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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.35 no.55 São Paulo jan. 2013
EM PAUTA - EXCESSO
Entrevista com Alberto Dines
IDE – Como jornalista, com um longo e respeitado trajeto, posicionado claramente como um observador da imprensa, poderia destacar as mudanças mais significativas que ocorreram na indústria midiática e na imprensa ao longo dos últimos 50 anos?
Alberto Dines – No caso do Brasil, esse prazo de 50 anos não se ajusta, já que vivemos um lapso, a violência da censura de 1968 até 1985. O que está mudando no contexto brasileiro, e também mundial, é que temos uma dimensão nova, o meta-jornalismo, a crítica ao jornalismo exercida junto com a prática do jornalismo. Estão cada vez mais sincronizados, quase simultâneos. Hoje, mal se emite a informação, logo temos o retorno, seu complemento crítico. Isso é extraordinário do ponto de vista teórico e prático. O leitor deixou de ser passivo, o processo passou a ser praticado em duas vias. Pessoalmente, fico feliz porque entrei neste processo em 1975, na minha coluna na Folha de São Paulo, "Jornal dos Jornais". A intenção era justamente aproveitar a distensão política para começar a discutir a imprensa que, em alguns casos, estava ainda sob censura – censura ou autocensura, o que dá no mesmo. De 1975 até hoje percorremos um caminho longo e rápido. Hoje, a observação da mídia expandiu-se e chega a um nível próximo do popular. Em certas camadas já se incorporou a noção de que a imprensa tem que ser discutida e questionada. E, como em todos os avanços, este traz um contrapeso penoso. Ninguém gosta de ser criticado. Graças às novas tecnologias, se criou uma série de opções informativas que fragmentaram e desorganizaram o processo informativo e o tornaram ainda mais vulnerável a toda sorte de interesses, idiossincrasias e deformações.
IDE – Esse caminho rápido e popular também tem consequências perigosas?
AD – A sede por tecnologias produz distorções sérias: a busca pelo conteúdo está sendo substituída pela obsessão com os equipamentos, a maquineta, o gadget e seus serviços – os aplicativos. Como sou um otimista, acredito que a informação impressa, veiculada periodicamente, continuará sendo a melhor, mais completa e definitiva.
Assistimos a uma disfunção do sistema: o jorro contínuo de informações, a entronização do "tempo real" é, curiosamente, "antijornalístico". O processo jornalístico baseia-se num fluxo periódico e intermitente. A palavra jour, jornada, do francês, implica um ciclo, um intervalo, uma periodização – semanal, quinzenal, diária, horária – mas a internet estabeleceu um fluxo contínuo da informação e aí o leitor sozinho, sem o amparo de um editor, perde o sentido de continuidade dos fatos. Antes, quando acabava o dia, a semana ou o mês, o leitor tinha a possibilidade de fazer a avaliação do fato na sua inteireza, da origem ao desfecho. O fluxo contínuo da internet impede que o fato seja devidamente avaliado porque desapareceu a função do editor capaz de contar a história com um princípio, meio e fim. Esse dilúvio informativo impede que o leitor possa avaliar se o acontecido já acabou ou se está no mesmo estágio em que você o encontrou horas antes ou no dia anterior. Estamos entrando num mundo sem narrativas e narradores. Isso é perigoso.
Ao lado disso, a perda de referências e a homogeneização são tremendas. A informação apresentada periodicamente organiza-se melhor, é digerida melhor, é armazenada melhor; além do que, ninguém garante que a informação digital seja perene. Quando folheio um livro impresso há 200 anos, além do objeto sou obrigado a encarar a noção do tempo. O papel é um ser vivo porém imune à ação do tempo. Minimamente protegido é imperecível. Em contrapartida, tenho textos que escrevi em 1985, naquele disquete grande, que já não consigo abrir nem ler, não se fabricam mais os drives para extrair suas mensagens.
O frenesi de estar "conectado" trouxe um descaso com a própria linguagem: você recebe 500 e-mails por dia e não escreve com a precisão de antigamente, quando um bilhetinho de cinco linhas era exposto com clareza, com delicadeza e até com a elegância inerente ao ato de escrever. O problema é o excesso, para usar o tema desta edição. Estamos esmagados pelas demasias. Se as coisas não se consolidam suficientemente, desabam, é a ruptura. O homem e a humanidade às vezes embarcam em aventuras loucas, mas em algum momento ficam atentos às rupturas. Para evitar o caos algo terá que sobrar, pressinto que será a informação consolidada. E, para veiculá-la ainda não apareceu coisa melhor do que o papel.
IDE – Com relação ao poder da imprensa, poderia comentá-lo?
AD – A imprensa não é uma instituição, é bom que não seja. É um poder político, informal. Teoricamente é um dos quatro poderes, embora sob o ponto de vista estritamente prático perdeu o lugar para o Ministério Público. É um poder político mas não um poder físico efetivo. A imprensa é a herdeira natural da sociedade democrática moderna. Filha direta do "Aufklärung", o Iluminismo. Desde meados do século XVII sabemos que a informação deve correr sem restrições. Cerca de quatro séculos depois estamos aprendendo, a duras penas, que esta liberdade irrestrita precisa ser acompanhada de responsabilidades também irrestritas. Cada palavra solta no espaço tem um peso, um preço, gera uma responsabilidade. Só assim o seu poder fiscalizador pode ser exercido sem prepotências e distorções.
A palavra imprensa tornou-se um genérico, originalmente associada ao sistema tipográfico inventado por Gutenberg, hoje convertida num guarda-chuva onde cabem todos os meios de comunicação, dos "tradicionais" aos eletrônicos e destes aos digitais. Mesmo que o papel seja declarado extinto pelos barões da mídia, a palavra imprensa subsistirá. É a vingança de Gutenberg.
IDE – E quanto ao mau uso desse poder de informar?
AD – Um exemplo é o caso das charges anti-islâmicas e do filme anti-islâmico que no ano passado (2012) geraram ondas de furor e violência na Europa e Oriente. A imprensa deve ser livre para que o seu conteúdo possa servir a humanidade. Mas se aqueles que controlam as torneiras da informação não sabem respeitar aqueles que pensam diferentemente, esta liberdade perde sua função social, humanitária. Fazer uma piada sobre o profeta Maomé não é diploma de coragem. Para mostrar que é absolutamente livre o jornalista precisa necessariamente desrespeitar a consciência dos outros? A liberdade de confrontar não pode sobrepor-se às obrigações morais e responsabilidades espirituais. Se a globalização é um processo irreversível precisamos nos preparar moralmente, espiritualmente, para com ela conviver. A partir do momento em que Fernão de Magalhães provou que a terra era redonda – e una – a humanidade obrigou-se a adotar padrões de tolerância e modos de convivência até então desconhecidos. Da leitura dos Dez Mandamentos chegamos a um código monotemático: a ética do outro. E não esqueçamos que ética não é um gozo, é também sofrimento.
IDE – Você toca num ponto importante: o papel que a imprensa tem na questão ética. Qual o compromisso da imprensa com relação à ética na veiculação de uma notícia, ao tratamento espetacular com que muitas mídias dão as notícias?
AD – Ao apostar no espetáculo, abandonamos a ruminação, o diálogo. É com o diálogo que, aos poucos, chega-se à verdade. Se o diálogo vira um espetáculo de massas e show de Madonna, adeus ruminação, bye-bye reflexão. A mídia de massas abomina o leitor ensimesmado, cético, capaz de ler uma matéria e, em seguida, questionar-se ou questioná-la. Literatura, cinema, teatro são formas de entretenimento, mas se não conseguem produzir pontos de interrogação, desperdiça-se uma preciosa oportunidade de melhorar a humanidade.
Um leitor "transcendentalizado" pela leitura de uma matéria jornalística, apenas uma, compensa os milhares de outros que se contentam apenas em folhear, "zappear", navegar. A imprensa foi uma peça importantíssima no processo civilizatório. Não pode ser anticivilizatória.
IDE – Anticivilizatório? Afinal, qual é o papel da imprensa para a sociedade?
AD – Sou suspeito para falar de religião porque nesse exato momento – e acho que para sempre – me sinto absolutamente agnóstico. Confesso que tenho saudades da religião como um conjunto de ritos e tradições, mas já não suporto devoções, inclusive aquela na qual eu fui criado e que conheço razoavelmente, o judaísmo. Religião deixou de ter espiritualidade, deixou sua carga estética, mística e intangível. Os teólogos modernos querem fazer das religiões algo parecido com ciência, estão quebrando a cara. A carga artística da religião está inteiramente esquecida, tudo enfiado no mesmo saco do ritualismo. A religião virou um negócio de doido e quanto mais o tempo passa mais se criam exigências ritualísticas, para mim alheias à essência religiosa. Isso me incomoda muito porque o ser humano precisa ter crenças e as crenças religiosas deveriam fazer bem ao homem. Agora a religião está fazendo um mal danado à humanidade. A religião organizada, institucional, vira clericalismo e adota a dinâmica da busca do poder e aí pronto: estamos perdidos. Trata-se da teocracia em massa.
IDE – O tema deste número da revista é excesso, excesso hoje. Curiosamente em seu livro Morte no Paraíso, você menciona uma conversa entre Romain Rolland e Stefan Zweig, e destacamos a seguinte frase: "O excesso de informação criava uma anestesia, das primeiras que o mundo começaria a experimentar". Esse excesso era associado à Viena de Freud e de Stefan Zweig, à música de Strauss, também ela excessiva. O que você pode comentar sobre isso?
AD – O livro foi escrito entre 1979 e 1980, publicado em 1981, já o reescrevi quatro vezes, difícil desvendar o contexto em que se constroem as frases. Mas naquela época eu já havia vivido uma experiência, digamos, de observação da mídia (durante a publicação da coluna "Jornal dos Jornais" na Folha de São Paulo, entre 1975 e 1977). A observação da mídia não é um exercício ótico, é um mergulho intelectual-existencial. Comecei a escrever o livro porque fora demitido do jornal por conta de um artigo que não agradou à direção. Acabávamos de sair da censura e da autocensura e eu já estava sendo punido pelo que escrevera e pensara. A própria mídia passava por uma penosa crise de identidade. A chamada "distensão" foi uma abertura complicada, o blablablá era intenso e frustrante. O período entre guerras na Europa foi ainda mais dramático, as interpretações jorravam aos borbotões. Romain Rolland criticava especialmente a música de Richard Strauss. Seus poemas sinfônicos, óperas e até a mesmo a ópera que fez com Zweig têm acordes demais, não se consumam em melodias.
IDE – O silêncio seria o oposto do excesso?
AD – Exatamente, precisamos de pausas para ruminar, para entender os sons anteriores. Na internet essa pausa é impossível. Você está sendo tão exigido e tanto exige dos outros que ninguém consegue parar.
IDE – Tem uma frase de um psicanalista uruguaio, Marcelo Viñar, que fala nessa direção: ele comenta que estamos trocando a reflexão pelo reflexo.
AD – De fato, esse é um quadro do mundo que não se pode mudar, mas temos a obrigação de, pelo menos, identificar.
IDE – Uma questão que seria interessante abordar é sua experiência a partir da longa pesquisa sobre a vida de Stefan Zweig, o ambiente de Viena daquela época. Poderia falar sobre isso?
AD – Não parti em busca de Zweig por causa de Viena que, aliás, à época não conhecia. Fui atrás de Zweig para encontrar pedaços da minha vida. Morte no Paraíso tem a pretensão de contar a vida de Zweig, porém foi também uma espécie de relato da minha vida. Mesmo quando você escreve a biografia do outro, você está arrumando a sua própria. Por casualidade Zweig entrou na minha vida muito cedo, o seu retrato com dedicatória para o meu pai pendurado em cima da sua escrivaninha faz parte das primeiras imagens que acumulei na memória. Sua visita à minha escola, a fotografia da garotada com a celebridade literária, a notícia da sua morte, a comoção que provocou na nossa família, a foto do casal morto na primeira página do jornal são imagens fortes na minha iconografia espiritual e se converteram em alavancas que me empurraram para perto de figuras extraordinárias como Theodor Herzl, Romain Rolland (o seu Jean Christophe foi decisivo na minha formação) e também certos eventos como o Affaire Dreyfus (o filme sobre Émile Zola foi um dos primeiros filmes adultos que assisti). Graças à convivência de Zweig com Freud, convivi com Freud enquanto fazia análise, uma experiência ímpar. Stefan Zweig foi o meu cicerone na história da Mittel Europa, Europa Central, sua árvore genealógica deu-me as chaves para entender as transformações do judaísmo europeu entre o século XVIII e o XIX, as mutações do antissemitismo, a mecânica que armou as duas guerras mundiais. Conduzido por Zweig pude enfim entender Viena.
IDE – Esse processo de descoberta e ruminação envolveu alguma experiência com a psicanálise?
AD – Fiz análise com uma grande psicanalista freudiana e kleiniana do Rio de Janeiro, Inês Besouchet, uma experiência decisiva, eu diria estelar, para usar um adjetivo que Zweig usou como título de um livro de miniaturas históricas (Sternstunde der Menschheit, "Horas Estelares da Humanidade" aqui traduzido como "Momento Supremo"). Interrompi a terapia quando precisei deixar o país – todas as portas fecharam-se para mim depois da demissão do JB. Quando voltei, depois de ruminar aquela vivência intensa, retomei o que era possível retomar, cortei o que já estava cortado, avancei no que era possível avançar, inclusive na análise. Na medida em que a análise foi seguindo, tomei a decisão de escrever o livro. Com as sessões ia penetrando na relação do Zweig com Freud, com a sua primeira mulher, com Rolland, sua paralisia diante da ascensão de Hitler e cada vez mais me irritava com ele. O fato de ser o meu biografado não prejudicava o meu senso crítico. Às vezes, tinha vontade de dar uns tapas naquele dandy impaciente, às vezes leviano, tinha vontade de dizer que era um idiota, inclusive do ponto de vista literário (a engenharia de muitas de suas histórias não me agradavam, nem agradam). Eu ia colocando tudo isso nas sessões, até que um dia minha analista disse com toda a tranquilidade: parece que temos outra pessoa no divã. Era o convite para que eu saísse do divã, tive "alta" graças a Zweig. Foi extremamente delicada essa forma de encerrar o processo porque já não era eu, era o Stefan Zweig que estava ali, sendo examinado, analisado por mim, com a supervisão da Inês.
IDE – Conte-nos sobre sua experiência como biógrafo.
AD – Freud não gostava de biografias, falou mal delas em diversas ocasiões, inclusive quando um outro Zweig, Arnold, pediu a autorização para biografá-lo. Mas Freud gostava das biografias de Stefan Zweig, sobretudo a de Maria Antonieta, à qual deu um diploma altamente consagrador, inclusive no tocante ao ferramental psicanalítico brilhantemente utilizado por Zweig. Mas as objeções de Freud ao gênero podem ser explicadas pelo receio de que os métodos empregados pelos biógrafos vulgarizassem a psicanálise. A biografia é uma forma de explicar o gênero humano através do exame do comportamento e dos movimentos psicológicos de uma determinada pessoa sobre a qual se coletou um farto acervo documental e factual. A biografia tornou-se um gênero extremamente popular, muito vendável, sobretudo quando o protagonista é uma figura muito conhecida. Muitos biógrafos tentam pegar carona na fama do seu biografado, esquecidos do indispensável distanciamento crítico. Outros fazem biografias em série, esquecidos de que o acompanhamento de uma existência exige paciência, afinco. Esta fidelidade pode ser interpretada como justificativa para ficar tanto tempo amarrado a Stefan Zweig. Já escrevi outras biografias e ainda pretendo completar a do autor de comédias, Antonio José da Silva, o Judeu, executado pela Inquisição portuguesa no século XVIII.
Continuo aferrado a Zweig porque estou sendo continuamente convocado aqui e no exterior a produzir trabalhos relacionados com ele. Além disso, o tempo criou uma dinâmica investigativa impossível de combater: investi tanto tempo na pesquisa que agora parece que os fatos me convocam para descrevê-los, os detalhes se oferecem, as percepções se confirmam sem qualquer esforço.
A biografia é uma forma de enfrentar a morte. A vida termina com a morte, a biografia não termina com a morte; ao contrário, a morte até às vezes é o pretexto para você avançar na biografia. Por isso não existe a biografia definitiva. O biógrafo que imagina ter colocado o ponto final no seu relato está redondamente equivocado, logo aparecerá uma insignificância para obrigá-lo a retomar o trabalho. Ninguém passa incólume pela experiência biográfica. A não ser os insensíveis e estes são maus biógrafos.
IDE – O que você destacaria da relação do Stefan Zweig com Freud?
AD – Fiquei muito incomodado com a atitude de Zweig quando Freud instalou-se em Londres, fugido da Gestapo. Quando Freud arribou, Stefan já estava em Londres, não o visitou com a assiduidade que seria de esperar, afinal era um dos poucos amigos vienenses que se encontravam em Londres. É verdade que a vida pessoal de Zweig em 1938-1939 estava muito complicada, nos bilhetes está sempre pedindo desculpas pelas ausências. Como é que um escritor que deve tanto a Freud não se sente obrigado a ficar mais tempo ao seu lado, sobretudo sabendo que sua saúde estava cada vez mais abalada e tão intenso foi o trauma de deixar a Viena nazificada (onde ficaram suas irmãs)? A proximidade entre eles era grande, Zweig mandava-lhe todos os seus livros e Freud respondia com cartas que eram verdadeiras resenhas. Freud apreciava o trabalho de Stefan Zweig e considera obras-primas algumas de suas novelas. Elogiou o relato e a coragem de Zweig de encarar o tema do homossexualismo em Confusão de sentimentos. Muitas das novelas que os críticos consideravam comerciais ou femininas foram elogiadíssimas por Freud.
IDE – O que mais pode nos contar sobre essa relação entre Freud e Zweig?
AD – As observações de Freud à obra de Stefan Zweig são muito respeitosas e pertinentes. E também as explicações que este oferece quando responde ao mestre. O perfil de Dostoievski (em Os Construtores do Mundo) mereceu de Freud um extenso comentário depois expandido no célebre ensaio sobre o parricídio. Para Freud, Dostoievski não era epilético, mas um histérico. A opinião do Freud sobre o russo é dura, implacável.
Mesmo no perfil que Zweig escreveu sobre o Freud no tríptico A Cura Pelo Espírito, que poderia ter provocado um estresse entre os dois, os reparos são duros mas evidentemente condescendentes.
IDE – Você sabe dizer como Freud reagiu?
AD – Freud não comenta o título, A Cura Pelo Espírito, mas não esconde que preferiu o ensaio dedicado a Mesmer ao que Zweig dedicou a ele. Não gostou de algumas avaliações pessoais sobre a sua coleção de antiguidades egípcias e gregas, mais destacadas do que seus estudos de psicanálise. Freud considerou excessivamente simplificada a exposição de suas doutrinas, mas não rejeitou o livro e, no fundo, acabou gostando pela repercussão que teve. É bom lembrar que quando o livro foi lançado (1931), Freud ainda não era conhecido além do ambiente científico, suas ideias eram ridicularizadas. E, de repente, um escritor do porte de Zweig escreve um livro sério, sem qualquer apelo sensacionalista, ao contrário, impregnado de respeito e veneração. A obra foi dedicada a Albert Einstein porque todo o empenho de Zweig é colocar a psicanálise no patamar de ciência. Meses depois, quando Zweig completa 50 anos, Freud envia-lhe uma carta afetuosa.
Numa carta de novembro de 1937, em resposta às apreensões de Zweig sobre a tragédia que se avizinha, Freud se abre: "O que eu queria era aproximar-me humanamente do senhor [o tratamento entre eles era cerimonioso]. Não quero que me celebrem como aquela rocha no meio do mar contra a qual nada podem as fortes ondas. Ainda que minha rebeldia seja muda, ela continua sendo rebeldia".
IDE – A guerra tem um papel fundamental no destino desse autor, fale um pouco sobre isso.
AD – Com a ascensão do Hitler, Stefan Zweig perdeu o seu guia, guru e confidente, o escritor, teatrólogo e musicólogo Romain Rolland que, àquela altura, aderira à "linha justa" preconizada por Moscou. Rolland foi quem tirou Zweig da depressão nos primeiros tempos da 1ª Guerra Mundial quando lhe ofereceu a penosa, porém digna, alternativa do pacifismo. Ser pacifista significava rebelar-se contra o seu próprio país e, apesar de premiado com o Nobel de Literatura, Rolland teve que refugiar-se na Suíça para continuar sua pregação contra a morte e a guerra. Zweig era um francesista, considerava a França como segunda pátria, o francês era a sua segunda língua, e agora a França era sua inimiga, inimiga da Áustria. Ficou desnorteado até que Rolland lhe ofereceu o árduo caminho da independência moral. Muitos anos depois, em 1933, por causa da exacerbação política relacionada com a vitória do nazismo, Zweig não conseguiu acompanhar Romain Rolland, a amizade esgarçou-se. Curiosamente, neste episódio Zweig tentou desengajar-se da política partidária tentando manter uma linha de coerência com suas posições pacifistas anteriores, enquanto Rolland, absolutamente engajado e militante, defendia uma resistência ao nacional-socialismo. Ambos estavam equivocados. O esfriamento das relações com Rolland fez muito mal a Zweig, o autor de Jean Christophe era a sua referência básica. Mas o distanciamento começou antes, em seguida à viagem de Zweig à URSS em 1928, quando começou a repressão stalinista.
Enquanto a 1ª Guerra foi a responsável pela maturidade intelectual e existencial de Zweig, a 2ª foi a responsável direta pelo suicídio. No lapso de 20 anos, uma guerra o salvou e a outra o empurrou para a morte.
IDE – Conte-nos um pouco sobre o suicídio de Zweig.
AD – Comprovei há pouco tempo que Zweig procurou um psicanalista vienense no Rio de Janeiro, portanto, nos seis meses anteriores à sua morte, mas não consegui descobrir sua identidade. Imaginei que seria Karl Weissmann, irmão do escultor Franz Weissmann. Trocaram cartas mas não houve encontros, muito menos consultas. De qualquer forma, fica claro que o próprio Zweig percebeu que estava mal, precisava de ajuda. Ainda nos EUA escreveu ao amigo e editor americano, Ben Huebsch, que descobrira um método para combater a depressão: jogar-se no trabalho. Imaginava que mergulhando no trabalho superaria a depressão. E continuou pensando assim até os seus últimos momentos em Petrópolis.
IDE – Será que o excesso de trabalho leva ao suicídio?
AD – Vocês são os psicanalistas, eu apenas tento entender o meu biografado... Mas aquela forma de mergulhar no trabalho não é gratificante, não faz bem, é predatória. Escrever sem parar pode aumentar a insatisfação e foi exatamente isso que aconteceu em Petrópolis. Além desta corrosão íntima motivada pelo excesso de trabalho sem a necessária recompensa, a guerra o espreitava e ele pressentia que ela o pegaria. Tudo começou com o ataque nipônico a Pearl Harbor em dezembro de 1941, depois veio a Conferência dos Chanceleres onde o Brasil comandou a ofensiva para que a América Latina rompesse com os países do Eixo e, finalmente, quatro dias antes de suicidar-se, as manchetes dos jornais cariocas anunciam o afundamento do primeiro barco brasileiro por submarinos nazistas. A guerra o alcançou no paraíso brasileiro.
IDE – Em seu livro, há o registro de uma opinião de Romain Rolland contra a ideia de que o escritor vienense queria se estabelecer no Brasil: ele questiona a opção por um país onde não tinha raízes. Você também registra o diálogo de Zweig com o jardineiro em Bath que tenta convencê-lo a permanecer na Inglaterra a despeito da blitz alemã. Pode comentar esse ponto?
AD – Zweig casa-se com sua secretária em setembro de 1939, compra uma linda e confortável casa em Bath, em estilo georgiano, não muito longe de Londres; no fim de setembro, Freud morre. O jardineiro lhe diz: "Fica aqui, não vá embora". Em abril de 1940, vai a Paris para fazer uma conferência e quando regressa começa o rolo compressor alemão contra os Países Baixos, a Noruega, depois o formidável avanço sobre a França. Assustou-se, nos diários registra que vai comprar morfina, dois dias depois confirma que está com a morfina. Na mesma época, Virginia Woolf e o marido, Leonard, imaginaram um pacto de morte empurrados pelo mesmo medo.
IDE – Fale sobre o retorno de Stefan Zweig ao Brasil.
AD – Em junho de 1940, fecha a casa nova e embarca com a mulher para Nova York. Tinha um visto de turista para o Brasil mas seus amigos diplomatas poderiam obter um visto permanente. Em Nova York passa um telegrama para o editor Koogan avisando que virá ao Brasil escrever o prometido livro sobre o Brasil.
O resto da história é conhecido: ganhou um visto de residência, escreveu um belo livro sobre o Brasil, mas os críticos, sobretudo o redator-chefe do Correio da Manhã, Costa Rego, achou que ele fora comprado pelo D.I.P. para elogiar a ditadura do Estado Novo. Deveriam ter permanecido nos EUA, mas Lotte não queria ficar muito perto de Friderike, uma figura muito forte. Basta dizer que o livro de memórias (O Mundo que eu vi) foi escrito numa cidadezinha perto do rio Hudson com a primeira mulher, Friderike, ajudando a rememorar os anos que passaram juntos e a segunda, estenodatilógrafa, digitando o que ele ditava. Um triângulo que fez muito mal a Lotte por quem ele se sentia responsável, não queria magoar. Voltaram ao Brasil. Foi um erro. Erro maior foi o refúgio em Petrópolis – pretendiam fugir do burburinho, mas ficaram muito sozinhos, em condições de vida muito precárias. A asma a consumia, a incapacidade de ajudá-lo a frustrava. A cidade serrana é encantadora, a vida deles foi um inferno.
IDE – Antes de deixar a Áustria definitivamente Zweig viveu um episódio penoso ao lado de uma figura glorificada por Hitler e Goebbels. Em algum momento ele chegou a se perguntar de que lado estava?
AD – Ele não tinha dúvidas nesta questão, era um humanista, portanto antinazista. Em 1931 foi convidado por Richard Strauss, a glória da música contemporânea alemã, para escrever o libreto para uma ópera-bufa. Aceitou entusiasmado, era um melômano, além disso havia a vaidade de substituir o grande poeta Hugo von Hofmannsthal, o libretista preferido por Strauss. Acontece que no meio da parceria, em janeiro de 1933, Hitler toma o poder e Strauss assume o cargo de Comissário do Reich para a Música. O que fazer? Os parceiros decidem manter a colaboração em sigilo. Ao longo de quatro anos encontraram-se raríssimas vezes, corresponderam-se intensamente. Antes da estreia, em Dresden, Hitler e Goebbels decidem retirar o nome de Zweig dos cartazes, Strauss não aceita. O nome de Zweig foi mantido, mas houve apenas três representações. Um desastre.
Pouco antes numa carta para Zweig, irritado com uma observação do parceiro contra os nazistas, Strauss explode: "Você acha que sou nazista e tenho algo a ver com aquele homúnculo [referia-se à baixa estatura de Goebbels]?". A carta foi interceptada pela Gestapo e Strauss foi obrigado a pedir demissão do cargo. Vitória moral de Zweig, vitória amarga, porque muitos souberam da sua colaboração com alguém tão próximo do nazismo. Na verdade, um filho de Strauss era casado com uma judia e seus netos eram judeus. O episódio o amargurou. A ópera, além disso, não o satisfez. Zweig jamais assistiu a uma montagem de A mulher silenciosa, mas achava que a obra poderia ser salva com menos quarenta minutos de duração.
IDE – E os livros que escreveu no período?
AD – A ascensão do nazismo de 1933 a 1942, ou seja, seus últimos nove anos, foram penosos. Nada o satisfez, nem os livros que considerava antinazistas (Erasmo de Rotterdã e Uma consciência contra a violência). Morreu frustrado e amargurado. Escreveu para Freud em novembro de 1937 que o livro que precisaria ser escrito deveria tratar da tragédia do judaísmo, "porém temo que a realidade, levada à sua máxima intensidade superará nossas mais temerárias fantasias...". Hoje, essas obras são consideradas proféticas, elogiadíssimas. Profetas também se frustram. Sua grande preocupação literária era não descambar para o panfleto e o libelo. Achava que o escritor faz arte, não faz jornalismo. Se tivesse escrito um libelo antes da consumação da tragédia do judaísmo não teria sofrido tanto. Nem se mataria.
IDE – Como você vê as guerras?
AD – Acompanhei pelo menos duas como jornalista (a dos Seis Dias e a libertação de Bangladesh). Nenhuma trouxe a paz ou a prosperidade. Passados tantos anos concluo que mais importante do que ser pacifista é desenvolver um horror às guerras. Então você torna-se humano, então você é gente – Mensch.
IDE – Também no caso das guerras justas?
AD – Não existem guerras justas. Todas são injustas, perguntem aos mortos.
* Dora Tognolli, Francisca Vieitas Vergueiro, Hemir Barição, José Martins Canelas Neto, Lourdes Tisuca Yamane, Silvia Maia Bracco.
** Agradecemos a participação de Maria Olympia de Azevedo Ferreira França, que gentilmente nos apresentou Alberto Dines e também participou ativamente da entrevista, realizada no dia 22 de Setembro de 2012. na SBPSP.