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Estudos de Psicanálise

versão impressa ISSN 0100-3437

Estud. psicanal.  no.41 Belo Horizonte jul. 2014

 

 

Uma análise em grupo com dentistas: cenas e posições

 

An analysis in dentists’ group: scenes and positions

 

 

Ricardo Azevedo BarretoI; II; Marlene GuiradoIII

ICírculo Psicanalítico de Sergipe
IIUniversidade Tiradentes
IIIUniversidade de São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo é uma síntese da tese de doutorado de Ricardo Azevedo Barreto, intitulada Uma análise institucional do discurso em grupo com dentistas: cenas e posições, e defendida na Universidade de São Paulo, sob a orientação da professora Dra. Marlene Guirado, do Instituto de Psicologia da USP. Trata-se de um estudo qualitativo, mais especificamente uma pesquisa-intervenção na odontologia, por meio de um grupo com dez dentistas, durante seis encontros de aproximadamente uma hora e meia cada um, sobre as práticas odontológicas e as relações com os pacientes e seus acompanhantes. Trabalhamos com uma articulação da psicanálise com a análise de instituições concretas, a análise do discurso francesa e as contribuições de Michel Foucault, por meio do método da análise institucional do discurso. Diferenciamo-nos de uma concepção de mentalidade grupal, comum nos meios psicológicos e psicanalíticos. Compreendemos um grupo como uma instituição discursiva, constituída no fazer grupal em ato. A partir de tal perspectiva, foi construída uma análise em grupo no que se refere à mobilização nos posicionamentos discursivos dos participantes e ao acompanhamento de possíveis movimentos nas relações entre dentistas e clientela. Com nosso trabalho, foi possível perceber efeitos no imaginário e na micropolítica das relações na odontologia, defendendo a tese de que a análise institucional do discurso, desdobramento da abordagem psicanalítica e método que vem sendo desenvolvido por Marlene Guirado, é uma estratégia de pensamento profícua para além das entrevistas, seu modus operandi mais habitual, particularmente para o trabalho analítico grupal.

Palavras-chave: Psicanálise; Psicologia; Análise do discurso; Odontologia; Trabalho em grupo.


ABSTRACT

This paper is a sinthesis of Barreto, Ricardo Azevedo’s doctoral thesis called “An institutional discourse analysis in dentists’ group: scenes and positions”, which was defended in the University of São Paulo under the supervision of Dr. Guirado, Marlene, Psychology Institute of USP’s Professor. It refers a qualitative study, more specifically an interventional research within the Dentistry, which involved a group of ten dentists, during six meetings of approximately one and a half hour each, about dental practices and the relationships with patients and their companions. We work with a link among psychoanalysis, concrete institutional analysis, French discourse analysis and some Foucault’s thoughts through the method of institutional analysis of discourse. We differ from a vision of group mind so common in the psychological and psychoanalytic fields. We understand a group as a discursive institution that is constituted in the group work in action. Based on the aforementioned perspective, an analysis in group was carried out concerning the mobility of speech positions of the participants and about the observation of possible movements in the relationships between dentists and clientele. Through our study, we perceived effects in the imaginary and the micropolitics of the relationships in Dentistry. We defended the thesis that the institutional analysis of discourse, derivation of the psychoanalytic approach and a method which has been developed by Marlene Guirado, is a fruitful thinking strategy for beyond the interviews, its more usual modus operandi, particularly for the analytic group work.

Keywords: Psychoanalysis; Psychology; Discourse analysis; Dentistry; Group work.


 

Ao invés de tomar a palavra,
gostaria de ser envolvido por ela
e levado bem além de todo começo possível.
FOUCAULT

 

Em relação ao campo da odontologia, é importante seu estudo sobretudo a partir da psicanálise e da psicologia, porque as relações entre essas áreas podem ser mais alinhavadas em termos de pesquisa acadêmica, principalmente no que tange a assuntos escassos na literatura especializada.

Há um panorama de autores que articulam o conhecimento psi à odontologia. Algumas referências são Aberastury (1972, 1996), Alves (2006), Barreto (1999, 2003, 2009, 2010), Carniel (2001), Corrêa (2002), Emílio-Marchioni (1998), Giron (1988), Klatchoian (1992), Seger (2002), Wolf (2002), entre outros. Entretanto, existem poucos trabalhos sobre intervenção em grupo na odontologia, e eles não se delinearam com o nosso referencial teórico-metodológico de pesquisa no doutorado (BARRETO, 2010).

Nosso estudo de doutorado se desenhou como uma investigação dos efeitos discursivos, no campo institucional das relações na odontologia, de uma intervenção em ato, em um grupo de dentistas, com base na análise institucional do discurso (AID), método de autoria da professora Dra. Marlene Guirado, que vem sendo gradativamente construído por ela (1986/2004, 1987/2004, 1995/2006, 2000, 2007, 2009...), por meio da articulação da psicanálise com outros aportes epistemológicos, como a análise de instituições concretas, a análise do discurso francesa e as contribuições de Michel Foucault.

O método análise institucional do discurso, à exceção de movimentos de um suposto saber totalizante e da aplicação teórica imediata (teoricismo), assenta-se em uma perspectiva de conceber e operar com a análise de forma localizada. Trabalha com o modo como o discurso se organiza, articulando concepções específicas de instituição, discurso, sujeito e análise. Guirado (2009), em seu trabalho de livre-docência, menciona que seu objeto provém da proximidade à psicanálise: as relações imaginadas e simbolizadas pelos que as produzem.

A psicanalista Marlene Guirado tem como uma das matrizes conceituais de seu método a concepção de instituição do sociólogo Guilhon Albuquerque. A autora refere-se a ele assim:

Sua contribuição fundamental é a de fazer pensar a instituição como conjunto de práticas sociais que se reproduzem e se legitimam, num exercício incessante de poder; um poder entre agentes, dos agentes com a clientela; um poder na apropriação de um certo tipo de relação como própria, como característica de uma determinada instituição (GUIRADO, 2004, p. 110).

De acordo com Guirado (2005), essas práticas são reconhecidas pelos que as fazem, como ‘naturais’, tendo que ser como são, o que marca o desconhecimento da relatividade ao contexto e do caráter instituído de tais relações.

Com base em Guirado (2006), em Psicanálise e análise do discurso: matrizes institucionais do sujeito psíquico, por intermédio de Maingueneau, a linguagem pode ser compreendida como um modo de ação indissociado de uma instituição. O discurso pode ser configurado como cena enunciativa, e suas condições de produção não são entendidas como externas a ele. Em tal perspectiva, entre outros aspectos, chama atenção a noção de polifonia (vozes) e divisão no discurso, cuja heterogeneidade se mostra por meio da ironia, da pressuposição, da negação, do discurso indireto livre, das palavras entre aspas, entre outros indicadores.

Com base em Maingueneau (1997, p. 14), surge um recorte para o discurso a partir da visão de Foucault:

[...] um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram em uma época dada, e para uma área social, econômica, geográfica ou linguística dada, as condições de exercício da função enunciativa.

Guirado (2000, p. 99), em A clínica psicanalítica na sombra do discurso: diálogos com aulas de Dominique Maingueneau, conversa com a aula de Maingueneau sobre gêneros discursivos em que ele delineia:

[...] o discurso é sempre pôr em relação [...] O problema dos parceiros não é somente transmitir ideias, mas é fazer reconhecer o lugar a partir do qual está falando. E fazer o outro reconhecer o lugar a partir do qual está recebendo o discurso. Mas, muitas vezes, há um conflito. Uma vez que cada um dos parceiros pretenda ser reconhecido num outro lugar [...] Isso é fundamental! Porque é unicamente a partir dos lugares que as palavras podem tomar um sentido [...]

Na explicação de Ribeiro (2007, p. 248), toma o seguinte contorno a visão guiradiana de “sujeito-dobradiça”:

[...] a metáfora do sujeito-dobradiça expressa conceitualmente a condição de sujeito institucional como subjetividade instituída nas (e instituinte das) práticas discursivas [...] faz entrever no espaço-tempo desse movimento condições de produção do discurso e efeitos de subjetivação [...] enuncia práticas institucionais e subjetividade.

Em diferenciação da visão usual de psiquismo da psicanálise, a análise institucional do discurso a inova:

[...] Em vez da obrigatoriedade de aproximações de noções como as de pulsão e recalque, entre outras clássicas à obra freudiana, aportes epistemológicos externos ao campo psi mobilizam o lugar psicanalítico [...] (BARRETO; GUIRADO, 2009, p. 150).

Especificando um delineamento de trabalho analítico em grupo, Guirado (2004, p. 125) enfatiza, em Psicologia institucional, que nosso posicionamento profissional é:

[...] Pontuar, interpretar e, com isso, “desconstruir” (a) o interjogo dos papéis assumidos no grupo, (b) as fantasias e os afetos que o acompanham, (c) a atribuição e assunção de lugares de poder e (d) o significado que isto assume [...]

Salientamos ainda que Guirado – em A clínica psicanalítica na sombra do discurso: diálogos com aulas de Dominique Maingueneau (2000), Psicologia institucional (2004) e Psicanálise e análise do discurso: matrizes institucionais do sujeito psíquico (2006) – nos faz considerar sua noção de transferência institucional, ressaltando uma reedição de relações por meio de uma estrutura de lugares no plano da cenografia no discurso nos movimentos dos papéis e expectativas no interior de uma instituição, isto é, na interioridade de práticas ou nos desenhos relacionais.

Neste momento, faremos interlocução com Costa (1989, p. 14), que comenta:

[...] O grupo, sendo composto de sujeitos, não tem nenhuma realidade em si, imutável e idêntica a si mesma [...] O grupo é uma instituição social. E das instituições sociais [...] o que se pode dizer é que elas autoinstituem permanentemente suas realidades [...].

Enfim, não entendemos o grupo como uma mente grupal, concepção comum nos meios psicológicos e psicanalíticos. Delineando uma especificidade afinada ao trabalho de análise institucional do discurso, nós compreendemos um grupo como uma instituição discursiva constituída no e do fazer grupal em ato, articulando as concepções de instituição, discurso, sujeito e análise delineadas.

Além disso, salientamos que nosso estudo acadêmico (o primeiro com a análise institucional do discurso em grupo) objetivou investigar posicionamentos discursivos de dentistas nas relações com pacientes, acompanhantes e a odontologia no exercício de sua profissão, bem como acompanhar os possíveis efeitos do trabalho de análise institucional do discurso nessas relações.

 

Recorte metodológico do estudo

Houve a realização de uma pesquisa-intervenção, em grupo e ato, com dez dentistas do sexo feminino com perfil variado (de idade, formação e experiência) em pós-graduação (especialidade ou aperfeiçoamento) no campo da odontologia. Todas elas tinham vida profissional ativa. Ocorreram com as participantes seis encontros grupais de aproximadamente uma hora e meia de duração cada um. A frequência dos encontros foi geralmente semanal. Enfatizamos a fala livre das dentistas, embora tivéssemos um roteiro com algumas indagações eventualmente adotadas na intervenção, por exemplo, entre outras, como são suas relações com pacientes e acompanhantes? Como é o atendimento de vocês? Como é um dia de rotina? Quais são os fatos mais marcantes que lembram com pacientes e/ou acompanhantes?

As dentistas tiveram o desejo de participar da pesquisa sobre a qual foram devidamente informadas. Houve inicialmente a autorização do diretor da entidade de ensino relacionada à investigação, em formulário próprio do Comitê de Ética do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, ao qual foi submetido e aprovado o – naquela ocasião – projeto de pesquisa. Salientamos ainda que, para a realização da pesquisa, as participantes preencheram o termo de consentimento livre e esclarecido.

A análise em ato (pesquisa-intervenção) teve a atenção voltada às produções discursivas das dentistas sobre seus atendimentos, suas relações com pacientes e acompanhantes. Os discursos foram gravados em áudio, e uma pessoa secretariou o pesquisador, registrando por escrito dimensões centrais das falas, para, por exemplo, facilitar a posterior transcrição pelo pesquisador do que fora gravado.

Os primeiros encontros foram fundamentais, pois, além de os membros do grupo se apresentarem, o pesquisador/analista explicitou os objetivos e o enquadre do trabalho, salientando que as dentistas falassem o mais livremente possível sobre as relações com pacientes e acompanhantes, os atendimentos, a prática profissional. Inicialmente, foi central conhecer as demandas e expectativas.

De modo geral, nossa intervenção analítica considerou repetições, aspectos geradores de estranhamento, uso dos tempos e expressões verbais, a estrutura linguística das sentenças, as metáforas, os intervalos, a ironia, o discurso indireto, o uso de adjetivos ou sentidos atribuídos, etc. Ocorreram, por parte do analista, durante os encontros, pontuações, questionamentos, confrontações, espelhamentos, sínteses, reorganizações analíticas, comparações de cenas e/ou dimensões do dizer, apresentação de algumas hipóteses interpretativas, etc. Se, em nossa análise, o dito e os sentidos não foram desconsiderados, o dizer e seus movimentos foram principalmente enfatizados.

Posteriormente aos encontros, houve a análise da intervenção analítica realizada, por meio da qual foram depreendidos no e do discurso, de cada sessão grupal, diversas cenas e os lugares em suas mobilizações – do pesquisador/analista, das dentistas e de suas práticas, do paciente e do acompanhante – havendo destaque de algumas dimensões do dizer. A análise da análise em ato se configurou, em tal construção, como cenas e posições instituídas no discurso em que foi acompanhado o que se desenhou outrora nos objetivos da pesquisa.

 

Algumas considerações analíticas

Como já fora mencionado, alguns autores articularam o conhecimento psi à odontologia, entretanto poucos se dedicaram a trabalhos de intervenção em grupo na odontologia, e não se delinearam com o nosso referencial teórico-metodológico de pesquisa.

Em nosso trabalho, a solicitação da análise em ato foi de que as dentistas falassem o mais livremente possível de suas práticas, dos atendimentos, das relações com pacientes e acompanhantes. Investigamos posicionamentos discursivos de dentistas nas relações com pacientes, acompanhantes e a odontologia no exercício de sua profissão. Compreendíamos o inconsciente na perspectiva da divisão no discurso e da pluralidade de vozes em um dizer.

Durante os encontros grupais, estivemos com uma atenção flutuante para as cenas discursivas que se desenhavam e as posições instituídas no dizer ao pesquisador/analista, às dentistas e suas práticas, aos pacientes e acompanhantes, bem como seguíamos os efeitos de mobilização desses lugares e de sua cenografia, com as intervenções analíticas que realizávamos, por exemplo, por meio de perguntas, pontuações, etc. Desamarrávamos a cadeia discursiva e, assim, eram produzidas as singularidades possíveis aos movimentos de subjetivação das dentistas com a organização de sentidos. O manejo da transferência, por sua vez, passou por seu reconhecimento como expectativas de lugares no discurso, por exemplo, os lugares de professor, pesquisador e psicoterapeuta atribuídos pelas dentistas ao analista.

Podemos mencionar que nos singularizamos em nosso estudo de trabalhos psi em grupo existentes na odontologia, que são raros. À guisa de exemplos, no que se refere ao atendimento odontológico, Aberastury (1972, 1996) comenta sobre grupos com crianças e acompanhantes, cujo manejo tinha por base uma visão psicanalítica clássica; Emílio-Marchioni (1998) faz seu estudo no tocante ao contato de alunos de odontologia em uma clínica-escola com pacientes especiais e uma leitura a partir do enfoque grupal, sendo importante a referência de Pichon-Rivière; e Carniel (2001), em sua pesquisa, realiza grupos com pacientes em tratamento por desordens temporomandibulares com um modelo teórico-metodológico baseado em Pichon-Rivière.

Por meio de nosso trabalho analítico, que não se assenta no lugar convencional (ou suposto “não lugar”) do psicanalista, percebemos que a busca da relação dentista-dentista se mostrou como um dos fortes ingredientes de ligação das participantes com a pesquisa. O vínculo com o trabalho analítico foi claro durante os encontros pela frequência e participação das dentistas. Elas falavam de si e se emocionavam com os movimentos do dizer.

Nosso trabalho analítico foi produzido em “uma zona de tensão” entre a demanda do pesquisador, configurada como oferta às participantes do estudo, e a produção de demandas das dentistas. Essa leitura de demandas nos orientou em toda a análise, engendrando, sobretudo, os dois primeiros encontros na constituição das relações em grupo. A transição do lugar do pesquisador demandante ao de analista de demanda foi fundamental ao trabalho analítico.

Para exemplificar, salientamos que a primeira cena dos encontros grupais (primeiro dia de grupo) foi nomeada (em nossa análise da intervenção analítica realizada) o pesquisador demandante: “[...] queria conversar com vocês [...] Este grupo é [...] minha pesquisa de doutorado, certo? [...]” O vocábulo “queria” marca o caráter de condicionalidade à cena que se construía; “certo” aparece sinalizando a posição do pesquisador de solicitar confirmação às interlocutoras: as dentistas participantes da pesquisa. A segunda cena do primeiro encontro grupal foi nomeada — para fins de organização analítica das falas posterior à intervenção — do lugar de pesquisador demandante ao de analista de demanda: “[...] E também por que se dispôs a participar, quais são as expectativas de vocês, o que vocês querem com este grupo [...]?”

Os lugares do paciente e do acompanhante, algumas vezes, no decorrer dos encontros, foram reconhecidos em antagonismo ao papel/lugar do profissional e de suas práticas: “O paciente, ele, ele marca o horário dele. Então lá fora, eles estão impacientes, como ela mesma falou, né? [...] esta questão de tempo é complicada, porque se o paciente está ansioso, está com dor [...] sangramento, uma língua rebelde [...] Então atrapalha muito o tratamento [...]” “Já tive paciente que preferia [...] a dor do parto do que ser, do que ser atendido.” “[...] Mãe, eu acho que mãe atrapalha muito o atendimento.”

O lugar do profissional e de suas práticas apareceu de distintos modos no grupo: “Eu tenho dificuldade de cobrar [...]” “[...] Consulta não existia em odontologia. Era uma olhadinha. E uma olhadinha qualquer um dá.”

Na evolução dos encontros, enredou-se uma discussão sobre o fortalecimento da posição profissional no que se encontrou a fragilidade das dentistas quanto à imagem de si e de suas práticas: “[...] Não é melhor tentar... é... fortalecer o profissional primeiro?” No desenvolvimento dos contatos, as dentistas verbalizaram sobre suas rotinas e diversas dimensões de seus relacionamentos com pacientes e acompanhantes. Medo de dentista, invasão da vida pessoal, isolamento, experiência, vulnerabilidade profissional, desgastes, sofrimento por causa do contexto, das condições e relações de trabalho, dimensões econômicas e posicionamentos políticos na odontologia, cotidiano nada fácil, concentração, temporalidade do atendimento, esquecimento do corpo, cansaço, impacto na saúde, formação profissional, lidar com limites, entre outros eixos de análise, destacaram-se no conjunto dos encontros.

Houve movimentos nas relações entre dentistas e clientela. As dentistas foram, com os encontros, posicionando-se no lugar do outro: paciente, acompanhante, etc. (“Eu mesmo não gosto de tratar o meu dente.” “[...] às vezes, fica difícil pelo que o acompanhante já sofreu no dentista [...]”). Elas passaram também a ampliar as perspectivas de análise, ocorrendo mobilizações nos posicionamentos discursivos das participantes e nos sentidos produzidos desses. Na ordem inconsciente do discurso, tropeços e trocadilhos aconteceram. Por exemplo, houve uma situação em que um adágio popular foi enunciado de forma invertida por uma dentista. Em vez de “a melhor defesa é o ataque” emergiu “o melhor ataque é a defesa”. Como podemos perceber na fala, “Você já chega” (você, quem?) desliza para “eles já chegam intimidando” (eles, em referência à clientela, no sentido usual do adágio, isto é, ataque como defesa). Demonstraremos com o exemplo concreto: “[...] Tem um, um adágio popular, né, que, que “o melhor ataque é a defesa”, não é isso? Você já chega... Então eles já chegam intimidando [...]”.

O “término” dos encontros foi temática recorrente e produziu múltiplas significações, configurando-se como uma cena do último encontro nomeada, em nossa análise da análise em ato, de os sentidos do término: “É uma porta aberta [...]” No último encontro, inclusive, as dentistas falaram da experiência de participar do grupo de modo bastante positivo.

Se inicialmente as dentistas pediram força para o exercício do papel profissional, elas lidaram, ao final, com a falta, ocupando uma posição questionadora, de maior implicação. Surgiram também mais lugares de enunciação e relativizações com a escuta analítica. O inconsciente não se esgota... As relações em grupo mostraram-se como um espelho multifacetado: “[...] Quando chega aqui, foi um... um espelho multifacetado e, né, bem colorido, cheio de nuances belíssimas [...] E realmente eu acho que só fez enriquecer [...]”.

De modo geral, houve uma construção de pesquisa que, em vez de ativar o sentido da visão, que permeia a formação na odontologia, reposicionou a boca não para ser vista, mas para emergir o sujeito da linguagem em sua rebelião discursiva. A formação do dentista foi reconhecida como insatisfatória. A odontologia se configurou, sobretudo, no discurso deste estudo, como tratamento odontológico.

Enfim, percebemos acompanhando, no grupo, os efeitos do trabalho de análise institucional do discurso (um dos desdobramentos contemporâneos da abordagem psicanalítica) movimentos no dizer das dentistas nos reconhecimentos e desconhecimentos (imaginário) e na configuração de forças (micropolítica) das relações. A análise se delineou como interminável ao término. O término se restringiu à dimensão espacial. O começo de um posicionamento mais móvel para as dentistas se desenhou: “E, e quanto a esta questão de término, não tem término, né? A hora que você acaba... ‘Ichi, acabou! Agora não tenho chance. Vou ter que olhar pra cá. Ah, tem uma solução (Ri).’ Acabou aqui. Entendeu? Então a gente se lembra, né? Das nossas experiências e num... nunca tem término. É por isso que eu digo: isso não é término, é um começo.”

A partir de nosso estudo acadêmico, sustentamos a nossa tese de que a análise institucional do discurso, método que tem a psicanálise em seu aporte teórico e vem sendo construído gradativamente por Guirado, é um referencial profícuo ao trabalho em grupo, sendo uma possibilidade de intervenção distinta dos modelos clássicos psicológicos e psicanalíticos, já que articula, de modo consistente, conhecimentos provenientes da análise do discurso francesa, da sociologia e da filosofia. Sugerimos que tal método seja referência para novos estudos de intervenção nas áreas de psicanálise e psicologia, não apenas em grupo.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Av. Gonçalo Prado Rollemberg, 211/606 - São José
Centro de Saúde Prof. José Augusto Barreto
49010-410 - Aracaju/SE
E-mail: ricardobarreto@saolucas-se.com.br

Recebido: 10/04/2014
Aprovado: 15/04/2014

 

 

SOBRE OS AUTORES

Ricardo Azevedo Barreto
Psicólogo pela USP. Mestre e doutor (Área: Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano) pela USP. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo CEPSIC da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da FMUSP. Teve experiência de treinamento no Butler Hospital (RI-USA). Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico de Sergipe, instituição filiada ao Círculo Brasileiro de Psicanálise. Editor da revista Estudos de Psicanálise do Círculo Brasileiro de Psicanálise no biênio 2008-2010 e no biênio atual. Coordenador do programa de humanização da assistência e membro do Conselho Administrativo do Hospital São Lucas em Sergipe. Professor titular da Universidade Tiradentes (UNIT), onde ensina nos cursos de Psicologia e Medicina. Professor de Psicologia em pós-graduação na área de Odontologia. Teve a orientação em seu doutorado no Instituto de Psicologia da USP da professora Dra. Marlene Guirado.

Marlene Guirado
Psicóloga. Psicanalista. Analista institucional. Foi presidente, por duas gestões, do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. Professora doutora, pesquisadora e livre-docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Criou o método da Análise Institucional do Discurso (AID), que tem sido referencial para inúmeras pesquisas acadêmicas. Autora de diversos livros, como: A criança e a FEBEM; Instituições e relações afetivas: o vínculo com o abandono; Psicologia Institucional; Psicanálise e análise do discurso: matrizes institucionais do sujeito psíquico; A clínica psicanalítica na sombra do discurso: diálogos com aulas de Dominique Maingueneau; A análise institucional do discurso como analítica da subjetividade (publicado no Brasil e em Portugal); Loucura e neurose em Freud: a cena originária da clínica psicanalítica em análise (com autoria também de Luisa Guirado e Felipe Martins Afonso). Organizou com Rogério Lerner o livro Psicologia, pesquisa e clínica: por uma análise institucional do discurso. Autora do livro em inglês: Institutional Analysis of Discourse - An analytic of subjectivity.

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