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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.36 no.56 São Paulo jun. 2013

 

INÉDITO

 

Jerusalém e Atenas1

 

Jerusalem and Athens

 

 

Leo Strauss*

 

 


RESUMO

O autor examina criticamente as duas grandes tradições responsáveis pela formação da cultura ocidental: a da Bíblia que gerou as três religiões do Livro, judaísmo, cristianismo e islamismo, e a filosofia, inventada na Grécia antiga e desenvolvida até a nossa contemporaneidade, argumentando que nosso presente só pode ser realmente compreendido à luz deste nosso passado.

Palavras-chave: Filosofia, Religião, Bíblia, Pecado, Judaísmo, Natureza, Dúvida.


ABSTRACT

The author critically examines the two great traditions which mostly contributed to the making of Western culture: on one hand the Bible, which gave origin to Judaism, Christianity and Islamism - the three religions of the Book, on the other philosophy, invented in Ancient Greece and developed up to the present day. He argues that our contemporary world can only be properly understood in the light of this past.

Keywords: Philosophy, Religion, Bible, Sin, Judaism, Nature, Doubt.


 

 

Algumas reflexões preliminares

1. O começo da Bíblia e seu equivalente Grego

Todas as esperanças que mantemos em meio às confusões e perigos do presente são fundadas positiva ou negativamente, direta ou indiretamente nas experiências do passado. Essas experiências, as mais amplas e profundas que preocupam a nós homens do Ocidente, são indicadas pelos nomes das duas cidades, Jerusalém e Atenas. O homem Ocidental tornou-se o que ele é e é o que ele é pelo advento simultâneo da fé bíblica e do pensamento grego. Para compreendermos a nós mesmos e para iluminar o nosso caminho sem pistas para o futuro, nós precisamos compreender Jerusalém e Atenas. Não preciso dizer que esta é uma tarefa cuja execução correta vai muito além do meu poder, para não falar dos ainda mais estreitos limites estabelecidos por duas palestras públicas. Mas nós não podemos definir nossas tarefas pelos nossos poderes, pois nossos poderes se tornam conhecidos para nós ao desempenharmos nossas tarefas; é melhor fracassar nobremente do que ser bem-sucedido superficialmente. Além do mais, tendo sido escolhido para inaugurar o centro de palestras do Memorial Frank Cohen no City College da Universidade de Nova Iorque, preciso pensar em todas as séries de palestras a serem dadas por outros homens – esperemos que por homens melhores e maiores – nos próximos anos ou décadas.

Os objetos aos quais nos referimos falando de Jerusalém e Atenas são hoje compreendidos pela ciência devotada a tais objetos como culturas: a "cultura" é compreendida como um conceito científico. De acordo com este conceito, há um número indefinidamente grande de culturas: n culturas. O cientista que as estuda, as contempla como objetos; como cientista ele coloca-se fora de todas elas; ele não tem preferência por nenhuma delas; aos seus olhos elas estão todas na mesma categoria; ele é não somente imparcial, mas também objetivo; ele está preocupado em não distorcer nenhuma delas; ao falar delas, ele evita qualquer conceito que seja culturalmente limitado, isto é, conceitos restritos a qualquer cultura em particular ou tipo de cultura. Em muitos casos, os objetos estudados pelo cientista da cultura, não sabem ou não sabiam que são ou foram culturas. Isto não lhe causa dificuldade: elétrons também não sabem que são elétrons; mesmo os cachorros não sabem que são cachorros. Pelo mero fato de que fala de seus objetos como cultura, o estudante científico dá por certo que ele entende o povo que estuda melhor do que eles entenderam ou entendem a si mesmos.

Toda esta abordagem foi questionada durante algum tempo, mas este questionamento não parece ter tido nenhum efeito sobre os cientistas. O homem que iniciou este questionamento foi Nietzsche. Nós dissemos que de acordo com o modo de ver predominante havia ou há n culturas. Digamos que havia ou há mil e uma culturas, assim nos lembrando das Noites Árabes – As mil e uma noites; o balanço das culturas, se for bem feito, será uma série de histórias excitantes, talvez de tragédias. Neste sentido, Nietzsche fala do nosso assunto num discurso de seu Zaratustra intitulado: "Dos mil e Um objetivos". Os hebreus e os gregos aparecem neste discurso como duas nações dentre um certo número, e como não superiores às duas outras nações mencionadas ou às 996 que não são mencionadas. A peculiaridade dos gregos é a total dedicação do indivíduo à disputa por excelência, à distinção, à supremacia. A peculiaridade dos hebreus é a extrema honorabilidade do pai e da mãe (até os dias de hoje, os judeus leem no seu principal feriado o parágrafo da Torá que trata da 1ª premissa da honorabilidade do pai e da mãe: a proibição incondicional do incesto entre filhos e pais). Nietzsche tem uma reverência mais profunda do que qualquer outro observador pelas tábuas sagradas dos hebreus, assim como pelas tábuas das outras nações em questão.

No entanto, como ele é apenas um observador destas tábuas e como o que uma tábua louva ou ordena é incompatível com o que as outras ordenam, ele não está sujeito aos mandamentos de nenhuma. Isto também é verdadeiro especialmente no que concerne às tábuas, ou "valores" da moderna cultura do Ocidente. Mas de acordo com ele, todos os conceitos científicos, e daí em particular o conceito de cultura, são culturalmente limitados; o conceito de cultura é uma criação da cultura Ocidental do século XIX; sua aplicação "às culturas" de outras eras e climas é um ato originado do imperialismo espiritual desta cultura particular. Há, portanto, uma notória contradição entre a objetividade reivindicada pela ciência das culturas e a radical subjetividade desta ciência. Dito de outro modo, não se pode observar, isto é, entender verdadeiramente qualquer cultura, a menos que se esteja firmemente enraizado em sua própria cultura ou a menos que a capacidade de ser observador provenha de alguma cultura. Mas se a universalidade de observação de todas as culturas deve ser preservada, a cultura à qual o observador de todas as culturas pertence deve ser a cultura universal, a cultura da humanidade, a cultura do mundo; a universalidade de observação pressupõe, ainda que apenas por antecipação, a cultura universal, que já não é mais uma cultura entre muitas. A variedade de culturas que tem emergido até agora contradiz a unicidade da verdade. A verdade não é uma mulher, como se cada homem pudesse ter a sua própria verdade, assim como cada um tem a sua própria mulher. Nietzsche procurou, portanto, por uma cultura que já não fosse particular e em última análise arbitrária. A única meta da humanidade é concebida por ele como no sentido do super-homem: ele fala do super-homem do futuro. O super-homem é compreendido como aquele que une em si mesmo Jerusalém e Atenas no mais alto nível.

Mesmo que a ciência de todas as culturas alegue sua inocência quanto às preferências e avaliações, ela, não obstante, promove uma postura moral específica. Ao requerer uma abertura a todas as culturas, ela promove a tolerância universal e a gratificação derivada da contemplação da diversidade; isto necessariamente afeta todas as demais culturas contribuindo para a sua transformação numa única e mesma direção; e assim, querendo ou não, ela traz uma mudança de ênfase do particular para o universal: afirmando, ainda que apenas implicitamente, o direito ao pluralismo, ela então afirma que o pluralismo é "o" modo correto; ela afirma o monismo da tolerância universal e o respeito pela diversidade; pois sendo um "ismo", o pluralismo é um monismo.

Estaremos de certo modo mais próximos da ciência da cultura, tal como ela é comumente praticada, se nos limitarmos a dizer que toda tentativa de compreender os fenômenos em questão depende de um quadro conceptual que é estranho à maior parte destes fenômenos e portanto distorce-os necessariamente. Só pode haver "objetividade" se tentamos compreender as várias culturas e povos exatamente como eles compreendiam ou compreendem a si mesmos. Homens de épocas e climas diferentes do nosso não compreendem a si mesmos em termos de culturas, já que não estavam preocupados com cultura no sentido atual deste termo. O que nós atualmente chamamos de cultura é o resultado acidental de preocupações que não eram preocupações com a cultura, mas com outras coisas e acima de tudo com a Verdade.

Entretanto, nossa intenção de falar de Jerusalém e de Atenas parece compelir-nos a ultrapassar a autocompreensão que cada uma delas possui. Ou haverá uma noção, uma palavra que aponte para o mais alto que a Bíblia, por um lado, e as maiores obras dos gregos, por outro, buscam expressar? Esta palavra existe: sabedoria. Não somente os filósofos gregos mas também os poetas gregos eram considerados homens sábios, e a Torá é apresentada na Torá como "sua sabedoria aos olhos das nações". Precisamos então tentar entender a diferença entre a sabedoria bíblica e sabedoria grega. Vemos de imediato que cada uma das duas reivindica ser a verdadeira sabedoria, assim negando à outra sua reivindicação de ser sábia no mais estrito e alto senso. De acordo com a Bíblia, o começo da sabedoria é o medo do Senhor; de acordo com os filósofos gregos, o começo da sabedoria é o espanto. Somos, portanto, desde o início obrigados a fazer uma escolha, a tomar uma posição. Onde então nos posicionamos? Somos confrontados com as incompatíveis exigências de Jerusalém e Atenas em relação à nossa lealdade. Estamos abertos a ambas e desejamos escutar a cada uma. Nós mesmos não somos sábios, mas desejamos nos tornar sábios. Estamos procurando pela sabedoria "philo-sophoi". Ao dizer que queremos ouvir primeiro e então agir para decidir, já nos decidimos em favor de Atenas contra Jerusalém.

Isto parece ser necessário para todos nós que não podemos ser ortodoxos e, portanto, precisamos aceitar o princípio do estudo histórico-crítico da Bíblia. A Bíblia foi tradicionalmente compreendida como o verdadeiro e autêntico relato dos feitos de Deus e dos homens desde o início até a restauração posterior ao exílio da Babilônia. Os feitos de Deus incluem Sua legislação assim como Suas inspirações aos profetas, e os feitos dos homens incluem seus louvores a Deus e suas orações a Ele, assim como as admoestações inspiradas por Deus. A crítica à Bíblia começa pela observação de que o relato bíblico, em importantes aspectos, não é autêntico mas derivado, ou seja, consiste não de "histórias" mas de "lembranças de antigas histórias", para tomar emprestada uma expressão maquiaveliana (Discorsi, I, 16).

A crítica à Bíblia alcançou seu primeiro clímax no Tratado Teológico-Político de Espinosa, que é abertamente antiteológico; Espinosa leu a Bíblia assim como leu o Talmude e o Corão. O resultado desta crítica pode ser resumido assim: a Bíblia consiste em grande parte de afirmações autocontraditórias, de remanescentes de antigos preconceitos ou superstições e de uma enxurrada de imaginação sem controle; além do mais, é pobremente compilada e pobremente preservada. Ele chegou a esta conclusão pressupondo a impossibilidade de milagres. As consideráveis diferenças entre a crítica à Bíblia dos séculos XIX e XX e a de Espinosa podem ser atribuídas às diferenças quanto à avaliação da imaginação: enquanto para Espinosa a imaginação é apenas sub-racional, ela posteriormente foi concebida num nível muito mais alto; ela foi entendida como o veículo para a experiência religiosa ou espiritual que necessariamente se expressa em símbolos e coisas parecidas.

O estudo histórico-crítico da Bíblia é a tentativa de entender as várias camadas da Bíblia da maneira como elas foram entendidas por aqueles a quem foram dirigidas, isto é, os contemporâneos dos autores das várias camadas. A Bíblia fala de muitas coisas que para os próprios autores bíblicos pertencem a um passado remoto; basta mencionar a criação do mundo. Mas há indubitavelmente muito da história na Bíblia, isto é, relatos de eventos escritos por contemporâneos ou quase contemporâneos. Somos assim levados a dizer que a Bíblia contém tanto "mito" quanto "história". No entanto, esta distinção está fora da Bíblia; é uma forma especial de distinção entre mythos e logos; mythos e historie são de origem grega. Do ponto de vista da Bíblia os "mitos" são tão verdadeiros quanto as "histórias": o que Israel "de fato" fez ou sofreu não pode ser entendido a não ser à luz dos "fatos" da criação e da eleição. O que agora é chamado "histórico" são aqueles feitos e discursos que são igualmente acessíveis ao indivíduo que acredita e ao que não acredita. Mas do ponto de vista da Bíblia o incrédulo é o tolo que pronunciou em seu coração "Deus não existe"; a Bíblia narra tudo tal como é aceito pelo sábio no sentido bíblico da sabedoria. Não nos esqueçamos nunca que não existe uma palavra bíblica para dúvida. Os sinais e prodígios bíblicos convencem os homens que têm pouca fé ou que acreditam em outros deuses; eles não são dirigidos aos "tolos que pronunciam em seus corações que Deus não existe" (Bacon).

É verdade que não podemos atribuir à Bíblia o conceito teológico dos milagres, pois este conceito pressupõe o de natureza e o conceito de natureza é estranho à Bíblia. Pode-se tentar atribuir à Bíblia o que chamamos de conceito poético dos milagres tal como ilustrado pelo Salmo 114: "Quando Israel saiu do Egito, a casa de Jacó, de um povo bárbaro, Judá ficou sendo o seu santuário, e Israel o seu domínio. À sua vista, o mar fugiu, o Jordão recuou. Os montes saltaram como carneiros, e os outeiros como cordeiros. Que tens, ó mar, para fugires, e tu, ó Jordão, para recuares? E vós, montes, que pulais como carneiros, e vós outeiros, como cordeiros? Treme, terra, na presença do Senhor, na presença do Deus de Jacó, que converteu o rochedo em lago, e um seixo em manancial de água"2. A presença de Deus ou o Seu chamado provoca uma conduta em Suas criaturas que difere de modo impressionante de sua conduta normal: acorda os mortos; torna fluido o fixo. Não é fácil dizer se o autor do Salmo não pretendia que sua declaração fosse simplesmente ou literalmente verdadeira. É certo dizer que o conceito de poesia – distinto daquele de canção – é estranho à Bíblia. Talvez seja mais simples dizer que por causa da vitória da ciência sobre a teologia natural, a impossibilidade de milagres não pode mais ser designada como verdadeira, mas degenerou ao status de hipótese indemonstrável. Pode-se atribuir ao caráter hipotético desta premissa fundamental o caráter hipotético de muitos, para não dizer de todos, resultados da crítica à Bíblia. O certo é que a crítica à Bíblia em todas as suas formas emprega termos que não têm equivalentes bíblicos e é, nesta medida, não histórica (é anacrônica).

Como, então, devemos proceder? Nós não contestaremos os achados e mesmo as premissas da crítica à Bíblia. Vamos admitir que a Bíblia e em particular a Torá consistem em grande parte de "lembranças de antigas estórias", mesmo de lembranças de lembranças; mas lembranças de lembranças não são necessariamente reflexos pálidos ou distorcidos de um original; elas podem ser recordações de recordações, aprofundamento da meditação sobre experiências primárias. Portanto, tomaremos a camada mais recente e mais superficial tão seriamente quanto as primeiras. Vamos começar pela camada mais superficial – pelo que vem primeiro para nós, ainda que possa não ser o primeiro propriamente dito. Ou seja, deveremos começar por onde tanto o estudo tradicional quanto o estudo histórico da Bíblia necessariamente começam. Procedendo desta maneira, nós evitamos a compulsão de tomar uma decisão a priori em favor de Atenas contra Jerusalém. Pois a Bíblia não nos solicita a acreditar no caráter miraculoso dos eventos que ela não apresenta como miraculosos. A fala de Deus aos homens pode ser descrita como miraculosa, mas a Bíblia não reivindica que a reunião daqueles discursos tenha sido feito de forma miraculosa. Nós começamos do começo, no começo do começo. Ocorre que o começo do começo trata "do" começo: a criação do céu e da terra. A Bíblia começa razoavelmente.

"No princípio criou Deus o céu e a terra." Quem diz isto? Não nos contaram, portanto nós não sabemos. Não faz diferença quem disse isto? Esta seria a razão do filósofo; é esta também a razão bíblica? Não nos contaram; portanto nós não sabemos. Nós não temos o direito de assumir que Deus disse isto, pois a Bíblia introduz o que Deus diz por expressões como "Deus disse". Nós assumiremos, então, que estas palavras foram ditas por um homem sem nome. Todavia, nenhum homem pode ter sido uma testemunha ocular da criação do céu e da terra por Deus (Jó 38,4); a única testemunha ocular era Deus. Visto que "não surgiu em Israel um profeta como Moisés, a quem Deus viu face a face", é compreensível que a tradição atribua a Moisés a sentença mencionada e toda a sua sequência. Mas o que é compreensível ou plausível não é por certo tal como foi. O narrador não reivindica ter ouvido o relato do próprio Deus; talvez ele o tenha ouvido de algum homem ou de alguns homens; talvez ele reconte uma fábula. A Bíblia continua: "E a terra era sem forma e vazia [...]". Não está claro se a terra assim descrita fora criada por Deus ou antecedeu a Sua criação. Mas está bastante claro que enquanto fala sobre como a terra parecia no princípio, a Bíblia é silente sobre como o céu parecia no princípio. A terra, isto é, aquilo que não é céu, parece ser mais importante que o céu. Esta impressão é confirmada na sequência.

Deus criou tudo em seis dias. No 1º dia, Ele criou a luz; no 2º, o céu; no 3º, a terra, os mares e a vegetação; no 4º dia, o sol, a lua e as estrelas; no 5º, os animais aquáticos e os pássaros; no 6º, os animais terrestres e o homem. As dificuldades mais notáveis são estas: a luz e, por conseguinte, os dias (e noites) são apresentados como precedentes ao sol, e a vegetação também é apresentada como precedente ao sol. A primeira dificuldade é resolvida pela observação de que os dias da criação não eram dias de sol. No entanto, devemos acrescentar de imediato que há uma conexão entre duas espécies de dias, pois há uma conexão, uma correspondência entre luz e sol.

O relato da criação manifestamente consiste de duas partes, a primeira parte que trata dos primeiros três dias da criação e a segunda parte que trata dos últimos três. A primeira parte começa com a criação da luz, e a segunda com a criação dos doadores de luz celeste. De modo correspondente a primeira parte termina com a criação da vegetação, e a segunda com a criação do homem. A todas as criaturas com as quais se lida na primeira parte, falta movimento local (Cassuto, 1961); todas as criaturas com as quais se lida na segunda parte possuem movimento local. A vegetação precede o sol porque à vegetação falta movimento local enquanto o sol a possui. A vegetação pertence à terra3; está enraizada na terra; é a cobertura fixa de uma terra fixa.

A vegetação foi produzida pela terra ao comando de Deus; a Bíblia não fala sobre o "fazer" da vegetação por Deus; mas no que concerne aos seres vivos em questão, Deus comandou que a terra os produzisse e todavia Deus os "fez". A vegetação foi criada no final da primeira metade dos dias da criação; ao final da última metade, os seres vivos, que passam suas vidas inteiras sobre a terra firme, foram criados.

Os seres vivos – seres que possuem vida além de movimento local – foram criados no quinto e sexto dias, nos dias que seguiram o dia no qual os doadores de luz celeste foram criados. A Bíblia apresenta as criaturas numa ordem ascendente. O céu, nesta ordem, é inferior à terra. Aos doadores de luz celeste falta vida; eles são inferiores à mais inferior besta viva; eles servem às criaturas viventes que devem ser encontradas somente abaixo do céu; eles foram criados para governar o dia e a noite: eles não foram criados para governar a terra; muito menos para o governo dos homens. A mais notável característica do relato bíblico da criação é o rebaixamento ou degradação do céu e das luzes celestes que nele encontramos. O sol, a lua e as estrelas precedem as coisas viventes porque eles são sem vida: eles não são deuses. O que as luzes celestes perdem, o homem ganha; o homem é o pico da criação.

As criaturas dos três primeiros dias não podem mudar seus lugares; os corpos celestes mudam seus lugares mas não os seus cursos; os seres viventes mudam os seus cursos mas não os seus "modos de ser"; somente os homens podem mudar seus "modos de ser". O homem é o único ser criado à imagem de Deus. Somente no caso da criação do homem, o relato bíblico da criação fala especificamente que Deus o "criou"; no caso da criação do céu e dos corpos celestes aquele relato fala que Deus os "fez". Somente no caso da criação do homem a Bíblia sugere que há uma multiplicidade em Deus: "Façamos o homem à nossa imagem, conforme à nossa semelhança [...]. E criou Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; macho e fêmea os criou". A bissexualidade não é monopólio do homem; mas somente a bissexualidade humana pode dar origem à visão de que há deuses e deusas: não existe uma palavra bíblica para "deusa". Portanto, criação não é procriação (geração).

O relato bíblico da criação ensina tacitamente o que a Bíblia ensina em outra parte explicitamente, mas nem por isso mais enfaticamente: existe somente um Deus, o Deus cujo nome está escrito como "Tetragrammaton", o Deus vivo, que vive desde sempre e para sempre, que sozinho criou o céu e a terra e todos os seus hóspedes; Ele não criou deuses e, portanto, não existem deuses além Dele. Os vários deuses que os homens cultuam ou são nada que devem a existência que possuem ao fato de os homens os terem criado, ou se eles são alguma coisa (como o sol, a lua e as estrelas), não são certamente deuses4. Todas as referências não polêmicas a "outros deuses" que ocorrem na Bíblia são fósseis, cuja preservação certamente é questionável, mas é uma questão de pouca importância. Não somente o Deus bíblico não criou outros deuses, como, tendo como base o relato bíblico da criação, poder-se-ia duvidar se Ele criou quaisquer seres aos quais poderíamos ser compelidos a chamar de "míticos"; o céu e a terra e todos os seus hóspedes são sempre acessíveis ao homem como homem. Teríamos que começar deste fato para podermos entender por que a Bíblia contém tantas seções que, na base da distinção entre mítico (ou lendário) e histórico, teriam que ser descritas como históricas.

De acordo com a Bíblia, a criação foi completada pela criação do homem; a criação culminou com a criação do homem. Somente após a criação do homem, Deus "viu tudo quanto tinha feito, e eis que era muito bom". Qual é então a origem do mal ou do mau? A resposta bíblica parece ser que, desde que tudo que tem origem divina é bom, o mau é de origem humana. No entanto, se a criação divina como um todo é muito boa, não significa que todas as suas partes sejam boas ou que a criação como um todo não contenha qualquer mau: Deus não declara que todas as partes de Sua criação são boas. Talvez a criação como um todo possa não ser "muito boa" se não contiver alguns males.

Não pode haver luz se não houver escuridão, e a escuridão foi criada tanto quanto o foi a luz: Deus criou o mau assim como fez a paz (Is 45,7). Por mais que assim seja, os males cuja origem a Bíblia revela após falar da criação são tipos particulares de males: os males que cercam o homem. Esses males não são resultado da criação nem estão implícitos nela, conforme a Bíblia mostra anunciando a condição original do homem. Para anunciar esta condição, a Bíblia precisa recontar a criação do homem fazendo da criação do homem, tanto quanto possível, o tema único. Este segundo relato responde à questão não de como o céu e a terra e todos os seus hóspedes se tornaram vivos, mas de como a vida humana tal como a conhecemos – cercada de males pelos quais não estava originalmente cercada – veio a se tornar vida. Este segundo relato pode apenas suplementar o primeiro, mas pode também corrigi-lo e por conseguinte contradizê-lo. Pois, afinal, a Bíblia nunca ensina que podemos falar sobre a criação sem nos contradizermos. Em linguagem pós-bíblica, os mistérios da Torá são as contradições da Torá (Sitrei Torá); os mistérios de Deus são as contradições relativas a Deus.

O primeiro relato da criação terminou com o homem; o segundo relato começa com o homem. De acordo com o primeiro relato, Deus criou o homem e somente o homem à Sua imagem; de acordo com o segundo relato, Deus formou o homem a partir da poeira da terra e soprou em suas narinas o sopro da vida; o segundo relato torna claro que o homem consiste de dois ingredientes profundamente diferentes, um superior e um inferior. De acordo com o 1º relato, poderia parecer que o homem e a mulher foram criados simultaneamente; de acordo com o 2º, o homem foi criado primeiro. A vida do homem como a conhecemos, a vida da maior parte dos homens, é aquela dos lavradores da terra; sua vida é indigente e dura; precisam de chuva que nem sempre vem quando eles precisam e têm que trabalhar duro. Se a vida humana tivesse sido indigente e dura desde o início, o homem teria sido compelido ou ao menos irresistivelmente tentado a ser duro, não caridoso, injusto; ele não poderia ter sido totalmente responsável por sua falta de caridade e justiça.

Mas o homem existe para ser totalmente responsável. Portanto, a dureza da vida humana se deve à culpa do homem. Sua condição original deve ter sido de conforto: ele não tinha necessidade de chuva nem de trabalho duro, ele foi colocado por Deus num jardim cheio de águas, rico em árvores boas para o seu sustento. Tendo sido criado para uma vida de conforto, o homem não foi criado para a vida luxuosa: não havia ouro nem pedras preciosas no jardim do Éden (Cassuto, 1961, pp. 77-79). O homem foi criado para uma vida simples. Em conformidade com isto, Deus permitiu-lhe comer de toda árvore do jardim5, exceto da árvore do conhecimento do bem e do mal, "porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás".

Ao homem não foi negado o conhecimento; sem conhecimento ele não poderia ter conhecido a árvore do conhecimento, nem a mulher, nem os animais; nem poderia ter compreendido a proibição. Ao homem foi negado o conhecimento do bem e do mal, isto é, o conhecimento suficiente para guiar a si mesmo, guiar sua vida. Mesmo não sendo uma criança ele deveria viver na simplicidade de uma criança e na obediência a Deus. Estamos livres para suspeitar de que há uma conexão entre a desvalorização do céu no primeiro relato e a proibição de comer da árvore do conhecimento no segundo. Enquanto ao homem foi proibido comer da árvore do conhecimento, não lhe foi proibido comer da árvore da vida.

O homem, não tendo conhecimento do bem e do mal, estava contente com sua condição e, em particular, com sua solidão. Mas Deus, possuindo o conhecimento do bem e do mal, achou que "não é bom que o homem esteja só: far-lhe-ei uma auxiliar que lhe corresponda". Então, Deus formou os animais e trouxe-os para o homem, mas eles mostraram não ser os companheiros desejados. Em consequência disto, Deus formou a mulher a partir de uma costela do homem. O homem recebeu-a como osso de seus ossos e carne de sua carne, mas não tendo conhecimento do bem e do mal, não a chamou de bem. O narrador acrescenta que "portanto [isto é, porque a mulher é osso do osso do homem e carne de sua carne] deixará o varão o seu pai e a sua mãe, e apegar-se-á à sua mulher, e serão ambos uma carne". Ambos estavam nus, mas, faltando-lhes o conhecimento do bem e do mal, eles não estavam envergonhados.

Assim, o palco estava pronto para a queda de nossos primeiros pais. O primeiro movimento veio da serpente, o mais astuto dos animais do campo; ela seduziu a mulher para a desobediência e esta então seduziu o homem. A sedução se move do mais baixo para o mais alto. A Bíblia não conta o que induziu a serpente a seduzir a mulher à desobediência da divina proibição contra comer da árvore do conhecimento do bem e do mal. É razoável supor que a serpente assim agiu porque era astuciosa, isto é, possuía uma espécie inferior de sabedoria, isto é, uma malícia congênita; tudo o que Deus criou não poderia ser muito bom se não incluísse algo congenitamente determinado à discórdia. A serpente começa sua sedução sugerindo que Deus poderia ter proibido o homem e a mulher de comer de qualquer árvore do jardim, isto é, que a proibição de Deus poderia ser maliciosa ou impossível de obedecer.

A mulher corrige a serpente e fazendo isto torna a proibição mais severa do que era: "do fruto das árvores do jardim comeremos. Mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Não comereis dele, nem nele tocareis, para que não morrais". Deus não proibiu o homem de tocar o fruto da árvore do conhecimento do bem e do mal. Além disso, a mulher não fala explicitamente da árvore do conhecimento; ela pode ter tido em mente a árvore da vida. De resto, Deus havia dito ao homem: "tu podes comer de toda [...] tu morrerás"; a mulher declara que Deus havia falado a ambos, a ela e ao homem. Ela certamente sabia da proibição divina somente através da tradição humana. A serpente assegura a ela que eles não iriam morrer, "porque Deus sabe que no dia em que dele comerdes se abrirão os vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem e o mal".

A serpente tacitamente questiona a veracidade de Deus. Ao mesmo tempo ela disfarça o fato de que comer da árvore envolve desobediência a Deus. Nisto, é seguida pela mulher. De acordo com a asserção da serpente, o conhecimento do bem e do mal torna o homem imune à morte, mas nós não podemos saber se a serpente acredita nisto. Mas poderia a imunidade à morte ser um grande bem para seres que não conhecem o bem e o mal, para homens que eram como crianças? Mas a mulher, tendo esquecido a proibição divina, tendo portanto, de certa forma, provado da árvore do conhecimento, não está mais completamente inconsciente do bem e do mal: ela "viu que aquela árvore era boa para comer, e agradável aos olhos, e árvore desejável para dar sabedoria"; portanto, ela pegou os seus frutos e comeu-os. Dessa forma, ela tornou a queda do homem quase inevitável, pois ele estava unido a ela: ela deu do fruto da árvore para o homem e ele o comeu. O homem derivou para a desobediência ao seguir a mulher. Após terem comido da árvore, seus olhos foram abertos e eles viram que estavam nus, e eles costuraram folhas de figos e as juntaram e fizeram suas vestimentas: através da queda, eles se tornaram envergonhados de sua nudez; comer da árvore do conhecimento do bem e do mal levou-os a perceber que a nudez é um mal.

A Bíblia não diz nada sobre o fato de que nossos primeiros pais caíram porque foram incitados pelo desejo de serem iguais a Deus; eles não se rebelaram despoticamente contra Deus; eles, de preferência, esqueceram de obedecer a Deus; eles foram conduzidos à desobediência. No entanto, Deus os puniu severamente. Ele também puniu a serpente. Mas a punição não eliminou a consequência daquela desobediência sobre a qual o próprio Deus disse: "Eis que o homem se tornou como um de nós, sabendo o bem e o mal". Como consequência, havia agora o perigo de que o homem pudesse comer da árvore da vida e viver para sempre. Portanto, Deus o expulsou do jardim e tornou impossível que ele retornasse. Alguém pode perguntar, por que o homem enquanto ainda estava no jardim do Éden não comera da árvore da vida da qual ele não havia sido proibido de comer? Talvez ele não tenha pensado nisso, porque, não tendo conhecimento do bem e do mal, não tinha medo de morrer, e, além disso, a proibição divina desviou sua atenção da árvore da vida para a árvore do conhecimento.

A Bíblia pretende ensinar que o homem estava destinado a viver em simplicidade, sem o conhecimento do bem e do mal. Mas o narrador parece estar consciente do fato de que um ser que pode ser proibido de buscar o conhecimento do bem e do mal, isto é, que pode entender até certo ponto que o conhecimento do bem e do mal é por si só um mal, necessariamente possui tal conhecimento. O sofrimento humano advindo do mal pressupõe o conhecimento humano do bem e do mal e vice-versa. O homem deseja viver sem o mal. A Bíblia nos conta que lhe foi dada a oportunidade de viver sem o mal e que ele não pode culpar Deus pelos males que ele sofre. Ao dar ao homem aquela oportunidade, Deus o convence de que seu mais profundo desejo não pode ser satisfeito. A história da queda é a primeira parte da história da educação do homem por Deus. Esta história traduz o caráter inescrutável de Deus.

O homem tem que viver com o conhecimento do bem e do mal, e com os sofrimentos a ele infligidos por causa deste conhecimento ou sua aquisição. A bondade ou maldade humana pressupõe este conhecimento e seus concomitantes. A Bíblia nos dá uma primeira vaga ideia da bondade e maldade humanas na história dos primeiros irmãos. O irmão mais velho, Caim, era um lavrador da terra; o irmão mais novo, Abel, era um pastor de ovelhas. Deus preferiu a oferenda do pastor de ovelhas que lhe trouxe o mais seleto e o melhor de seu rebanho à oferenda do lavrador da terra. Esta preferência tem mais do que uma razão, mas uma das razões parece ser de que a vida pastoril está mais próxima da simplicidade original do que a vida do lavrador da terra. Caim ficou irritado e, a despeito de ter sido bem advertido por Deus sobre o pecado original, matou o seu irmão. Após uma inútil tentativa de negar sua culpa – uma tentativa que aumentou a sua culpa ("Acaso sou o guarda do meu irmão?") –, ele foi amaldiçoado por Deus assim como a serpente e a terra o foram após a queda. Diferentemente de Adão e Eva que não foram amaldiçoados, ele foi punido por Deus, mas não com a morte: qualquer pessoa que matasse Caim seria punida muito mais severamente que o próprio Caim.

A punição relativamente suave de Caim não pode ser explicada pelo fato de que o assassinato não tivesse sido expressamente proibido, pois Caim possuía algum conhecimento do bem e do mal e ele sabia que Abel era seu irmão, mesmo supondo que ele não soubesse que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. É melhor explicar a punição de Caim assumindo que punições eram mais leves no começo do que o foram mais tarde. Caim – assim como seu companheiro fratricida Rômulo – fundou uma cidade, e alguns de seus descendentes foram os ancestrais de homens que praticaram diversas artes: a cidade e as artes, tão estranhas à simplicidade original do homem, devem sua origem a Caim e à sua raça mais do que a Set, o substituto de Abel, e sua raça.

Está implícito que esta não é a última palavra da Bíblia sobre a cidade e as artes, mas é sua primeira palavra, assim como a proibição de comer da árvore do conhecimento é, pode-se dizer, sua primeira palavra simplesmente e a revelação da Torá, isto é, a mais alta espécie de conhecimento do bem e do mal concedido ao homem, é a sua última palavra. Também somos tentados a refletir a respeito da diferença entre a primeira palavra do primeiro livro de Samuel sobre a realeza humana e sua última palavra. O relato da raça de Caim culmina no cântico de Lamec, que gabou-se para suas esposas de sua matança de homens, de sua superioridade sobre Deus como um vingador. A raça (pré-diluviana) de Set não pode se gabar de um único inventor; seus únicos membros eminentes foram Enoc, que caminhou com Deus, e Noé, que era um homem virtuoso e caminhava com Deus: civilização e piedade são duas coisas muito diferentes.

Na época de Noé a perversidade do homem tinha se tornado tão grande que Deus arrependeu-se de sua criação do homem e de todas as outras criaturas terrestres, com a única exceção de Noé; então, Ele trouxe o dilúvio. Genericamente falando, antes do dilúvio, a extensão da vida do homem era muito mais longa do que depois dele. A longevidade do homem pré-diluviano era uma relíquia de sua condição original. O homem, originalmente, viveu no jardim do Éden, onde ele podia ter comido da árvore da vida, e assim ter se tornado imortal. A longevidade do homem pré-diluviano reflete esta oportunidade perdida.

Nesta medida, a transição do homem pré-diluviano para o pós-diluviano é um declínio. Esta impressão é confirmada pelo fato de que antes do dilúvio, mais do que depois dele, os filhos de Deus associaram-se com as filhas do homem e assim geraram os poderosos homens de antigamente, os homens de renome. Por outro lado, a queda de nossos primeiros pais tornou possível ou necessária, no devido tempo, a revelação feita por Deus de Sua Torá, e isto foi decisivamente preparado, como nós poderemos ver, pelo dilúvio. A este respeito, a transição do homem pré-diluviano para o pós-diluviano é um progresso. A ambiguidade em relação à queda – o fato de que era um pecado e portanto evitável e de que era ao mesmo tempo inevitável – está refletida na ambiguidade em relação ao status da humanidade pré-diluviana.

A ligação entre o homem pré-diluviano e a revelação da Torá é fornecida pelo primeiro pacto solene entre Deus e os homens, o pacto que se seguiu ao dilúvio. O dilúvio foi a punição correta para a extrema e quase universal perversidade dos homens pré-diluvianos. Antes do dilúvio o homem viveu, pode-se dizer, sem repressão, sem lei. Enquanto nossos primeiros pais ainda estavam no jardim do Éden, a eles nada era proibido exceto comer da árvore do conhecimento. O vegetarianismo dos homens pré-diluvianos não se devia a uma proibição explícita (Gn 1,29); sua abstenção de carne assim como sua abstenção de vinho (Gn 9,20) eram reminiscências da simplicidade original do homem.

Após a expulsão do jardim do Éden, Deus não puniu o homem, salvo a punição relativamente leve que Ele infligiu a Caim. Ele tampouco estabeleceu juízes humanos. Deus concebeu a espécie humana para viver livre da lei. Esta experiência, assim como a experiência na qual os homens permaneciam como crianças inocentes, terminou em fracasso. O homem decaído ou despertado precisa de repressão, precisa viver sob a lei. Mas esta lei não deve ser simplesmente imposta. A lei precisa ser parte de um pacto solene no qual Deus e o homem são igualmente, ainda que não iguais, sócios. Esta associação foi estabelecida somente após o dilúvio; não existia nos tempos pré-diluvianos e nem antes ou depois da queda. A desigualdade em relação a este pacto é mostrada especialmente pelo fato de que o compromisso de Deus de nunca mais destruir quase toda a vida sobre a Terra enquanto a Terra durasse, não está condicionado a que todos os homens ou quase todos os homens obedeçam as leis promulgadas por Deus após o dilúvio: a promessa de Deus é feita apesar de, ou por causa de, Seu conhecimento de que as invenções do coração humano são um mal de sua juventude.

Noé é o ancestral de todos os últimos homens assim como o foi Adão; a purgação da Terra através do dilúvio é até certo ponto a restauração da espécie humana ao seu estado original; é uma espécie de segunda criação. Dentro dos limites indicados, a condição do homem pós-diluviano é superior à do homem pré-diluviano. Um ponto requer ênfase especial: o assassinato, na legislação posterior ao dilúvio, é expressamente proibido e punível com a morte, sob a alegação de que o homem foi criado à imagem de Deus (Gn 9,6). O primeiro pacto solene trouxe um aumento de esperança e, ao mesmo tempo, um aumento de punição. O domínio do homem sobre os animais, ordenado e estabelecido desde o começo, somente depois do dilúvio foi acompanhado pelo medo e terror dos animais pelo homem (Gn 9,2; Gn 1,26-30 e 2,15).

O pacto que se seguiu ao dilúvio prepara o pacto com Abraão. A Bíblia destaca três eventos que aconteceram entre o pacto após o dilúvio e o chamamento de Abraão por Deus: a maldição de Noé a Canaã, um filho de Cam; o destaque a Nemrod, um neto de Cam; e a tentativa dos homens de evitar a própria dispersão pela terra através da construção de uma cidade e de uma torre com seu topo nos céus. Canaã, cuja terra se tornou a terra prometida, foi amaldiçoado porque Cam viu a nudez de seu pai Noé, pois Cam assim transgrediu a mais sagrada, senão promulgada lei; a maldição de Canaã foi acompanhada pela bênção a Sem e a Jafé, que desviaram os olhos da nudez de seu pai; aqui temos a primeira e mais fundamental divisão da humanidade, a divisão da humanidade pós-diluviana entre a parte amaldiçoada e a abençoada.

Nemrod foi o primeiro a se tornar um homem poderoso sobre a terra – um poderoso conquistador perante o Senhor; seu reino incluía Babel; grandes reinos tentam subjugar pela força a divisão da humanidade; conquista e captura estão ligadas uma à outra. A cidade que os homens construíram para permanecerem juntos e assim construir um nome para eles mesmos foi Babel; Deus os dispersou ao confundir sua fala, ao promover a divisão da humanidade em grupos que falavam diferentes línguas, grupos que não podem entender uns aos outros: em nações, isto é, grupos unidos não somente pela descendência mas também pela língua. A divisão da humanidade em nações pode ser descrita como a mais branda alternativa ao dilúvio.

Os três eventos ocorridos entre o pacto de Deus com a espécie humana, feito após o dilúvio, e o chamamento de Abraão indicam a maneira pela qual Deus trata os homens que conhecem o bem e o mal e que planejam o mal desde sua juventude; a quase universal perversidade não mais seria punida com a quase universal destruição; a quase universal perversidade seria evitada pela divisão da espécie humana em nações no sentido indicado; a espécie humana seria dividida, não entre amaldiçoados e abençoados (as maldições e bênçãos provinham de Noé, não de Deus), mas sim entre uma nação escolhida e aquelas não escolhidas.

A emergência das nações tornou possível que a arca de Noé, flutuando sozinha sobre as águas que cobriam toda a Terra, fosse substituída por uma inteira, populosa nação que vivia em meio às nações que cobriam toda a Terra. A eleição da nação sagrada começa com a eleição de Abraão. Noé distinguia-se entre seus contemporâneos por sua retidão; Abraão distinguia a si próprio de seus contemporâneos e em particular de seus conterrâneos e parentes, sob o comando de Deus – um comando acompanhado pela promessa de Deus de fazer uma grande nação para ele. A Bíblia não diz que esta primeira eleição de Abraão era precedida pela retidão de Abraão. Embora isto fosse possível, Abraão demonstra sua virtude por obedecer imediatamente ao comando de Deus, por confiar na promessa de Deus, cujo cumprimento ele provavelmente não iria viver para ver, devido ao curto período de vida dos homens pós-diluvianos: somente depois que a descendência de Abraão se tornasse uma grande nação, seria a Terra de Canaã dada a ela para sempre.

O cumprimento da promessa requeria que Abraão não permanecesse sem filhos, e ele já estava bastante velho. Em conformidade com isto, Deus lhe prometeu que ele teria descendência. Foi a fé de Abraão na promessa de Deus que, acima de qualquer outra coisa, o fez virtuoso aos olhos de Deus. Era intenção de Deus que Sua promessa fosse cumprida através da descendência de Abraão e de sua mulher Sara. Mas esta promessa parecia ridícula no caso de Abraão, para não dizer no de Sara: Abraão tinha cem anos de idade e Sara noventa. Todavia, nada é tão extraordinário para o Senhor. A risível proclamação tornou-se uma alegre proclamação. A alegre proclamação foi imediatamente seguida pela proclamação de Deus feita a Abraão a respeito de Sua preocupação para com a perversidade do povo de Sodoma e Gomorra. Deus ainda não sabia se aquelas pessoas eram tão más como se dizia que eram. Mas elas deviam ser; elas deviam merecer a destruição total tanto quanto a geração do dilúvio.

Noé havia aceitado a destruição de sua geração sem questionamentos. Abraão, no entanto, que tinha uma fé mais profunda em Deus, na justiça de Deus, e uma consciência mais profunda que Noé, de ser apenas poeira e cinzas, atreveu-se, com temor e com tremor, a apelar para a justiça de Deus a fim de que Ele, o juiz de toda a Terra, não destruísse o virtuoso juntamente com o perverso. Em resposta às insistentes súplicas de Abraão, Deus, como lhe havia prometido, não destruiria Sodoma se dez homens virtuosos fossem encontrados na cidade: Ele salvaria a cidade em nome daqueles dez homens virtuosos que nela viviam. Abraão agiu como o parceiro mortal da justiça de Deus; ele agiu como se tivesse seu quinhão de responsabilidade por Deus ter agido corretamente. Não há dúvidas de que o pacto de Deus com Abraão foi incomparavelmente mais incisivo do que o pacto feito imediatamente após dilúvio.

A confiança de Abraão em Deus parece, então, ser a confiança de que Deus nada fará incompatível com Sua justiça e que, embora ou porque nada seja tão extraordinário para Deus, existem firmes limites estabelecidos para Ele por Sua justiça, por Ele próprio. Esta consciência é aprofundada e ao mesmo tempo modificada pelo último e mais severo teste da fé de Abraão: o comando de Deus para que ele sacrificasse Isaac, seu único filho com Sara. Antes de falar da concepção e do nascimento de Isaac, a Bíblia fala da tentativa feita por Abimélek, o rei de Gerar, de deitar-se com Sara; devido à idade avançada de Sara, a ação de Abimélek poderia ter impedido a última oportunidade de que Sara concebesse um filho de Abraão: portanto, Deus interveio para impedir Abimélek de se aproximar de Sara.

Um perigo similar, nas mãos do faraó, ameaçou Sara muitos anos mais cedo; naquele tempo ela era muito bela. À época do incidente com Abimélek, ela aparentemente já não era mais tão bonita, porém a despeito de estar com quase noventa anos, devia ser ainda bastante atraente6; isto parece reduzir de certa forma o caráter extraordinário do nascimento de Isaac. Por outro lado, a especial intervenção de Deus contra Abimélek aumenta este prodígio. O teste supremo de Abraão pressupõe o prodigioso caráter do nascimento de Isaac: o mesmo filho que deveria ser a única ligação entre Abraão e o povo escolhido e que nasceu contrariando todas as expectativas razoáveis deveria ser sacrificado por seu pai. Este comando contradiz não apenas a promessa divina, mas também a proibição divina contra o derramamento de sangue inocente. Contudo, Abraão não argumentou com Deus como ele havia feito no caso da destruição de Sodoma.

No caso de Sodoma, Abraão não havia sido confrontado com o comando divino para fazer algo e, em particular, não havia sido confrontado com um comando para render-se a Deus, para entregar a Deus o que lhe era mais querido: Abraão não discutiu com Deus pela preservação de Isaac porque ele amava a Deus, e não a si próprio ou a sua esperança mais acalentada, mas amava a Deus com todo o seu coração, com toda a sua alma e com todo o seu poder. A mesma concepção a respeito da justiça de Deus, que o havia induzido a implorar a Deus pela preservação de Sodoma se dez homens justos pudessem ser encontrados naquela cidade, o induziu a não implorar pela preservação de Isaac, pois Deus justamente pede que unicamente Ele seja amado incondicionalmente: Deus não manda que amemos o Seu povo escolhido com todo o nosso coração, com toda a nossa alma e com todo o nosso poder.

O fato de que o comando para sacrificar Isaac contradiga a proibição contra o derramamento de sangue inocente deve ser entendido à luz da diferença entre a justiça humana e a divina: somente Deus é, incondicionalmente, ainda que inescrutavelmente, justo. Deus prometeu a Abraão que Ele pouparia Sodoma se dez homens virtuosos pudessem ser encontrados lá, e Abraão estava satisfeito com esta promessa; Ele não prometeu que pouparia a cidade se nove homens virtuosos nela fossem encontrados; seriam aqueles nove destruídos juntamente com os maus? E mesmo se todos os Sodomitas fossem maus e, portanto, justamente destruídos, os filhos deles que fossem destruídos com eles mereceriam tal destruição? A aparente contradição entre o comando para sacrificar Isaac e a promessa divina aos descendentes de Isaac é descartada pela consideração de que nada é tão extraordinário para o Senhor.

A suprema confiança de Abraão em Deus, sua fé simples, de propósito único e infantil foi recompensada, apesar de ou porque ela pressupunha sua total despreocupação com qualquer recompensa, pois Abraão desejava renunciar, destruir, matar a única recompensa com a qual ele se preocupava; Deus evitou o sacrifício de Isaac. A intenção da ação de Abraão precisava de uma recompensa, embora ele não estivesse preocupado com uma recompensa, porque a ação pretendida não se pode dizer que tenha sido intrinsecamente recompensadora. A preservação de Isaac é tão espantosa quanto seu nascimento. Estas duas maravilhas ilustram mais claramente que qualquer outra coisa a origem da sagrada nação.

O Deus que criou o céu e a terra, que é o Deus único, cuja única imagem é o homem, que proibiu o homem de comer da árvore do conhecimento do bem e do mal, que fez um pacto com a raça humana após o dilúvio e, então, um pacto com Abraão que se tornou o Seu pacto com Abraão, Isaac e Jacó, que espécie de Deus é Ele? Ou, para falar mais reverentemente e mais adequadamente, qual é o Seu nome? Esta questão foi dirigida ao próprio Deus por Moisés quando foi enviado à Sua presença pelos filhos de Israel. Deus respondeu: "Ehyeh-Asher-Ehyeh". Isto é na maioria das vezes traduzido por: "Eu sou o Que (Quem) sou". Esta resposta foi chamada de "a metafísica do Êxodo", a fim de indicar o seu caráter fundamental. Esta é de fato a afirmação bíblica fundamental sobre o Deus bíblico, mas nós hesitamos em chamá-la de metafísica, desde que a noção de physis é estranha à Bíblia.

Eu creio que nós devemos substituir esta afirmação por "Eu serei o que Eu for", preservando-se assim a conexão entre o nome de Deus e o fato de que Ele faz pactos com os homens, isto é, que Ele se revela aos homens acima de tudo através de Seus mandamentos e de Suas promessas e do cumprimento destas promessas. "Eu serei o que Eu for" é como está explicado no Êxodo, "E terei misericórdia de quem eu tiver misericórdia, e me compadecerei de quem me compadecer" (Ex 33,19). As ações de Deus não podem ser preditas, a menos que Ele próprio as prediga, isto é, as prometa. Mas como está demonstrado precisamente por conta da obrigação de Abraão junto a Isaac, a maneira pela qual Ele cumpre Suas promessas não pode ser conhecida de antemão.

O Deus bíblico é um Deus misterioso: Ele vem numa densa nuvem (Ex 19,9): Ele não pode ser visto, Sua presença pode ser sentida, mas nem sempre e nem em toda parte; o que é conhecido Dele é apenas o que Ele escolhe para comunicar por Sua palavra através de Seus servos escolhidos. O restante do povo escolhido conhece Sua palavra – além daquela dos Dez Mandamentos (Dt 4,12 e 5,4-5) – somente de maneira mediada e não quer conhecê-la diretamente (Ex 20,19; 21 e 24,1-2; Dt 18,15-18; Am 3,7). Para quase todos os propósitos, a palavra de Deus como foi revelada a Seus profetas e especialmente a Moisés tornou-se "a" fonte do conhecimento do bem e do mal, a verdadeira árvore do conhecimento que é ao mesmo tempo a árvore da vida.

Este é o começo da Bíblia e o que ela implica. Vamos agora dar uma olhada em alguns gregos em contrapartida ao começo da Bíblia e em primeiro lugar à Teogonia de Hesíodo, assim como ao que restou dos trabalhos de Parmênides e de Empédocles. Todos eles são trabalhos de conhecidos autores. Isto não significa que estes trabalhos são, ou apresentem-se a si mesmos, como meramente humanos. Hesíodo canta o que as Musas, as filhas de Zeus, que é o pai dos deuses e dos homens, o ensinaram ou o ordenaram a cantar. Alguém poderia dizer que as Musas são a garantia da verdade na canção de Hesíodo, não fosse pelo fato de que elas algumas vezes dizem mentiras semelhantes à verdade. Parmênides transmite os ensinamentos de uma deusa, e assim também faz Empédocles.

Contudo, estes homens compuseram seus livros; suas canções ou seus discursos são livros. A Bíblia, porém, não é um livro. O máximo que se poderia dizer é que ela é uma coleção de livros. Mas são todos os livros parte daquela coleção? É, em particular, a Torá um livro? Não é antes o trabalho de um compilador desconhecido ou de compiladores desconhecidos que entrelaçaram os escritos e as tradições orais de origem desconhecida? Não é esta a razão pela qual a Bíblia pode conter fósseis que estão em desacordo até mesmo com seu ensinamento fundamental a respeito de Deus? O autor de um livro, em estrito senso, exclui tudo aquilo que não é necessário, que não preenche a função necessária ao propósito pretendido.

Os compiladores da Bíblia como um todo e da Torá em particular parecem ter seguido uma regra inteiramente diferente. Confrontados com uma variedade de discursos sagrados preexistentes, que, como tais, deveriam ser tratados com o maior respeito, excluíram somente o que não poderia, por qualquer esforço de imaginação, ser considerado compatível com o ensinamento fundamental e autorizado; sua piedade, despertada e estimulada pelos discursos sagrados preexistentes, os levou a fazer tantas mudanças naqueles discursos sagrados quantas eles fizeram. O trabalho deles, então, pode ser abundante em contradições e repetições que ninguém jamais pretendeu fazer propositalmente, enquanto que num livro, em estrito senso, não há nada que não seja pretendido pelo autor. Excluindo, entretanto, o que não poderia por nenhum esforço da imaginação ser considerado compatível com o ensino fundamental e autorizado, eles prepararam a maneira tradicional de ler a Bíblia, ou seja, como se a Bíblia fosse um livro no estrito senso. A tendência a ler a Bíblia e em particular a Torá como um livro no estrito senso era infinitamente reforçada pela crença de que ela é o único escrito sagrado ou o escrito sagrado por excelência.

A Teogonia de Hesíodo canta a geração ou produção dos deuses: os deuses não eram "feitos" por ninguém. Muito longe de terem sido criados por um Deus, o céu e a terra são os ancestrais dos deuses imortais. Mais precisamente, de acordo com Hesíodo, tudo o que é nasceu. Primeiramente surgiu Caos, Gaia (Terra) e Eros. Gaia deu à luz em primeiro lugar a Urano (Céu) e, então, unindo-se a Urano, ela deu à luz a Cronos e seus irmãos e irmãs. Urano detestava seus filhos e não queria que eles nascessem. Pela vontade e conselho de Gaia, Cronos privou seu pai do poder de procriação e de maneira não intencional causou o aparecimento de Afrodite; Cronos tornou-se o rei dos deuses.

A má ação de Cronos foi vingada por seu filho Zeus, que ele gerara desposando Reia e a quem ele planejou destruir; Zeus destronou seu pai e tornou-se então o rei dos deuses, o pai dos deuses e dos homens, o mais poderoso de todos os deuses. Devido a seus ancestrais, não é surpreendente que como pai dos homens e pertencendo aos deuses que eram os provedores das boas coisas ele está muito longe de ser bondoso para os homens. Unindo-se a Mnemósina, a filha de Gaia e Urano, Zeus gerou as nove Musas. As Musas forneciam doce e gentil eloquência e compreensão aos reis que elas queriam honrar. Através das Musas há cantores sobre a Terra, assim como através de Zeus há reis.

Embora reinados e canções possam conviver, há uma profunda diferença entre os dois – uma diferença que, segundo Hesíodo, pode-se comparar àquela que existe entre o falcão e o rouxinol. Certamente Métis (Sabedoria), sendo a primeira esposa de Zeus e tendo-se tornado inseparável dele, não é idêntica a ele; a relação de Zeus e Métis deve nos reportar à relação entre Deus e a Sabedoria na Bíblia7. Hesíodo fala da criação ou manufatura do homem não na Teogonia mas em seu Os Trabalhos e os Dias, isto é, no contexto de seu ensinamento que trata de como o homem deveria viver, que trata do direito do homem à vida, e que inclui o ensinamento relativo às corretas estações (os "dias"): a questão da vida correta não diz respeito aos deuses. A vida correta para o homem é apenas vida, a vida devotada ao trabalho, especialmente o de cultivar o solo.

O trabalho assim entendido é uma bênção ordenada por Zeus que abençoa o justo e esmaga o orgulhoso: muitas vezes, mesmo uma cidade inteira é destruída pelos atos de um único homem mau. Além disso, Zeus toma conhecimento da justiça e injustiça dos homens somente se ele quiser (Os Trabalhos e os Dias, 35-36, 225-285). De acordo com isso, o trabalho parece ser não uma bênção mas uma maldição: os homens devem trabalhar porque os deuses continuam a esconder deles os meios de vida e eles fazem isto para punir os homens pelo roubo do fogo perpetrado por Prometeu, inspirado por filantropia. Porém, não era a própria ação de Prometeu instigada pelo fato de que aqueles homens não eram adequadamente providos pelos deuses e em particular por Zeus? Seja como for, Zeus não privou os homens do fogo que Prometeu roubou para lhes dar, ele os puniu enviando-lhes Pandora com sua caixa cheia de males incontáveis, como os árduos trabalhos (Os Trabalhos e os Dias, 42, 105).

Os males dos quais a vida humana é cercada não podem ser determinados pelo pecado humano. Hesíodo transmite a mesma mensagem através da sua história das cinco raças humanas que surgiram sucessivamente. A primeira raça, a raça de ouro, foi feita pelos deuses quando Cronos ainda estava governando no céu; estes homens viviam sem trabalho árduo e sem pesar; eles tinham todas as boas coisas em abundância porque a terra por si própria lhes dava fruto abundante. Entretanto, faltava aos homens feitos pelo pai Zeus a perfeita felicidade; Hesíodo não deixa claro se isto se devia à hostilidade de Zeus ou à sua falta de poder; ele não nos dá nenhuma razão para pensarmos que isto se devia ao pecado do homem. Ele cria a impressão de que a vida humana se tornava ainda mais miserável conforme uma raça humana se sucedia à outra: não havia nenhuma promessa divina, fundada no cumprimento de promessas divinas anteriores, que permitisse a alguém confiar ou ter esperança.

A mais nítida diferença entre o poeta Hesíodo e os filósofos Parmênides e Empédocles é que de acordo com os filósofos nem tudo nasceu ("has come into being"): o que verdadeiramente é não nasce e não perece. Isto não significa necessariamente que o que sempre é seja um deus ou deuses. Pois se Empédocles, por exemplo, designa um dos quatro elementos eternos de Zeus, este Zeus dificilmente tem algo em comum com o que Hesíodo, ou as pessoas em geral, entenderam por Zeus. De qualquer forma, de acordo com ambos os filósofos, os deuses como eram originariamente entendidos, nasceram, assim como o céu e a terra, e, portanto, vão perecer novamente.

No tempo em que a oposição entre Jerusalém e Atenas alcançou o nível que poderíamos chamar de o embate clássico, nos séculos XII e XIII, a filosofia era representada por Aristóteles. O Deus aristotélico como o Deus bíblico é um ser pensante, mas em oposição ao Deus bíblico ele é apenas um ser pensante, pensamento puro: puro pensamento que pensa a si próprio e somente a si próprio. Somente pensando a si próprio e nada que não seja a si próprio ele governa o mundo. Ele certamente não governa dando ordens e fornecendo leis. Portanto, ele não é um deus criador: o mundo é tão eterno quanto deus. O homem não é feito à sua imagem: o homem está num nível muito mais baixo que outras partes do mundo. Para Aristóteles é quase uma blasfêmia atribuir justiça ao seu deus; ele está acima da justiça assim como da injustiça.

Tem sido frequentemente dito que o filósofo que mais se aproxima da Bíblia é Platão. Isto não era menos dito durante o clássico embate entre Jerusalém e Atenas ocorrido na Idade Média. Tanto a filosofia platônica quanto a piedade bíblica eram animadas pela concepção da pureza e purificação: a "razão pura" no sentido platônico está mais perto da Bíblia que da "razão pura" no sentido kantiano ou no sentido concebido por Anaxágoras ou por Aristóteles. Platão ensina, assim como a Bíblia, que o céu e a terra foram criados ou feitos por um Deus invisível, a quem ele chama o Pai, que é eterno, que é bom e cuja criação consequentemente é boa. O vir a ser ("come into being") e a preservação do mundo que ele criou, dependem da vontade de seu criador. O que o próprio Platão chama de teologia consiste de dois ensinamentos: 1) Deus é bom e, portanto, não é de maneira alguma a causa do mal; 2) Deus é simples e, portanto, imutável. Quanto à preocupação divina para com a justiça e injustiça do homem, o ensinamento platônico está em concordância fundamental com o ensinamento bíblico; ele até mesmo culmina numa declaração que concorda quase literalmente com as declarações bíblicas8.

Contudo, as diferenças entre o ensinamento platônico e o bíblico são não menos gritantes que as concordâncias. O ensinamento platônico relativo à criação não reivindica ser mais que uma provável fábula. O deus platônico é um criador também de deuses, de seres viventes e visíveis, isto é, de estrelas; os deuses criados, mais que o Deus criador, criam os seres viventes mortais e o homem em particular; o céu é um deus abençoado. O deus platônico não cria o mundo por sua palavra; ele o cria depois de ter olhado para as ideias eternas que, portanto, estão acima dele. De acordo com isto, a explícita teologia de Platão é apresentada dentro do contexto da primeira discussão sobre educação na República, no contexto daquilo que podemos chamar de a discussão da educação elementar. Na segunda e final discussão sobre educação – a discussão da educação dos filósofos –, a teologia é substituída pela doutrina das ideias. Com relação à discussão temática da providência nas Leis, deve ser suficiente dizer aqui que ela ocorre no contexto da discussão da lei penal.

Em sua provável fábula sobre como deus criou o todo visível, Platão faz uma distinção entre duas espécies de deuses, os deuses cósmicos e visíveis e os deuses tradicionais – entre os deuses que circulam de maneira manifesta, isto é, que se manifestam regularmente, e os deuses que se manifestam tanto quanto é de sua vontade. No mínimo, deveríamos dizer que, segundo Platão, os deuses cósmicos estão num nível muito mais alto que os deuses tradicionais, os deuses gregos. Na medida em que os deuses cósmicos são acessíveis aos homens como homens – às suas observações e cálculos –, os deuses gregos são acessíveis somente aos gregos através das tradições gregas; poderíamos atribuir, num exagero cômico, o culto dos deuses cósmicos aos bárbaros.

A atribuição é feita de uma maneira totalmente não cômica e decisiva na Bíblia: Israel é proibido de cultuar o sol, a lua e as estrelas que o Senhor distribuiu, repartiu para outras pessoas em qualquer lugar sob o céu9. Isto implica que o culto dos deuses cósmicos feitos por outras pessoas, os bárbaros, não se deve a uma causa natural ou racional, ao fato de que estes deuses são acessíveis ao homem enquanto homem, mas a um ato da vontade de Deus. Não é preciso dizer que, de acordo com a Bíblia, o Deus que se manifesta tanto quanto é de Sua vontade, que não é universalmente cultuado como tal, é o único Deus verdadeiro. A afirmação platônica tomada em conjunção com a afirmação bíblica leva a seus píncaros a oposição fundamental entre Atenas e Jerusalém: a oposição do deus ou deuses dos filósofos ao Deus de Abraão, Isaac e Jacó, a oposição entre a Razão e a Revelação.

2. Sobre Sócrates e os profetas

Há cinquenta anos atrás, no meio da Primeira Guerra Mundial, Hermann Cohen, o maior representante da comunidade judaica alemã e porta-voz dela, a figura mais poderosa de seu tempo entre os professores alemães de Filosofia, proclamou sua visão sobre Jerusalém e Atenas numa palestra intitulada "O ideal social para Platão e para os profetas". Ele repetiu aquela palestra um pouco antes de sua morte. Nós podemos, então, vê-la como a afirmação da visão final de Cohen sobre Jerusalém e Atenas e ao mesmo tempo sobre "a" verdade. Pois, como diz Cohen bem no começo, "Platão e os profetas são as duas mais importantes fontes da cultura moderna". Estando preocupado com o "ideal social", ele não diz uma única palavra sobre a cristandade em toda a dissertação.

De forma tosca, mas não enganosa, pode-se restabelecer a visão de Cohen como se segue. "A" verdade é a síntese do ensinamento de Platão e do ensinamento dos profetas. O que devemos a Platão é o discernimento de que a verdade é, em primeiro lugar, a verdade da ciência, mas a ciência deve ser complementada, superada pela ideia do bem que para Cohen significa não Deus, mas a Ética científica e racional. A verdade ética não deve ser apenas compatível com a verdade científica; a verdade ética sempre necessita da verdade científica. Os profetas são muito preocupados com o conhecimento: com o conhecimento de Deus, mas este conhecimento, como os profetas o entendem, não tem qualquer conexão com o conhecimento científico; é apenas conhecimento num sentido metafórico.

Talvez seja considerando este fato que Cohen cita uma vez o divino Platão, mas nunca os divinos profetas. Por que, então, Cohen não pode deixar que as questões sejam respondidas pela filosofia platônica? Qual é o defeito fundamental da filosofia platônica que é reparada pelos profetas e somente pelos profetas? De acordo com Platão, o cessar dos males requer a ação dos filósofos, dos homens que possuem a mais alta espécie de conhecimento humano, isto é, da ciência no sentido mais amplo do termo. Mas esta espécie de conhecimento e, por extensão, de todo conhecimento científico, é, de acordo com Platão, reservado a uma pequena minoria: aos homens que possuem certos dons que faltam à maioria dos homens – aos poucos homens que possuem uma certa natureza. Platão pressupõe que há uma natureza humana imutável.

Como consequência, ele pressupõe que há uma estrutura fundamental imutável da boa sociedade humana. Isto o leva a afirmar ou a assumir que haverá guerras enquanto existirem seres humanos, que deve haver uma classe de guerreiros e que esta classe deve ser mais alta em hierarquia e honrarias que a classe dos produtores e mercadores. Estes defeitos são reparados pelos profetas precisamente porque a eles falta a ideia de ciência e, portanto, a ideia de natureza; portanto, eles podem acreditar que a conduta dos homens entre si pode conduzir a uma mudança muito mais radical que qualquer mudança jamais sonhada por Platão.

Cohen trouxe muito bem à luz o antagonismo entre Platão e os profetas. No entanto, nós não podemos deixar as questões relativas a este antagonismo restritas à visão de Cohen. O pensamento de Cohen pertence a um mundo anterior à Primeira Guerra Mundial. Por causa disto ele tinha uma fé maior que a nossa no poder da moderna cultura ocidental de moldar o destino da espécie humana que lhe parecia então estar garantido. As piores coisas que ele viveu foram o escândalo Dreyfus e os massacres ("pogroms") instigados pela Rússia czarista: ele não presenciou a Rússia comunista e a Alemanha de Hitler.

Nós que somos mais desiludidos quanto à cultura moderna do que Cohen, nós nos perguntamos se os dois ingredientes da cultura moderna, da síntese moderna, não são mais sólidos que aquela síntese. As catástrofes e os horrores, de uma magnitude até então desconhecida, que vivemos e às quais sobrevivemos, são melhor apreendidos ou compreendidos por Platão e pelos profetas do que pela moderna crença no progresso. Uma vez que estamos menos certos de quanto Cohen estava, de que a síntese moderna é superior a seus ingredientes pré-modernos, e de que os dois ingredientes estão em fundamental oposição entre si, nós somos finalmente confrontados mais por um problema do que por uma solução.

Mais precisamente, Cohen compreendeu Platão à luz da oposição entre Platão e Aristóteles – uma oposição que ele entendia à luz da oposição entre Kant e Hegel. Nós, no entanto, estamos mais impressionados, do que Cohen estava, com a familiaridade entre Platão e Aristóteles, por um lado, e entre Kant e Hegel, por outro. Em outras palavras, o embate entre os antigos e os modernos nos parece ser ainda mais fundamental que o embate entre Platão e Aristóteles ou do que aquele entre Kant e Hegel.

Nós preferimos falar de Sócrates e dos profetas ao invés de Platão e dos profetas pelas seguintes razões. Nós não estamos mais tão certos quanto estava Cohen de que podemos traçar uma linha clara entre Sócrates e Platão. Existe suporte tradicional para traçar esta linha clara, principalmente em Aristóteles; mas a afirmação de Aristóteles nesta matéria já não possui para nós a autoridade que anteriormente possuía, e isto se deve em parte ao próprio Cohen. A clara distinção entre Sócrates e Platão está baseada não somente na tradição, mas nos resultados da moderna crítica histórica, se bem que estes resultados, numa análise decisiva, são hipotéticos.

O fato decisivo para nós é que Platão como que se punha voluntariamente na penumbra em prol de Sócrates. Se desejamos entender Platão, devemos tomá-lo a sério; devemos levar a sério particularmente sua deferência a Sócrates. Platão aponta não somente para os discursos de Sócrates, mas para sua vida inteira, e seu destino também. Portanto, a vida e o destino de Platão não têm o caráter simbólico da vida e destino de Sócrates. Sócrates, como era apresentado por Platão, tinha uma missão; Platão não alegava ter uma missão. É em primeiro lugar este fato – o fato de que Sócrates tinha uma missão – que nos induz a considerar não Platão e os profetas, mas Sócrates e os profetas.

Eu não posso falar com minhas próprias palavras sobre a missão dos profetas. Certamente, aqui e agora eu não posso fazer mais que lembrar a vocês das três elocuções proféticas de grandeza e força singular.

No ano em que morreu o rei Uzias, eu vi o Senhor assentado sobre um alto e sublime trono; e o seu séquito enchia o templo. Os serafins estavam acima dele; cada um tinha seis asas: com duas cobriam os seus rostos, e com duas cobriam os seus pés, e com duas voavam. E clamavam uns para os outros dizendo: Santo, Santo, Santo é o Senhor dos exércitos: toda a terra está cheia da Sua glória. E os umbrais das portas se moveram com a voz do que clamava, e a casa se encheu de fumo. Então disse eu: Ai de mim! Que vou perecendo; porque eu sou um homem de lábios impuros, e habito no meio de um povo de impuros lábios: e os meus olhos viram o rei, o Senhor dos Exércitos. Mas um dos serafins voou para mim trazendo na sua mão uma brasa viva, que tirara do altar com uma tenaz; e com ela tocou a minha boca e disse: Eis que isto tocou os teus lábios; e a tua iniqüidade foi tirada, e purificou o teu pecado. Depois disto ouvi a voz do Senhor, que dizia: A quem enviarei, e quem há de ir por nós? Então disse eu: Eis-me aqui, envia-me a mim. (Is 6,1-8)

Isaías, parece, foi voluntário em sua missão. Ele não poderia ter permanecido calado? Poderia ele recusar-se a ser voluntário? Quando a voz do Senhor veio a Jonas ("Levanta-te, vai à grande cidade de Níneve, e clama contra ela, porque a sua malícia subiu até mim. E Jonas se levantou para fugir de diante da face do Senhor para Tarsis"), este fugiu de sua missão; mas Deus não permitiu que ele escapasse dela; Ele o obrigou a cumpri-la. Nós ouvimos de maneira diferente de Amós e Jeremias sobre esta compulsão. "Certamente o Senhor Jeová não fará cousa alguma, sem ter revelado o seu segredo aos seus servos, os profetas. Bramiu o leão, quem não temerá? Falou o Senhor Jeová, quem não profetizará?" (Am 3,7-8). Os profetas subjugados pela majestade do Senhor, por Sua fúria e Sua misericórdia, trouxeram a mensagem de Sua fúria e Sua misericórdia.

Assim veio a mim a palavra do Senhor, dizendo: Antes que te formasses no ventre te conheci, e antes que saísses da madre te santifiquei: às nações te dei por profeta. Então disse eu: Ah, Senhor Jeová! Eis que não sei falar; porque sou uma criança. Mas o Senhor me disse: Não digas: eu sou uma criança; porque aonde quer que eu te enviar, irás; e tudo quanto te mandar dirás. Não temas diante deles; porque eu sou contigo para te livrar, diz o Senhor. E estendeu o Senhor a sua mão, e tocou-me na boca; e disse-me o Senhor: Eis que ponho as minhas palavras na tua boca. Olha, ponho-te neste dia sobre as nações e sobre os reinos, para arrancares, e para derribares, e para destruíres; e também para edificares e para plantares. (Jr 1,4-10)

A reivindicação de ter sido enviado por Deus também foi feita por homens que não eram verdadeiros profetas, mas sim profetas da falsidade, falsos profetas. Muitos ou a maioria dos ouvintes estavam por isso incertos de que espécie de reivindicantes clamantes a profetas seriam confiáveis ou deveriam ser acreditados. De acordo com a Bíblia, os falsos profetas simplesmente mentem dizendo que eles foram enviados por Deus: "falam da visão do seu coração, não da boca do Senhor. Dizem [...] o Senhor disse: Paz tereis" (Jr 23,16-17). Os falsos profetas dizem às pessoas o que as pessoas gostam de ouvir, consequentemente eles são muito mais populares que os verdadeiros profetas. Os falsos profetas são "profetas do engano do seu próprio coração" (Jr 26); eles dizem às pessoas o que eles próprios imaginaram (consciente ou inconscientemente), porque eles desejaram isto ou porque seus ouvintes o desejaram.

Porém: "Não é minha palavra como o fogo? diz o Senhor, e como um martelo que esmiúça a penha?" (Jr 29). Ou, como Jeremias coloca isto quando enfrenta o falso profeta Hananias: "Os profetas que houve antes de mim e antes de ti, desde a antigüidade, profetizaram contra muitas terras, e contra grandes reinos, guerra, e mal, e peste" (Jr 28,8). Isto não significa que um profeta é verdadeiro somente se ele é um profeta da destruição: os verdadeiros profetas são também da salvação final. Nós compreendemos a diferença entre os verdadeiros e os falsos profetas se nós ouvimos e meditamos as seguintes palavras de Jeremias: "Assim diz o Senhor: Maldito é o homem que confia no homem, e faz da carne o seu braço, e aparta o seu coração do Senhor! [...] Bendito o varão que confia no Senhor, e cuja esperança é o Senhor" (Jr 17,5-7).

Os falsos profetas acreditam na carne, mesmo se esta carne for o templo em Jerusalém, a terra prometida, mas não o próprio povo escolhido, mas não a promessa de Deus para o povo escolhido se esta promessa for considerada uma promessa incondicional e não como parte de um pacto. Os verdadeiros profetas, indiferentemente se predizem o Juízo Final ou a salvação, predizem o inesperado, o humanamente imprevisível – aquilo que nenhum homem, por sua conta e risco, temeria ou esperaria. Os verdadeiros profetas falam e agem pelo espírito e no espírito de "Ehyeh-asher-ehyeh". Para os falsos profetas, porém, não pode haver o totalmente inesperado, seja ele bom ou mau.

Da missão de Sócrates nós sabemos apenas através da Apologia de Sócrates feita por Platão, que apresenta-se como o discurso proclamado por Sócrates quando defendia a si próprio contra a acusação de não acreditar na existência dos deuses cultuados pela cidade de Atenas e de corromper a juventude. Naquele discurso ele nega possuir algo mais que a sabedoria humana. Esta negação foi entendida por Yehudah Halevi, entre outros, da seguinte maneira: "Sócrates disse às pessoas: 'Eu não nego vossa divina sabedoria, mas eu digo que eu não a compreendo; eu sou sábio apenas em sabedoria humana'". Enquanto esta interpretação aponta na direção certa, de certa maneira vai muito longe.

No mínimo Sócrates se refere, imediatamente após ter negado possuir outro tipo de sabedoria além da humana, ao discurso que originou sua missão, e sobre este discurso ele diz que não é seu, mas ele parece conferir ao discurso uma origem divina. Ele realmente atribui o que diz a um orador que é digno do crédito dos atenienses. Mas é provável que ele designe como aquele orador o seu companheiro Querefonte que era digno de crédito para os atenienses, mais digno do crédito dos atenienses que Sócrates, porque Querefonte era ligado ao regime democrático. Este Querefonte, certa vez, indo a Delfos, perguntou ao oráculo de Apolo se havia alguém mais sábio do que Sócrates. A Pitonisa respondeu que ninguém era mais sábio. Esta resposta deu origem à missão de Sócrates. Nós vemos imediatamente que a missão de Sócrates originou-se por iniciativa humana, pela iniciativa de um dos companheiros de Sócrates. Sócrates não duvidava de que a resposta dada pela Pitonisa fora dada pelo próprio deus Apolo.

Entretanto, isto não o induz a tomar por garantido que a resposta do deus era verdadeira. Ele realmente toma por garantido que não é próprio ao deus mentir. Todavia isto não faz com que a resposta do deus o convença. De fato, ele tenta refutar aquela resposta procurando homens que fossem mais sábios que ele. Engajado nesta tarefa, ele descobre que o deus disse a verdade: Sócrates é mais sábio que os outros homens porque ele sabe que ele não sabe nada, ou seja, não sabe nada sobre as coisas mais importantes, enquanto que os outros acreditam conhecer a verdade a respeito das coisas mais importantes. Desta maneira sua tentativa de refutar o oráculo torna-se uma espécie de exigência do próprio oráculo. Sem ter a intenção, ele vem ao auxílio do deus; ele serve a deus; ele obedece ao comando de deus. Embora nenhum deus tenha jamais falado com ele, ele está satisfeito que o deus lhe tenha ordenado a examinar a si próprio e aos outros, ou seja, a filosofar, ou a exortar a todos a encontrar a prática da virtude: ele foi dado pelo deus à cidade de Atenas como uma mosca varejeira.

Enquanto Sócrates não reivindica ter ouvido a palavra de um deus, ele reivindica aquela voz – algo divino e demoníaco – que lhe surge de tempos em tempos, seu daimon. Este daimon, no entanto, não tem conexão com a missão de Sócrates, pois ela nunca o incita a ir adiante, mas sempre apenas o reprime. Enquanto o oráculo de Delfos o incitou a filosofar, a examinar seus companheiros humanos, e dessa maneira o tornou odiado por todos, e o levou portanto a um perigo mortal, seu daimon o manteve fora da atividade política e dessa maneira o salvou do perigo mortal.

O fato de que tanto Sócrates quanto os profetas tenham uma missão divina significa ou em qualquer dos casos implica que Sócrates e os profetas estão preocupados com a justiça ou com a retidão, com uma sociedade perfeitamente justa, que como tal estaria livre de todos os males. Até aqui, a concepção de Sócrates da melhor ordem social e a visão dos profetas da era messiânica estão em concordância. Contudo, enquanto os profetas predizem a vinda da era messiânica, Sócrates simplesmente sustenta que a perfeita sociedade é possível: se ela será realizada algum dia, depende de uma improvável, embora não impossível, coincidência, a coincidência da filosofia com o poder político. Pois, de acordo com Sócrates, a realização da melhor ordem política não se deve a uma intervenção divina; a natureza humana permanecerá como ela sempre foi; a diferença decisiva entre a melhor ordem política e todas as outras sociedades é que, na primeira, os filósofos serão reis, ou que a natural potencialidade dos filósofos alcançará sua mais elevada perfeição. Na ordem social mais perfeita como Sócrates a vê, o conhecimento das coisas mais importantes permanecerá como sempre foi o monopólio dos filósofos, isto é, de uma muito pequena parte da população.

De acordo com os profetas, no entanto, na era messiânica "a terra se encherá do conhecimento do Senhor, como as águas cobrem o mar" (Is 11,9), e isto será causado pelo próprio Deus. Como consequência, a era messiânica será a era da paz universal: todas as nações virão à montanha do Senhor, à casa do Deus de Jacó, "e estes converterão suas espadas em enxadões, e as suas lanças em foices: não levantará espada nação contra nação, nem aprenderão mais a guerrear" (Is 2,4). O melhor regime, no entanto, tal como Sócrates o imagina, animará uma única cidade que naturalmente tornar-se-á envolvida em guerra com outras cidades. O cessar dos males que Sócrates espera do estabelecimento do melhor regime não incluirá o cessar das guerras.

O homem perfeitamente justo, o homem que é tão justo quanto seja humanamente possível, é, de acordo com Sócrates, o filósofo, e, de acordo com os profetas, o fiel servo do Senhor. O filósofo é o homem que dedica sua vida à busca do conhecimento do bem, da ideia do bem; o que chamaríamos de virtude moral é apenas a condição ou subproduto daquela busca. De acordo com os profetas, no entanto, não há necessidade de buscar pelo conhecimento do bem: Deus "te declarou, ó homem, o que é bom; e que é o que o Senhor pede de ti, senão que pratiques a justiça, e ames a beneficência, e andes humildemente com o teu Deus?" (Mq 6,8). Em concordância com isto os profetas via de regra dirigem-se às pessoas e algumas vezes mesmo a todas as pessoas, enquanto Sócrates via de regra dirige-se somente a um homem. Na linguagem de Sócrates os profetas são oradores, enquanto Sócrates empenha-se em conversações com um único homem, o que significa que ele está dirigindo questões a este homem.

Há um exemplo notável de um profeta falando de maneira privada a um único homem, de certa forma dirigindo uma questão a ele.

Por isso o Senhor mandou o profeta Natã a Davi. Natã foi ter com Davi e lhe disse: numa cidade havia dois homens, um rico e outro pobre. O rico tinha ovelhas e bois em quantidade; o pobre só possuía mesmo uma ovelhinha pequena que tinha comprado e criara. Ela cresceu com ele e junto com os filhos comendo do seu bocado, e bebendo da sua taça, dormindo no seu regaço, em uma palavra: tinha-a na conta de filha. Chegou ao homem rico uma visita. Ele teve pena de tomar uma rês das suas ovelhas ou bois, a fim de preparar para a visita. Tomou a ovelhinha do homem pobre e a preparou para o visitante. Davi ficou furioso com este homem e disse a Natã: "Pela vida do Senhor! O homem que fez isto merece a morte. Ele pagará quatro vezes a ovelha por ter feito uma coisa destas, sem ter pena". Então Natã replicou a Davi: "Este homem és tu...!" (2Sm 12,1-7)

O paralelo mais próximo deste evento que aparece nos escritos socráticos é a reprovação por Sócrates de seu antigo companheiro, o tirano Crítias:

Quando os trinta condenaram à morte muitos cidadãos e de forma alguma, os piores, e encorajaram muitos ao crime, Sócrates disse em algum lugar, que parecia estranho que um pastor que deixa seu gado diminuir e arruína-se não admitisse que ele é um pobre vaqueiro; mas mais estranho ainda é um político que causa o empobrecimento dos cidadãos e os arruína, e que não sente nenhuma vergonha nem pense em si mesmo como um político miserável. Esta passagem é atribuída a Crítias [...]. (Xenofonte, Memorabilia, I 2.32-33)

 

Referências

Bacon, F. (1961). Of Atheism. In F. Bacon. Essays. s.l.: s.d.         [ Links ]

Cassuto, U. (1961). A Commentary on the Book of Genesis. Jerusalém: Magnes Press.         [ Links ]

Strauss, L. (1997). Jerusalem and Athens. In K. H. Green. Jewish Philosophy and the Crisis of Modernity Leo Strauss. Nova Iorque: State University of New York.         [ Links ]

 

 

LEO STRAUSS

Recebido: 15/04/2013
Aceito: 17/05/2013

 

 

* Filósofo nascido em 20 de setembro de 1899 em Kirchhain, Hesse, Alemanha, onde publicou suas primeiras obras, entre as quais Spinoza's Critique of Religion (1930), considerada uma das maiores obras do século xx sobre Espinosa. Em 1932 emigrou para a França, depois para a Inglaterra e, finalmente, estabeleceu-se na Universidade de Chicago nos EUA, onde publicou suas obras mais famosas como Natural Right and History (1953). Leo Strauss faleceu em 18 de outubro de 1973.
1 Conferência de 1967, publicada em inglês (Strauss, 1997, pp. 377-405). Tradução: Teresinha Costa e Marília Mazzucchelli. Revisão: Mario Miranda Filho. Tradução concedida de Jewish philosophy and the crisis of modernity: essays and lectures in modern jewish thoght (ed. K. H. Green). Nova Iorque: State University of New York Press, 1997. Todos os direitos reservados.
2 Nota dos tradutores: as passagens bíblicas foram retiradas da Bíblia Sagrada editada em 1969 pela Sociedade Bíblica do Brasil, bem como da Editora Vozes (46ª edição, São Paulo, 4 de outubro de 1982).
3 Ver a caracterização das plantas como engeia ("em ou da terra") na República de Platão (491d1). Ver Empédocles (A70).
4 Ver a distinção entre os dois tipos de "outros deuses" em Dt 4,15-19, entre os ídolos de um lado, e o sol, a lua e as estrelas, de outro.
5 Não precisa inclinar para colher os frutos das árvores.
6 A Bíblia registra um incidente aparentemente similar envolvendo Abimélek e Rebeca (Gn 26,6-11). Este incidente ocorreu depois do nascimento de Jacó; apenas isto poderia explicar por que não há intervenção divina neste caso.
7 Teogonia, 53-97 e 886-900; ver Pr 8.
8 Comparar As Leis (905a4-b2) com Am 9,1-3 e Sl 139,7-10.
9 Timeu (40d6-41a5); Aristófanes, Paz (404-413); Dt 4,19.