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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.34 Belo Horizonte dez. 2010

 

 

Não te matarás: suicídio, prevenção e, psicanálise

 

Thou shall not kill thyself: suicide, prevention and psychoanalysis

 

 

Marcos Vinicius BrunhariI1; Vinicius Anciães DarribaI2

IUniversidade Federal do Paraná

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo parte dos princípios que orientam a prevenção do suicídio, tomando por referência o projeto da Organização Mundial da Saúde que se ocupa do tema. Destaca-se o fundamento da vulnerabilidade e a consideração de que não se trata de ato voluntário. A partir de Freud e Lacan, aponta-se que tal direcionamento para o tema reforça o não querer saber sobre a causa, via correlata ao querer o bem do outro.

Palavras-chave: Suicídio, Prevenção, Psicanálise.


ABSTRACT

The article discusses the principles which guide the prevention of suicide, taking as a reference the project of the World Health Organization that deals with the subject. Noteworthy are the basis of vulnerability and the fact that it is not a voluntary act. Based on Freud and Lacan, it is noted that this approach to the theme reinforces the idea of not to wonder about the cause, a correlate way to wishing others well.

Keywords: Suicide, Prevention, Psychoanalysis.


 

 

O suicídio caracteriza-se por ser alvo de abordagens e compreensões distintas tanto pelas ciências quanto pela filosofia e pelas religiões. É um fato que, muitas vezes único por ser fatal, se manifesta em formas distintas e é multifacetado pelas abordagens e compreensões que o exploram como objeto. É um tema carregado de impacto e sobressalto e que comporta situações de dor e de sofrimento. Dessa forma, o suicídio torna-se objeto de questionamentos e afirmações que o definem, caracterizam seu praticante e a forma de seu ato.

A discussão trazida por este artigo é disposta a partir da abordagem dada ao suicídio pelas práticas preventivas. Mais especificamente, refere-se aqui às práticas em prevenção propostas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que têm um projeto especial com tal propósito. Este projeto, chamado SUPRE (Suicide Prevention), apresenta avaliações de comportamento suicida e de fatores de risco. Consequentemente, o projeto delineia uma visão particular sobre o suicídio e sobre aquele que o comete. A visão particular dessa forma de abordagem permite compreender o suicídio como algonão racional e não voluntário, determinando que aquele que comete suicídio raramente, ou nunca, quer morrer. A questão centra-se sobre essa visada, acrescentando que aquele que comete suicídio é apresentado como vulnerável a tanto, a partir do que se estrutura a prática preventiva.

A vítima do suicídio deve ser protegida de um algoz que não a habita. É por posicionar aquele que comete suicídio como vítima que se abre a possibilidade de querer saber como evitar que se acessem meios e que se corram riscos. Entretanto, não se questiona a causa, não se quer saber disso. É nesse ponto que se localiza o impasse que permite uma discussão com a Psicanálise. A partir das afirmações de Sigmund Freud em seu texto "Mal-estar na civilização" (1930 [1929]) em referência ao mandamento "Amarás teu próximo como a ti mesmo" e à negação da agressividade que esse mandamento supõe, inicia-se a discussão acerca do impedimento "Não te matarás" como negação da mesma agressividade. Será com Jacques Lacan, em seu "Seminário, livro 7: a ética da psicanálise" (1959-60), que esta negação será pensada como um recuo diante do gozo.

Por fim, acompanhando a discussão traçada entre a descrição da prática em prevenção do suicídio e as proposições de Freud e de Lacan, serão feitas considerações a respeito do que se previne quando se nega a dimensão na qual se supõe a destruição e o que a Psicanálise acrescenta ao objetivo de se tomar o suicídio e aquele que comete tal ato como dignos de interesse.

 

A prevenção do suicídio e a vulnerabilidade como fundamento

No âmbito do Departamento de Saúde Mental e Abuso de Substâncias, o projeto designado SUPRE (Suicide Prevention) é organizado em colaboração com outros grupos e departamentos da Organização Mundial da Saúde (OMS). Sua meta é a prevenção de comportamentos suicidas, tendo como objetivo geral reduzir a mortalidade e a morbidade devidas aos comportamentos suicidas. Objetiva-se, mais especificamente, a redução duradoura das taxas de suicídio. Procura-se identificar, avaliar e eliminar, em fases iniciais, na medida do possível, fatores que possam levar jovens a retirarem suas próprias vidas. Busca-se ainda aumentar o conhecimento sobre o suicídio e o apoio àqueles que têm ideações, experiências ou que são familiares e amigos próximos de pessoas que cometeram suicídio (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2002).

SUPRE, portanto, é uma iniciativa mundial que visa à prevenção de comportamentos suicidas. A relevância de tal empresa assenta-se na proporção que o suicídio toma a partir das estatísticas. A saber, segundo dados da OMS, estima-se uma taxa mundial de mortalidade por suicídio de um a cada quarenta segundos. Um aumento de sessenta por cento, nos últimos quarenta e cinco anos, coloca o suicídio como a segunda principal causa de morte no grupo etário que vai dos dez aos vinte e quatro anos. Entre os jovens do sexo masculino é o de maior risco em um terço dos países. E, ainda segundo esses dados, os transtornos mentais são um importante fator de risco.

O reconhecimento destes dados possibilita aos programas de incentivo à prevenção uma visada do suicídio como um complexo que envolve fatores psicológicos, sociais, biológicos, culturais e ambientais. Sobretudo, "como um sério problema de saúde pública, o suicídio nos demanda atenção" (WORLD HEALTH ORGANIZATION 2002, p.4). A prevenção do suicídio pelo programa SUPRE, iniciada em 1999, dá relevância à informação e à conscientização. É sob a égide de um caráter epidemiológico que se encontra justificada essa preocupação. E é nesse sentido que a prevenção da mortalidade e da incidência do suicídio é objetivo dentro de correntes psiquiátricas e psicológicas, estendendo-se ao campo circunscrito da suicidologia.

No ano de 2002, o projeto "SUPREMISS, multiside intervention study on suicidal behaviors" (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2002) foi lançado com objetivos globais de redução da mortalidade e da morbidade associadas ao suicídio. Não discriminando se o desfecho é fatal ou não, o foco está no comportamento suicida. Este projeto compreende a avaliação de estratégias de tratamento para tentativas de suicídio, uma pesquisa com pessoas que apresentam comportamentos e ideações suicidas e uma descrição dessa comunidade com o objetivo de avaliar índices socioculturais. Neste documento são oferecidas instruções relativas aos instrumentos a se-rem aplicados por um entrevistador. Com o objetivo de informar, identificar variáveis válidas e confiáveis para determinar fatores de risco, descrever padrões de comportamento suicida e melhorar a eficiência de serviços gerais de saúde, a aplicação dos instrumentos segue um método específico de operação.

Entre as etapas destacadas no instrumento, em um subprojeto é disposta uma breve intervenção para a prevenção do suicídio (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2002, p.3) que se constitui em uma sessão de uma hora de informação individual. O conteúdo da sessão assim é estabelecido: "comportamento suicida como um sinal de sofrimento psicológico/social; fatores de risco; epidemiologia básica/repetição; alternativas; contatos/referências". Com objetivos específicos de fornecer informações acerca de comportamentos suicidas, fatores de risco e de proteção, enfrentar mitos, emitir pareceres e recomendações e motivar o paciente ao tratamento, essa sessão de informação tem como fundamento algumas considerações sobre o comportamento suicida.

Antes de abordar esses fundamentos da prática preventiva, é importante salientar que o projeto informa que o paciente pode fazer perguntas, mas as respostas devem ser curtas e "além disso, o profissional da saúde não deve transmitir a impressão de ter todas as respostas para cada problema. Isso facilmente transportaria o paciente para um papel passivo. Acima de tudo, o paciente não deve ter responsabilidade" (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2002, p.72). É fundamental destacar que, a priori, a responsabilização não é relevante, visto que a abordagem se faz por uma via não judicativa. O fundamento dessa abordagem, na qual se sustentam as respostas que devem ser dadas pelo profissional, constitui um anexo do projeto.

Esse anexo, continente do conteúdo informativo, organiza-se em torno de questões pontuais. Para a questão sobre o que é comportamento suicida (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2002), é destacada a gama de pensamentos, tentativas e o suicídio consumado. Sobre o suicídio como ato consumado, afirma-se que a pessoa sabia ou esperava o desfecho fatal. É por esse ato que a pessoa realiza mudanças desejadas, podendo a intenção, no entanto, ser vaga ou ambígua. A conclusão é de "que na maioria dos casos a pessoa não quer morrer e não vê a morte como objetivo, mas a pessoa quer parar de viver ou ela quer deixar de ser consciente" (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2002, p.74). A proposição de que a intenção vaga ou ambígua significa que, na maioria dos casos, aquele que comete suicídio não quer morrer e não vê a morte como objetivo começa a traçar uma visada bastante peculiar acerca do suicídio.

Seguindo pelas questões do anexo informativo, encontra-se como resposta à questão sobre o que leva uma pessoa a cometer ou a tentar suicídio, que "é difícil aceitar o suicídio como um ato racional" (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2002, p.77). Esta dificuldade tem como razão o fato de que "as pessoas não sabem como é a morte", de que "está além da capacidade do cérebro humano entender conceitos como eternidade e infinito"; donde se conclui que "o ato suicida é raramente, ou nunca, voluntário" (p.77). A dificuldade para aceitar o suicídio como um ato racional, uma vez que não se sabe o que é a morte, leva portanto a afirmar que raramente, ou nunca, o ato suicida seja um ato voluntário. O ato suicida, compreendido como não racional e não voluntário, permite que se descreva o suicida por características como a presença de sentimentos ambivalentes desde os quais "a pessoa sente um desejo de fugir da dor de viver e sente o desejo de viver ao mesmo tempo. Muitas pessoas suicidas não querem realmente morrer" (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2002, p.77).

Portanto, considerar o ato suicida como não racional e não voluntário e definir o suicida como uma pessoa que não quer morrer são dados básicos que sustentam a detecção e o gerenciamento de fatores de risco para a prevenção do suicídio. Deriva desse pressuposto que a disponibilidade imediata de um método para cometer suicídio é um fator de risco e que "a redução do acesso aos meios de cometer suicídio é uma estratégia eficaz de prevenção do suicídio" (WORLD HE-ALTH ORGANIZATION, 2002, p.84). Por supor que se é vulnerável ao suicídio, a prevenção encontra na redução do acesso aos meios de cometer suicídio uma vantagem para sua prática. É assim que se constrói a compreensão do que o suicida é como aquele que é vulnerável e que está exposto ao suicídio por intermédio do fácil acesso a armas e produtos tóxicos, por exemplo.

Como problema de saúde pública, o suicídio é considerado um fenômeno complexo que não tem uma causa e uma razão singulares. Isso não impede, no entanto, o esforço descritivo, composto por avaliações e definições de fatores a partir da consideração de uma vulnerabilidade diante da exposição do assunto e da proposição da redução do acesso a formas de cometer suicídio como estratégia de prevenção.

 

A partir da psicanálise, algumas considerações sobre o suicídio e sua prevenção

É perceptível a ênfase no caráter de vulnerabilidade ao suicídio apresentada pelas descrições. A partir daí, a prevenção procura o reconhecimento de práticas efetivas de intervenção como redutoras da mortalidade e da incidência de comportamentos suicidas. Acompanhando a proposta da existência de uma vulnerabilidade ao suicídio, vem a de que o suicídio não pode ser considerado um ato racional. Embora a pessoa saiba da consequência de seu ato (a própria morte), não sabe o que é a morte. Como indicamos, é por essa perspectiva de vulnerabilidade e de não conhecimento sobre a morte que se afirma que o ato suicida não é voluntário, uma vez que outro caminho para a dor e a miséria não é visto. Desde então se conclui que o suicida não quer morrer.

Nesse campo, cuja designação por prática preventiva parece adequada, alguns fundamentos se destacam. O suicídio é tomado estritamente no registro de um mal, eventualmente uma epidemia, algo a ser prevenido, evitado. No que se refere às razões do ato, a ênfase está toda posta na questão da vulnerabilidade. Do que decor-rem ações que visam diminuir tal vulnerabilidade, inclusive em um sentido pretensamente objetivo: certos cuidados arquitetônicos ou a limitação de acessos a sites na internet. Essa proteção configura-se como proteção a uma possível vítima do suicídio, visto que a questão se toma deste lado, na medida em que se postula que o sujeito da ação não queria morrer. Não se pode negar que os argumentos que dão sustentação a esse ponto de vista são, como observado antes, de uma simplicidade quase inatacável: por um lado, não se pode querer morrer pois não se tem uma representação da morte; por outro lado, não se pode considerar como uma ação voluntária, pois se trata de situação em que não se afigurou outra saída. Conclui-se que, a rigor, ele não teria querido morrer.

Quando se afirma não haver outra saída, entende-se saída para quê? Para a infelicidade? Para a dor? São os termos que figuram, mas que precisariam ser mais bem definidos. De início, se pensamos desde a perspectiva da psicanálise, essa situação, que não oferece outra saída, teria que ser reportada a uma dimensão estrutural, na qual termos como infelicidade, dor estariam mais bem articulados. A possibilidade de avançar nesta via, no entanto, supõe um desejo de saber mais, não um desejo de saber mais sobre como evitar, mas um desejo de saber que visa à causa. O impasse se configura na medida em que, tomando-se como um equívoco, algo de que se deve a partir de então ser mantido afastado, a requisição é que se esqueça, de que não queira saber. Não se trata de desabonar a prática preventiva, mas de avançar na discussão, sustentando o impasse que se delineia quando pensamos em que termos a psicanálise abordaria o tema.

Entre as discussões que podem derivar dessas considerações elencadas com a finalidade de prevenir o suicídio, voltemo-nos para a involuntariedade associada ao ato. Diante dessa, propomos o problema em uma estrutura sintática: se se é vulnerável ao suicídio e este não é voluntário, não é possível dizer ele se mata, pode-se dizer ele foi morto. A estrutura sintática dessas frases deixa clara a mudança de posição daquele que é agente e alvo de sua ação, de seu verbo, e daquele que é passivo diante da ação. Por exercício lógico, se ele está morto e se ele foi morto, conclui-se que ele foi assassinado. Ao considerar que o suicida comete um assassinato, entramos no campo da semântica e encontramos a palavra "suicídio" em estreita correlação a "homicídio", uma vez que aquela indica o assassinato de si próprio.

Considerar o suicídio como um assassinato abre uma dimensão moral e ética. É com Agostinho (413-426/1996) que se circunscreve o ato de retirar a própria vida sob a égide do quinto mandamento: "Não matarás". Mandamento ao qual não se acrescenta a expressão ao próximo e que, diante da argumentação do bispo, "nem a outro nem a ti próprio matarás pois quem a si próprio se mata, mata um homem" (p.158). Contudo, salientamos a presença de um espaço entre conceber o suicídio como um assassinato de si e propor que aquele que retira sua vida não quer morrer. Há uma distância entre Agostinho e o que embasa a prática preventiva. É sobre esse ínterim que dispomos uma interrogação e que recorremos a Freud e La-can para pensá-la.

Se o mandamento "Não matarás" se refere ao próximo, bem como a si próprio, pode-se afirmar que não dirigir o rancor e a ira contra o próximo se dá de forma mais expressa em outro mandamento: "Amarás a teu próximo como a ti mesmo". Esse mandamento chama a atenção de Freud diante de sua patente impossibilidade e da desvalorização do amor sob tal preceito. É nessa medida que a função da civilização, ou da cultura, de ajustar os relacionamentos mútuos passa despercebida sobre a agressividade original daquele a quem a lei manda amar e também daquele que é impelido. Assim, "a lei não é capaz de deitar mão sobre as manifestações mais cautelosas e refinadas da agressividade humana" (FREUD, 1930 [1929]/1996, p.117). No seminário sobre a ética da psicanálise, Lacan se volta para o modo como Freud se ocupa desse mandamento que se enuncia como o amor ao próximo. Propõe que o mal que habita o próximo revela, nada mais, que o mal que nos habita e que "amá-lo como um eu mesmo é, da mesma feita, ir adiante em alguma maldade" (LACAN, 1959-60/2008, p.237).

De modo hiperbólico, Lacan sustenta que nesse texto, O mal-estar na civilização (1930 [1929]/1996), Freud trata, do início ao fim, das articulações de tal mandamento, o qual o abisma em suas consequências. La-can convida-nos a restituir a vertigem que o encaminhamento de Freud comporta. Pois, nele, o mandamento de amar ao próximo se funda em o gozo comportar o mal do próximo. Neste veio identificado por Freud, o sentido do amor ao próximo que dá a Lacan o que ele designa como uma direção verdadeira, assim se escreve: "o que quero é o bem dos outros, contanto que permaneça à imagem do meu" (LACAN, 1959-60/2008, p.224). Querer o bem do outro é, portanto, não querer saber de um gozo que tem nele um modo próprio; gozo destrutivo, freudianamente dizendo, por não promover a civilização.

Este modo próprio de gozo que eu temo e me esforço por desconhecer no outro, não se assenta também nisso a ação preventiva do suicídio? Não estaria aí em jogo uma operação de defesa que entrava o acesso a essa dimensão do gozo? Não é nessa dimensão do gozo que se situaria o que não cede aos protocolos que pretendem evitar o cometimento do ato suicida? Pois bem, o que se faz por amor ao próximo, pelo bem do outro, Lacan apresenta como uma via que pode se revelar cruel: quero o bem do outro à condição de aniquilá-lo, visto que o bem faz barreira ao desejo no sentido do não querer saber daquilo que habita seu horizonte. Não por acaso, de Freud a Lacan preconiza-se o recuo diante do ‘Amarás teu próximo como a ti mesmo’. No sentido contrário, o segundo pontua que "um repúdio radical de um certo ideal do bem é necessário para chegar apenas a apreender em que via se desenvolve nossa experiência" (LACAN, 1959-60/2008, p.274).

O problema do gozo, e da maldade que comporta, se apresenta em sua inacessibilidade como uma satisfação pulsional. Abre-se, então, uma dimensão na estrutura do campo analítico onde se projeta um para-além que é original da cadeia significante. O mandamento de amar ao próximo como a si próprio é revelador dessa dimensão e, por isso, na perspectiva freudiana é apontado como destoante de um bem. O domínio ético embalado por Freud e retomado por Lacan desloca o bem do índice do prazer, afixando-o como uma barreira que detém, mas que não deixa de apontar a destruição.

Sem abandonar a visada ética, cabe ainda elucidar que a associação do ato suicida ao equívoco requer uma redução da experiência. Isso se esclarece pelo comentário de Lacan (LACAN, 1959-60/2008, p.226) a um famoso exemplo kantiano. Neste, são contrapostas duas histórias: em uma delas, o personagem está colocado na posição de ser executado no final caso queira passar uma noite com a dama que deseja; na outra, a pena capital é a alternativa a prestar falso testemunho por solicitação de um déspota. Kant compara as duas histórias mostrando que, na primeira, o homem de bom senso abre mão de passar a noite com a amada, ao passo que, na segunda, em nome do imperativo categórico, reluta-se em prestar falso testemunho, aceitando-se talvez a pena de morte.

O primeiro caso é o que interessa, pois nele Kant entende que, equacionando-se o prazer da noite ao lado da dama com a morte, a escolha é óbvia. O que Lacan propõe é que a noite com a dama seja passada da rubrica prazer para a rubrica gozo. Nesse caso, o exemplo é contestado na medida em que o gozo inclui a morte. Mais do que isso, nesses termos, a lei moral poderia servir, inclusive, de apoio ao gozo. Como no exemplo de Kant, essa é a dimensão forçosamente desconsiderada quando se toma o ato suicida como um equívoco. A experiência analítica, sua direção ética é, então, com Lacan, a reivindicação de que esta dimensão, de que isso se inclua, de poder fazer com isso.

A prevenção do suicídio desenha sua prática sobre o pressuposto de que o assassino de si não decide voluntariamente por tal ação, sendo vulnerável e vítima do algoz que não o habita, sobre o qual não tem responsabilidade. É imprescindível que a prática preventiva do autoassassinato se componha sobre tal premissa cuja essência repousa na rejeição da agressividade mais íntima do outro e no recuo diante do gozo nocivo?

 

Considerações finais

O que se evidencia com o exame das proposições que dão sustentação às práticas preventivas concebidas pela OMS em seu projeto para a prevenção do suicídio (SUPRE), o qual tem dimensões globais, é que o suicídio é um ato não racional e não voluntário. Assim, aquele que comete ou tenta suicídio não quer morrer. Tem-se uma vítima, alguém que é vulnerável a cometer tal ato. Tomando dessa maneira, a vítima deve ser afastada dos riscos para os quais é vulnerável.

A inacessibilidade aos meios de cometer suicídio é tida como estratégia preventiva. É a partir dessa concepção que, neste artigo, indica-se, sem desabonar a prática preventiva e seus objetivos, que algo escapa a essa forma de compreensão. É na proporção em que o sobrevivente ou aquele que consumou o ato são tidos como vítimas vulneráveis, pois não querem morrer, que se desprende o que aponta para a causa. A prática preventiva se ocupa, muito perspicazmente, em saber como evitar que esse mal se alastre e faça mais vítimas em todo o mundo. E é nesse ofício que a prática deixa escapar a causa do ato suicida, por negar que ali onde se nomeia uma vítima habita o maior dos riscos.

A psicanálise possibilita pensar isso que escapa à prevenção. É pelo repúdio de Freud ao mandamento de amar o próximo que seguimos uma via. Nela, o mandamento "Não matarás", bem como "Não te matarás" nega o mal que habita intimamente, sendo incapaz de impedir sua existência. O bem se encontra aí no máximo de sua função. Uma via cruel, segundo Lacan, na qual o bem do outro supõe a supressão de sua alteridade radical e que dispõe o bem como uma barreira para não se saber daquilo que está além. É nesse sentido que perfila a ideia de que aquele que se mata não quer morrer. É uma ideia que funciona como lacre sobre um ponto no qual apenas o sobrevivente pode vir a dizer algo, mas que não se faz escutar. O sobrevivente é convidado a calar-se, para seu próprio bem.

A ideia que serve de lacre soterra o que Lacan diz na televisão francesa: "se ninguém nada sabe sobre o suicídio é porque ele pro-cede do parti-pris de nada saber" (LACAN, 1993/1974, p.74). Reconhecer a falta de saber como essencial localiza como desafio para a psicanálise, e para seus praticantes, não se furtar diante do tema do suicídio sem que se façam predições em forma de saber sobre algo que é vazio.

 

Referências

AGOSTINHO, S. (413-426), A cidade de Deus. 2. ed.. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1996. v.1, livro 1,cap.XX.         [ Links ]

WORLD HEALTH ORGANIZATION (2000). Preventing suicide – A resource for primary health care workers. Mental and behavioural disorders, Department of mental health, World Health Organization, Geneva. Disponível em: http://www.who.int/mental_health/media/en/59.pdf. Acessado em 23/09/2010.

WORLD HEALTH ORGANIZATION (2002). Multisite intervention study on suicidal behaviours – SUPRE-MISS: Protocol of SUPRE-MISS. Management of mental and brain disorders, Department of mental health and substance dependence, World Health Organization, Geneva. Disponível em: http://www.who.int/mental_health/media/en/254.pdf. Acessado em 23/09/2010.

FREUD, S. Mal-estar na civilização. [1930 [1929]]. In: _____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud.Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. XXI.         [ Links ]

LACAN, J. (1959-1960) O seminário, livro 7: a ética da psicanálise. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.         [ Links ]

LACAN, J. (1974) Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Praça Santos Andrade, 50/115 - Prédio Histórico
80060-000 - Curitiba/PR
E-mail: mvb_marcos@yahoo.com.br

Recebido: 30/09/2010
Aprovado: 25/11/2010

 

 

1 Psicólogo; mestrando em Psicologia na área de Psicologia Clínica da UFPR (Bolsista do programa Reuni); participante do Laboratório de Psicanálise da UFPR.
2 Professor Adjunto e do Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Paraná; doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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