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Desidades

versão On-line ISSN 2318-9282

Desidades  no.27 Rio de Janeiro maio/ago. 2020

 

TEMAS EM DESTAQUE

 

Narrativas (auto)biográficas de jovens lideranças: pedagogias emergentes na participação em grêmios estudantis

 

(Auto)biographical narratives of youth leaderships: emerging pedagogies in the participation of student councils

 

 

Alexsandro dos Santos MachadoI; Irene Reis dos SantosII; Rafael ArenhaldtIII

IDoutor em Educação, Professor Adjunto do Curso de Pedagogia - Educação à distância da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Brasil. Integra a Comunidade Reinventando a Educação e o Núcleo De Estudos e Gestão do Cuidado (CNPq). E-mail: alexsandro.santosmachado@ufrpe.br
IIInvestiga, no nível do mestrado, sobre os sentidos da participação da juventude - Universidad de la Empresa - UDE, Uruguai. Presidente da Comunidade Reinventando a Educação. Integra o Núcleo de Estudos e Gestão do Cuidado (CNPq). E-mail: irene@coreduc.org
IIIDoutor em Educação, Professor Adjunto da Faculdade de Educação e Professor Permanente de PPGENSAU/FAMED da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, Brasil. Integra a Comunidade Reinventando a Educação e o Núcleo de Estudos Educação e Gestão do Cuidado (UFRGS/CNPq). E-mail: rafael.arenhaldt@ufrgs.br

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa sobre a participação de jovens de grêmio estudantil de escolas de Mogi das Cruzes, São Paulo, Brasil. Tem como objetivo analisar narrativas (auto)biográficas desses gremistas, captando pedagogias que emergem neste processo de implicação de si com o outro, em convivência. Perguntamos: o que pensam sobre a sua participação? Quais são os obstáculos e como conseguem superá-los? Qual é a importância do fomento ao grêmio estudantil para o desenvolvimento dessas juventudes? Metodologicamente, fizemos entrevistas-diálogo, gerando narrativas (auto)biográficas orais e escritas. Os dados foram analisados por meio de uma hermenêutica prática, a partir dos processos de biografização e heterobiografização dos entrevistados. Por fim, apresentamos reflexões sobre as pedagogias múltiplas e emergentes que estabelecem redes de apoio e amparo entre os sujeitos das comunidades de aprendizagens evidenciadas nas pedagogias da confiança, do gesto e da ascese.

Palavras-chave: narrativas (auto)biográficas, juventudes, pedagogias emergentes, grêmio estudantil.


ABSTRACT

This paper shows the results of students' participation in student council in schools from the city of Mogi das Cruzes, São Paulo, Brazil. Our purpose was to analyze the (auto)biographical narratives of the guild members, capturing pedagogies emerging from this process of implication of oneself with others, in interaction. We asked: What do they think about their participation? What are the barriers to their participation, and how do they manage to overcome them? How important is the promotion of the student council for the development of these young people? Our methodology was based on dialog-interviews, leading to oral and written (auto)biographical narratives. Data were analyzed through practical hermeneutics based on the processes of biographization and heterobiographization of respondents. We conclude by presenting reflections on the multiple, emerging pedagogies which establish networks of support and assistance among subjects in learning communities, as indicated by the pedagogies of trust, gesture and asceticism.

Keywords: (auto)biographic narratives, youth, emerging pedagogies, student council.


 

 

Como gremista, posso lhes dizer que foi uma honra muito grande ter um pouco da defesa da escola, um pouco do contato interno, pois foi dedicador (sic) acreditar que tantos alunos confiaram em você e que tantos têm a vontade, desejo e a pretensão de assumir este cargo, porém poucos têm a coragem de arriscar ser um gremista (R. G. M., 17 anos, gênero masculino).

Ser gremista pode se constituir como uma honrada experiência de outorga de confiança de seus pares para assumir um lugar de dedicada ação em defesa da escola. E tal ação, que pode ser um corajoso ato político pessoal, torna-se pedagógica por se tratar de um agir ético-educativo em prol de uma comunidade de aprendizagem. Esse é um dos sentidos possíveis que interpretamos a partir das narrativas (auto)biográficas de jovens participantes ativos em grêmios estudantis.

É dessa ação pedagógica, em prol do bem comum de uma comunidade educativa, que emerge a palavra confiança. Os jovens dão um sinal e um recado de que participar pode ser uma forma de confiar e de serem confiados. E, por isso, ressignificam o locus educativo pela sua participação.

Etimologicamente, segundo Cunha (1994, p. 355), em latim, a palavra "con-fiar" pode ter ao menos duas possíveis origens. A primeira delas se relaciona a fidere, ou seja, "ter fé". A segunda se relaciona ao termo filare, que pode ser interpretado como "compor com fios". Acolhemos e entrelaçamos ambos os sentidos ao interpretarmos, hermeneuticamente, as narrativas (auto)biográficas dos jovens gremistas, pois, como veremos adiante, ao serem "con-fiados" por seus pares, os jovens relatam que passam a acreditar mais em si mesmos e na coletividade, colaborando com a melhoria de suas vidas, em comunidade.

Em outras palavras, os gremistas, por meio de uma pedagogia da confiança, anunciam que a participação é catalisadora de energia e criatividade coletiva, que podem compartilhar suas idéias e somar suas ações às de outros jovens, crianças e adultos, impactando, positivamente, em sua comunidade, não somente para um futuro longínquo, mas no aqui e no agora.

Este texto apresenta resultados parciais de uma pesquisa mais ampla, em curso, que tem como cenário e estudo a participação de jovens dos grêmios estudantis de três escolas de Mogi das Cruzes, vinculadas à Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, Brasil. Assim, o objetivo central deste artigo é analisar as narrativas (auto)biográficas de jovens, no exercício de sua participação estudantil, na organização de grêmios, captando as pedagogias que emergem e se anunciam nesse processo de implicação de si com o outro, em convivência, e o modo como esses jovens (re)elaboram, em suas trajetórias de vida, as dimensões e os sentidos da participação.

Evidenciamos que relacionar participação com juventudes é algo recorrente (Dayrell, 2016; Perondi, 2013; Perondi; Vieira, 2018) e enseja que educadores e pesquisadores atentem para a problemática, no sentido da relevância do refletir sobre o fazer ético-político-pedagógico com as juventudes.

Metodológicamente, utilizamos as narrativas (auto)biográficas, entendidas como um processo de pesquisa e formação, neste caso, em uma abordagem qualitativa. Este artigo é produto de um processo de investigação-ação, de cunho narrativo, que possibilita a interação e a interpretação hermenêutica, em que se evidenciam a voz e a palavra das jovens lideranças estudantis.

O exercício (auto)reflexivo, a partir das narrativas (auto)biográficas, tem se mostrado como dispositivo potente e fortalece a compreensão da participação como ato político e de responsabilidade com o coletivo, que implica o reconhecimento da relação entre a educação e os jovens, entre a escola e os jovens, entre a dimensão pedagógica e o aprendizado dos jovens ou do aprender com os jovens.

Quanto aos procedimentos metodológicos, foram realizadas entrevistas-diálogo com os jovens participantes, que geraram relatos (auto)biográficos orais e escritos. Posteriormente, todas as narrativas foram sistematizadas e analisadas por meio de um processo de confecção artesanal. Compreendemos esta noção a partir da perspectiva de artesão intelectual (Wright-Mills, 1972) e de modelo artesanal de ciência (Becker, 1997).

Deste modo, analisamos as narrativas construindo redes de sentido e significados sobre os modos de ser e estar das juventudes, sobre os modos como se narram e se dizem nos espaços de participação. Por fim, apresentamos reflexões sobre as pedagogias múltiplas que estabelecem redes de apoio, amparo e confiança entre os sujeitos das comunidades de aprendizagens.

 

Juventudes e participação social

Além de aprender com meus colegas gremistas coisas novas, aprendo também a expressar minha opinião, sem medo, e posso ser ouvida. São muitos os benefícios de ser gremista, mas o mais importante é o protagonismo juvenil, ou seja, a participação e a voz ativa na escola, podendo passar para a diretoria as opiniões, sugestões e ideias dos outros alunos (A. N., 14 anos, gênero feminino).

A participação do nosso trabalho para a comunicação mudou algumas coisas e me arrisco em dizer que mudou até algumas pessoas. Os alunos da minha escola se espelharam no nosso trabalho e começaram a participar e, com isso, os pais deles também. Movimentando uma comunidade inteira com somente um gesto (P. L. B. I., 16 anos, gênero masculino).

Ser gremista pode ser ainda uma experiência de "ter voz ativa na escola", expressando-se sem medo. As narrativas acima ilustram que participar do grêmio estudantil pode indicar um movimento de se buscar ser ouvido, fazendo gestão, comunicando e integrando pessoas, por meio de gestos que podem transformar os sujeitos e a comunidade inteira. Assim dão sentido alguns jovens participantes desta pesquisa, entrelaçando suas juventudes e participação social em seus territórios.

Uma das interpretações possíveis para a origem da palavra gestão está associada, etimológicamente, ao verbete latino gerere e suas formas gestio, gestionis (Cunha, 1994, p. 384-385). É possível, então, associar o conceito de gestão ao conceito de gesto, identificado em gestus, ou seja, ao que foi realizado, não como uma simples expressão corpórea ou emocional. Além disso, também é possível associar ao verbete latino gerere a ideia de gestação, de germinação.

De maneira similar, os estudantes gremistas, participantes da pesquisa, afirmam que, dentre os principais aprendizados da experiência, estão as possibilidades de: (i) transformar a gestão (democrática) da escola; (ii) gerar transformações na vida das juventudes; (iii) realizar gestos coletivos e (iv) germinar novas formas de vida ao aprenderem a dizer sua palavra de partilha das decisões coletivas e de reinvenção do poder:

Praticar a democracia como forma de vida política e social, em articulação com as instituições democráticas (como é o caso das escolas, dos grêmios estudantis, dos sistemas de ensino públicos etc.) é procurar inventar formas múltiplas de partilha do poder e de processos decisórios de interesse coletivo (Machado; Arenhaldt, 2016, p. 125).

Nesse sentido, Fiori (1987, p. 13), ao prefaciar a obra Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, afirma que "com a palavra, o homem se faz homem. Ao dizer sua palavra, pois, o homem assume conscientemente sua essencial condição humana". Parafraseando o autor, podemos também dizer que um jovem se faz jovem ao assumir, conscientemente, sua condição de sujeito histórico e social. Afinal, como destaca Valenzuela (2014, p. 18), "juventude é um conceito vazio fora de seu contexto histórico e sociocultural".

A propósito, a construção do conceito de juventude, social, histórica e academicamente, exige contextualização. De acordo com Perondi e Vieira (2018, p. 54-58), há quatro possíveis abordagens: a) juventude como etapa preparatória para a vida adulta; b) como problema, com foco na falta ou na negatividade, gerando medo e afastamento; c) como modelo, um produto vendido pelo mercado promotor do consumismo; e d) como sujeito de direito e, portanto, de participação, com instâncias democráticas pensadas e preparadas para que isso se dê. Em nossas ações educativas e acadêmicas, como neste artigo, assumimos esta última perspectiva.

Para além dessas abordagens, Perondi e Vieira (2018, p. 51) propõem que o conceito juventudes seja entendido no plural, afirmando que:

Atualmente há uma clareza de que não é apenas a questão etária que define o que é a juventude, mas, sobretudo as suas características sociais, históricas e culturais. Em vista disso, pode-se afirmar que não há um conceito homogêneo e universal sobre as juventudes, dado que é preciso analisar quais são os contextos em que estão inseridos os jovens sobre os quais falamos.

O conceito de juventudes, portanto, vai se metamorfoseando de forma complexa, considerando o contexto social, a dimensão histórica e biográfica. De acordo com cada contexto, as juventudes também vão assumindo uma carga diferente de responsabilidade e diferentes possibilidades de participação social:

A entrada na juventude se faz pela fase da adolescência e é marcada por transformações biológicas, psicológicas e de inserção social. É nessa fase que fisicamente se adquire o poder de procriar, em que a pessoa dá sinais de ter necessidade de menos proteção por parte da família e começa a assumir responsabilidades, a buscar a independência e a dar provas de autossuficiência, entre outros sinais corporais, psicológicos e de autonomização cultural (Dayrell, 2016, p. 26).

Outrossim, neste artigo, analiticamente, (entre)tecemos as narrativas (auto)biográficas de lideranças estudantis, em um esforço ético e estético de escutar os jovens que se fazem jovens ao proferirem reflexões a respeito de sua condição humana e de suas juventudes. A seguir, apresentaremos as disposições metodológicas que darão suporte às análises sobre como esses jovens do grêmio estudantil manifestam e (re)elaboram suas trajetórias de vida e os múltiplos sentidos de sua participação.

 

Das disposições metodológicas: as narrativas (auto)biográficas

Do ponto de vista metodológico, operamos com as narrativas (auto)biográficas enquanto abordagem qualitativa e a partir de um movimento de pesquisa-formação (Passeggi, 2010; 2015; Passeggi; Nascimento; Oliveira, 2016; Delory-Momberger, 2014; Josso, 2010). Trata-se de uma atividade de biografização que "aparece assim como uma hermenêutica prática, um quadro de estruturação e significação da experiência por intermédio do qual o indivíduo atribui-se uma figura no tempo, ou seja, uma história que ele reporta a um si mesmo" (Delory-Momberger, 2014, p. 27), ao passo que também se leva em consideração o processo de heterobiografização, compreendido como o aprendizado que pode ocorrer ao se escutar as experiências de vida do outro.

Isto é, no âmbito deste artigo, apresentamos as atividades de biografização e heterobiografização por meio do en(tre)laçamento das narrativas (auto)biográficas dos jovens gremistas que participaram da pesquisa, enquanto um exercício hermenêutico prático, por parte dos investigadores e também dos estudantes participantes da pesquisa.

Os dados foram produzidos por meio de entrevistas-diálogo (Morin, 1996), objetivando um movimento aberto e sensível, acolhedor e respeitoso com a trajetória de quem (se) narra e vigilante às múltiplas possibilidades do movimento de contar-se ao outro por parte de quem escuta sensivelmente (Barbier, 1993; 2007).

Afinal, é nesse movimento dialógico de narrar e escutar, durante o processo de coleta de dados, que pode ocorrer o movimento de (re)olhar para si, convertido em dispositivo e objeto de reflexão e autorreflexão, portanto, também formativo. Segundo Machado (2005, p. 25):

[...] ao narrar, ao compor novamente a trama de suas vidas, o narrador revê a si mesmo e o mundo do qual participa. Ele se reconhece, se respeita. Etimologicamente, a palavra respeito vem do latim res-pectare (Cunha, 2001, p. 678), ou seja, re-espectar, rever. Ou seja, ao narrar-se os entrevistados entrelaçam suas histórias, como artistas, de uma maneira singular que lhes propicia um tempo e um espaço de re-olhar para si mesmo, reconhecendo-se.

A metodologia desta investigação está embasada, portanto, em uma abordagem epistêmica de que a narrativa de alguém sempre é afetada pela subjetividade de ambos, de quem narra e de quem o escuta, pois, como afirma Machado (2005, p. 35): "Aquele que escuta o narrador, em contrapartida, participa da vida dele, experimenta-a, numa escuta participativa. Além disso, aquele que ouve histórias narradas experimenta um ritmo, uma feitura artesanal".

Operacionalmente, o convite para participar da pesquisa foi realizado a todos os integrantes dos grêmios estudantis da cidade de Mogi das Cruzes. Trinta jovens (30) se disponibilizaram a participar da investigação, produzindo narrativas orais e/ou escritas. Do ponto de vista da configuração do grupo de jovens participante, dezesseis (16) deles se identificam com o gênero masculino e quatorze (14) com o feminino, tendo entre 14 e 17 anos.

Para fins de identificação, os jovens autores das narrativas (auto)biográficas utilizadas neste artigo estão identificados com as iniciais dos seus nomes, idade e gênero. Ressaltamos ainda que a investigação que dá suporte a este artigo foi aprovada em Comitê de Ética de Pesquisa com seres humanos. Além disso, todos os entrevistados assinaram um documento de assentimento, e os responsáveis consentiram que eles fizessem parte da investigação.

 

En(tre)laçando narrativas dos jovens gremistas: escuta e anúncio de aprendizagens em ambiências coletivas

O grêmio tem lados positivos e negativos. Um dos pontos positivos é que você aprende a trabalhar em equipe, amar as pessoas, apesar dos defeitos delas. Os pontos negativos é que nós temos que aprender a separar a vida pessoal da vida de gremista, vamos ter que abrir mão de algumas coisas para estar junto com o grêmio (G. B. L., 15 anos, gênero feminino).

Eu falava o tempo todo que eu odiava a escola, que eu queria sair da escola... na verdade, foram atitudes infantis que eu tive [e olha para o chão demoradamente], não cheguei a conversar com meu pai nem nada, não resolvia nada no diálogo. Eu lembro que um dia a gente estava lá, antes de ela me dar o papelzinho da suspensão, ela chegou em mim e falou assim: por que que ao invés de você mudar de escola você não muda a escola (L. M., 15 anos, gênero masculino)?

Ser gremista pode ser uma experiência de integração de aspectos positivos e negativos da vida em educação. Ao estudar o discurso educacional, especialmente por meio de narrativas (auto)biográficas de docentes, Machado (2005) afirma que se pode encontrar na escola discursos de "traços predominantemente novelescos" (p. 135), nos quais o narrador se biografiza, dicotomizando "a dinâmica do seu viver entre bom e mau, vítima e algoz" (p. 146). Para romper com os romantismos e os fatalismos na educação, portanto, se faz necessária uma pedagogia de ascese que exige uma "vontade de ir além de si, de viver em imanente desejo do tornar-se mais, permitindo-se viver, desanestesiadamente, sentindo os sabores das (con)vivências com mais intensidade, sejam elas prazerosas ou sofridas" (p. 39).

E, nesse processo de aprimoramento pessoal, toda a diferença pode ser feita ao encontrar um educador que confie no educando. Isso é evidenciado pela fala transcrita acima, de L. M. Nesse caso, o gremista narrador explicita o convite confiante feito pela diretora: "por que ao invés de mudar de escola você não muda a escola?".

Ao rememorar sua história, o discente L. M. se biografiza, ou seja, entrelaça a intriga que compõe a sua vida (Ricoeur, 2010, p. 93), evidenciando a acolhida da gestora-educadora em forma de um convite: transformar a ameaça de um castigo-condenação de desterritorialização, pela mudança de escola, em energia capaz de mudar o seu arranjo territorial educativo. Trata-se de uma repreensão amorosa e convidativa, confiante e mobilizadora. Há, portanto, uma pedagogia da ascese que se anuncia como um possível caminho de transformação pessoal pela atuação coletiva do educando, no sentido de "ser mais", um conceito chave para a concepção de ser humano em Freire (1987), como busca e luta pela humanização, possibilidade dos seres humanos transformarem o mundo e a si mesmos.

Além disso, ao se biografar, entrelaçando as tramas que compõem suas vidas, os jovens refletem e ressignificam suas trajetórias formativas em um processo de ascese, como quando a M. F. narra a respeito daquilo que denominou como sua "parte mais egocêntrica" antes de seu envolvimento com o grêmio estudantil, que deu lugar ao pensamento de grupo, de conjunto, de comunidade:

Todo mundo tem aquela parte mais egocêntrica, de querer se aparecer mais, de estar certo, mas daí, quando você fala isso em voz alta, você percebe que não é, dá até vergonha, porque você percebe que não é aquilo, que é muito mais bonito, muito mais verdadeiro, quando é em conjunto. Podem criar uma solução juntos, com visões diferentes (M. F., 17 anos, gênero feminino).

Acolher a diferença, aliás, parece ser, a esses líderes gremistas, algo importante e desejável. Percebem que é na diferença que se cresce e que a escuta é um aprendizado essencial que abre portas para outros tantos aprendizados. Além disso, demonstram clareza de que o que é ensinado na escola, para além dos conteúdos, serve para sua formação humana, afinal "ensinar é uma especificidade humana", como destaca Freire (1996, p. 102).

Cada professor ensina um pouco. Cada um passa um pouco, então a gente junta isso tudo para formar nosso caráter, quem a gente é hoje. Para a gente questionar alguma coisa a gente tem que escutar. A gente tem que correr atrás para pegar mais informação. A escuta está valendo em tudo (G. C., 16 anos, gênero masculino, grifos nossos).

Ensinar e formar, questionar e escutar, mais do que verbos grifados na narrativa de G. C., revelam formas de conceber o papel social da instituição escolar e de compreender a relação pedagógica entre seus atores, na perspectiva dos processos de humanização. Ao ressaltar que "para a gente questionar alguma coisa a gente tem que escutar", o narrador gremista incorpora em suas palavras uma compreensão prática de que, fazemo-nos gente e nos humanizamos com o outro, quando, em diálogo, escutamos. É em Freire (1996) que a relação ensinar-escutar merece destaque: "ensinar exige saber escutar", ou seja:

[...] se o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que, em certas condições, precise de falar a ele (p. 127-128).

Por sua vez, a jovem M. F. ressalta, em sua narrativa, o fato de que, em algumas circunstâncias, sua participação é reduzida a um papel meramente figurativo: "Mas quando a gente chegou lá, só estava a diretora falando. Os alunos só assinando a presença. Daí a gente começou a se articular com eles e abrindo estes pontos que têm dentro da escola. Porque não é só culpa da gestão".

Entretanto, apesar de, muitas vezes, a participação dos gremistas ser oprimida por um discurso adultocêntrico, alguns participantes da pesquisa relatam encontrar alternativas de mobilização, especialmente ao atribuir às práticas do grêmio estudantil uma dimensão coletiva, que não se restringe: "[...] simplesmente ao ajudar. É participar e se engajar com questões acadêmicas, humanitárias, políticas e com a formação de um jovem para o mundo" (F. O. A., 15 anos, gênero masculino).

O sentido de participação, aqui mirado, está em sintonia e em diálogo com a perspectiva de uma disposição ético-estético-afetiva (Bedin, 2006), que se configura nos elos e na presença das vozes dos atores, na teia da escola. Uma escola que, apesar de todas as suas mazelas, é recheada de possibilidades de engajamento em prol de uma formação multidimensional: acadêmico, política e humanitária.

De maneira especial, destacamos a grande quantidade de alusões a essa última dimensão nas biografizações dos participantes da pesquisa. Há recorrentes alusões a ações criativas e coletivas impregnadas de solidariedade, de generosidade, de cuidado, de corresponsabilidade. Ou seja, os aspectos negativos da ambiência escolar e da sociedade são reconhecidos ao passo que os atributos positivos da rotina educacional são percebidos, em si mesmos e na coletividade, através de ações das agremiações estudantis:

Esse que eu acho que é o objetivo do grêmio. Mostrar para os alunos que eles têm caminho onde não tem nada. Mostrar para os alunos algo que eles pensam que é impossível, mas é possível. Aprendi uma coisa com a minha diretora que eu acho muito criativo: a gente está vendo um defeito na escola, por exemplo, aquela parede descascada. O pensamento deve ser: nossa, eu podia dar um jeito. Mas eu não vou tampar a visão e fazer de conta que não estou vendo aqui, porque eu estou vendo. Então eu posso mobilizar pessoas para correr atrás (M. F.).

Em suma, apesar da existência de um conjunto de problemas evidenciados no cotidiano da escola pelos jovens participantes da investigação, há ali, ao mesmo tempo, um potencial revigorante de transformação, por meio de uma "pedagogia da ternura que faz circular pela capilaridade escolar" (Bedin, 2006, p. 207).

As narrativas (auto)biográficas dos gremistas são reveladoras de que, pela dinâmica integradora de uma experiência educativa cotidiana compartilhada, muitas vezes, ativa emoções e afetividades, constituindo cimento de coletividade, de agregação. Assim, o que parece conferir o viver na escola é o gosto de ser vivida, que funda e constitui a força vital de agregação (Maffesoli, 1996, p. 121).

 

Considerações finais

Numa sociedade obcecada por rankings, a função social da escola parece ser reduzida a resultados em exames nacionais e internacionais, desconsiderando, muitas vezes, que a vida, em todas as suas formas, é experienciada no tempo presente. Outrossim, enfraquecem-se as experiências educacionais ao não se valorizar a escuta sensível das sabedorias herdadas por meio das histórias de vida dos sujeitos que compõem a escola.

Nesse sentido, a escolha metodológica deste trabalho pela escuta sensível de narrativas (auto)biográficas de jovens participantes de grêmios estudantis, espaço educativo não-formal dentro da ambiência escolar, foi uma opção epistêmica e metodológica para produzir e analisar dados, hermeneuticamente, a partir de processos de biografização e heterobiografização.

Inicialmente, constatamos que as narrativas dos jovens confirmam o que alerta Dinello (2007, p. 313): "a escola e seu conteúdo se sobrepõe aos procedimentos e se perde a possibilidade de implementar um processo em que o protagonismo pode ser assumido por quem aprende". Como educadores e pesquisadores, caberia-nos também questionar se estamos confundindo educar com escolarizar. E, se escolarizando, não estaríamos limitando os conhecimentos àquilo que cabe dentro das disciplinas ou matérias escolares, compartimentando saberes que pouco se comunicam com a realidade para além dos muros da escola, ainda restritos a um paradigma instrucionista (Pacheco, 2019, p. 33), herança da primeira revolução industrial.

Nesse sentido, cabe relembrar que, ao analisar as narrativas (auto)biográficas dos jovens, este artigo teve como objetivo captar as pedagogias que emergem e se anunciam por meio das experiências de participação em grêmios estudantis. O movimento de (entre) tecer a escrita deste artigo, portanto, visibiliza e evidencia as narrativas (auto)biográficas orais e escritas de jovens que assumem posições de liderança em escolas.

Esse movimento possibilitou visualizar pedagogias emergentes nos processos de participação e de ambiências coletivas, bem como reconhecer múltiplas pedagogias, das quais destacamos, neste exercício de hermenêutica prática, uma tríade que estabelece redes de apoio, amparo e cuidado entre os sujeitos das comunidades de aprendizagens chamadas de grêmio estudantil. Ao longo do texto, as pedagogias foram sendo tecidas e aqui são reapresentadas de forma resumida e condensada:

• Pedagogia da confiança: compreendida a confiança nos sentidos de: (i) ser honrado pela outorga da confiança alheia enquanto assunção de um lugar de representação e responsabilidade coletiva; (ii) ao ser "com-fiado" para assumir tais responsabilidades coletivas, isso produz no sujeito um ato de fé em si e na comunidade; (iii) tecer os fios da(s) vida(s) com o outro, em convivência, em colaboração e em comunidade.

• Pedagogia do gesto: compreendido o gesto nos sentidos de: (i) ação intencional e deliberada para construção das condições de possibilidade para a transformação da gestão escolar, por meio de seus atores e da instituição grêmio estudantil; (II) prática intencional e deliberada de promover e gerar transformações na vida das juventudes; (iii) realizar gestos coletivos; (iv) fazer germinar novas formas de vida ao aprenderem a dizer sua palavra.

• Pedagogia de ascese: compreendida a ascese nos sentidos de: (i) aprimoramento pessoal, através de processos de biografização e heterobiografização; (ii) convivências em ambiências coletivas, que produzem aprendizagens sociais, de vida, de comunhão e de transformação pessoal pela atuação em defesa da escola.

Tais pedagogias, frutos de um exercício de hermenêutica prática a partir da narrativa dos jovens, expressam sabedorias apreendidas com outros jovens, tecidas em um cotidiano de tomada de decisões, compartilhando conhecimentos entre seus pares. Ao mesmo tempo, a convivência com educadores, gestores e familiares, especialmente nas ambiências em que o diálogo e a escuta fluem, é valorizada e considerada importante ao dar-lhes suporte e desafiá-los a participar, ativamente, da produção do conhecimento e de outros mundos possíveis.

Cabe ainda ressaltar que as pedagogias, aqui apresentadas, não podem ser consideradas ou analisadas de forma estanque, como categorias isoladas. Muito pelo contrário. A tríade apresentada se constitui em uma sistematização de reflexões, a partir de processos de biografização e heterobiografização, que transversalizam e extrapolam qualquer tentativa de categorização simplista.

Nesse sentido, as narrativas desses jovens participantes reforçam quais experiências de participação foram fundamentais para o aprimoramento pessoal (ascese), mas isso só foi possível pelos diversos gestos de ações coletivas e participativas e pela confiança outorgada por seus pares, educadores, gestores. Podemos concluir, portanto, que o grêmio estudantil pode ser um espaço educativo e de transformação social por proporcionar convivências entre pares e agregar adultos que fazem parte da comunidade, da escola e das famílias, dialogicamente.

No âmbito metodológico, verificamos que o exercício da investigação, por meio de narrativas (auto)reflexivas, oral e escritas, de jovens estudantes gremistas, viabilizou encontros e interações dialógicas. Essa escolha, além de coerente com a abordagem epistêmica que fundamenta a análise hermenêutica de seu conteúdo, possibilitou a produção de dados como uma prática de escuta sensível adequada ao exercício reflexivo dos processos de biografização e heterobiografização dos jovens. E aos pesquisadores, possibilitou um movimento reflexivo e de sistematização da experiência investigativa.

Portanto, o que tecemos até aqui é um "em-se-fazendo", um processo inacabado, uma contribuição e um convite para o "pensar-junto", para um "estar-junto" sob e sobre pedagogias emergentes nos processos de participação juvenil.

Para concluir, reiteramos que este trabalho indica a necessidade de novas investigações sobre a complexa temática das juventudes, educação e participação, utilizando narrativas (auto)biográficas. A propósito, a palavra complexus pode ser compreendida como "o que é tecido junto, de constituições heterogêneas inseparavelmente associadas" (Morin, 2007, p. 13). Ou seja, não simplesmente reforçamos que seguiremos trabalhando com a temática, mas, ao afirmar que consideramos o tema complexus, indicamos um modo de fazer, uma abordagem epistêmica e metodológica, nesses sombrios tempos, de reinventar a educação (Morin; Díaz, 2016) e produzir ciência tecendo junto, com-fiando que a dialogicidade e a amorosidade são dimensões fundantes para tecer a vida.

 

Referências Bíblíográfícas

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Data De recebimento: 15/02/2020
Data De aprovação: 28/06/2020

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