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Revista Subjetividades

versão impressa ISSN 2359-0769versão On-line ISSN 2359-0777

Rev. Subj. vol.18 no.3 Fortaleza set./dez. 2018

https://doi.org/10.5020/23590777.RS.V18I3.6976 

RELATOS DE PESQUISA

 

Modos de ser e trabalhar de caminhoneira: estratégia de viver a vida

 

Ways of being and work of womantruck drive: strategy of living the life

 

Modos de ser y trabajar de camionera: estrategia de vivir la vida

 

Modes d'être et de travailler comme conductrice de camion: stratégie pour vivre la vie

 

 

Daiane Boff (Lattes)I; Rodrigo Luís Melz (Lattes)II; Carmem Ligia Iochins Grisci (Lattes)III

IMestre em Administração na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, bacharel em Administração pela Universidade de Caxias do Sul (UCS)
IIMestre em Administração na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Bacharel em Administração pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Especialista em Administração pela UNINTER
IIIDoutora em Psicologia (PUCRS), Pós-Doutorado Universidade Técnica de Lisboa. Professora Programa de Pós-Graduação/Escola de Administração/UFRGS. Pesquisadora CNPq 1D

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O estudo destaca a estratégia de viver a vida de caminhoneira, suportado nas noções de trabalho imaterial e vida líquida. Caminhoneiras atuantes no transporte rodoviário de cargas de longo percurso e duração participaram da pesquisa exploratória por meio de entrevistas semiestruturadas. A análise do conteúdo apontou que a caminhoneira desempenha atividades que se aproximam da noção de trabalho imaterial e possibilitou estender a noção de estratégia tomada de Bauman à vida cotidiana. Seu dia a dia remete à vida líquida; remete à indistinção entre tempo/espaço de trabalho e vida; ao percurso e cenário que extrapolam a boleia; aos elementos culturais associados à estrada. Entre truques e traquejos, a estratégia de viver a vida concentra-se em reinícios indolores que demandam manter o jogo curto e o itinerário minimamente reconhecível. Para prosseguir na profissão, em perspectiva gradiente, a caminhoneira contempla facetas do turista, andarilho e jogador, conforme metáforas apresentadas por Bauman.

Palavras-chave: caminhoneira; motorista de caminhão; transporte rodoviário de cargas; trabalho imaterial; estratégia de viver a vida.


ABSTRACT

The study highlights the strategy of living the life of a female truck driver, based on the notions of immaterial labor and liquid life. Female truck driver engaged in long-distance and long-haul freight transportation participated in the exploratory research through semi-structured interviews. The analysis of the content indicated that the female truck driver performs activities that approach the notion of immaterial work and made possible to extend the notion of strategy taken from Bauman to daily life. Her daily life refers to liquid life; refers to the indistinction between time / space of work and life; the route and scenario that extrapolate the truck; cultural elements associated with the road. Between tricks and great experience, the strategy of living the life concentrates in painless restarts that demand to keep the game short and the itinerary minimally recognizable. To continue in the profession, in gradient perspective, the female trucker driver contemplates facets of the tourist, wanderer and player, according to metaphors presented by Bauman.

Keywords: female truck driver; truck driver; road transport of cargo; immaterial labor; strategy of living life.


RESUMEN

Este trabajo enfoca la estrategia de vivir la vida como camionera, basada en las nociones de trabajo inmaterial y vida líquida. Camioneras actuantes en el transporte de cargas en carretera de largo trayecto y tiempo participaron de la investigación de exploración por medio de entrevistas semiestructuradas. El análisis del contenido indicó que la camionera cumple actividades que se acercan a la noción de trabajo inmaterial y posibilitó la extensión de la noción de estrategia de Bauman a la vida cotidiana. Su jornada remete a la vida líquida; remete a la indistinción entre tiempo/espacio de trabajo y vida; al trayecto y escenario que extrapolan la cabina; a los elementos culturales relacionados a la carretera. Entre trucos y experiencias, la estrategia de vivir la vida está centrada en nuevos comienzos indoloros que demandan mantener el corto juego y la ruta mínimamente reconocible. Para seguir adelante en la profesión, en perspectiva gradiente, la camionera contempla facetas del turista, andador y jugador, según metáforas presentadas por Bauman.

Palabras clave: camionera; conductora de camión; transporte de cargas en carreteras; trabajo inmaterial; estrategia de vivir la vida.


RÉSUMÉ

L'étude met en évidence la stratégie de vivre la vie d'un conductrice de camion. Pour cela, on s'appuie sur les notions de travail immatériel et de vie liquide. Les conductrices de camions engagées dans le transport de marchandises sur des longues distances ont participé à la recherche exploratoire au moyen d'entretiens semi-structurés. L'analyse du contenu indique que le conductrice de camion exerce des activités qui abordent la notion de travail immatériel et a permit d'étendre la notion de stratégie prise de Bauman à la vie quotidienne. Sa vie quotidienne fait référence à la vie liquide; fait référence à la distinction entre temps / espace de travail et de vie; à la route et au scénario qui extrapole la cabine du camion; aux éléments culturels associés à la route. Entre astuces et compétences, la stratégie de vivre la vie se concentre sur des redémarrages sans douleur qui exigent de garder le jeu court et l'itinéraire minimalement reconnaissable. Pour exercer son métier, dans une perspective gradient, la conductrice de camion contemple les facettes du touriste, du voyageur et du joueur, selon les métaphores présentées par Bauman.

Mots-clés: conductrice de camion; chauffeuse de camion; transport routier de marchandises; travail immatériel; stratégie de vivre la vie.


 

 

Voltado ao trabalho e a trabalhadores ainda carentes de visibilização, o presente estudo considerou relevante tomar o transporte rodoviário de cargas (TRC) e focar a motorista de caminhão - comumente denominada caminhoneira - em sua estratégia de viver a vida condizente com a profissão. Ressalta-se que, para o presente estudo, o termo estratégia distancia-se das organizações e da literatura de gestão, em que é comumente debatido, aproximando-se de uma "análise do contexto da vida e das estratégias de vida pós-modernas" (Bauman, 2011, p. 19). Toma-se estratégia associada à noção de trabalho imaterial (Gorz, 2005; Lazzarato & Negri, 2001). Ainda que haja inúmeros aspectos que justificam apontar para a imaterialidade do trabalho, há uma dialética desta com a do trabalho material e concreto. Toma-se como pressuposto, portanto, que o trabalho imaterial tem uma materialidade que lhe é inerente.

A exemplo de Salvagni (2013), adotou-se a denominação caminhoneira para designar motorista de TRC de longa distância, uma vez que as denominações contidas na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO) (Ministério do Trabalho e Emprego [MTE], 2015) para motorista de veículo de carga não são usuais no modo como esses trabalhadores se autodenominam, denominam os colegas e são denominados pelo público em geral.

O estudo etnográfico de Salvagni (2013) descreveu e analisou a realidade da mulher na atividade de caminhoneira. O trabalho na boleia de um caminhão mostrou-se exigente e comprovou que as competências pessoais descritas na CBO para atuar nessa profissão são as mais diversas. Manter-se atualizado sobre a legislação de trânsito; cumprir as respectivas leis; respeitar os limites da sua força física; demonstrar capacidade de resistência física; participar de treinamentos; dominar noções básicas de mecânica, primeiros socorros e de condução econômica, entre outras (MTE, 2015).

O TRC, no Brasil, setor em expansão e responsável pela maior parte da movimentação de mercadorias no país desde meados dos anos 1950, vem se atualizando no que diz respeito aos processos logísticos e de trabalho. Tal atualização tem se dado no sentido de minimizar esforços físicos e o trabalho material historicamente relacionado à profissão; vindo a destacar nela características relativas ao trabalho imaterial, que dizem respeito, por exemplo, aos cuidados de si e de terceiros, à cooperação, ao discernimento relativo à tarefa, sendo condizente com proposições de Gorz (2005).

Mulheres portadoras de Carteira Nacional de Habilitação (CNH) nas categorias C, D e E, que habilitam ao TRC, ainda representam menos de 5% do total de CNHs emitidas nessas categorias e, especificamente na categoria E, menos de 1% (B. M. Gralha, comunicação pessoal, novembro 30, 2015), o que justifica dar-lhes visibilidade.

Supõe-se que a inserção de mulheres no TRC associe-se, de modo mais amplo, a uma estratégia de viver a vida que não se vê destacada na literatura pertinente. Penteado, Gonçalves, Costa e Marques (2008) e Instituto WCF Brasil (2006), que traçaram um panorama dos caminhoneiros brasileiros, por exemplo, sequer mencionaram mulheres.

Diante disso, indagou-se: Que estratégia de viver a vida condizente com a profissão é apresentada pela trabalhadora caminhoneira? Objetivou-se destacar a estratégia de viver a vida da trabalhadora caminhoneira tomando como suporte teórico as noções de trabalho imaterial (Gorz, 2005) e de vida pós-moderna ou vida líquida (Bauman, 2007, 2011). De modo específico, tratou-se de apresentar o TRC no Brasil, e o trabalho imaterial da caminhoneira. Da pesquisa exploratória de cunho qualitativo empreendida, participaram caminhoneiras que atuam no TRC correspondente a longos percursos e, consequentemente, longa duração.

Na sequência, o presente artigo contempla a revisão da literatura pertinente, o procedimento metodológico utilizado, a apresentação e análise dos resultados, e as considerações finais.

 

Referencial Teórico

Vida Líquida na Sociedade Líquido-Moderna

Vivemos em um mundo diversificado e polifônico, em que a vida líquida em constante movimento muda tão rapidamente que dificulta a aquisição e a manutenção de hábitos e costumes (Bauman, 2007), o que se aproxima da vida vivida em constante deslocamento, como é o caso das caminhoneiras. A vida líquida prima pelo aqui e agora diante das adversidades do trânsito; por reinícios rápidos e indolores a cada despedida para seguir viagem. Indica que a prioridade é livrar-se das coisas, e não permanecer com elas, como se poderia aludir em relação à entrega de cargas; uma vida que prescreve evitar a fixidez e manter abertas as opções, como poderia ser pensado em relação aos pontos de paragem ao longo das estradas, tendo como lema o jogo curto (Bauman, 2007, 2011).

A vida líquida requer "aquiescência à desorientação, imunidade à vertigem, adaptação ao estado de tontura, tolerância com a falta de itinerário e direção e com a duração indefinida da viagem" (Bauman, 2007, p. 10). Considera-se que ela condiz com a vida de caminhoneira, uma vez que caminhoneiras têm sido caracterizadas como "mulheres de vanguarda no exercício da profissão, o que, por sua vez, modifica as regras do próprio trabalho, da relação com a família, com a sociedade" (Salvagni, 2013, p.4).

Frente a isso, considera-se a proposta de Bauman (2011) relativa à estratégia de vida. Ao tomar o peregrino como alegoria da estratégia de vida sólida, preocupada com a difícil tarefa de construção da identidade na modernidade sólida, Bauman (2011, p.120) diz:

O mundo dos peregrinos - dos construtores de identidade - deve ser ordenado, determinado, previsível, assegurado; mas, acima de tudo, ele deve ser um tipo de mundo em que as pegadas sejam gravadas para sempre, de modo que o traçado e o registro de viagens passadas sejam mantidos e preservados. Um mundo em que viajar pode ser de fato uma peregrinação.

Diante da modernidade líquida e da sociedade líquido-moderna que se mostrou nada hospitaleira aos peregrinos, o autor depreendeu que:

O que quer que você possa construir na areia, é pouco provável que seja um castelo. Num mundo desértico, não é necessário grande esforço para demarcar um caminho - a dificuldade é a forma de reconhecê-lo como trilha depois de um tempo. Como distinguir a marcha de um andar em círculos, do eterno retorno? Torna-se quase impossível compor os trechos de areia pisada na forma de um itinerário - muito menos num plano para uma viagem ao longo da vida. (Bauman, 2011, p. 121)

Nessa perspectiva, todo o trabalho de construção de vir a ser e manter-se caminhoneira poderia ser em vão. Sua sedução, entretanto, parece residir na manutenção de opções em aberto, evitando a fixidez ou a lealdade a um único ponto de paragem. Na sociedade atual, que promove e se caracteriza pela vida líquida, a vida-como-peregrinação dificilmente se realizaria como estratégia, e de modo improvável viria a ser assumida como única. É nesse aspecto que a estratégia sensata parece ser manter o jogo curto, uma vez que ao indivíduo é recomendado:

(...) não planeje suas viagens para muito tempo - quanto mais curta a viagem, maior a chance de completá-la; não fique emocionalmente atrelado às pessoas que você encontra em cada local de suas escalas - quanto menos você se preocupa com elas, menos será custoso deixá-las; não se comprometa demais com pessoas, lugares e causas - você não tem como saber quanto tempo elas durarão ou quanto tempo você ainda as considerará dignas de seu empenho. (Bauman, 2011, p.125)

Nesse sentido, o autor propõe quatro estratégias que oferecem, conjuntamente, a metáfora para a estratégia da vida líquida (Bauman, 2011, pp. 129-136), conforme sinteticamente apresentados a seguir. O andarilho, ou aquele que conjuga o verbo passear como uma série de episódios, e para quem o passeio passou a ser a vida em si. O vagabundo - no sentido de errante - ou aquele sempre considerado um estranho onde quer que esteja, que vagueia sem destino definido e não liga para isso, pois decide para onde ir frente ao cruzamento e escolhe a próxima paragem a partir das placas de estrada.O turista, ou aquele que se move de propósito em busca do consumo de experiências diversas e, embora nunca seja do lugar, da casa poderá guardar a estranha sensação de abrigo e prisão. E o jogador ou aquele que se relaciona com o mundo em termos de intuição, precaução, e tentativas de adivinhar, antecipar, prevenir ou adiantar-se em relação às jogadas adversárias. Para ele, o mundo se divide em uma sucessão de partidas, cada uma envolta em universo próprio, sem espaço para descrença ou recusa após iniciada uma partida.

Eles seguem "de alguma forma, na direção de dar conta da inquietação, da inconstância e da indecisão notórias das estratégias de vida praticadas" (Bauman, 2011, p. 137). Como ressalta o autor, em coro, "os quatro tipos cantam - às vezes em harmonia, mas com mais frequência em cacofonia" (Bauman, 2011, p. 126). Em relação a eles não se proporá escolhas de um ou outro, uma vez que se apresentam entrelaçados e interpenetrados, contendo cada um uma certa dose de ambivalência.

 

Trabalho Imaterial

O trabalho imaterial consiste em um trabalho vivo sempre mais intelectualizado, que produz conhecimento, informações, valores e serviços, incidindo sobre a subjetividade humana (Lazzarato & Negri, 2001). Embora o trabalho material permaneça indispensável, vem sendo remetido à periferia do processo de produção. O trabalho imaterial vem se tornando hegemônico. "Ele repousa sobre as capacidades expressivas e cooperativas que não se podem ensinar, sobre uma vivacidade presente na utilização dos saberes e que faz parte da cultura do cotidiano" (Gorz, 2005, p.19). Sua valorização se faz notar a partir do abandono dos rígidos padrões espaço-temporais que caracterizaram o modelo de produção material; e dos modos de controle que, para atuarem, não mais necessitam da imobilidade dos corpos dos trabalhadores.

O setor de serviços, com crescimento acentuado nas últimas décadas, ilustra a alteração da lógica do tradicional trabalho operário para um trabalho de gerenciamento da informação a mobilizar os modos de ser dos indivíduos (Lazzarato & Negri, 2001), o TRC parece acompanhar tal movimento.

Frente às características que assume o trabalho imaterial, torna-se "sempre mais difícil distinguir o tempo de trabalho do tempo da produção ou do tempo livre" (Lazzarato & Negri, 2001, p. 30). Isso permite apontar que o trabalho imaterial ocupou toda a vida e que se "torna irrelevante a mensuração do tempo de trabalho como norma para fixar uma ordem do trabalho no mundo", conforme afirma Negri (2003, p.92). Essa nova experienciado trabalhador com o tempo advém da eliminação de fronteiras anteriormente bem estabelecidas - tempo e espaço de trabalho e tempo e espaço de não trabalho - indicando que o trabalho requer a mobilização da vida em suas diversas dimensões, o que poderá se mostrar na perspectiva de uma estratégia de viver a vida de caminhoneira.

 

Método

Para o presente estudo desenvolveu-se uma pesquisa exploratória qualitativa, vista como pertinente diante do alcance restrito da literatura no que diz respeito à temática proposta. Tomou-se como participantes da pesquisa aquelas caminhoneiras elencadas na Tabela 1.

Optou-se pela utilização de nomes fictícios para preservar a identidade das caminhoneiras acessadas por conveniência. Com idade média de 33 anos, elas residem em diferentes estados do Brasil e apresentam estado civil, número de filhos e nível de escolaridade diversos. Com tempo de profissão variável entre 18 meses e 16 anos, todas têm CNH categoria E, são funcionárias de empresas de transporte de cargas de grande porte, e atuam em todo o território nacional.

A coleta de dados ocorreu entre outubro de 2015 e janeiro de 2016. Contou com fontes documentais, observação assistemática e entrevistas semiestruturadas realizadas com cinco caminhoneiras. A coleta de dados apoiou-se em informações e relatórios recebidos da Coordenação Geral de Informatização e Estatística do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), e em documentos do setor, obtidos através do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2005) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea, 2015).

A observação assistemática ocorreu durante a participação dos pesquisadores em uma reunião organizada por um grupo de caminhoneiras, realizada na cidade de Canoas-RS, em outubro de 2015, que tinha por objetivo debater e propor melhorias para a categoria. Tal observação objetivou acesso preliminar ao campo e resultou na realização da primeira entrevista. Por meio da utilização da técnica denominada bola de neve (Flick, 2009), acessou-se as demais entrevistadas, sempre considerando o critério de portarem CNH categoria E.

As entrevistas semiestruturadas tiveram duração aproximada de 40 minutos, foram gravadas com a permissão das entrevistadas e, posteriormente, transcritas. Três entrevistas presenciais ocorreram em locais sugeridos pelas entrevistadas (Rafaela, Daniela e Letícia). Em razão de residirem em diferentes estados, duas entrevistas (Eduarda e Marina) foram realizadas via Skype. Segundo Seitz (2015), a utilização de ferramentas tecnológicas, como o Skype, desafia o entrevistador por não possibilitar a percepção, por exemplo, de certos gestos não verbais, mas mesmo assim possuem benefícios que justificam sua validade. Para o presente estudo, a ferramenta ampliou as possibilidades de participação ao permitir acessar caminhoneiras com CNH categoria E que, de outra maneira, não poderiam ser entrevistadas.

O conteúdo obtido foi analisado com base na análise de conteúdo, conforme orientação de Minayo (1994). Desse modo, procedeu-se à organização do material, sua exploração em unidades de sentido, a identificação de categorias de cunho coletivo e, por último, às inferências acerca dos resultados.

A análise do conteúdo considerou as fontes documentais e o conteúdo transcrito das entrevistas. Esta possibilitou apresentar o transporte rodoviário de cargas no Brasil, o trabalho imaterial de caminhoneira, e destacar sua estratégia de viver a vida à luz do referencial teórico proposto, conforme se verá a seguir. As falas ressaltadas foram aquelas consideradas como mais representativas do conjunto de caminhoneiras do presente estudo.

 

Apresentação e Análises dos Resultados

Transporte Rodoviário de Cargas no Brasil

No início da década de 1950, o transporte rodoviário correspondia a menos da metade do tráfego de mercadorias no Brasil. A intensificação do transporte rodoviário ocorreu nas décadas de 1950, 1960 e 1970, coincidindo com o período de fragmentação do sistema ferroviário e de cabotagem, além da maior atividade de desenvolvimento industrial nesse período. Os investimentos no sistema rodoviário ocorreram por ser este considerado uma modalidade de transporte com custos fixos mais baixos quando comparado aos demais sistemas, e por seus custos variáveis de prestação de serviços terem crescido em um ritmo menor que os das ferrovias e da navegação costeira (Barat, 1978). Hoje, o modal rodoviário é responsável por 61% dos transportes de cargas no país; o ferroviário, por 21%; e os demais (aquaviário, dutoviário e aéreo) somam 18% do total (Conselho Nacional de Transportes [CNT], 2016).

Atualmente, o Brasil conta com uma frota de mais de 3 milhões de caminhões (Departamento Nacional de Trânsito [Denatran], (2015). Em 2013, o setor de transporte, armazenagem e correios participava com 5,31% do PIB nacional (Ipea, 2015) e o número de pessoas ocupadas no TRC era de 941.646 (IBGE, 2005). Estes dados demonstram a importância do setor para a economia do país.

Pode ser observado na figura 1 um crescimento da frota de caminhão e caminhão trator no Brasil, conforme dados do Denatran (2015). De 2005 até 2014, a frota no país aumentou mais de 60%. Quanto ao tipo de veículo utilizado no TRC, ele pode ser tanto um veículo unitário, ou seja, um caminhão, quanto a combinação de caminhão trator com um veículo rebocável (Vilella & Tedesco, 2011). Esse último também é corriqueiramente chamado de carreta. Os diversos veículos do TRC também definem a habilitação necessária para sua condução.

Conforme o Código de Trânsito Brasileiro (Lei nº 9.503, 1997), categorias diferenciadas de habilitação são requeridas aos motoristas de caminhão. Para conduzir um caminhão que transporta cargas cujo peso bruto total exceda a 3.500 quilogramas é necessário estar habilitado na categoria C. Para habilitar-se na categoria C, o condutor deverá estar habilitado no mínimo há um ano na categoria B, não ter cometido nenhuma infração grave ou gravíssima, ou ser reincidente em infrações médias durante os últimos 12 meses. Para conduzir veículo com esse peso, também utilizado para transporte de passageiros com lotação acima de oito pessoas, excluindo o motorista, é necessário estar habilitado na categoria D. Para habilitar-se na categoria D, o condutor deverá estar habilitado no mínimo há dois anos na categoria B, ou no mínimo há um ano na categoria C, e igualmente não ter cometido nenhuma infração grave ou gravíssima, ou ser reincidente em infrações médias durante os últimos 12 meses.

O condutor de combinação de veículos em que o caminhão trator se enquadre nas categorias B, C ou D e cuja unidade acoplada, reboque, semirreboque, trailer ou articulada tenha 6.000 quilogramas, ou mais de peso bruto total, como é o caso das carretas, ou cuja lotação exceda a 8 lugares, se faz necessária a habilitação E. Para essa habilitação mais abrangente, se faz necessário ter no mínimo 21 anos, estar habilitado no mínimo há um ano na categoria C ou D, sem ter cometido nenhuma infração grave ou gravíssima, ou ser reincidente em infrações médias durante os últimos 12 meses. Vale ressaltar que, entre as categorias C, D e E, as habilitações são cumulativas. A maior habilitação engloba as permissões concedidas pelas menores, estando o motorista de habilitação E apto a dirigir todos os veículos rodoviários de carga, salvo concessões específicas exigidas para cargas especiais. Essas exigências permanecem inalteradas ao longo dos anos (Lei nº 9.503, 1997).

De acordo com dados obtidos junto a B. M. Gralha (comunicação pessoal, novembro de 2015), o número de mulheres habilitadas nas categorias citadas não chega a 5% do total que corresponde em números absolutos a 547.430 motoristas, sendo que, na categoria E ,exigente dos maiores pré-requisitos para habilitar-se, elas representam menos de 1% do total, ou o equivalente a 16.576 motoristas (Figura 2).

Segundo Barbosa, Lima e Chagas (2012), desde a década de 1990, com o aumento do capital internacional e de empresas multinacionais operando no Brasil, ocorreu uma modernização nos processos logísticos de carga e descarga, tanto em centros de distribuição quanto nas organizações. As alterações dizem da informatização dos processos, até novas formas de disposição dos produtos para facilitar o transporte, agilizar sua carga e descarga e utilização de equipamentos tecnológicos. Com isso, ocorreu a redução da necessidade de empregar trabalho braçal nesses processos que, muitas vezes, eram feitos em sua totalidade, ou ao menos em parte, pelo próprio motorista dos caminhões - no caso do transporte rodoviário de cargas. Admitindo-se que ser homem ou mulher é fator importante na construção das oportunidades e de chances de vida (Giddens, 2005), essa progressiva alteração possibilitou a entrada de mais mulheres na profissão, tendo em vista a redução da necessidade de carga e descarga manual, que impusera certa limitação às mulheres em relação às mercadorias pesadas.

Trabalho Imaterial de Caminhoneira e Vida Líquida

O TRC tem incorporado e acentuado características do trabalho imaterial compreendido na perspectiva apresentada por Gorz (2005) e Lazzarato e Negri (2001). Contribuem para isso, cabe ressaltar, as tecnologias embarcadas nos novos caminhões, e as transformações ocorridas nos processos logísticos. Dispositivos tecnológicos de controle, por exemplo, colocaram a frota de caminhões em movimento ao alcance da observação das empresas a partir de suas próprias sedes. A força física, antes tão necessária à realização do trabalho, vem sendo minimizada e cedendo espaço às demandas por proatividade, flexibilidade, aptidão para o relacionamento interpessoal, criatividade e ação intelectual relativa às atividades que escapam à prescrição.

As atividades podem contemplar a condução do caminhão e a conduta relativa às mercadorias transportadas numa perspectiva de antecipação e resolução de problemas, que pode incidir, inclusive, sobre o tempo pretensamente considerado de não trabalho. Isto se ilustra na forma de planejamento das rotas e tempos de percurso, condizente com a aquisição e o gerenciamento de informações relativas às condições climáticas, das estradas e do trânsito, e do planejamento dos tempos de espera para carga e descarga de mercadorias. Seu desempenho está diretamente relacionado à habilitação e ao cuidado na realização do trabalho; à diluição das fronteiras de tempo e espaço de trabalho e vida; ao percurso e ao cenário; aos aspectos culturais deparados ao longo da estrada.

Habilitação e Cuidado na Realização do Trabalho

O primeiro desafio mencionado relativo aos modos de trabalhar de caminhoneira é a conquista da CNH categoria E, o que se vê justificado no fato de que mulheres correspondem a menos de 1% do total de habilitados nessa categoria. As caminhoneiras do presente estudo, todas habilitadas na categoria E, consideraram difícil o processo de habilitação, principalmente devido ao fato de que as autoescolas, em seu ponto de vista, em geral ainda trabalharem com veículos antigos que demandam esforço físico. "Eu sofri muito, principalmente para trocar as marchas, era difícil, sob más condições" (Daniele). Em seu primeiro dia de aula, Letícia tomou medicação devido à dor nas pernas, resultante do esforço físico realizado.

O processo e teste de habilitação são iguais para ambos os sexos. Há de se considerar, entretanto, que a cobrança é percebida de um modo diferente. Conforme Marina, "você tem os dois lados da moeda. De um, querem facilitar por que acham que você não vai conseguir, de outro querem dificultar para ver se você é capaz". Desse modo, considera que a pressão sobre as mulheres tende a ser maior. Além desse desafio na etapa de habilitação para a categoria E, todas as participantes relataram dificuldades para serem admitidas nas empresas de transporte de cargas. Elas relataram ter sentido a desconfiança explicitamente relacionada ao fato de serem mulheres, no que diz respeito a suas capacidades de trabalho.

Relataram, contudo, que depois de conquistarem seu espaço, passaram a ser melhor vistas por seus empregadores e que adquiriram maior confiança do que a maior parte dos colegas homens no desempenho de seu trabalho. Atribuíram isso à própria crença de que a mulher pode trazer mais benefícios para a empresa, sem considerarem, entretanto, que despertar confiança também gera valor.

Pensar, considerar, analisar, discernir e decidir são ações intelectuais condizentes com a noção do trabalho imaterial evidentes na fala de Marina, embora sejam por ela relatadas como naturais às mulheres e associadas ao suposto medo que lhes seria mais peculiar. "A mulher, ela se preocupa mais, pensa duas vezes antes de fazer uma ultrapassagem ou determinada manobra, para não forçar o caminhão, pois a mulher tem um pouco mais de receio de ficar quebrada na estrada do que o homem" (Marina). É de ressaltar que corpo e caminhão se mesclam em sua fala, uma vez que na hipótese de o caminhão quebrar, ela se vê "quebrada na estrada". Todas imaginam, no entanto, que crescerá a contratação de mulheres caminhoneiras, por serem essas mais cuidadosas com o caminhão e a carga.

De modo reticente, Daniele foi a primeira mulher contratada como caminhoneira na empresa em que trabalha. Os responsáveis entenderem que sua contratação "deu certo". Passaram, então, a preferencialmente contratar outras caminhoneiras. A prática foi observada por ela em outras empresas do TRC, que relatavam assegurar bons resultados com as contratações.

Diluição das Fronteiras de Tempo e Espaço de Trabalho e Vida

As caminhoneiras consideram o caminhão seu lar mais do que suas próprias residências, contribuindo para visibilizar a diluição das fronteiras de tempo e espaço de trabalho e vida.

Por isso que eu procuro ter meus bichinhos aqui, minha florzinha, tenho minha cozinha, geladeira e eu trago mais no caminhão a minha casa, porque é onde eu fico mais tempo, é onde eu passo a maior parte da minha vida. É pequeno, mas é onde eu estou, tento deixar tudo organizadinho, bem arrumado, o máximo possível para me sentir mais aconchegada e como se estivesse na minha casa. Não é a mesma coisa, mas, quando eu vou para casa, eu não consigo dormir na minha cama, sinto falta da cama do caminhão. Meu corpo já acostumou. (Eduarda)

Daniele, enquanto olhava em torno de si para a mobília de sua residência, e ao mesmo tempo para seus filhos, que brincavam em um cômodo mais adiante com vários brinquedos, afirmou: "O caminhão, para mim... Em primeiro lugar, meus filhos; em segundo, ele, porque eu moro no caminhão, eu faço tudo no caminhão. É ele que dá meu sustento, dá meu conforto, tudo que eu tenho hoje. O conforto que meus filhos têm, eu tiro tudo dele".

A diluição das fronteiras de tempo e espaço de trabalho e vida é percebida, em um primeiro momento, somente como provedora de liberdades. Porém, ela também denuncia o fato de estarem em tempo integral à disposição de seus empregadores e, na maioria das vezes, a centenas de quilômetros de sua residência e família. Traços do turista, conforme apontado por Bauman (2011), são encontrados na ideia de se mover propositalmente e de consumo associado ao movimento. Não ser do lugar em que transita é algo irrisório. Seu caminhão/casa contribui para destacar a sensação de desconforto advinda da casa fixa.

Para Além do Trabalho na Boleia, o Percurso e o Cenário

O trabalho de caminhoneira exige responsabilidade, atenção e tomada de decisão, conforme consenso entre as entrevistadas. Em uníssono, dizem que seu trabalho é mais do que dirigir um caminhão, indicando que tantas outras tarefas fazem parte do trabalho da caminhoneira. Assim como Rafaela diz entender muito da parte mecânica do caminhão - "Eu sou muito metida. Quando tem que fazer alguma coisa, eu estou em cima" -, é possível identificar também na fala de Eduarda a proatividade correspondente ao exercício do trabalho imaterial.

Vai ter dias que você não vai nem almoçar, você vai comer um lanche lá pelas cinco da tarde. Vai ter dias que, além de ser caminhoneira, tu vai ter que ajudar a descarregar. Tu tem que correr atrás das coisas, não é simplesmente esperar pelo patrão. Tu tem que correr atrás das coisas, tem que fazer tudo para ser liberado o mais rápido possível daquele local. (Eduarda)

Não estando sob supervisão direta de seus superiores, certa autonomia faz parte do cotidiano das caminhoneiras, a ilustrar aspectos do trabalho imaterial relativos às responsabilidades que dizem respeito à determinação dos momentos de alimentação, quando e onde parar para dormir, como enfrentar os problemas de segurança e de falta de estrutura ao longo da estrada. Daniele conta que as rotas são pré-determinadas, mas as paradas não, cada caminhoneira para onde e quando julgar melhor, mas sempre na perspectiva do jogo curto. "Para ser liberado o mais rápido possível daquele local" (Eduarda), cabe ressaltar. Ela organiza as suas rotas e tenta manter reconhecível o itinerário por meio dos postos de combustível em que o banheiro é bom, a comida é de qualidade e há segurança. Ainda assim, afirma ser difícil encontrar um bom ponto de parada. Entre elas, é unânime a crítica à estrutura de paradouros com seus banheiros sem chuveiro, sem água quente e perigosos para estacionar.

O cenário em que circulam requer que acionem conhecimentos provenientes das observações relativas às condições socioeconômicas e culturais registradas ao longo da vida, extrapolando o tempo oficial de trabalho. Ilustra também que necessitam compreender o cenário e as ações que acontecem ao seu redor, tendo em vista especialmente aspectos relativos ao gênero e à segurança.

No que diz respeito ao caminhão, à carga e ao trânsito, o cenário se mostrou importante. Cabe a elas preverem a quilometragem a ser rodada com o combustível disponível, o percurso a ser vencido frente ao cronograma de entrega estabelecido, a fluidez do trânsito, o cansaço físico. A combinação desses elementos deve resultar cumprimento de prazos, otimização dos recursos e maior rentabilização de si. Eduarda mencionou a sensação de restrição advinda disso. "Você é livre preso. Mas você tem que saber que tem uma responsabilidade de meio milhão na tua mão. Às vezes, você tem que dar uma esticada no horário(...) pegar uma carga que você não queria carregar. Isso não é liberdade". Sua reflexão se atrela à noção de trabalho imaterial que, ao mesmo tempo em que anuncia liberdades não imaginadas, imprime aos trabalhadores novas formas de controle e servidão (Gorz, 2005). Há de se considerar as possíveis contradições relativas à liberdade e ao aprisionamento disso resultantes, ilustrada na expressão "você é livre preso".

Muitas vezes, as caminhoneiras precisam tomar decisões fora de sua alçada. Rafaela discorreu exemplos em que tomou decisões que implicavam em questões financeiras para a empresa, mas que precisaram ser tomadas imediatamente, sem tempo de serem antecipadamente informadas a um superior, ou até mesmo sem possibilidades de estabelecer comunicação naquele momento, por se encontrar em locais remotos. Mesmo não sendo prescritas, essas atribuições são parte do seu cotidiano e, por vezes, permanecem invisibilizadas.

O percurso e o cenário delineiam o perfil do jogador, uma vez que as caminhoneiras se veem mobilizadas por questões imprevistas e exigentes de uma tomada de decisão "em partida já iniciada, em que dar o lance é a única opção".

O cumprimento de prazos e a exigência de rentabilização de si se colocam tanto no plano da ação prática demandada, liberar-se o quanto antes, como na subjetividade que se vê capturada. Isto tem implicações relativas à liberdade e aprisionamento, prazer e sofrimento no trabalho, com os ganhos e as perdas existentes nessa condição.

Aspectos Culturais Enfrentados ao Longo da Estrada

Conforme Lazzarato e Negri (2001), o trabalho imaterial produz uma relação social, e não é diferente com o trabalho das caminhoneiras. Elas relataram que existe uma troca de informações entre os colegas de trabalho e que, quando estão reunidos por motivos que não são o trabalho, os assuntos que vem à tona relacionam-se com a vida de caminhoneiro e caminhoneira na estrada. "Churrascos com os colegas de trabalho, 70% do assunto é caminhão" (Daniele). Em momentos de confraternização, há troca de experiências, de sugestões de lugares de parada, dicas sobre mecânica, sobre como acomodar melhor uma carga e até mesmo truques sobre como melhor limpar o caminhão.

Além da habilitação formal e de constantes treinamentos, os momentos de troca entre colegas de profissão são considerados imprescindíveis. Eles produzem relações de cooperação que reforçam a produção de valor relativa ao trabalho imaterial, estando em consonância com o que diz Gorz (2005) a respeito dos processos de subjetivação dos indivíduos através da socialização. Além disso, aponta-se a contribuição dos recursos de comunicação e informação, como as redes sociais, ao estabelecimento e manutenção de vínculos que suportam a rede de produção.

Caminhoneira e Vida Líquida

Na sociedade líquido-moderna, a necessidade de estar em movimento é constante. Associa-se a isso a sensação das caminhoneiras de que estar parado equivale a desperdiçar o tempo que poderia ser produtivo para a atividade-fim. "Te dá uma agonia, te dá uma tristeza, sabe?" (Daniele). Infere-se que, por isso, relatam serem os momentos em que estão conduzindo os caminhões aqueles em que melhor se sentem. Infere-se, igualmente, que este é o momento de maior visibilidade de seu trabalho. "Me sinto bem no meu trabalho no momento em que eu pego o tapetão na minha frente e vamos embora" (Marina). Ela revela o trabalho-vivo, em detrimento dos tempos-mortos relativos à espera de carga ou descarga das mercadorias. Embora não tenham verbalizado receio de serem flagradas descansando, tirando uma soneca ou se embelezando, fazem lembrar a observação de Bauman (2007) de que tal feito seria condenável na sociedade líquido-moderna.

A vida da caminhoneira corresponde à vida líquida, uma vida precária em que o tempo flui e constitui frequentes mudanças, sempre efêmeras, em que cada momento é um reinício (Bauman, 2007) - de despedidas, de outros trechos a serem percorridos, de mapeamento das condições de tráfego do caminhão, de estradas e de paradouros, de contato com estranhos e mesmo com colegas de profissão. Letícia contou que o pior momento do trabalho é aquele em que está aguardando para carregar o caminhão. "Depois que o caminhão está carregado é só alegria! Alegria é estar carregado, e vazio para partir de novo, a viagem é uma maravilha" (Letícia). A exemplo das demais, faz lembrar o andarilho para quem o passeio passou a ser a vida em si (Bauman, 2011), permitindo ver a importância dos reinícios.

O trabalho imaterial de caminhoneira condiz com as características da sociedade líquido-moderna, ao demandar e prestigiar o movimento, a fluidez e velocidade na forma de proatividade, e ao buscar a rentabilização dos recursos, do tempo e de si na forma de constante autoexame e autocrítica. Eduarda revela sentir-se sempre na condição de devedora:

Eu me pergunto sempre se estou fazendo a coisa certa. Eu sinto muita saudade do meu marido, a gente é muito grudado e tem a minha família também. Às vezes, alguém vem a falecer e você está longe, como aconteceu com a minha avó e com meu primo. E aí você olha para trás e vê tudo que sofreu para chegar onde chegou, mas eu me pergunto se vale a pena. (Eduarda)

Daniele diz sofrer pressão da família para abandonar seu trabalho. De acordo com ela, não se trata de alguma forma de preconceito por ser caminhoneira, mas sim pela distância que se estabelece entre ela e os filhos, que ficam aos cuidados da avó. Letícia, por sua vez, apresenta uma peculiaridade. Ela e o marido viajam juntos, cada um dirigindo seu próprio caminhão. Ressalta seu desejo de ter filhos e, ao mesmo tempo, sua vontade de continuar trabalhando na profissão. Elas instigam a pensar a respeito da estratégia de viver a vida de caminhoneira.

Estratégia de Viver a Vida de Caminhoneira

Em relação ao TRC, a literatura (Penteado et al., 2008; Instituto WCF Brasil, 2006) vem destacando a presença masculina, a indicar a existência de empecilhos às mulheres e também sua invisibilização. O presente estudo permitiu notar algumas peculiaridades relativas à condição feminina. Rafaela compartilhou que os guardas "sempre dão um jeitinho" para facilitar seu trabalho. Eduarda revelou: "em alguns postos de gasolina, a gente tem preferência por ser mulher. A gente chega e diz: oh! O cara arruma um espacinho melhor". Daniele acredita que ser mulher "facilita bastante". Ela informou que é chamada antes dos homens para descarregar na maioria dos lugares. Além disso, contou: "Os homens precisam carregar eles mesmos para dentro do baú, e têm lugares que eu não preciso botar a mão, o pessoal da empresa faz. Mas, se for homem, eles não descarregam. Eles fazem por que é mulher". Vistas na perspectiva do turista, o mundo é apresentado à caminhoneira de um modo mais agradável (Bauman, 2011), o que não significa, necessariamente, olhar de valorização de si.

Ao passar a ressaltar truques e traquejos, não se exclui a existência de dificuldades, ao contrário, os truques e traquejos decorrem da sua existência. Eles constituem a estratégia de viver a vida, sendo algo que se associa ao cotidiano de todos os trabalhadores, por vezes de modo factual, com implicações diretas à vida que passa. Para viver a vida que a cada dia apresenta outros lugares, outras situações, outros desafios e outros medos, alguns truques se fazem necessários.

Medo a gente tem em todo lugar. Mas insegurança na estrada tem bastante, mas eu tenho meus esquemas, por exemplo, o posto que eu tomo banho não é o mesmo que eu durmo. Eu sempre procuro chegar no posto e já fecho as cortinas e tenho um chinelo do lado do carona, porque eu nunca desço. [Mas] se precisar descer de noite para ir no banheiro ou alguma coisa, eu não desço pelo lado do motorista, eu desço pelo lado do carona, porque ninguém vai saber se eu sou motorista ou não. Num lugar estranho né, se tiver alguém me olhando, vai dizer, ah, ela está descendo pelo carona, então o marido está lá dentro. Então tem esses truquezinhos básicos. (Eduarda)

As demais caminhoneiras também contam seus truques para fugirem dos riscos na estrada. Os truques decorrem da experiência que elas adquirem nas viagens e dos momentos de socialização com colegas. Sabedoras da violência e dos constantes assaltos que sofrem seus colegas, colocam em prática os truques como forma de prevenção.

A constituição de uma estratégia de viver a vida de caminhoneira não se limita a contemplar perigo e violência como situações extraordinárias. Ela contempla a vida ordinária. Nesse quesito, Daniele foi clara.

Lá em Goiás, o banheiro era daqueles químicos, e o chuveiro era só um cano reto, sem luz, tive que pegar minha lanterna e tomar banho assim. Mas ao banheiro não fui! Era horrível aquilo lá. Eu já levo comigo, sempre, um balde pequeno e um saco de lixo no balde, abro a porta do baú, atrás, vou lá dentro do caminhão, faço xixi e depois levo a sacolinha para o lixo. (Daniela)

Em relação aos traquejos, eles contribuem para afirmar os modos de ser no trabalho imaterial de caminhoneira. Hábitos ditos femininos são por elas preservados durante as viagens. Letícia revelou sempre levar, além da emoção e da saudade da família, "minhas coisas pessoais. Até deixo do ladinho o batom, porque é o principal, eu gosto disso. Secador de cabelo não pode faltar".

Não pode faltar na boleia o kit de primeiros socorros feminino, com esmalte, acetona, porque tem tempo para fazer isso. Você, às vezes, fica o dia todo aguardando para descarregar, e é quando você vai ter uma pinça para tirar uma sobrancelha, um esmalte, uma lixinha, é o kit de primeiros socorros feminino. (Marina)

Elas também dão atenção ao vestuário, pois acreditam que dele depende a imagem que os outros terão de si. "Então a gente tem que cuidar com tudo na estrada, até na vestimenta, na roupa da gente. Eu não costumo usar roupa curta, mas se usar, pronto, né. Já fica mal falada" (Eduarda). Além disso, dizem que é difícil manter-se na profissão, pois é com grande dificuldade que alcançam essa confiança das pessoas, mas que, para perdê-la, é rápido. Rafaela relata: "eu me privo de muita coisa em função do meu nome. Se eu não cultivar o meu nome, a minha índole e a pessoa que eu sou... Eu levei anos para conseguir chegar aonde eu cheguei hoje. Agora, para cair, é um tapinha." Eduarda ratifica seu relato.

Para a gente chegar aonde a gente chega, é difícil, mas, para a gente estragar tudo, é questão de 1 ou 2 segundos. Às vezes, uma palavra já se vai o teu bom trabalho.(...) Um homem vai ali e bate o caminhão, vai fazer a ocorrência e tudo bem. Agora, se eu bati o caminhão, "é mulher, tinha que ser mulher". (Eduarda)

Rafaela fala sobre a atenção que desperta nas pessoas: "O caminhão da mulher é um big brother. Todo mundo olha, todo mundo enxerga, todo mundo vê. Assim, se você esta dirigindo, passa um senhor, tropica, cai, quando enxerga uma mulher dirigindo, já vi disso. São situações diversas e até engraçadas". Contrariando o que o senso comum indica, essas mulheres relatam mais admiração do que preconceito na forma como elas se veem percebidas por sua família e sociedade em geral. Essa admiração faz com que Letícia tenha ânimo em seguir viagem. "Tu não passa um pedágio, uma vez, sem alguém te elogiar (...) Eles vão acompanhando com o olhar, abrem a boca, assim, apavorados. Homem todo mundo é acostumado a ver, mas mulher, não", confirmando a ordem das invisibilidades relativas a determinados trabalhos e trabalhadores.

Se o assunto é preconceito, Eduarda coloca que, se ele existe, é por parte de outras mulheres. Acredita que isso ocorre, pois os homens teriam um pouco de medo, "por causa dessas normas e leis eles não se passam com a gente, não vêm com piadinha sem graça". Letícia esperava rejeição por parte da família e recebeu algo diferente: "Até pensei que meu pai ficaria meio assim, por que ele é meio machista, mas não, ele tem um orgulho!"

Eduarda afirmou que, mesmo com todo o sofrimento que passa durante o dia esperando uma carga ou uma nota em alguma portaria, se sente realizada atrás do volante: "Eu não trocaria isso aqui mais nunca, por nada nesse mundo". Além do gosto pelo trabalho, também destacaram a importância da remuneração para a composição da renda familiar. Uma vez que grande parte de seus salários é variável, estar em movimento também significa melhores ganhos. Rafaela, que possui ensino superior, já teve oportunidades de mudar de emprego, mas afirma que gosta do que faz e que, financeiramente, "não tem emprego que cubra o que eu ganho hoje".

A atenção com a saúde também foi contemplada. Letícia disse que essa é uma das principais preocupações dela devido ao número de horas diárias sentada no caminhão, sendo que, periodicamente, reserva alguns dias para consultas e exames de rotina. Esses detalhes são percebidos em conjunto a um discurso de orgulho por se verem como mulheres de vanguarda ao adentrarem nessa profissão historicamente dominada e caracterizada por homens, conforme encontrado por Salvagni (2013). "Eu quero morrer em cima de um caminhão, claro, não de acidente e não agora, mas quero ficar bem velha em cima do caminhão" (Daniele).

A projeção de um tempo futuro não impede que o jogo seja curto e necessariamente condizente com a vida presa no aqui e agora, a atrelar a caminhoneira ao jogador em sua relação com o mundo em termos de antecipação, precaução e prevenção às jogadas adversárias, fazendo valer truques e traquejos a fim de evitar a fixidez, conforme alerta Bauman (2007, 2011). Apesar de seu trabalho se dar em termos de longas distâncias, na concretude do asfalto e até mesmo em estradas de chão batido, vê-se que o que a caminhoneira

tende a inserir na atual versão da ideia de 'autorrealização', atualizada como tem sido para os tempos líquidos modernos, está mais próximo da recomendação atribuída a Oliver Cromwell: 'Confie em Deus, mas mantenha sua pólvora seca.' Ou, para expressar a mesma máxima numa linguagem moderna: 'Tenha cautela e mantenha suas opções em aberto.' O que hoje mais comumente orienta os esforços de 'autorrealização' não é tanto colocar os traços nos 't' e os pingos nos 'i' de um modelo de self predestinado e firmemente abraçado, assim como tenaz e sistematicamente seguido - mas mantê-lo inconcluso, eternamente flexível, deixando bastante espaço para experimentar suas alternativas - conhecidas ou desconhecidas, mas que se espera surgirem e serem aprendidas. O que orienta esses esforços é o medo da fixidez, e não o desejo de alcançar a linha de chegada. (Bauman & Raud, 2018, p. 79, grifos do autor)

A caminhoneira se vê distanciada de uma estratégia de viver a vida que remete hegemonicamente à solidez/fixidez - projeto de vida em definitivo, a ser construído degrau por degrau para toda a vida; modelo pré-planejado, previamente conhecido em sua totalidade; modelo ainda não visualizado em sua totalidade, mas com lacunas esperadas a serem, em dado momento, seguramente preenchidas de uma vez por todas -, conforme elencam Bauman e Raud (2018). É justamente o jogo curto que sustenta a estratégia de viver a vida como sucessivos reinícios.

 

Considerações Finais

O presente estudo objetivou destacar a estratégia de viver a vida da trabalhadora caminhoneira, tomando como suporte teórico as noções de trabalho imaterial (Gorz, 2005) e de vida líquida (Bauman, 2007) associadas. Para tanto, apresentou-se as características do TRC no Brasil e o trabalho imaterial de caminhoneira. O campo permitiu ver que transformações relativas ao trabalho e ao TRC viabilizaram espaço, ainda que tímido, para mulheres em uma categoria de trabalho historicamente ocupada por homens.

A noção de trabalho imaterial aplica-se à caminhoneira, em uma mescla com o trabalho material, destacando-se por meio do investimento intelectual e pessoal na tarefa, visando: manutenção, otimização de recursos e prevenção; antecipação e resolução de problemas relativos à carga, ao caminhão e aos aspectos concernentes às estradas; discernimento em situações de trânsito imprevistas e adversas; saber incorporado voltado à produção de valor e advindo da experiência e cooperação entre pares.

Seu dia a dia condiz com características da vida líquida que pressupõe jogo curto e reinícios indolores. Remete à indistinção de tempo e espaço de trabalho e vida; ao percurso e cenário que extrapolam a boleia; aos aspectos culturais deparados ao longo da estrada. Entre truques e traquejos, sua estratégia de viver a vida concentra-se em sucessivos reinícios que demandam manter o jogo curto e tornar o itinerário minimamente reconhecível. Das quatro metáforas apresentadas por Bauman (2011), em perspectiva gradiente, a caminhoneira contempla facetas do turista, andarilho e jogador, automodelando-se a fim de prosseguir na profissão. Destaca-se que a estratégia é algo que se associa ao dia a dia de trabalho de todos os trabalhadores, interferindo diretamente nas diferentes esferas da vida.

O presente estudo corrobora a literatura pertinente e contribuiu para visibilizar o trabalho e as trabalhadoras, ainda carentes de visibilização em seus modos de ser e de trabalhar. Mostra-se pertinente ao buscar a estratégia para além dos espaços organizacionais clássicos e dos trabalhadores que neles circulam, considerando a vida vivida de caminhoneiras.

Para futuros estudos, sugere-se tomar a estratégia de viver a vida de caminhoneira no que diz respeito à especificidade da vivência de acidente grave no trabalho. Além disso, considerar aspectos relativos a masculinidades e feminilidades no contexto em questão, uma vez que, para o presente estudo, não houve espaço de abordagem para questionamentos ou observações desse tipo. Além disso, considerar a perspectiva da psicodinâmica do trabalho na análise, uma vez que o estar em movimento, os truques e os traquejos podem ensejar a criatividade no trabalho e as dimensões favoráveis à autorrealização, assim como a dimensão patogênica do jogo curto, pressões não prescritas, trabalhar no tempo de não trabalho, demanda de tempo integral e distanciamento em relação aos entes queridos e à residência, que podem gerar sofrimento, estresse e adoecimento.

 

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Endereço para correspondência:
Daiane Boff
Email: daianeboff@gmail.com

Rodrigo Luís Melz
Email: rodrigo.melz@ufrgs.br

Carmem Ligia Iochins Grisci
Email: carmem.grisci@ufrgs.br

Recebido em: 03/07/2017
Revisado em: 20/05/2018
Aceito em: 08/06/2018

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