Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Desidades
versão On-line ISSN 2318-9282
Desidades no.31 Rio de Janeiro set./dez. 2021
TEMAS EM DESTAQUE - SEÇÃO LIVRE TEMAS SOBRESALIENTES - SECCIÓN LIBRE
A notificação compulsória da violência contra crianças e adolescentes e seus desdobramentos via Conselho Tutelar
The compulsory reporting of violence against children and adolescents and their deployments via the Guardianship Council
La denuncia obligatoria de violência contra ninos, ninas y adolescentes y sus desarrollos a través del Consejo de Tutela
Joana GarciaI; Vanessa Miranda Gomes da SilvaII
IAssistente Social. Doutora em Serviço Social. Professora Titular da Escola de Serviço Social, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Coordenadora do Núcleo de Estudos e Trabalho sobre Infância, Juventude e Famílias (NETIJ), Brasil. Associada ao Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDECA-RJ), Brasil. E-mail: joanagarcia@ess.ufrj.br
IIAssistente Social. Doutora em Serviço Social. Tecnologista em C&T. Assistente Social do Instituto Nacional de Câncer, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: vanessa.miranda@inca.gov.br
RESUMO
Este artigo busca considerar o potencial de mobilização da rede a partir do instrumento de notificação compulsória da violência contra crianças e adolescentes, tomando por referência a experiência do município de Curitiba/PR, Brasil. Seus dados são resultantes de uma pesquisa de campo que compreendeu a análise de fichas de notificação, a observação participante em reuniões da rede de proteção local e entrevistas com conselheiros tutelares. Os resultados demonstraram que, em Curitiba, o processo de notificação encontra-se bem consolidado: considera-se que a boa articulação entre o Conselho Tutelar e a rede de proteção contribua para esse processo. No entanto, como todo processo em desenvolvimento, o trabalho enfrenta desafios: um deles é requalificar a identidade do Conselho Tutelar associada ao disciplinamento das famílias.
Palavras-chave: notificação de abuso, violência, criança e adolescente, Conselho Tutelar, proteção social.
ABSTRACT
This article considers the potential for mobilizing the network via compulsory notifi-cation instrument on violence against children and adolescents in Curitiba/PR, Brazil. Data are the result of a field research that included the analysis of notification forms, participant observation in meetings of the local safety net and interviews with tutelar y counselors. The results showed that, in Curitiba, the notification process is well Consolidated: it is considered that the good articulation between the Guardianship Council and the safety net contributes to this process. However, like any other process under development, the work faces challenges: one of them is to requalify the identity of the Guardianship Council associated with the disciplining of families.
Keywords: abuse notification, violence, child and adolescent, Guardianship Council, social protection.
RESUMEN
Este artículo busca considerar el potencial de movilización de la red a partir del instrumento de notificación obligatoria de violência contra ninos, ninas y adolescentes, tomando como referencia la experiencia de la ciudad de Curitiba/PR, Brasil. Sus datos son el resultado de una investigación de campo que incluyó el análisis de formulários de notificación, observación participante en reuniones de la red de seguridad local y entrevistas con tutores. Los resultados mostraron que, en Curitiba, el proceso de notificación está bien consolidado: se considera que la buena articulación entre el Consejo de Tutela y la red de seguridad contribuye a este proceso. Sin embargo, como cualquier otro proceso em desarrollo, el trabajo enfrenta desafios: uno de ellos es recalificar la identidad del Consejo Tutelar asociado a la diciplina de las famílias.
Palabras clave: notificación de maltrato, violência, ninez y adolescência, Consejo de Tutela, protección social.
Introdução
No Brasil, toda suspeita ou confirmação de violência contra crianças e adolescentes deve ser compulsoriamente notificada ao Conselho Tutelar. Essa instrução foi estabelecida a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e consta em seu artigo 13 (BRASIL, 1990). A notificação é, portanto, o primeiro instrumento de garantia dos direitos de crianças e adolescentes após a ocorrência ou suspeita de violência.
Consideramos que ainda há, no Brasil, uma naturalização de certas manifestações da violência, bem como das implicações de sua ocorrência (PAIXÃO et al., 2018). Politizar essa questão implica reconhecer as diversas expressões da violência, tornar o que é considerado natural ou imutável em algo que seja preferencialmente evitável, publicizar as implicações do ato violento e considerar estratégias de enfrentamento, responsabilização e reparação (BRASIL, 2010, 2018). Além de favorecer a visibilidade e a politização sobre as formas de violência, a notificação potencialmente impulsiona um conjunto de ações de diversos atores sociais com vistas a intervir na situação e a prevenir novos episódios de violência. Ademais, ao documentar as ocorrências, produz dados que compõem sistemas de informações e subsidiam a elaboração e o planejamento de políticas públicas para o seu enfrentamento e prevenção.
A violência é um fenômeno difuso nas relações sociais, com múltiplas expressões, com distintas origens e, por isso, de difícil enfrentamento e erradicação. Diante da complexidade da violência e de suas manifestações contra crianças e adolescentes, seu enfrentamento indica a importância de um trabalho em rede. Embora o Conselho Tutelar seja o órgão de referência em casos de violação dos direitos de crianças e adolescentes, o trabalho articulado deve caracterizar a natureza de sua intervenção (BRASIL, 1990), rompendo com um modelo de pronto-socorro que caracterizou as políticas assistenciais tradicionais (GONÇALVES; BRITO, 2011).
A rede é uma estratégia operacional na gestão das políticas públicas (FLEURY, 2005), entendida como um conjunto articulado de instituições governamentais, não governamentais e informais, serviços e programas que potencialmente compartilham interesses comuns e recursos materiais e humanos para alcançar um determinado objetivo (BÕRZEL, 1997). Nas ações voltadas para crianças e adolescentes, a rede é composta por atores e instituições do chamado Sistema de Garantia de Direitos (SGD)1. Segundo Aquino (2004), a prática do SGD ganha concretude por meio das redes de proteção integral. Para a autora,
[...] a noção de rede permite traduzir com mais propriedade a trama de conexões interorganizacionais em que se baseia o SGD, pois compreende o complexo de relações acionadas, em diferentes momentos, pelos agentes de cada organização para garantir os direitos da população infanto-juvenil (AQUINO, 2004, p. 329).
A despeito de o trabalho articulado na forma de rede ser um princípio e uma estratégia de intervenção dos Conselhos Tutelares, sua prática é atravessada por variações em torno da própria concepção de rede, assim como do entendimento acerca das competências de cada ator interveniente. O estudo realizado por Burgos (2020, p. 377) indica que as redes de proteção são constituídas por atores que realizam in acto a interpretação dos direitos da criança, ao mesmo tempo em que constroem o próprio significado da ideia de rede. Essa livre interpretação nem sempre encontra convergência entre os atores, o que afeta diretamente a forma de a rede se organizar e o modo pelo qual praticam o direito da criança.
Este artigo é fruto de uma pesquisa qualitativa realizada em 2019 no município de Curitiba, Brasil, com o objetivo de considerar o potencial de mobilização da rede a partir do instrumento de notificação compulsória da violência doméstica e familiar2 contra crianças e adolescentes. O estudo enfatizou os casos notificados de violência doméstica e familiar porque verificamos que, segundo os registros do Sistema de Informação para a Infância e Adolescência (SIPIA)3, a família é apontada como o principal violador dos direitos da população infantojuvenil, sendo o direito à convivência familiar e comunitária o grupamento de direitos mais violado. A expressiva ocorrência de notificações de violência doméstica é abordada em vários estudos empíricos que enfocam a legitimidade e a naturalização de práticas violentas (VENTURINI; BAZON; BIASOLI-ALVES, 2004), a maior permanência e exposição da criança a um tipo de relação de poder (BRITO et al., 2005), a maior incidência da violência doméstica entre famílias pobres (DAY et al., 2003), entre muitos outros. Sobre esse último enfoque, consideramos que o cuidado e a socialização de crianças são bastante demandantes para as famílias de um modo geral, mas as condições materiais - expressas não apenas na renda, mas em todos os recursos que podem ser mobilizados para que as famílias cumpram essas funções - são determinantes na análise das tensões familiares. No entanto, convém considerar que, quando se discute violência doméstica, o olhar sobre o modo de vida das famílias empobrecidas, especialmente das mulheres mães, é historicamente mais rígido e judicativo e, por isso, as famílias pobres, por estarem mais expostas ao controle das instituições públicas, são as mais notificadas por situações de violência. Além disso, os dados, a nosso ver, traduzem a complexidade do tema (em relação aos fundamentos e às manifestações da violência), e não as supostas evidências para explicações causais simplificadoras.
Metodologia da Pesquisa Contextualizando o cenário do estudo
A pesquisa de campo foi realizada no município de Curitiba porque, com base em levantamento bibliográfico (LAVORATTI, 2013), ele se destaca por suas ações pioneiras voltadas ao enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes. Esse destaque se deve à organização do que se tornou um programa intersetorial da Prefeitura de Curitiba: a Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente em Situação de Risco para a Violência.
Segundo Lavoratti (2013), a Rede de Proteção de Curitiba teve origem em 1998 por uma construção coletiva e independente de agentes públicos, ou seja, sem a autoria dos representantes do poder político formal. Inicialmente, não foi instituída com o propósito de organizar um trabalho articulado intersetorialmente; a proposta era a de implantar um protocolo de notificação da violência contra crianças e adolescentes. Com o objetivo de dar visibilidade ao fenômeno, a primeira medida tomada pelo grupo que iniciou os trabalhos da Rede de Proteção foi a criação de um instrumento padronizado para a notificação da violência, conforme descrição de Lavoratti (2013). A ideia era unificar as informações sobre a violência cometida contra crianças e adolescentes com base em uma prerrogativa legal que exigia dos profissionais a comunicação dos casos de violência de que tinham conhecimento. No ano de 2000, a Rede de Proteção de Curitiba foi institucionalizada, passando a ser organizada em Coordenação Municipal, Coordenação Regional e Redes Locais, com centralidade administrativa e coordenação geral na Secretaria Municipal de Saúde, que é o órgão que define, entre outros assuntos, as pautas e o cronograma das reuniões com as coordenações regionais e com os parceiros, além de gerenciar toda a organização do trabalho intersetorial. Esse é um exemplo de como uma iniciativa política de constituição de rede partiu de setores organizados da sociedade efoi institucionalizada pelo Estado.
Os objetivos da Rede de Proteção de Curitiba estão definidos em um escopo de ações muito consistentes e ampliadas, com ênfase na prevenção e no processo educativo, sem priorizar a criminalização dos perpetradores, o que constitui uma medida contra hegemônica no trato da violência. São estes os objetivos:
[...] contribuir, de forma integrada, para a redução da violência contra a criança e o adolescente em Curitiba, principalmente no que se refere à violência doméstica/intrafamiliar e sexual; tornar visível a violência que se pratica contra crianças e adolescentes, estimulando a notificação dos casos; capacitar os profissionais para a percepção da violência e para o desenvolvimento do trabalho integrado e intersetorial; oferecer às vítimas, aos autores da violência e às famílias o atendimento necessário para ajudar na superação das condições geradoras de violência, bem como das sequelas dela resultantes; diminuir a reincidência da violência pelo acompanhamento e monitoramento dos casos; desenvolver ações voltadas para a prevenção da violência, com o envolvimento da comunidade (CURITIBA, 2008,p.17).
O município de Curitiba é dividido em 10 regionais, segundo o Decreto Municipal nº 844/2018. Essa divisão administrativa é referência para todas as áreas de política pública e para a organização dos serviços, e cada regional possui um Conselho Tutelar. O Conselho Tutelar onde foi realizada a pesquisa de campo fica localizado na chamada Rua da Cidadania, um espaço público criado pela Prefeitura de Curitiba com o objetivo de facilitar o acesso aos serviços municipais, tais como aquisição de cartão transporte, passe escolar, passe idoso, emissão da carteira de trabalho e outros documentos de identificação. Esse espaço, além de ser a sede da Administração Regional, abriga o Núcleo Regional da Educação, o Distrito Sanitário, o Instituto de Identificação do Paraná, o Núcleo da Companhia de Habitação Popular de Curitiba, o Armazém da Família, o Núcleo de Atendimento da Fundação de Ação Social (FAS)4, entre outros. A proximidade de tantos equipamentos constitui um aspecto favorável para as duas primeiras etapas da construção de rede, que, segundo Rovere (1999), são assim caracterizadas: reconhecer, conhecer, colaborar, cooperar e associar. Rovere (1999) aponta a importância da gestão participativa e do entendimento da heterogeneidade como uma característica, e não como adversidade, e, embora se baseie em uma concepção de rede em saúde, suas considerações sobre os vínculos5 para um trabalho articulado se prestam às políticas sociais gerais. Reconhecer os serviços existentes em curso (mapeamento) e conhecer mais detalhadamente o trabalho desenvolvido por eles são ações melhor alcançadas pela proximidade territorial.
No momento da realização desta pesquisa, esse Conselho Tutelar contava com cinco conselheiros tutelares, um conselheiro suplente, dois profissionais administrativos e um motorista, estes últimos vinculados à FAS. Esse equipamento não possuía uma equipe técnica formada por assistentes sociais e psicólogos para dar suporte às intervenções dos conselheiros tutelares.
Instrumento de coleta de dados
A primeira etapa da pesquisa de campo compreendeu a coleta de dados em fichas de notificação de violência contra crianças e adolescentes recebidas e arquivadas no Conselho Tutelar. As fichas continham questões relacionadas aos dados gerais da pessoa atendida (nome, filiação, idade, sexo, raça/cor, escolaridade, estado civil, endereço, se a vítima tem filhos), da ocorrência (data e local da ocorrência, unidade da notificação, profissional que notificou, tipo de violência, natureza da violência, meio de agressão), do possível autor da agressão (vínculo com a pessoa violentada, sexo do(a) agressor(a), se o(a) agressor(a) é reincidente) e sobre o encaminhamento realizado, dentre outras.
O objetivo da análise documental foi identificar quais situações eram notificadas, como eram caracterizadas e os desdobramentos da notificação desde o seu recebimento no Conselho Tutelar até o seu encaminhamento para a Rede de Proteção. De um universo de 518 fichas de notificação, 46 foram selecionadas para análise dos dados. Essa amostra foi definida pelo critério de saturação (MINAYO, 2017), o que significa que as fichas analisadas foram consideradas suficientes por se tornarem repetitivas no conteúdo, demonstrando pouca ou nenhuma variação, sendo, assim, redundante persistir na coleta de dados para os propósitos da pesquisa. Convém considerar que muitos campos não estavam preenchidos, o que pode indicar desvalorização do registro, falta de coleta da informação, priorização dos dados considerados mais relevantes, visão circunscrita do uso da ficha, entre outros. Além das fichas de notificação, tivemos acesso aos dossiês organizados pelo Conselho Tutelar, os quais constituíam-se de documentos que informavam as ocorrências relacionadas a determinada família, além de registros dos atendimentos e encaminhamentos feitos em função da mesma.
Como instrumento de coleta de dados, utilizamos, ainda, a observação nas reuniões de uma rede local. São reuniões de curta duração (em média, duas horas), cujo objetivo é discutir os casos notificados de violência contra crianças e adolescentes. Ao serem apresentados, os representantes dos setores de políticas informam as providências que já foram tomadas ou aquelas ações que ainda serão desenvolvidas para o enfrentamento da questão. As discussões ali ocorridas eram registradas em atas e encaminhadas para a coordenação regional.
A última etapa da pesquisa de campo compreendeu a realização de entrevistas semies-truturadas com cinco conselheiros tutelares atuantes no município de Curitiba com o objetivo de conhecer as concepções que orientam a sua atuação junto às famílias em situação de violência, a sua relação com os demais atores da rede de proteção à criança e ao adolescente, bem como conhecer o fluxo de notificação dos casos de violência contra a população infantojuvenil. Contamos com a participação de cinco conselheiros tutelares (quatro titulares e um suplente) com o seguinte perfil: idade entre 41 e 69 anos, sendo quatro do sexo feminino e um do sexo masculino, com filhos (exceto um), praticantes da religião católica (com exceção de um, sem religião), com formação de nível superior, atuando no Conselho Tutelar no mínimo há quatro anos. Antes de exercerem a função de conselheiro tutelar, apenas um não exercia atividade laborativa: dois atuavam na área da Educação, sendo um funcionário público municipal; um atuava na área da assistência social como funcionário público municipal; e um era vinculado a uma organização religiosa que oferecia atendimento à criança e ao adolescente. Segundo os depoimentos, a ocupação anterior motivou a candidatura a conselheiro tutelar, com exceção de dois, que desconheciam essa função. Todos receberam capacitação sobre o ECA e sobre os serviços ofertados no município de Curitiba antes de iniciarem a atuação como conselheiros tutelares.
As entrevistas foram realizadas mediante a autorização dos participantes e a assinatura do Registro de Consentimento Livre e Esclarecido (RCLE). Para garantir o sigilo da identidade dos participantes, os depoimentos foram enumerados aleatoriamente, em sequência não correspondente à ordem de realização das entrevistas.
Para a realização da pesquisa foram considerados os aspectos éticos relacionados à pesquisa com seres humanos e o projeto foi aprovado por um Comitê de Ética em Pesquisa vinculado à instituição de origem das pesquisadoras.
Resultados e discussão
As ações desenvolvidas
No Conselho Tutelar pesquisado, as notificações compulsórias de violência representam a demanda prioritária no atendimento da unidade.
Apesar de toda a demanda que nós temos no CT hoje, as NO [notificação obrigatória] são a prioridade no atendimento, porque uma vez notificado, sabemos que tem algo muito sério acontecendo. Então a gente vai investigar, vai notificar, chamar a família... [...] Então a prioridade de atendimento são as notificações, acima das fichas FICA [Ficha de Comunicação do Aluno Ausente] do estado ou do município, que são as faltas escolares, ou relatório-escola de comportamento de alunos (Entrevistado 1).
Nem sempre a violência está explícita nas situações que chegam ao Conselho Tutelar: algumas vezes, ela aparece diluída em outras questões. É o caso da notificação de falta na escola: "a escola manda mais notificação de faltas. Daí quando você vai investigar uma falta, você descobre uma outra situação familiar por trás (Entrevistado 1). Nesse caso, observa-se que a notificação pode favorecer uma leitura mais ampla da questão e o reconhecimento das expressões da violência praticada contra crianças que não são apresentadas por desconhecimento, naturalização ou economia de esforços, esta última justificada pelo foco no atendimento à demanda principal.
A escola é a instituição que mais notifica situações de violência, segundo o depoimento dos entrevistados.
A criança passa muito tempo na escola, e a escola geralmente é a primeira a detectar qualquer violência ou qualquer direito violado. Eu acho que hoje é a escola e depois, em segundo lugar, a saúde (Entrevistado 2).
Maior sensor acaba sendo a escola, e vem pela professora [...] quem tem maior sensibilidade é o núcleo escolar [...] porque, como eu disse, é a informação espontânea, e isso a gente preza bastante, é muito importante aquilo que a criança fala de coração, fala na sua ingenuidade, fala expressando a verdade, colocando o seu sentimento (Entrevistado 3).
A importância da escola na apresentação de notificações aos Conselhos Tutelares é devida à possibilidade de maior conhecimento das crianças do que outras instituições. No entanto, a escola, ainda que seja um espaço privilegiado de construção e revisão de conhecimentos, não está livre de reproduzir leituras simplificadoras e judicativas sobre violência. No estudo realizado por Cocco et al. (2010), a escola se limitava a notificar as marcas físicas da violência e a remeter o problema à família.
Na pesquisa realizada em Curitiba, que deu origem a este artigo, quando a notificação é recebida no Conselho Tutelar primeiramente são cumpridos os procedimentos internos de registro e distribuição. O registro é feito em um livro de protocolo e o documento recebido é classificado através de uma numeração que identifica o grupo familiar ao qual a criança ou o adolescente está vinculado. Toda ocorrência relacionada a determinado grupo familiar é arquivada no mesmo dossiê com a finalidade de demonstrar o histórico de acompanhamentos. Cada família atendida no Conselho Tutelar pesquisado tem um conselheiro de referência. Imediatamente a gente verifica se já tem registro de atendimento no Conselho. Se já tiver registro, a gente encaminha para a conselheira de referência. Se não tiver, é separado pela rede (Entrevistado 1).
Na região onde foi realizada a pesquisa de campo existiam cinco redes locais, compostas por representantes dos setores da Educação, Saúde, Assistência Social, Conselho Tutelar e outras organizações que possuem parceria com a Prefeitura para a assistência à criança e ao adolescente. São trabalhadores da ponta, que operacionalizam o atendimento à população e estão presentes no território de moradia do(a) usuário(a). Dentre as funções dessas redes locais está a de executar ações de prevenção à violência contra crianças e adolescentes, definir os encaminhamentos e os procedimentos necessários ao caso notificado em sua área de abrangência, promover o acompanhamento dos casos notificados, disponibilizando serviços e programas para seu atendimento (CURITIBA, 2008).
O procedimento seguinte é a convocação da família para comparecimento no Conselho Tutelar a fim de averiguar os fatos (conforme caracterizado na fala do Entrevistado 3), sendo geralmente feito por escrito e entregue pessoalmente por um dos funcionários administrativos.
A gente faz a notificação para a família, pra que a família venha até o Conselho Tutelar para explicar aquela... a gente não fala de onde veio a denúncia, mas a gente notifica pra família explicar o que que aconteceu aquela situação, se aquilo lá é verdadeiro ou se não é. Porque às vezes tem algumas suspeitas que apenas são suspeitas, não é o fato real. Às vezes, a situação não é aquilo que diz na notificação também (Entrevistado 5).
A convocação da família, na verdade, é feita à mãe: das 46 notificações analisadas, em 27 a mãe foi a pessoa convocada a comparecer no Conselho Tutelar para esclarecer a situação ocorrida. Na análise dos dados coletados através das fichas de notificação, observamos que a ocorrência da violência é preferencialmente atribuída à figura materna, o que também é expresso no depoimento de um entrevistado:
A grande dificuldade está exatamente naquela pessoa que teria que zelar, e não zela. Essa pessoa fica muito exclusivamente na figura da mãe, porque a mulher acaba sendo vitimizada mais uma vez: ela tem que ser mãe, tem que ser pai, tem que ser trabalhadora e tem a vida pessoal dela. E isso é muito difícil! E às vezes ela... ela se vê assim: ou eu, ou meu filho, ou meu companheiro. E ela se vê refém muitas vezes dele por questão financeira, ou por apoio moral e isso acaba sendo a grande dificuldade. Que ela não faz, ela tem dificuldade de cumprir isso. E a gente às vezes também fica um pouco sensível com essa naturalidade dela e às vezes a gente sente esse embate, essa dificuldade, né (Entrevistado 3).
A despeito das muitas transformações ocorridas em relação ao papel da mulher na sociedade, as quais suscitaram novas práticas relacionadas ao viver em família, é sobre a mulher que se deposita a responsabilidade e o saber sobre o cuidado. Estudos sobre divisão sexual do trabalho doméstico reiteram a desigualdade de gênero e a tarefa de cuidar como naturalmente associada à figura materna (HIRATA, 2016; KRMPOTIC; DO IESO, 2010). A função privilegiada de cuidadora, associada aos valores relacionados ao amor incondicional que lhe são atribuídos, expõe a mulher mãe a um alto grau de expectativa e cobrança. As representações simbólicas sobre a figura materna são variadas. Quando associadas a valores positivos, reproduz-se a ideia da maternidade como algo essencialmente moral. Mãe é mãe!: essa máxima encerra um universo de virtudes e valores sacralizados. Por outro lado, quando a figura materna não equivale exatamente ao idealizado, há um questionamento endereçado a essas mulheres mães: "que espécie de mãe é essa?, mãe que não cuida?, mãe que não sofre pelo filho?, entre outras cobranças. Nesses casos, observa-se igualmente uma justificação a pos-teriori sobre o comportamento considerado inadequado das crianças que estão sob sua responsabilidade: também com uma mãe dessas, o que se podia esperar?. Mulheres mães de adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas ilustram bem a responsabilização da mãe pela proteção e contenção de comportamentos considerados nocivos (DIAS; ARPINI; SIMON, 2011).
Nem sempre o protocolo do enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes é aplicado na ordem descrita anteriormente (registro da notificação - comunicação ao Conselho Tutelar - convocação da família - encaminhamento para atendimento e acompanhamento); dependendo da gravidade da situação.
Se a gente vê que é muito grave, a gente vai atrás da criança pra gente ver o que está acontecendo. Digamos que venha uma notificação da criança que ela está machucada na escola. A gente não espera. Ah, vamos notificar, daí quando der a gente marca... não! Agente recebeu a notificação, a gente vai ver o que a criança... se tem marcas... se a gente vai levar para o NUCRIA [Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítimas de Crimes] antes de pedir para os pais ir no IML [Instituto Médico Legal]... se é uma notificação de RN [recém-nascido], a gente vai ver como está lá, se a mãe consegue receber esse bebezinho em casa. [...] Quando é uma notificação que a gente vê que pode notificar, que o pai pode vir aqui pra gente conversar e aplicar as medidas, tudo bem... mas se a gente vê que é uma coisa grave, a gente aplica as medidas antes de chamar os pais (Entrevistado 4).
A visita domiciliar é um recurso utilizado para averiguar a situação notificada. Tem casos que a gente vai direto fazer a visita domiciliar porque a notificação demora a ser feita (Entrevistado 1). A visita domiciliar, nesse caso, parece funcionar como um procedimento emergencial de apuração da violência, subvertendo não apenas o fundamento desse procedimento técnico, como a própria função do Conselho Tutelar. A visita domiciliar é parte de um conjunto de instrumentos que compõem o acompanhamento do trabalho social. Quando exercida de modo isolado e desconectado de um plano de intervenção, tende a imprimir uma lógica de controle e fiscalização no lugar de uma lógica preventiva e protetiva (GARCIA, 2018).
Observa-se, através do relato a seguir, que a notificação introduz um fluxo de trabalho cujas ações são desenvolvidas a fim de interromper a violência e restituir os direitos violados das crianças e dos adolescentes.
As ações e os encaminhamentos vão depender de cada caso... às vezes encaminhamos para a unidade de saúde ou solicitamos vaga de creche... depende da situação, depende do que identificamos no atendimento à família (Entrevistado 1).
Apesar da notificação já ter essa prerrogativa de que a partir do momento que ela é encaminhada, ela já deve acionar toda a rede, o Conselho Tutelar vem com a atribuição de aplicar a medida. O Conselho Tutelar tem a ciência do que está acontecendo e cobra e fiscaliza de todos os órgãos e das políticas públicas para que façam a promoção ou que cessem qualquer tipo de violência (Entrevistado 2).
O nosso papel é cobrar da rede, né, requisitar os serviços, e ela tem que nos atender na nossa demanda. Então a gente não pode se basear: ah, é porque o Conselho... não! É a gente que cobra da rede, e não eles do Conselho (Entrevistado 5).
Nos artigos 18-B e 101 do ECA estão previstas as medidas de proteção à criança e ao adolescente que poderão ser aplicadas sempre que seus direitos forem ameaçados ou violados. O quadro a seguir demonstra as medidas aplicadas pelos conselheiros tutelares nos 46 casos pesquisados. Vale indicar que em 16 casos nenhuma medida foi aplicada, em outros 13 casos não havia informação e em alguns casos foi aplicada mais de uma medida de proteção.
O acolhimento institucional é aplicado como uma alternativa para os casos considerados crônicos, que a Rede de Proteção não consegue solucionar através de intervenções pontuais. Vale interrogar sobre o entendimento do que é crônico e o que é passível de solução pela via de um encaminhamento. Quando se trata de violência, o tempo de ocorrência e a necessidade de intervenções múltiplas sugerem que muitas manifestações da violência não são episódicas, mas refletem um processo sistemático e contínuo. De forma recorrente, nas reuniões da rede local onde a pesquisa de campo foi realizada, o acolhimento foi sugerido como alternativa para resolução de determinadas situações. Como exemplo, após o relato de que duas crianças - pertencentes a uma família acompanhada pela Rede de Proteção há anos - ficavam na rua após o turno da escola, foi sugerido que o Conselho Tutelar aparecesse de surpresa e as recolhessem para um abrigo. Outra alternativa para os casos crônicos é o seu encaminhamento para o Ministério Público. No primeiro caso, o Conselho Tutelar figura como uma ação policial em busca do flagrante delito, no segundo, observa-se a rendição a uma figura de autoridade maior para passar a batata quente. O acolhimento institucional também é aplicado nos casos considerados graves.
Infelizmente, os casos de enfrentamento de violência, quando surgem os casos graves, o papel do Conselho é acolher. Acaba acolhendo. Resultando num acolhimento. O acolhimento seria uma medida extrema: retirar a criança da família para cessar o abuso ou a agressão ou a violência, certo. O abusador, o violentador ou quem comete a violência não sai da família. E a criança acaba, de certa forma, sendo penalizada de novo. Porque, por exemplo, se for um pai ou um padrasto, a gente não tem poder de tirá-los da casa. E, muitas vezes, as mães optam por continuar com eles, infelizmente. Daí a gente tira a criança e coloca num acolhimento ou, em alguns casos, vai pra família extensa. Só que a gente fica meio relutante em família extensa porque a avó, tia ou outra avó paterna também podem se sentir acuadas/ameaçadas por esse pai ou por essa mãe e acabar devolvendo essa criança para a família que estava, de certa forma, abusando ou violentando ela de alguma forma (Entrevistado 1).
A advertência aos pais ou aos responsáveis é uma das medidas previstas no ECA, em seu artigo 18-B. Ela não tem valor judicial e, portanto, não produz nenhuma sanção. Para uma das conselheiras, essa característica gera a sensação de impunidade para aquele que cometeu o ato, favorecendo a ocorrência de violência doméstica.
O que desencadeia, eu acho que ainda é, talvez, a impunidade, talvez a falta de sanção, que até mesmo uma advertência do CT [Conselho Tutelar] - que é uma das nossas atribuições, uma de nossas prerrogativas, antes de se judicializar, ela é banalizada pelo violador, pelo suspeito que comete a violência. Eu ainda acho que é a impunidade, a falta da sanção aplicada (Entrevistado 2).
As crianças e os adolescentes que apresentam comportamentos considerados inadequados são encaminhados para avaliação psicológica, de acordo com os dados analisados e com a observação feita nas reuniões. Há o entendimento de que os desvios de comportamento estão relacionados a algum transtorno ou distúrbio mental, a alguma situação de violência a que a criança ou o adolescente esteja submetida(o) ou ao uso de substâncias psicoativas. O desvio é, de acordo com a leitura menorista, atribuído ao indivíduo ou às relações sociais no âmbito familiar (GARCIA; LIMA, 2020).
Os casos de violência física e sexual são encaminhados para unidades da polícia.
O Conselho Tutelar quando identifica uma situação de violência contra criança e adolescentes, muitas vezes tem... a maioria dos casos de violência desemboca na polícia. Ou violência física, que acaba no NUCRIA [Núcleo de Proteção à Criança e ao Adolescente Vítimas de Crimes], que é polícia civil, ou violência sexual, que primeiro vai para uma unidade de saúde, que também acaba encaminhando para o NUCRIA para boletim de ocorrência e depois IML (Entrevistado 1).
Além da aplicação de medidas de proteção, os conselheiros tutelares costumam requisitar serviços como emissão de documentos de identificação, carteira de trabalho e matrícula em creches. Percebemos que, nos casos analisados, a maioria dos encaminhamentos e das solicitações feitas pelo Conselho Tutelar foi atendida. As exceções estavam relacionadas às solicitações de acompanhamento endereçadas ao Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), que foram devolvidas com a informação de que as famílias não foram localizadas. Mais uma vez, a complexidade de demandas inerente a esse tipo de atendimento se depara com os limites do trabalho contínuo com as famílias.
Sobre a rede de proteção social
Como já sinalizado, a localização do Conselho Tutelar no quarteirão denominado Rua da Cidadania facilita o intercâmbio com os atores da rede de proteção social. Segundo depoimento dos entrevistados:
Faz muita, muita diferença porque dentro de uma Rua da Cidadania a gente encontra todas as secretarias, todos os núcleos regionais estão aqui, então isso facilita muito, principalmente a Educação e a Saúde e a Assistência Social (Entrevistado 2). É eu acho que essa aproximação nossa com os atores é muito importante [...]. Porque a gente vai lá e... aqui é só a gente atravessar do outro lado, nem é rua, e a gente chega na escola, na educação, pede orientação, pede apoio, encaminha, vai até lá, essa aproximação física ajuda bastante nos encaminhamentos técnico-jurídicos. É bom isso (Entrevistado 3).
Sim, nossa, é muito de perto. Educação, se a gente tem um problema, vai aqui na frente. FAS também. Precisa de uma carteira de trabalho para um adolescente a gente vai com eles. Precisa do negócio da URBS [Urbanização de Curitiba S/A] que está dando errado, a gente desce ali. Nossa, muito melhor, eu fico pensando assim se a gente trabalhar longe, imagina a dificuldade, a gente vai ter que mandar ir de papel. Manda de papel, depois vem com o papel a resposta. A gente não vai poder ir com a família. Porque muitas vezes a gente consegue alguma coisa no ato quando a gente vai com a família. Sabe, eu já consegui assim... um dia veio um ah, eu não consegui marcar a carteira de trabalho tal tal, a segunda via, daí eu disse vamos lá. Na hora, a guria não, nós vamos marcar sim. E ele perdeu a carteira de trabalho e ela já viu qual é o número da primeira carteira de trabalho, pra não dar duplicidade. Nossa, é muito melhor (Entrevistado 4).
Além do fato de estar localizado na Rua da Cidadania, a participação ativa nas reuniões das Redes Locais contribui para o fortalecimento dessa articulação, segundo os depoimentos dos entrevistados.
A gente vê que a nossa participação acaba dando bons frutos porque qual é a prerrogativa do Conselho Tutelar? Fiscalizar e cobrar das instituições, das políticas públicas que façam o atendimento. Então, a nossa participação na Rede de Proteção de alguma forma é essa: é saúde, o que você fez, o que você pode fazer de melhor ou a mais? Então, acho que a nossa participação na Rede de Proteção local é de grande valia pra essas famílias e pra essas crianças principalmente (Entrevistado 2).
O Conselho tem que tá, tem que tá interligado com a rede de proteção. Não pode, o Conselho Tutelar sozinho não funciona. E a rede de proteção sozinha também não funciona. [...] a articulação vem com as reuniões da rede que a gente participa. [...]. E quando não tem as reuniões, a gente sempre tá em conversa com o pessoal da rede, né, com a escola, com a Saúde, com o CRAS [Centro de Referência de Assistência Social], com o CREAS [Centro de Referência Especializado de Assistência Social]... quando tem uma situação mais grave, a gente se reúne pra conversar sobre o caso específico (Entrevistado 5).
Segundo informações de uma conselheira, além da participação nas Redes Locais, há representantes do Conselho Tutelar nas reuniões executivas da Rede de Proteção.
A gente coloca que é a rede executiva, rede de proteção executiva. O Conselho Tutelar de Curitiba nomeou em assembléia dois representantes do Conselho Tutelar de Curitiba pra participarem dessas reuniões executivas. É onde dali saem todos os encaminhamentos e protocolos para as locais. Então, hoje, o Conselho Tutelar de Curitiba tem dois representantes nomeados em assembléia do Conselho Tutelar de Curitiba pra fazerem parte da... representarem o Conselho Tutelar nessas reuniões, que são mensais também, e que também é uma participação efetiva do Conselho Tutelar (Entrevistado 2).
O intercâmbio entre o Conselho Tutelar e os demais atores da Rede de Proteção não se dá apenas através das reuniões. Outros mecanismos favorecem essa aproximação.
Nós temos um grupo nas redes sociais, de WhatsApp. Muitas vezes, eu identifico uma necessidade - como eu atendi um menino semana passada que precisava de Psicologia urgente. Até eu fazer a parte burocrática, que é o pedido de solicitação, lançar no sistema e tudo mais, mandar por malote, chegar na unidade de saúde... é, no mínimo, uma semana. Com essa rede, eu já ligo e já peço: preciso de um atendimento de Psicologia urgente. Daí já é agendado, às vezes pra um ou dois dias depois. O papel até vai, pra oficializar o pedido, pra eu provar que eu apliquei a medida protetiva para aquele menino, mas a gente geralmente faz os pedidos todos por telefone pra ir agilizando (Entrevistado 1).
A gente é parceiro, na necessidade, pra chegar junto, pra apoiar, pra orientar, procuramos sempre estar presentes nos equipamentos, seja já ele da Saúde, da Educação... a gente sempre está junto (Entrevistado 3).
Ao analisarmos os casos destacados na seleção da pesquisa, observamos que o pequeno intervalo entre a data do registro da notificação no equipamento em que a criança foi atendida e a data em que o Conselho Tutelar tomou conhecimento da situação de violência (cerca de dois dias) sugere a articulação entre essas esferas. Em geral, as notificações são enviadas por e-mail antes da sua remessa via malote.
Algumas instituições, quando precisam de um atendimento mais imediato, que dependem de malote... então eles acabam encaminhando por e-mail pra já providências imediatas, quando os casos são graves, pra agilizar todo esse processo (Entrevistado 1).
Burgos (2020, p. 380) aponta em sua pesquisa uma espécie de antinomia entre conflito e cooperação como parte de uma gramática comum na fala dos integrantes da rede de proteção à infância, quando a descrevem como uma fonte permanente de conflitos, seja porque haveria sobreposição de competências, seja porque a outra agência nem sempre age como deveria. Essa dissonância pode resultar em uma visão depreciativa dos Conselhos Tutelares como órgão repressivo, que, na visão dos entrevistados de sua pesquisa sobre a relação entre Conselhos Tutelares e escola, gera um tipo de percepção que compromete a possibilidade de complementaridade entre CT e escola (BURGOS, 2020, p. 380).
No depoimento de um entrevistado, percebe-se a assimetria entre a visão da sociedade e de alguns atores da rede sobre o Conselho Tutelar e a própria identidade já consolidada pelos conselheiros entrevistados.
Muitos ainda... muitos da sociedade ainda não reconhecem a efetiva atribuição do Conselho. O Conselho Tutelar tem a atribuição de requisitar. Nós não somos assistentes sociais, não somos executores, nós forçamos a execução, nós requisitamos, mandamos cumpra-se. É quase uma situação assim de juiz. Só que a sociedade ainda usa, invariavelmente, eles dizem assim: tô com um problema aqui, venha dar um susto no meu filho!. Ai meu Deus, conselheiro tutelar não é bicho papão pra dar susto! Mas tem essa coisa (Entrevistado 3).
O termo bicho-papão é empregado como imagem ameaçadora feita à criança para contê-la em relação a comportamentos indesejados. Curiosamente o órgão constituído para defender direitos e inibir violações é chamado de bicho-papão. Castro (2018) cita o uso dessa expressão em sua pesquisa na Rocinha como forma de constituir uma visão sobre o Conselho Tutelar:
Segundo os conselheiros houve uma aproximação com as escolas da região através das rodas de conversas com a CRE e os diretores das escolas, o que melhorou muito a comunicação com as escolas. No entanto, a escola não permite que eles se reúnam com os alunos, e continuam tratando o CT como bicho-papão, em geral, aciona o CT para conter a indisciplina do aluno dizendo: vou chamar o CT, como se o órgão fosse um órgão de repressão, e não é, é um órgão de proteção. Os conselheiros também relataram esse comportamento por parte das famílias que, por vezes, fogem do CT durante uma visita domiciliar, pensando que o mesmo poderia pegar os filhos deles (CASTRO, 2018, p. 145).
Em virtude dessa visão, algumas notificações endereçadas ao Conselho Tutelar expressam a expectativa de este ser um agente disciplinador de crianças, adolescentes e suas famílias. Essa distorção não só prejudica a identidade do órgão - ora temido e evitado, ora procurado e acionado como instância policial - como também determina a direção da sua intervenção.
Estudante apresenta problemas de comportamento, relacionamento conflituoso com colegas. Solicitou presença da mãe várias vezes na escola e a mesma não compareceu justificando trabalhar longe e com horários difíceis para ir à escola. A escola solicitou avaliação médica na unidade de saúde e não houve retorno. Os problemas com a criança permaneceram. Escola considera que a mãe está negligenciando os cuidados com a saúde e educação da criança (Caso 12).
Criança com 1 ano, 3 meses e 28 dias, faltosa em puericultura desde julho/2019, com inúmeras buscas e orientações. Mãe traz apenas para vacina e falta a todas as consultas agendadas (Caso 29).
Os pais não levaram ao atendimento especializado que a criança foi chamada no (CMAEE) (Caso 30).
Adolescente de 15 anos tem uma filha de 4 meses e mantém relações sexuais sem proteção. Além disso, não leva a criança para consultas de puericultura (Caso 40).
Apesar de haver uma articulação satisfatória entre os atores da Rede de Proteção no município de Curitiba, a prevenção da violência ainda não foi estabelecida como rotina: as intervenções acontecem quando a violência já está instalada. É como se o fenômeno da violência doméstica e familiar contra crianças e adolescentes só existisse a partir da sua notificação. A dimensão preventiva no enfrentamento à violência junto à rede de proteção social, como a apresentação de dados e a discussão de situações recorrentes, por exemplo, não é priorizada nas ações do Conselho Tutelar, que tendem a se resumir ao atendimento individual das demandas e ao encaminhamento para a rede.
Eu acho um pouco falho, a gente podia fazer mais. Infelizmente, a nossa demanda... a nossa demanda individual é muito grande [...] então a gente acaba, infelizmente, tendo que focar muito no individual, mas a prerrogativa do Conselho Tutelar é trabalhar assim no coletivo e no enfrentamento, na prevenção (Entrevistado 2).
Considerações Finais
Frente à complexidade das situações de violência contra a população infantojuve-nil, as políticas públicas têm apontado para a necessidade de articulação das ações governamentais e não-governamentais e para o desenvolvimento de trabalho em rede a fim de potencializar o atendimento às vítimas e o enfrentamento desse fenômeno. O trabalho realizado em Curitiba é uma dessas experiências: no território estudado para esta pesquisa, o processo de notificação compulsória encontra-se bem consolidado e há uma boa articulação entre o Conselho Tutelar e a Rede de Proteção, resultante tanto da sua localização na chamada Rua da Cidadania, quanto da sua participação ativa nos espaços decisórios da Rede de Proteção.
Essa experiência não se originou pela via normativa ou de modo espontâneo, mas foi criada através da mobilização de muitos agentes públicos. Foi e é um processo que demanda resistência por parte dos atores e movimentos sociais em defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes, especialmente no contexto atual de desarticulação das políticas sociais e regressão dos direitos sociais.
Como todo processo em desenvolvimento, o trabalho em Curitiba enfrenta desafios: um deles é requalificar a identidade do Conselho Tutelar associada ao disciplinamento das famílias. Essa experiência merece ser amplificada para o Brasil, ser discutida nos espaços da boa política, em que há o compromisso com a defesa de direitos universais e promoção de políticas de reparação que incorporem, principalmente, os segmentos alijados socialmente.
As famílias pobres, além de serem punidas pela privação material e pela falta de acesso qualificado a bens e serviços públicos, ainda são criminalizadas pela ausência de um comportamento protetivo. A ativação da rede de proteção social através do mecanismo de notificação tem servido para denunciar a violência doméstica, e não para mobilizar recursos para a proteção das famílias. Para proteger é necessário estar protegido.
Finalmente, a identidade do Conselho Tutelar associada à punição pode não afetar seu protagonismo na ativação da rede, mas certamente desfavorece a direção protetiva ao ressaltar o aspecto da denúncia e da punição.
Referências Bibliográficas
AQUINO, L. M. C. A rede de proteção a crianças e adolescentes, a medida protetora de abrigo e o direito à convivência familiar e comunitária: a experiência em nove municípios brasileiros. In: SILVA, E. R. A. (Coord.). O Direito à convivência familiar e comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil. Brasília: Ipea/Conanda, 2004, p. 325-365. [ Links ]
BORZEL, T. A. Whafs so special about policy networks? An exploration of the concept and Its usefulness in studying european Governance. European Integration online Papers (EIoP), v. 1, nº 16, 1997. Disponível em: <http://eiop.or.at/eiop/texte/1997-016a.htm>. Acesso em: 21 mar. 2021. [ Links ]
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de Julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 1990. [ Links ]
______. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Coíbe a violência doméstica e familiar contra a mulher. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 2006. [ Links ]
______. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Linha de cuidado para a atenção integral à saúde de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violências: orientação para gestores e profissionais de saúde. Brasília: Ministério da Saúde, 2010. [ Links ]
______. Ministério dos Direitos Humanos. Secretaria Nacional de Proteção dos Direitos da Criança e Adolescente. Elaboração de Mareia Teresinha Moreschi. Violência contra crianças e adolescentes: análise de cenários e propostas de políticas públicas. Brasília: Ministério dos Direitos Humanos, 2018. [ Links ]
BRITO, A. M. M. et al. Violência doméstica contra crianças e adolescentes: estudo de um programa de intervenção. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 10, n. 1, p. 143-149, mar. 2005. [ Links ]
BURGOS, M. Redes de proteção e a decantação dos direitos das crianças. Tempo Social, São Paulo, v. 32, n. 3, p. 375-397, dez. 2020. [ Links ]
CASTRO, R. M. Crianças e adolescentes enquanto sujeitos de direitos no Brasil Pós-ECA: o Conselho Tutelar e a Rede de Proteção. 2018. 236 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, 2018. [ Links ]
COCCO, M. et al. Violência contra crianças: dimensões apreendidas nas falas de professoras de educação infantil e a articulação com o setor saúde. Revista Mineira de Enfermagem, Belo Horizonte, v. 14, n. 4, p. 539-547, out./dez. 2010. [ Links ]
CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. Resolução n° 113 de 19 de abril de 2006. Dispõe sobre os parâmetros para a institucionalização e fortalecimento do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2006. [ Links ]
CURITIBA. Protocolo da rede de proteção à criança e ao adolescente em situação de risco para a violência. 3. ed. Curitiba: Secretaria Municipal da Saúde, 2008. [ Links ]
DAY, V. P. et al. Violência doméstica e suas diferentes manifestações. Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, v. 25, supl. 1, p. 9-21, abr. 2003. [ Links ]
DIAS, A. C. G.; ARPINI, D. M.; SIMON, B. R. Um olhar sobre a família de jovens que cumprem medidas socioeducativas. Psicologia & Sociedade, Florianópolis, v. 23, n. 3, p. 526-535, dez. 2011. [ Links ]
FLEURY,S. Redes de políticas: novos desafios para a gestão pública. Revista Administração em Diálogo, São Paulo, v. 7, n. 1, p. 77-89, 2005. [ Links ]
GARCIA, J. Apontamentos sobre a controvertida centralidade da família no trabalho social. Ser Social, Brasília, v. 20, n. 42, p. 30-54, jan./jun. 2018. [ Links ]
GARCIA, J.; LIMA, C. A doutrina de proteção integral em contraste com práticas de abandono. Argumentum, Vitória, v. 12, n. 1, p. 67-81, jan./abr. 2020. [ Links ]
GONÇALVES, H. S.; BRITO, T. S. Conselheiros tutelares: um estudo acerca de suas representações e de suas práticas. Civitas, Porto Alegre, v. 11, n. 1, p. 56-77, jan./abr. 2011. [ Links ]
HIRATA, H. Subjetividade e sexualidade no trabalho de cuidado. Cadernos Pagu, Campinas, n. 46, p. 151-163, jan./abr. 2016. [ Links ]
KRMPOTIC, C. S.; DO IESO, L. C. Cuidado familiar: aspectos da reprodução social à luz da desigualdade de gênero. Katálysis, Florianópolis, v. 13, n. 1, p. 95-101, jun. 2010. [ Links ]
LAVORATTI, C. Tecendo a rede de proteção: desafios do enfrentamento intersetorial à violência intrafamiliar contra crianças e adolescentes no município de Curitiba/PR. Tese (Doutorado em Sociologia). Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2013. [ Links ]
MINAYO, M. C. Amostragem e saturação em pesquisa qualitativa: consensos e controvérsias. Revista Pesquisa Qualitativa, São Paulo, v. 5, n. 7, p. 1-12, abr. 2017. [ Links ]
PAIXÃO, G. P. N. et al. Naturalização, reciprocidade e marcas da violência conjugal: percepções de homens processados criminalmente. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília , v. 71, n. 1, p. 190-196, fev. 2018. [ Links ]
ROVERE, M. Redes en salud: un nuevo paradigma para el abordaje de las organizaciones y la comunidad. Rosário: Ed. Secretaria de Salud Pública/AMR/Instituto Lazarte, 1999. [ Links ]
VENTURINI, F. P.; BAZON, M. R.; BIASOLI-ALVES, Z. M. M. Família e violência na ótica de crianças e adolescentes vitimizados. Estudos e Pesquisas em Psicologia [online], Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, jun. 2004. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci arttext&pid=S1808-42812004000100003&lng=pt&nrm=iso>. Acessado em: 21 mar. 2021. [ Links ]
Data de recebimento: 22/03/2021
Data de aprovação: 30/09/2021
1 O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) institucionalizou o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA) por meio da Resolução n° 113, de 19 de abril de 2006.
2 Entendemos como violência doméstica e familiar aquela que ocorre no âmbito da unidade doméstica, espaço de convívio permanente de pessoas com ou sem vínculo consanguíneo, e é cometida por pessoas consideradas como sendo da família, comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços consanguíneos, por afinidade ou por vontade expressa (BRASIL, 2006).
3 Sistema desenvolvido para monitorar a situação de violação dos direitos da criança e do adolescente no Brasil As informações contidas no SIPIA são inseridas pelos conselheiros tutelares e correspondem às demandas atendidas nesse equipamento.
4 A Fundação de Ação Social é um equipamento público, da Prefeitura de Curitiba, responsável pela política e pelas ações de assistência social do município.
5 Para Rovere (1999, p. 21), redes son redes de personas, se conectan o vinculan personas, aunque esta persona sea el director de la institución y se relacione con su cargo incluido, pero no se conectan cargos entre sí, no se conectan instituciones entre sí, no se conectan computadoras entre sí, se conectan personas. Por esto es quesediceque redes es el lenguaje de los vínculos, esfundamentalmente un concepto vincular.