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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades vol.11  Rio de Janeiro jun. 2016

 

ESPAÇO ABERTO

 

Crianças e adolescentes indígenas e imigrantes no contexto escolar argentino

 

Niños y adolescentes indígenas e inmigrantes en el contexto escolar argentino

 

 

 

Entrevista de Kelly RussoI com Gabriela NovaroII

I Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, Universidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil.

II Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade de Buenos Aires, Buenos Aires, Argentina.

 


Palavras-chave: educação intercultural, infância, marcadores étnicos, indígenas, migrantes latino-americanos.
Palabras clave: educación intercultural, infancia, marcadores étnicos, indígenas, migrantes latinoamericanos.

 


Kelly Russo – Você atua com a questão das crianças imigrantes indígenas, na Argentina. Gostaria que nos falasse um pouco sobre a sua trajetória acadêmica e sobre como chegou ao tema da educação de crianças indígenas imigrantes no contexto escolar.

Gabriela Novaro – Chego ao tema da interculturalidade e educação e, mais especificamente, aos coletivos imigrantes e educação, a partir da minha tese de doutorado, em 2002, na qual faço uma análise do tema do nacionalismo nas escolas. Alguns coletivos que aparecem fortemente interpelados pelo discurso nacionalista são os grupos imigrantes. Nos últimos anos, tem sido principalmente imigrantes latino-americanos, mais especificamente, provenientes da Bolívia, onde, como vocês sabem, as questões de pertencimento nacional se cruzam com as questões de pertencimento étnico. Além disto, fiz parte de espaços de gestão educativa no Ministério da Educação e integrei, entre 2000 e 2005, um projeto de educação intercultural e bilíngue particularmente dirigido à população indígena. Depois trabalhei em programas de desenvolvimento curricular, em programas de capacitação docente e na definição de políticas educativas. Na Argentina continua tendo importantes vazios em nível de políticas e de investigação sobre como abordar a educação de coletivos como os indígenas e migrantes latino-americanos.

Kelly Russo – A sua experiência está conectada à definição de políticas educativas. Você aborda o contexto argentino, nessa discussão sobre multi e interculturalidade, a partir dos imigrantes bolivianos, que é um grupo latino-americano muito grande. Gostaríamos de saber um pouco, então, dos grupos de maior visibilidade na imigração, no país.

Gabriela Novaro – Na Argentina, a migração começou a ocorrer mais fortemente ao final do século XIX e no princípio do século XX. Entretanto, se tratava de uma população imigrante que respondia ao convite do Estado argentino, sobretudo dos países europeus, principalmente Itália e Espanha. É uma população que vinha apoiar o desenvolvimento nacional e a qual, em geral, os discursos do Estado e as representações do senso comum associam a um processo de civilização. Atualmente, os latino-americanos constituem o principal grupo de imigrantes na Argentina, principalmente paraguaios e bolivianos. Há muitas representações sobre esta migração e as populações que têm traços fenotípicos associados aos indígenas sofrem bastante com imagens discriminatórias, seja por parte do senso comum, seja por parte dos meios de comunicação.

Assim, diversas investigações na Argentina assinalam que a relação com a imigração se construiu sobre dois relatos: o relato da imigração europeia, como civilizatória, e o relato da imigração latino-americana, associada a um problema. E isso tem uma correspondência clara dentro do sistema educativo. Esta representação tem uma relação direta com as imagens que o sistema educativo constrói nos conteúdos, por exemplo, das ciências sociais. Atualmente, começaram a aparecer tentativas de reformular a imagem da imigração latino-americana como aquela que vem invadir, usurpar territórios ou apenas buscar trabalho. Embora se anunciem intenções de reformular as visões tradicionais, na prática isto tem tido alcance bastante relativo, tanto em nível de quem planeja as políticas educativas, quanto nas escolas.

Kelly Russo – Você tem feito aproximações sobre a situação destas crianças indígenas e imigrantes bolivianas, principalmente, e sobre como a imagem pejorativa dessas crianças se reflete no sistema público educativo da Argentina. Existem movimentos organizados desses grupos demandando algo específico da escola?

Gabriela Novaro – Os grupos indígenas, sobretudo, formulam demandas mais específicas ao sistema educativo, como as propostas de educação intercultural bilíngue. As políticas educativas argentinas são um pouco a resposta a estas demandas vindas de movimentos indígenas sustentados por um reconhecimento dos espaços educativos. A diferença é que a população imigrante e suas associações têm um lugar de reivindicações educativas e escolares não tão visível. A população imigrante, em especial a boliviana, tem uma tendência a criar associações, ligas, comunidades, cooperativas, muito fortes. Nestes casos as reivindicações educativas são menos visíveis, menos explícitas que entre os grupos indígenas. Creio que isso também tem relação com uma história mais antiga de grupos indígenas reivindicando tanto uma mudança nos enfoques educativos dominantes, oficiais, na direção de um enfoque intercultural na educação, como também as demandas de grupos indígenas em torno de propostas educativas e autônomas. Por exemplo, os Mapuches, no sul da Argentina, são grupos que têm posições mais organizadas quanto a propostas de uma educação mais autônoma.

Os grupos e as famílias imigrantes têm reivindicações associadas tanto a um reconhecimento do sistema educativo, ao valor de certos pertencimentos e de certas identificações, quanto uma demanda muito forte por serem integrados em condições de igualdade com as outras crianças. Esta tensão entre demandar um acesso igualitário e demandar que, nesta educação, haja um espaço de reconhecimento por manter espaços formativos diferenciados, poderíamos dizer, simultaneamente, pelo direito à igualdade e à diferença, resulta em questões centrais para abordar as reivindicações educativas destes grupos.

Kelly Russo – Suas pesquisas têm-nos feito refletir sobre o próprio termo “inclusão”, sobre essa ambiguidade entre ser incluído e também reconhecido no espaço escolar. Você poderia falar um pouco sobre estes processos que identificou como “inclusão subordinada”?

Gabriela Novaro – As políticas na Argentina, e certamente em outros países da região, podem ser pensadas como uma alternância entre as políticas mais assimilacionistas e de integração, que supõem que os sujeitos, crianças indígenas ou imigrantes, para estar presentes e poder estar na escola, têm que renunciar às suas marcas de origem. Assimilação tem a ver com deixar de ser o que é para ser outra coisa. Existe uma alternância entre estas políticas e o que não se registra, sobretudo nos últimos vinte anos. É um discurso da valorização da diversidade e o que corresponde ao enfoque é a noção de inclusão e de interculturalidade. Estas perspectivas de assimilação, de integração e de inclusão, na verdade, não se posicionam em uma linha progressiva; muitas coexistem. Em muitas escolas há, ao mesmo tempo, posições assimilacionistas, propostas de integração e discursos retóricos sobre inclusão e interculturalidade.

O que denominamos inclusão subordinada é, em parte, efeito desta coexistência de paradigmas distintos. A ideia de que as crianças imigrantes estão incluídas no sistema educativo apenas considerando que, na Argentina, 94% das crianças entre 6 e 12 anos estão no sistema educativo primário nos coloca a seguinte pergunta: isto é condição suficiente para se falar em igualdade educativa? O que temos visto, transitando por escolas tanto da cidade de Buenos Aires quanto da província de Buenos Aires, ou mesmo em escolas da zona rural, é que esta presença ocorre em situações de desigualdade. E esta desigualdade se manifesta de muitas formas. Uma das mais evidentes é a existência de circuitos escolares diferenciados. Quero dizer que a diferença educativa e a desigualdade educativa, mais que estarem vinculadas ao fato de serem escolas públicas ou privadas, passam pelo nível de exigência e pelo nível dos conteúdos que se transmitem em distintos tipos de escolas públicas. Então há uma grande fragmentação educativa entre escolas públicas em que existem pessoas com uma condição econômica favorável e escolas públicas que se localizam em bairros com muitos problemas de acesso a serviços básicos e que têm, como correlato, um espaço escolar bastante degradado. E a população indígena e imigrante frequenta estas escolas que, de modo geral, apresentam condições que agregam fatores de desigualdade. Agregam-se fatores que, embora não sejam muito visíveis nem explícitos, também favorecem a subordinação e a exclusão. Algumas de modo mais evidente, como as que encontramos com crianças imigrantes que chegavam de outro país, basicamente da Bolívia e do Paraguai. Estas eram rebaixadas de série porque se supunha que os níveis escolares em outros países não garantiam que tivessem o conhecimento necessário para a série que correspondia às suas idades.

Algo que é bastante complexo nas escolas é que se desconhece a trajetória escolar prévia das crianças. Sobre o sistema educativo na Bolívia, por exemplo, há muitos preconceitos sobre a docência e muito pouco conhecimento, ainda que o sistema educativo na Bolívia esteja mudando e seja muito dinâmico e heterogêneo. E, por outro lado, algo que eu considero central na escola é a baixa expectativa de desempenho e êxito. Um dos aspectos mais difíceis de modificar está nas questões da subordinação e da inclusão. Está, por exemplo, em professores que supõem que os conhecimentos que vão propor às crianças não sejam muito complexos e, antes de conhecer as crianças, supõem que elas não tenham um nível suficiente de abstração e a capacidade de aprender; isso é uma das questões mais complicadas de modificar e questionar sobre a docência na Argentina.

Kelly Russo – Esta é uma questão também muito importante no Brasil, qual seja: ser imigrante ou indígena é também lidar com estes estigmas, com estas imagens negativas. Nesses paradigmas que estão presentes no espaço escolar, existem diferentes imagens de infância construídas na própria escola a partir das políticas educativas, mas também no cotidiano escolar. Eu queria que você falasse um pouco sobre estas diferentes imagens de infância que se dão nas comunidades de imigrantes bolivianos, e dentro do espaço escolar da docência.  

Gabriela Novaro – Sobre as imagens de infância, precisamos pensar nas relações não necessariamente coincidentes entre as políticas e o cotidiano escolar. Na Argentina, quanto às políticas, tem havido um esforço, nos espaços dos ministérios, de capacitação docente, de produção de material de trabalho. São políticas que têm mudado e avançado bastante, e que sustentam uma ideia de criança que não é mais a da infância tradicional, mas a de uma criança que pode criticar, refletir, participar. Agora, quanto ao cotidiano escolar, segue havendo em muitas instituições uma ideia que não problematiza um pressuposto bastante disciplinador e normatizador sobre a infância. É um tema para debate, pois, às vezes, à proposta normatizadora se opõe uma proposta absolutamente permissiva e que, por vezes, acaba por confundir autoridade com autoritarismo e que se traduz em situações onde é difícil manter dispositivos de trabalho.

A questão é que, tanto no nível das políticas quanto no nível das escolas, a imagem das crianças dos setores populares é muito pouco legitimada. Mas aí se apresenta um tema muito controverso, que é o das imagens das crianças indígenas e imigrantes nas famílias de setores populares, e temos que ter o cuidado de não construir um preconceito ao inverso, ao dizer que a imagem das crianças nestes setores sempre é mais progressiva ou mais interessante do que nas políticas educativas. Certamente nos encontramos muitas vezes em espaços de trocas com setores populares ou de coletivos imigrantes em que aparece, por exemplo, a imagem de uma criança de família boliviana como mais submissa, mais permeável às ordens adultas, em contraponto à imagem de uma criança argentina mais ativa, mas também mais indisciplinada. Por isso, em torno das imagens da infância temos que eliminar alguns preconceitos, tanto os aparentemente positivos quanto os negativos, quando pensamos nas imagens de criança que não correspondem aos setores médios que tendem a predominar nas escolas.

Kelly Russo – Esta imagem que produz discriminação e preconceito vai interferir no processo de aprendizagem.

Gabriela Novaro – Sim, com respeito à questão da aprendizagem e à vinculação da noção de aprendizagem à de saberes legítimos e formas de ensino, há uma polaridade muito instalada dentro da educação, que também foi apropriada por grupos indígenas e grupos imigrantes, que opõe os saberes escolares e os saberes dos conjuntos sociais indígenas ou imigrantes. E isso se sustenta na imagem de que os saberes escolares tendem à abstração, à descontextualização, sendo, portanto, saberes que podem se universalizar mais, não tendo muito apelo ao particular, em contraposição aos saberes destes conjuntos sociais, que seriam sempre muito concretos, locais e particulares. Esta polaridade é complexa e, ao mesmo tempo, usada para legitimar, por exemplo, os saberes de grupos indígenas, muitos dos quais reivindicados pelos movimentos sociais por sua alusão ao particular, ao concreto.

O que não podemos perder de vista é que esta alusão ao particular e ao concreto também é estereotipada. E nos contextos de transmissão de conhecimento familiares e comunitários, pode haver tanta abstração quanto na transmissão de saberes da escola. Esta polarização entre abstrato e concreto, universal e particular, na verdade, faz com que os saberes dos grupos populares sejam pouco legitimados. Em todo caso, o que acontece às vezes é que os legitimam associando-os à tradição, como saberes tradicionais. Mas, ao mesmo tempo que legitimam, estereotipam, e temos que avaliar isto, sem negar o que a tradição ou a folclorização pode acrescentar em termos de nova presença e visão nas escolas. Ou seja, é importante estar atento ao perigo de que, nesta tradicionalização ou folclorização, alguns saberes das famílias sejam também muito fortemente estereotipados, fechados, desistoricizados.  

Kelly Russo – Você já criticou o que chamou de hipervisibilização dos sujeitos definidos como diversos. Essa ideia de hipervisibilização tem relação com os estereótipos que são criados sobre estes sujeitos? Como isso ocorre no cotidiano escolar?

Gabriela Novaro – Quando os saberes dos grupos imigrantes ou indígenas penetram na escola, ao fazê-los de forma folclorizada ou associados à tradição, aparece a questão da hipervisibilização. No modelo assimilacionista, que predomina na Argentina, estes outros saberes, estas outras presenças e imagens são negadas, não tendo um lugar diretamente. O que acontece nestes novos tempos, em que o Estado é atravessado pelos discursos do multiculturalismo e da interculturalidade, é que há um convite para que estes saberes tenham esta presença e estas imagens que trazem outras vozes. E são definidos apenas por seu caráter diverso. O que se perde é a compreensão de que, ao mesmo tempo que são diversos, eles são similares em muitos outros aspectos. Assim, estes grupos são definidos por sua distintividade. Certamente em sua distintividade há aspectos que atentar, mas, em muitas outras dimensões de suas vidas e de suas formas de aprendizagem e de transmissão de conhecimento, há aspectos comuns, e temos que entendê-los junto a seus aspectos diversos. Vê-los apenas como diversos, como outros, faz parecer que estejam legitimados somente por aparecer na escola em matérias especiais ou em celebrações escolares, ou quando se festeja algum dia muito especial, como, por exemplo, o dia da tradição. Nestes momentos, aparece de forma muito encenada o que foi negado nos momentos escolares cotidianos, e também nas matérias que têm uma tradição maior, como as ciências sociais, em que a referência à imigração latino-americana aparece quase como omitida.

Trata-se de uma forma muito cenográfica de presença, em que se pode dançar, pintar murais com alusões ao andino. Então, por um lado, a visibilização é muitas vezes reduzida à folclorização, e, por outro, temos uma questão mais complexa da visibilização que é o paradoxo entre visibilização e marcação. Em algumas situações de ensino e aprendizagem aparecia esta intencionalidade, por exemplo, quando as crianças falam dos costumes de seus pais, o que seria um ato docente de valorizar uma presença tradicionalmente negada dentro da escola. Em todo caso, falar deste saber indígena ou a própria referência ao boliviano aparecia associado, para outras crianças argentinas, a uma marca negativa. Assim, o que acontecia em muitos momentos é que estas crianças imigrantes não assumiam sua distintividade, pois assumi-las era assumir um estigma. Então, às vezes, a visibilização construída pelos docentes com a melhor das intenções pode ter efeitos negativos. Quero dizer que esta presença tem que ir muito além do escolher um dia para falar de referências étnicas, para trazer objetos étnicos de casa. Porque, se é apenas isto, o efeito pode ser contraproducente. Mas não se isto se insere em um processo mais longo, mais sustentável, de onde múltiplos pontos sustentem a necessidade de se revisar as valorizações estabelecidas, e não apenas as folclorizadas.

Kelly Russo – São festividades, como ocorre no Brasil, datas específicas para tratar dos temas que terminam folclorizando a questão sem discutir em profundidade sobre como inclui-las no processo pedagógico. Você fala dessa dialética entre visibilização e ocultamento, que também se dá dentro das próprias famílias. Este interesse em se reconhecer como boliviano, mas também, nestes momentos, se sentir exposto na escola. Como se dá este processo de marcar e viver o “ser estrangeiro”, por exemplo, em um bairro marcado por um forte processo de afirmação identitária?  

Gabriela Novaro – Esta tensão ou alternância entre visibilizar-se e ocultar-se, em muitos casos, nos fala do que estes grupos esperam que aconteça na escola. Tanto para a população indígena quanto para a imigrante temos uma pergunta básica: se a escola é o lugar para visibilizar-se. Para estes coletivos, indígenas e imigrantes, a pergunta é se a escola é o espaço para transitar em sua distintividade, ou se a escola, tal como funciona, é o espaço para acessar alguns conhecimentos instrumentais que lhes permitam, no caso dos indígenas e dos imigrantes, o acesso à escrita, ao cálculo e à reivindicação de certos direitos. Se é possível, no contexto onde vivemos, uma escola onde ambas as coisas tenham lugar. Precisamos rever preconceitos sobre o que deveria ser a escola em termos ideais, e compreender o que a escola atual e real pode ser para estes coletivos em termos de acesso às questões que reivindicam.

Assim, a pergunta retorna: a escola é um espaço para afirmar uma marca distinta das referências de identificação hegemônica, ou estas distintividades se dão também em outros espaços afirmativos? Temos uma questão que, por vezes, não é incorporada pela docência, de que a educação é mais do que a escola, que há outros trajetos formativos para as crianças que são válidos e que não acontecem na escola. Então, a partir daí, perguntar-se sobre o que se visibiliza na escola, e para quê? Em todo caso, o que se visibilizará em outros espaços formativos das crianças, ou associados à construção e formação de suas subjetividades? Então, claramente, o feito de ocultar algo, de negá-lo, deveria ser um problema. Agora, isso não significa que necessariamente toda a formação de um sujeito tenha que ocorrer na escola. Ou que os coletivos indígenas e imigrantes tenham que reivindicar necessariamente que todos os seus saberes passem pela escola. Porque, mesmo aí, há posições muito distintas. Há coletivos, tanto imigrantes quanto indígenas, para os quais existem experiências formativas das crianças que não têm que transcorrer na escola. Há outros laços sociais válidos, outros espaços comunitários que sustentam a experiência formativa e que não são a escola. O que não implica que a escola tenha que ser negada e muito menos desvalorizada.

Sobre a questão da visibilização e do ocultamento, algumas escolas têm uma posição mais favorável a mostrar os pertencimentos, e outras não. O problema é que esta dualidade se associa muitas vezes a situações em que as escolas que tendem a mostrá-los são mais degradadas em termos de equipamento, estabilidade, corpo docente etc. Distintos investigadores advertem que, frequentemente, nas escolas que se pode definir como interculturais, a qualidade educativa é muito menos garantida do que naquelas que se definem por um projeto de equiparação. E os próprios coletivos imigrantes e indígenas tendem a buscar mais as escolas que têm um perfil de equiparação. Então o problema não é só o de visibilizar ou não visibilizar, mas muitas vezes as instituições que visibilizam são as menos cuidadas em termos de estrutura e estabilidade. Então não se sabe se são evitadas pela população indígena e imigrante porque visibilizam, ou porque são deterioradas em termos de qualidade educativa.

Kelly Russo – Processo similar ocorre no Brasil, na educação intercultural e indígena. Você faz referência a outros espaços formativos que muitas vezes são ignorados porque acabamos centralizando muito a atenção na escola. Com todas estas transformações da sociedade da informação, a escola ainda se constitui em um ambiente central neste processo de desenvolvimento de crianças e adolescentes?

Gabriela Novaro – Central em nossas sociedades sim, no sentido de que é o espaço legítimo para a transmissão de conhecimento entre as gerações. Agora, central não quer dizer único. A escola tem esta legitimidade, mas esta muitas vezes foi constituída deslegitimando outras propostas formativas. Por isso me parece que um dos desafios fundamentais é atender ao conteúdo formativo de outros trajetos de crianças e jovens. E, por outro lado, é interessante perceber como as formas escolares penetram nas experiências formativas não escolares. Espaços comunitários, por exemplo, atravessados pela lógica avaliativa e certificadora das escolas... assim como a escola atravessada pela lógica de outros espaços formativos. O que acontece na escola não é tão e unicamente escolar, e o que acontece nos espaços formativos não escolares está atravessado pela forma escolar. É importante compreender estes atravessamentos que, às vezes, são tão ricos; outras vezes, tão complicados.

Kelly Russo – E na formação destas crianças e jovens com quem você trabalhou, quais seriam estes outros espaços percebidos como importantes de formação e afirmação de identidades específicas?

Gabriela Novaro – Poderia exemplificar com o bairro com o qual estou trabalhando, que é um bairro localizado a cinquenta quilômetros do centro de Buenos Aires, com um percentual muito grande de população proveniente da Bolívia. Há uma presença muito forte de certas organizações comunitárias de imigrantes que geram permanentemente propostas para as novas gerações, como praticar esportes, incluir-se em um grupo de dança ou música ou mesmo fazer parte da formação política das organizações. Isto envolve muitas crianças e jovens, e não implica que não possam frequentar a escola e desenvolver sua formação, nem que a experiência comunitária se coloque em oposição à escolaridade. A questão é que, para a escola, estas outras experiências das crianças em âmbito comunitário são praticamente desconhecidas; ou não se conhece, ou o conteúdo formativo destas experiências é negado. Assim, me parece que há uma dívida do sistema escolar em reconhecer esta formação que as crianças desenvolvem fora da escola.

E depois há uma questão muito discutível, e tenho certeza de que no Brasil também é muito discutível, quando estas famílias e organizações comunitárias convocam crianças e jovens em torno das experiências de aprendizagem vinculadas a práticas produtivas. Porque se entra em toda a discussão em torno do discurso abolicionista do trabalho infantil e ao fato de que certas famílias e organizações estão apostando na transmissão de valores vinculados, por exemplo, à produção doméstica, que dispara todo um debate se são ou não formas de trabalho; mas que, em todo caso, também contribui na identificação desta criança como uma criança indígena de tal comunidade que desenvolve tal atividade produtiva, ou de tal grupo migrante que se vincula à produção e venda, por exemplo, de hortaliças. Se espera que a partir de certa idade as crianças tenham alguma participação e acompanhem a produção dos adultos. Este debate se insere na tensão sobre se estas atividades são ou não atividades de formação quando não têm um conteúdo de exploração das crianças. Creio que é uma pergunta aberta, que suscita múltiplos debates, mas que deixa clara a diversidade de situações. E muitas vezes a escola e o discurso institucional, na Argentina, têm sido muito persecutório sobre isto e tem se distanciado das imagens de infância e de juventude e da noção de sujeito destes coletivos.

Kelly Russo – São muitos os desafios para uma política educacional voltada a uma perspectiva intercultural, tanto no Brasil quanto na Argentina. Assim, gostaria que você nos falasse quais as conquistas que você considera mais relevantes para as políticas interculturais nos últimos anos, na Argentina, e quais os desafios que você percebe hoje, diante dessa multiplicidade de situações e identidades.

Gabriela Novaro – É importante situar a conjuntura política que temos vivido, tanto no Brasil quanto na Argentina. Faço parte de um grupo de pesquisadores que, até o ano passado, tinha certa afinidade com políticas educativas que permitiam a presença da interculturalidade, mas temos advertido sobre o significado limitado destas políticas. Por exemplo, no caso da interculturalidade, na nova lei nacional educativa de 2006, a interculturalidade se limita apenas à questão da população indígena. E, sobretudo, os projetos se sustentavam em apoio a experiências de vinculação à aprendizagem da língua em contextos rurais e somente na educação primária. E havia muita discussão sobre o que se passava com a população indígena das cidades no ensino médio, por exemplo. E muita limitação para que a interculturalidade fosse um enfoque das políticas em geral. Houve avanços em certos aspectos, porém deveríamos seguir problematizando, por exemplo, o modo como se define o “comum” na Argentina, na educação comum, o que aqui se chamava Núcleos de Aprendizagem Prioritária, o que se supunha que todas as crianças têm que conhecer. A interculturalidade se legitima como uma modalidade específica; houve avanços que não terminaram de colher todo o fruto que poderiam ter colhido do fato de que a diversidade enriquece a definição do comum. Na definição de comum na Argentina, ao menos, e também digo por ter integrado as áreas de desenvolvimento curricular no Ministério da Educação, quem definiu o que deveriam aprender todas as crianças foram os especialistas das disciplinas acadêmicas. Outros níveis de consulta e de escuta de outras vozes sociais foram muito limitados. Então, todo este discurso da interculturalidade serviu como forma de legitimar outras vozes, outras presenças, mas, ressalto, com limites.

Com o novo panorama político, temos que fazer outras perguntas. Estes paradigmas ainda são muito recentes na educação e seus efeitos não são tão claros ainda. O que percebemos hoje é a instalação de um discurso da eficiência, de custo-benefício, em que parece que o principal é a lógica de mercado e a retórica empresarial vem permeando muitos espaços de definição de políticas estatais. E também, no que diz respeito ao trabalho da população de imigrantes latino-americanos, vai haver algum efeito com os reordenamentos que estão sendo feitos pelo novo governo, em suas alianças estratégicas, que muito possivelmente vai deixar de ressaltar a prioridade dos laços com os países latino-americanos para se associar a uma ideia de múltiplos laços, com o que outras redes serão priorizadas. Se isto vai ter um efeito imediato dependerá também de que os movimentos que reivindicam direitos se coloquem entre uma normativa migratória e uma normativa educativa que garante certos direitos e teremos que ver como se definem estas disputas. No Brasil, esta também é uma questão que se abre e que nos convoca, tanto os movimentos sociais como os espaços de pesquisa e de definição de políticas e os espaços educativos.

Kelly Russo – No Brasil também estamos vivendo uma onda conservadora muito forte, que ameaça seriamente as conquistas, mas há uma grande resistência por parte de movimentos sociais, universidades, que vêm atuando pela manutenção dos direitos conquistados. A minha última pergunta seria sobre como estes grupos, que apontam para o tema do reconhecimento, da diferença, do direito à identidade, estão se organizando para tentar resistir a este modelo mercantilista que tenta se constituir como hegemônico na Argentina? Como você percebe estas resistências, estas lutas?

Gabriela Novaro – No momento, a visibilidade destas resistências tem sido bastante notada no nível das universidades. Agora, com respeito aos outros grupos, no caso dos coletivos imigrantes, por exemplo, estão gerando reposicionamentos, dado que isto tem muita relação com a situação de cada localidade. Entretanto, há direitos que foram sancionados em leis, e por mais que não confiemos sempre nas leis, me parece um marco que pode ser reivindicado frente a uma questão que foi explicitada, ou seja, discursos historicamente muito discriminadores frente à população imigrante latino-americana. Bom, há uma lei que diz que a nenhuma criança pode ser negado o acesso à escola por mais que os documentos da família não tenham uma condição de regularidade. E se a reivindicação da lei não acompanha um movimento coletivo massivo, ela se torna um protesto individual por direitos. Foram produzidos laços suficientemente fortes nestes anos, em alguns espaços, tanto entre a população indígena quanto entre a imigrante, que dificultam o caminho dos movimentos contrários a todas estas leis. O que se coloca é que temos que repensar as perguntas que fazemos. Até o ano passado nos perguntávamos “como seguir avançando” e “como se superam estas limitações”? Agora a pergunta é “como se resiste a que se retirem direitos que pareciam garantidos”?

Kelly Russo – Gostaria muito de agradecer mais uma vez por esta conversa, foi um prazer conhecer mais do seu trabalho.

Gabriela Novaro – Para mim foi um prazer, sobretudo, poder trocar experiências com vocês do Brasil. Estive em São Paulo no início deste ano e já percebia situações muito complexas; agora acabei de vir da Bolívia, onde também percebi situações muito complexas; e me parece que uma das coisas que podemos fazer, frente a estes contextos que se apresentam como bastante adversos, é justamente manter os laços entre os países. E entender que os discursos de certas unidades e tendências em comum não foram somente retóricas dos governos, mas correspondem também a posições dos sujeitos. No âmbito da pesquisa, da docência e da reflexão, temos que, de alguma maneira, resistir com propostas coletivas, redes coletivas que sejam mais contundentes que a queixa individual. Espero que este tipo de atividade sirva para estas aproximações.

 

I Doutora em Educação Brasileira. Professora da Faculdade de Educação da Baixada Fluminense, da Universidade do Rio de Janeiro, Brasil. Integra o Programa de Pós-Graduação em Educação, Cultura e Comunicação em Periferias Urbanas e coordena o Programa Movimentos Sociais, Diferenças e Educação, e o Núcleo de Estudos sobre Povos Indígenas e Educação. E-mail: kellyrussobr@gmail.com

II Doutora em Antropologia. Pesquisadora independente do CONICET. Professora da Facultad de Filosofía y Letras, Universidad de Buenos Aires, Argentina. Pesquisa sobre Antropologia e Educação, interculturalidade, migração e educação. Participou de programas de Educação Intercultural e Desenvolvimento Curricular do Ministério da Educação entre 2000 e 2008. E-mail: gabriela.novaro@gmail.com

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