cabeça, diarreia, ou inflamação na garganta. (Groddeck, 1991, p. 94)
Nesse sentido, a doença pode ser interpretada da mesma forma que os sonhos. Groddeck acredita que o sintoma é o conteúdo manifesto pelo qual se alcança "os procedimentos latentes nas manifestações orgânicas" (Groddeck, 1992d p. 162) e que os mecanismos psíquicos, apresentados por Freud (1996a, 1996d), em Interpretação dos sonhos, também são válidos para os sintomas orgânicos (Groddeck, 1992d, p. 159-166).
Desde que constato que a doença é uma criação do paciente, ela se torna para mim a mesma coisa que o seu modo de andar, sua maneira de falar, o jogo fisionômico de seu rosto, seus gestos com as mãos, o desenho que faz, a casa que constrói, o negócio que conclui ou o curso de suas ideias: um símbolo significativo dos poderes que o dominam e que eu procurarei influenciar se considerar necessário. Nesse caso a doença não é mais uma anomalia, mas algo determinado pela natureza mesma desse paciente que decidiu se tratar por mim (Groddeck, 1991, p. 218 itálico meu).
Enfim, a doença é desejo do Isso. Seu sentido pode estar relacionado ao autocastigo para aliviar a sensação de culpa, de modo que ao mesmo tempo em que evita o castigo previsto chama por cuidado (Groddeck, 1992c, p. 98). Por meio da doença, o Isso adverte os órgãos do mal uso de sua independência; também pode, com ela, eximir-se da responsabilidade por sua criação, relegando-a "de novo à mãe ou àqueles que se vangloriam de poder arcar com a responsabilidade, o médico, o enfermeiro, àquele que se imagina adulto" (Groddeck, 1992c, p. 99). As advertências do Isso dirigem-se, também, contra um medo comum a todas as pessoas: a morte. Mas, para ele, todo medo resulta do recalque de um desejo. Então, estaria Groddeck dizendo que o homem deseja a própria morte? Sua resposta é afirmativa, uma vez que "nós morremos quando amamos" (Groddeck, 1992c, p. 100). Anulamo-nos por completo na entrega ao outro, embora essa completude só seja possível por alguns segundos, a mesma completude sentida pelo bebê no útero. Sensação que tanto desejamos e da qual tanto fugimos.
É assim: o ser humano deseja a morte porque deseja o amor, e o amor porque deseja a morte, o seio materno. Portanto, o sentido da doença é desejo de morte e medo do amor, desejo do amor e medo da morte (Groddeck, 1992c).
Nesse ponto há em Groddeck uma referência ao orgasmo, num sentido próximo ao de Reich (1998), na medida em que, para ele, o alcance do orgasmo exige uma entrega, de modo que a consciência fica nublada, voltada totalmente para a satisfação (p. 56-58). Além disso, sua explicação para o medo da morte é de que "o medo da morte e de morrer equivale a uma inconsciente angústia de orgasmo, e o suposto instinto da morte, o desejo de desintegração, de inexistência é o desejo inconsciente da solução orgástica da tensão" (p. 81), ou seja, a descarga total da energia pulsional (morte). O conceito do orgasmo tem importância central na teoria reichiana, para Groddeck, porém, essa não é uma resposta definitiva, pois como nos indica o próprio lema Groddeckiano: "é aconselhável apenas sugerir e não esgotar, pelo menos esse é o caminho da minha vocação" (Groddeck, 1992b, p. 299). Por esse motivo é que Reich (1975, p. 37-38) diz que Groddeck
Era metafísico, mas mesmo o misticismo está "certo de alguma forma". E era místico somente na medida em que não se podia dizer exatamente quando, é que estava certo, e quando é que estava expressando incorretamente dados corretos. Um "desejo", no sentido que então se atribuía à palavra, não era concebível como podendo causar mudanças orgânicas profundas. O ato de desejar tinha de ser entendido de uma forma muito mais profunda do que podia fazê-lo a psicologia analítica. Tudo apontava para processos biológicos profundos, dos quais o "desejo inconsciente" podia ser apenas uma expressão.
Pelo fato de Groddeck não ter se associado efetivamente ao círculo psicanalítico e ter se afastado da hegemonia médica, seus estudos foram muito pouco revisados ao longo de boa parte do século XX (Santos & Martins, 2013), porém, a tal objetividade da qual Reich sentia falta, começou a ser feita a partir de Sandor Ferenczi (1993b), mas esse caminho, digamos mais experimental, exigia um dispêndio maior de tempo para produzir frutos profundos. Ferenczi era amigo de Groddeck e estava entre os poucos analistas que o apoiaram e inclusive eram atendidos por ele (Casetto, 2006).
O nascimento de uma ciência
Sandor Ferenczi foi o fundador da sociedade de Psicanálise húngara em 1913, onde ocupou o cargo de presidente até a sua morte (Lorand, 1981, p. 44); suas contribuições foram tão importantes para o movimento psicanalítico que frequentemente são atribuídas a Freud (Mezan, 2002, p. 157), por exemplo, a tese sobre o desenvolvimento do sentido de realidade, precursor das teses de Winnicott sobre o desenvolvimento do bebê6 (Mezan, 2002, p. 161). A técnica ativa, que apesar de ter sido abandonada pelo próprio Ferenczi, suscitou inúmeros debates sobre a técnica analítica (Mezan, 2014, p. 289-308). Também a atenção dada aos acontecimentos do aqui e agora da sessão analítica e ao funcionamento das relações de objeto, elementos importantes da Psicanálise pós-freudiana, em especial do kleinismo (Mezan, 2002, p. 156). Podemos perceber que as bases da Psicossomática já se encontravam, mesmo que timidamente, entre os pioneiros da Psicanálise. Em um texto de 1910, sobre a perturbação psicogênica da visão, Freud (1996c, p. 229) diz:
A psicanálise é injustamente acusada de apresentar teorias puramente psicológicas para problemas patológicos. A ênfase que ela coloca no papel patogênico da sexualidade, que, afinal, não é um fator exclusivamente psíquico, deveria por si própria defendê-la contra essa acusação. Os psicanalistas nunca se esquecem de que o psíquico se baseia no orgânico. (...) se descobrirmos que um órgão [olho] que serve normalmente à finalidade de percepção sensorial começa a se comportar como um genital real quando se intensifica seu papel erógeno, não nos parecerá improvável que nele também estejam ocorrendo alterações tóxicas. (itálicos meus)
Quatro anos mais tarde, em Sobre o narcisismo: uma introdução, Freud (1996e) apresenta uma concepção que confessou ter sido sugerida por Ferenczi, de que num estado de adoecimento físico o sujeito tende a retirar a libido empregada nos objetos e depositá-la no próprio ego (p. 89). Seguindo esse caminho, Ferenczi (1992a) escreve, em 1917, As patoneuroses, no qual discorre sobre a concentração, pelo órgão doente, de uma maior quantidade de libido que, deste modo, é "genitalizado". Portanto a doença pode, pela introversão da libido, produzir, ou intensificar, uma zona erógena (p. 294). Como nas palavras de Freud: (1996e) "um órgão que serve normalmente à finalidade de percepção sensorial começa a se comportar como um genital real quando se intensifica seu papel erógeno". Ferenczi (1992a) prossegue apontando três fatores que podem concorrer para uma forte regressão narcísica: quando o narcisismo primitivo é muito forte, de modo a ser suscitado ao primeiro sinal de lesão; quando o ego está ameaçado pelo perigo de morte que acompanha o estado doentio ou quando o local lesionado já está fortemente investido pela libido e o ego se identifica com ele. Ferenczi dá ênfase nesse último fator que, de fato, é a maior novidade da tese (p. 295). Nesse caso, quanto maior é a importância erógena da região lesionada, tanto maior é o sofrimento psíquico e a regressão narcísica, de modo, então, que lesões das zonas genitais, que detêm a primazia entre as zonas erógenas, são mais suscetíveis de provocar uma lesão narcísica.
Estamos no direito de formular a hipótese de que existe, durante a vida inteira, uma relação das mais íntimas entre o órgão genital e o ego narcísico (Freud); é provável que seja até o órgão genital que constitui o núcleo de cristalização da formação narcísica do ego (Ferenczi, 1992a, p. 297).
Nesse sentido, Ferenczi vai aproximando cada vez mais o corpo e o psiquismo, apresentando ainda algumas relações entre pensamento e inervação muscular, num artigo com esse título, em 1919 (1992b, 347-349); depois, em 1922, Psicanálise dos distúrbios psíquicos da paralisia geral (teoria), que é uma observação específica e mais crônica do que ele havia postulado em AS patoneuroses, apresentando a possibilidade de regressão narcísica para "etapas ultrapassadas do desenvolvimento do ego" (Ferenczi, 1993a, p. 160), de modo que a regressão da libido, desinveste, nesses casos, não só os objetos, mas o ego corporal e as partes introjetadas no núcleo do ego (1993a, p. 151-166); até chegar, em 1926, À neuroses de órgão e seu tratamento (1993b, p. 177-182).
Freud (1996b) já se deparou, desde os primórdios da Psicanálise, com as doenças orgânicas que apresentavam relações com aspectos psíquicos. A esse conjunto de problemas que não se encaixavam nos termos da histeria ele dá o nome de neuroses atuais. As neuroses atuais, nos termos de Freud (1996b), têm origem sexual, mas não uma sexualidade infantil, como ocorre com as psiconeuroses, e sim uma sexualidade atual (p. 251-255). Em A etiologia sexual das neuroses, Freud distingue dois tipos de neuroses atuais, a neurastenia e a neurose de angústia. A neurastenia se caracteriza geralmente por "pressão intracranianas, propensão à fadiga, dispepsia, constipação" (Freud, 1996b, p. 255), etc. A neurose de angústia pode apresentar, de modo mais brando, alguns desses sintomas, mas é mais evidente que surjam "ansiedade, inquietação, expectativa angustiante, ataques de angústia completos, rudimentares ou complementares, vertigem locomotora" (Freud, 1996b), etc. Freud aponta que essas doenças são adquiridas por mau hábito sexual, em especial a masturbação excessiva e o coito interrompido - único método anticoncepcional na época (Freud 1996b, p. 255-256).
No texto de Ferenczi (1993b), de 1926, surgiu o termo neurose de órgão, com o qual o autor trabalha a possibilidade de doenças orgânicas relacionadas às experiências afetivas do sujeito. Primeiramente ele cita as concepções de Freud a respeito das neuroses atuais, aconselhando uma espécie de higiene sexual para sua recuperação (Ferenczi, 1993b, p. 377-379). Em seguida, apresenta a possibilidade de qualquer órgão se tornar uma zona erógena e chama a atenção para o prazer que se obtém do bom funcionamento dos órgãos, o que se costuma chamar de "bem-estar físico da boa saúde" (Ferenczi, 1993b, p. 380) e acrescenta:
Estudos psicanalíticos constatam que precisamente nas neuroses de órgão esse funcionamento erótico ou lúdico de um órgão pode adquirir uma importância excessiva, a ponto de perturbar até a sua atividade útil propriamente dita! Em geral isso produz-se quando a sexualidade é perturbada por razões psíquicas. (Ferenczi, 1993b, p. 380)
Eis aí o pontapé inicial para o desenvolvimento da psicossomática científica. A conclusão de Ferenczi (1993b, p. 381) é interessante: "Foi necessário o advento do método psicanalítico introduzido por Freud para se poder explicar até uma profundidade antes insuspeita a vida pulsional onde corpo e psiquismo não param de influenciar-se mutuamente".
Esse foi um início importe para a difusão dessas considerações até que elas pudessem atingir o meio médico propriamente dito, o que foi acontecer somente nos EUA, com a fundação oficial da Medicina Psicossomática por Franz Alexander, um psicanalista também húngaro que teve sua formação na Alemanha (Grotjahn, 1981a, p. 433). Filho de um professor de filosofia, ele era adepto da filosofia husserliana (Roudinesco & Plon, 1998, p. 14). Talvez isso tenha influenciado a concepção de que o psiquismo é um fenômeno fisiológico7 (Alexander, 1989, p. 46) e sua contrariedade à (não) representação do mundo pela arte moderna e à filosofia existencial (Grotjahn, 1981a, p. 441). Embora não negasse a herança filosófica de seu devotado pai, e em honra de sua objetividade, Alexander tinha um espírito muito prático e considerava que "a filosofia de Heidegger não oferece elementos para uma ação eficaz" (Grotjahn, 1981a, p. 441). Essa tendência ao domínio prático e racional da realidade foi um impulso importante para a fundação de sua Medicina Psicossomática e adaptação à Psicanálise americana, ao mesmo tempo em que provocou uma resistência inicial ao aspecto irracional do inconsciente e ao relativismo comum nos EUA (Grotjahn, 1981a, p. 430-433).
A Psicanálise americana já desde o início é marcada por conflitos com a Europa. Conflito que se tornou ainda maior quando a Associação Psicanalítica Americana se declarou "independente do controle internacional e formou sua própria junta de normas profissionais" (Millet, 1981, p. 606). Além das divergências internacionais, havia grandes conflitos internos relacionados ao exercício de poder das lideranças psicanalíticas e o grande centro (Millet, 1981). Esses problemas e as divergências sobre a grande tendência, defendida por Abraham A. Brill, de proibir a análise leiga, geraram em Freud uma forte desconfiança em relação ao futuro da Psicanálise nos EUA (Grotjahn, 1981b, p. 433; Roudinesco & Plon, 1998, p. 15).
Mas como nos lembra Renato Mezan (2014, p. 258):
Este simples fato, a imigração maciça do que havia de melhor entre os analistas de Berlim e de Viena, deve nos alertar para as simplificações ideológicas que desqualificam em bloco a psicanálise americana como "psicologia adaptativa do ego" e como abastardamento da suposta pureza perdida entre os escombros das sociedades germanófanas aniquiladas pela guerra. Os émigrés levaram para a América do Norte o pensamento analítico que era seu, isto é, o que se pode chamar talvez de "classicismo freudiano", por oposição às tendências mais heterodoxas que, na Inglaterra, gravitavam ao redor de Melanie Klein (itálicos do autor).
Portanto, não se pode subestimar a importância dos analistas americanos (e radicados) para a psicanálise, em especial por meio de críticas que parecem ter como pano de fundo, muito mais rivalidades entre as associações europeias e americanas que análises preocupadas com a ciência analítica.
Não se pode negar, no entanto, que o contexto no qual se desenrolou a ascensão da Psicanálise na América gerou grandes dificuldades políticas na organização do movimento, no que Millet (1981) metaforizou como "problemas da adolescência" (p. 608). Em parte, porque a ordem institucional não tinha uma liderança nacional com uma autoridade tal como a de Freud e os primeiros discípulos na Europa. Soma-se a isso a grande difusão cultural da Psicanálise pelo país, as práticas psicoterapêuticas de psicólogos clínicos que passaram a utilizar do método psicanalítico, as iniciativas não oficiais de discussão e divulgação da Psicanálise, como a Academia de Psicanálise e vários centros de pós-graduação, que passaram a convidar psicanalistas experientes para ministrarem programas independentes de formação analítica. Isso tudo serviu para a cristalização, ainda maior, das normas profissionais em função do medo da perda de autoridade da associação nacional, que, em especial, batia na tecla da proibição da análise leiga (Millet, 624-626).
Nesse ponto, nos deparamos com uma tendência americana que fertilizou o solo para o nascimento da Medicina Psicossomática; três pontos que se interligam: o enfoque no tratamento, que desde cedo se mostrou predominante; a grande institucionalização dos profissionais de Psicanálise em inúmeros ramos da sociedade, sempre com uma função médica (Grotjahn, 1981a, p. 432); e a predominante consideração da Psicanálise como um ramo da psiquiatria, no sentido de que "qualquer tipo de terapia é função do médico e o principal valor da psicanálise (...) deve ser sua utilidade como instrumento terapêutico" (Grotjahn, 1981a, p. 607). Daí em diante, fica muito fácil a constituição de uma ciência conjunta entre os dois ramos. O próprio Alexander (1989, p. 201), que veio de berço europeu concretizar tal junção, em uma nota de rodapé de Medicina Psicossomática afirmou que "A prática da psicoterapia leiga tem, consequentemente, sérias limitações e o psicoterapeuta leigo, assim como um clínico independente, nesta era da medicina psicossomática, logo pertencerá ao passado" (p. 201).
Mas é esse país polêmico que acolheu grande parte dos refugiados da perseguição nazista, um deles, Felix Deutsch, importou consigo pesquisas que havia realizando em Viena na Medicina interna e que ampliou em sua nova pátria. Deutsch já assumia uma posição de liderança desde a faculdade, como fundador de um grupo estudantil em defesa dos judeus perseguidos pelo antissemitismo, do qual Martin, filho de Freud, participava. Depois de formado, foi médico pessoal do próprio Freud e chegou a atender, por coincidência, Ida Bauer, que inspirou o primeiro caso clínico de Freud com o nome de Dora (Roudinesco & Plon, 1998, p. 149-150). Depois de chegar aos EUA, fundou a Associação Psicanalítica de Boston (Casetto, 2006). Ele é responsável pela reutilização do conceito de psicossomática desenvolvido por Heiroth em 1818, no sentido de estabelecer uma "medicina do homem total" (Casetto, 2006). Também foi ele quem criou a anamnese associativa, acrescentando aspectos psicodinâmicos na anamnese tradicional (Volich, 2013, p. 123-124). Além disso, reconheceu motivos emocionais em estimulações constantes do sistema nervoso autônomo e doenças relacionadas a esse processo (Flagg, 1981, p. 343-344).
Em Nova Iorque, Helen Flanders Dunbar (citada por Volich, 2013), tentou estabelecer uma relação entre perfis de personalidade e riscos de doenças somáticas (p. 129); Alexander (1989, p. 59), instalado em Chicago, cita a descrição do paciente coronariano que ela desenvolveu:
Tal paciente é geralmente uma pessoa permanentemente batalhadora, com grande controle e persistência, visando ao sucesso e à realização. Ele planeja a longo prazo; tem, freqüentemente, uma aparência distinta. Ele exibe, em alto grau, o que Freud chamou de "princípio de realidade", a capacidade de adiar e subordinar ações e objetivos a longo prazo.
Outras descrições de personalidade correlacionada com as doenças são feitas por Dunbar, mas, segundo Alexander (1989), não se pode falar em uma relação causal nesta correlação, que é secundaria. "A verdadeira correlação, talvez não seja entre a constituição da personalidade e a doença coronariana, mas sim entre o modo de vida e a doença" (p. 60), modo de vida que, talvez, seja precedência comum de ambos os fenômenos.
A partir daí, Alexander, com a Sociedade Psicanalítica de Chicago, que liderava, classificou de forma clara os diferentes modos doentios da relação mente/corpo; Antes de citá-los, porém, é importante deixar claro que a psicogênese da qual Alexander fala se trata de aspectos subjetivos dos processos fisiológicos centrais (cerebrais) como causa de processos fisiológicos periféricos (Alexander, 1989, p. 42), por isso ele se posiciona contrário a uma causalidade entre personalidade e doença;
Primeiramente, Alexander (1989) aponta a histeria como uma conversão emocional para a musculatura voluntária e os órgãos sensitivos; os sintomas apresentados, segundo ele, não diferem de seu funcionamento normal, com a exceção de serem inconscientes (p. 35-36), precisamente porque, pela repressão, "O ego perderia seu domínio sobre o órgão" (Freud, 1996c, p. 288). Mas, na contramão de Groddeck e Deutsch, considera que, pelo controle do sistema nervoso autônomo, as doenças dos órgãos vegetativos não carregam conteúdos simbólicos, pois tal característica é exclusiva das inervações voluntárias (Flagg, 1981; Alexander, 1989). Apesar disso, não exclui a influência das tensões emocionais sobre tais órgãos e as explica nos moldes da neurose de órgão de Ferenczi, o que ele denomina como distúrbio funcional. Diferencia, portanto, a resposta vegetativa da histérica, considerando que a primeira não é a expressão de uma emoção, mas um componente fisiológico da própria emoção, ou, dito em outras palavras, a alteração funcional dos órgãos em resposta a estados emocionais. Para além de Ferenczi, Alexander ainda descobriu que "nas doenças reais", ou seja, aquelas na qual se verifica alterações teciduais dos órgãos, o aspecto emocional também é importante, uma vez que os distúrbios funcionais, quando se mantém em estimulação constante, podem, gradualmente, ocasionar alterações morfológicas. A isso ele nomeia distúrbio orgânico psicogênico (Alexander, 1989, p. 36-37).
"A partir da noção de Ferenczi de neurose de órgão e da termodinâmica energética emocional de H. F. Dunbar" (Volich, 2013, p. 126, itálico do autor), Alexander desenvolveu o conceito de constelação psicodinâmica específica, em que, ao se enfrentar certas situações emocionais, "algumas reações de base reativam conflitos internos da história do indivíduo" (Volich, 2013, p. 126). É dessa forma que Alexander (1989) explica a emergência da doença e também de certas reações psicossomáticas normais como o riso e o choro. Daí em diante, ele considera que toda doença tem um caráter psicossomático e "depende da relação entre as estruturas de personalidade do sujeito, os conflitos de base, as musculaturas voluntária e involuntária e o sistema visceral/neurovegetativo" (Volich, 2013, p. 127); portanto nunca é somente física ou somente psíquica.
Esses estudos enraizaram-se na Medicina americana de tal modo que foram produzidas diversas pesquisas biológicas a fim de compreender os fatores emocionais no surgimento das doenças. Essas pesquisas, de modo geral, deram origem a explicações organicistas a respeito desses "fatores", reduzindo-os a contingências neurofisiológicas (Santos & Martins, 2013). Na década de 1940, o aumento da incidência de doenças orgânicas em pessoas em estados depressivos alimentou os estudos que deram origem à psiconeuroimunologia. O sistema imunológico passou a ser considerado como um órgão difuso pelo conjunto do corpo humano, em especial depois da descoberta das células linfoides. Entendeu-se que ele tem o que se chama de capacidade sensorial para detectar estímulos não cognitivos, ou seja, que não podem ser captados pelo sistema nervoso, como bactérias, vírus e antígenos. Essas informações podem ser relacionadas ao sistema neuroendócrino, produzindo modificações psicológicas, da mesma forma que o sistema nervoso pode se comunicar com o imunológico por vias anatômicas, funcionais e embriológicas (Volich, 2013, p. 135-141). Segundo Gachelin (citado por Volich, 2013) "é a existência de estruturas intermediárias entre o evento mental e o evento imunológico, como representante de um agindo sobre o outro, que permite pensar a relação entre expressão orgânica e funcionamento psíquico" (p. 141).
Tais são as incorporações da cultura americana sobre os conhecimentos em Psicossomática, o que se tornou a linha predominante de interpretação dos fenômenos psicossomáticos no meio acadêmico e no senso comum (Volich, 2013). Nesse sentido, parece ter ocorrido um obscurecimento do que se construiu até a consolidação dessa ciência.
Discussão
Creio que seja o momento de levantar algumas questões a respeito do curso dessas ideias. Encontramos tentativas de compreender os fenômenos psicossomáticos a partir de diferentes chaves de leitura. Gostaria de chamar atenção para os dois autores, em especial, que representam as duas correntes em destaque na presente pesquisa: Georg Groddeck e Franz Alexander. Dos inúmeros pontos levantados ao longo deste trabalho, o que parece mais caracterizar a diferença dos dois pensamentos é o papel do símbolo na constituição das doenças orgânicas. Como vimos, para formular sua tese, Alexander fez distinção entre dois tipos de doenças: aquelas que atingem a musculatura voluntária e os órgãos sensitivos e aquelas que atingem o sistema visceral. O que também poderia ser formulado como doenças sintomáticas (simbólicas) e doenças reais (teciduais). Groddeck, por outro lado, dispensa as distinções a aplica a lógica da simbolização à integralidade humana.
É importante ressalvar que Alexander faz importantes contribuições para a Medicina no sentido de elucidar o caráter afetivo presente em todas as doenças, porém representa uma corrente de pensamento bastante objetiva dentro da Psicanálise, herdeira de certos pressupostos da Biomedicina moderna. Segundo Santos e Martins (2013), a Biomedicina "foi gestada a partir dos princípios teórico-metodológicos que fundamentaram a chamada racionalidade científica moderna" (p. 10), o que resulta em uma negação de estudos "que não estão fundamentados em pesquisas com o uso dos métodos tradicionais da ciência positivista" (ibid). Esses métodos, ainda segundo os autores, vão na contramão de um cuidado particular dos pacientes, na medida que
as únicas conclusões verdadeiras seriam as que pudessem ser generalizadas para todos os elementos de um mesmo universo (...). Não obstante, ainda que nem sempre isso ocorra na prática, a pretensão da biomedicina é justamente essa: estabelecer protocolos padrões para o tratamento de cada tipo de enfermidade. (Santos & Martins, 2013)
Em seu livro Medicina Psicossomática Alexander (1989), faz uma divisão em duas partes: na primeira, apresenta os princípios de sua ciência; na segunda, há uma sequência de capítulos, os quais apresentam, cada qual, um sistema corporal e suas doenças correspondentes bem como a especificidade psicodinâmica de tais doenças. Percebe-se, assim, uma estrutura textual nos moldes de uma ciência padronizante. Qual o significado desse tipo de influência na Medicina Psicossomática em relação ao movimento histórico que culminou na metodologia psicanalítica? É interessante relembrar:
A concepção oriunda de René Descartes, que consiste em uma divisão entre o corpo e a alma enquanto substâncias diferentes reforçou a mecanicidade da Medicina, visto que esta última passou a ser vista, predominantemente, como responsável por cuidar apenas do corpo. Visão que sufocou as tímidas críticas que foram se desenvolvendo ao longo da história (Santos & Martins, 2013; Volich, 2013). No século XIX, um crescente número de portadores de sintomas histéricos sofria negligência de tratamento por parte dos médicos, já que seus problemas não poderiam ser explicados ou tratados pela Medicina vigente. É neste contexto que surge na França o método hipnótico de J. M. Charcot e a utilização do magnetismo e hipnotismo por Libeault e Bernheim, instituindo-se como as únicas alternativas, por momento, de intervir na histeria. Dava-se inicio, portanto, às primeiras formas modernas de intervir em patologias psíquicas que se manifestam através de sintomas corporais (VOLICH, 2013, p. 69-73).
O contato com esses pesquisadores permitiu a Freud, em Viena, elaborar um modelo teórico e prático de tratamento das neuroses que daria início à Psicanálise, ciência que encontra nas dinâmicas sexuais e nos processos inconscientes a resposta para inúmeros enigmas humanos. Com a inauguração desse novo método, ele realiza uma revolução na forma de pensar a Consciência, a moral, a saúde e outros tantos aspectos perpassados por esses processos, inclusive as relações entre o psíquico e o somático (ibid). Tais relações estão relacionadas à noção freudiana de eu-corporal. Segundo Lindenmeyer (2012), essa noção foi alcançada pela sensibilidade de Freud em se despir de sua autoridade médica nomeadora das doenças e compreender o olhar das histéricas sobre o próprio corpo. Afinal, os chamados corpos fantasmáticos "seriam menos reais que o saber do anatomista sobre o corpo?" (p. 352).
Ávila (1997), nesse sentido, faz distinção entre a Medicina Psicossomática e a Psicossomática Psicanalítica, sendo a primeira uma Medicina que se vale apenas de conceitos psicanalíticos, mas a segunda uma Psicanálise propriamente dita que abarca inúmeros autores, a começar por Groddeck. É a partir dessa segunda corrente que encontramos uma conexão da Psicanálise com a Medicina clássica.
Como já dito, no corpus hipocraticum as doutrinas não eram formuladas com base na fatualidade, "os sinais clínicos adquirem um caráter simbólico" (Frias, 2004, p. 41). Além disso, ao contrário dos métodos modernos, com a pretensão de serem verdadeiros espelhos do real (Santos & Martins, 2013), na noção grega clássica "os fenômenos observados precisam ser interpretados" (Frias, 2004, p. 62). Nesse sentido, há um inegável resgate dessa noção pela Psicanálise quando desenvolve seu constructo teórico a partir de um viés simbólico e sua terapia calcada na interpretação. Groddeck, além de dar especial ênfase ao simbolismo em seus textos, se vale dele para explicar também as doenças orgânicas e a interpretação para o alcance da cura integral. Deve-se, também, ser levado em conta a grande influência do helenismo nietzschiano na constituição de sua Psicanálise-literatura, da qual retirou seu conceito central, o Isso (Santos, 2013). Por fim, o que parece ser a característica de maior relevância nesse resgate é a indistinção com que trata as questões do corpo e da alma. Groddeck (1992f), tal como os gregos que precedem a divisão mente/corpo, dirige sua atenção para o homem de maneira integral, considerando que "são sempre os dois [corpo e psiquismo] a enfermar ao mesmo tempo, em quaisquer circunstâncias" (Groddeck, 1992f, p. 125).
Considerações finais
Poderíamos dizer que, em certo sentido, a Psicossomática não é uma novidade na Medicina, mas a sua própria origem, no sentido de que ela se constituiu a partir de uma noção integral de homem. Como vimos, foi a partir do dualismo platônico que essa noção começou a se desfazer. Tal dissolução encontrou seu apogeu na epistemologia moderna que culminou numa Medicina mecânica.
A presente pesquisa teve como objetivo avaliar as contribuições psicanalíticas no enfrentamento das doenças e sua conexão com a Medicina clássica. Ao longo deste estudo, duas linhas de pensamento encontraram destaque: uma representada por Georg Groddeck e outra por autores da Psicanálise americana, em especial Franz Alexander. Destacou-se que a linha americana se vincula à metodologia moderna, com tendência a maior padronização da pesquisa e intervenção nas doenças. Porém, não se pode compreender esses autores como simples reprodutores da Biomedicina moderna, uma vez que contribuíram para a mudança de um ponto crucial dessa ciência: a tendência à negação da subjetividade. O que se revelou nessa pesquisa é que, apesar desses esforços, essa corrente não se desvencilhou dos pressupostos dessa metodologia.
Quanto à conexão com a Medicina hipocrática, ficou claro que já nos primórdios da Psicanálise há um movimento de resgate dos princípios gregos relacionados às noções de símbolo e interpretação. Porém, foi Groddeck quem levou essas noções de volta ao cuidado integral do homem; corpo e alma de maneira simultânea e indissociável.
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Recebido/Received: 25.01.2016/01.25.2016
Primeira revisão em 02/07/2016
Aceito/Accepted: 14.07.2016/07.14.2016
1 A concepção hegemônica da medicina psicossomática de que certas doenças orgânicas têm origem psicológica leva a discussão para o campo da psiquiatria que, em grande parte, depois da descoberta dos psicotrópicos, remédios que controlam as emoções, passou a seguir a mesma lógica da medicina mecânica e medicalizante de que tratarei mais adiante.
2 Esse adjetivo diz respeito aos filósofos pré-socráticos, que substituíram as explicações míticas do universo pela reflexão a respeito da physis (natureza).
3 Frias se vale dessa nomenclatura latina para designar toda escola que se forma em torno de Hipócrates e que publica em seu nome.
4 Segundo Frias, a citação foi feita por Pigeaud, J. (1981). La meladie de l'ame. Paris: Belles Lettres, p. 34.
5 A citação entre aspas é de Pigeaud, J. La meladie de l'ame. (1981). Paris: Belles Lettres, p. 481.
6 Renato Mezan (2014) diz que Winnicott é um dos "herdeiros espirituais" (p. 228) de Ferenczi. Grande leitor desse clássico psicanalítico, assim como muitos de seus compatriotas. Em suas descrições sobre a passagem dos estágios primitivos a que M. Klein chama de esquizoparanoide para o tipo de percepção da realidade próprio do adulto, Winnicott também se vale da consideração da importância das etapas transicionais que tornam essa passagem suportável.
7 Entenda-se fisiológico como diferente de anatômico, ou seja, Alexander não está tentando reduzir o psíquico a localizações anatômicas e funções neuroquímicas desprovidas de sentido; ele se vale dessa ideia para ressaltar que a vida psíquica não é uma instância metafísica separada do corpo, mas que a psiquê e o soma são dois fenômenos que ocorrem no mesmo organismo, mas percebidos (e acessados) de modo diferente.