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Ide

versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.37 no.59 São Paulo fev. 2015

 

ARTIGOS

 

Clínica psicanalítica e arte contemporânea

 

Psychoanalitical clinic and contemporary art

 

 

Magda Guimarães Khouri*

Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo
Federação Psicanalítica da América Latina

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A partir da obra de arte Folly, de Valeska Soares, do instituto Inhotim, a autora faz aproximações entre arte contemporânea e a clínica psicanalítica, destacando os temas alteridade, construção e destruição no ato criativo, assim como a questão do descentramento do sujeito.

Palavras-chave: Alteridade, Arte contemporânea, Psicanálise, Ato criativo.


ABSTRACT

Based on the work Folly, from Valeska Soares, at Instituto Inhotim, the author correlates contemporary art and psychoanalysis. The author highlights the themes alterity, construction and destruction in the creative act, as well as the process of decentering subject.

Keywords: Alterity, Contemporary art, Psychoanalysis, Creative act.


 

 

Folly

Para a margem mais distante de um grande lago no Instituto Inhotim1, a artista Valeska Soares2 criou uma estrutura arquitetônica, Folly (2005-2009), de forma octogonal com os lados cobertos por espelhos, que remete aos tradicionais gazebos de jardim ou aos coretos de praça. Em seu entorno foi realizado um projeto paisagístico que se distingue do restante do parque e traz características de um jardim doméstico, com árvores frutíferas e flores. O caminho de pedras e o discreto vale sugerem romantismo e introspecção, envolvendo o espectador naquele cenário por meio dos reflexos nos espelhos. Lembrou-me do efeito promovido pela escultura The Bean, em Chicago3, de Anish Kapoor, cujas superfícies refletem e distorcem o panorama urbano da cidade, provocando certa vertigem, em que o observador se torna personagem de possibilidades fotográficas únicas.

Na parte de trás do pavilhão, uma porta dá acesso à sala interna, escura, onde nos encontramos imediatamente em meio a uma projeção refletida nas dez paredes de espelhos. O vídeo mostra dançarinos solitários em uma pista de salão, que, através da sobreposição de imagens, magicamente se cruzam e se separam ao som da música "The look of love" (1967), de Burt Bacharach, da trilha sonora do filme de espionagem "Casino Royale" (1967), evocando uma era de glamour, hoje revestida de certa decadência.

No instante em que entrei vi na projeção um casal dançando e, em seguida, fui atraída pela música e pelas múltiplas imagens que nos dão a sensação de fazer parte do baile. Alguns visitantes dançaram com seus parceiros, outros, sozinhos, uns ficaram passeando pelos espelhos e poucos saíram rapidamente. Soube da reação de algumas pessoas que ficaram paralisadas, um tanto angustiadas, precisando se retirar do local. Havia um toque de sensualidade elegante e alegria. E, voltando o olhar ao vídeo, fiquei esperando a cena inicial do casal e só aí me dei conta de que os bailarinos circulavam sozinhos na pista e os corpos só se atravessavam virtualmente. Insistente, revi o filme na expectativa de recuperar aquele momento que não mais aconteceu, a não ser de forma fugidia no encontro/desencontro dos personagens. O erotismo presente não se desfez. Porém, essa percepção me transportou à atmosfera solitária do filme "O Baile", de Ettore Scola (1983).

Os espelhos tornaram-se fonte de inquietação, promovendo um envolvimento multissensorial intenso. Tal aspecto multissensorial da arte – incluindo, além da visão, o acústico, o tato e o olfato – foi introduzido pela artista desde a concepção do jardim e a escolha dos materiais do entorno e do interior da construção. Recursos que parecem ser recorrentes na obra de Valeska Soares.

Experimenta-se certa ambiguidade, entre espaço nostálgico e tecnologia e arquitetura sofisticadas, entre parceria e solidão, um desvio, uma passagem pelo vazio, em que nada de relevante acontece com os personagens. Como descreve a artista: "Meu trabalho tenta existir no minuto entre aquilo que não é feliz nem triste; aquilo que não é pesado nem leve" (/www.uai.com.br. Declaração de Valeska Soares ao site mineiro Uai, em 27 de janeiro de 2009. Recuperado em maio de 2012).

O espectador é convidado a participar como parceiro da obra, a percorrê-la não apenas com os olhos, mas também com o corpo. Como se sabe, esta tem sido uma das marcas relevantes da arte contemporânea. As obras que nascem das fantasias do artista são criadas de forma aberta como algo incompleto, plural, descentrado, conflituoso, e nesse caminho enlaçam o outro, convocando o sujeito a fantasiar, a se apropriar, a reconstituir a seu modo, na sua experiência. O espectador é chamado a refazer sua história, na beleza e na dor, no encontro com o artista mediado pela sua criação. Freud (1908/1976) escreve que a verdadeira arte poética residiria na evocação do que é estritamente pessoal a favor de um laço com o outro, o espectador ou o leitor. A alteridade tem a possibilidade de ser reinaugurada a cada convocação artística.

É no convite ao descentramento do sujeito, na sua errância, nos seus desvios, que está o objeto de busca da psicanálise. Penso estar nesse campo um dos possíveis encontros da psicanálise com a arte contemporânea.

 

Flutuações

Quando Freud escreveu a "Psicopatologia da vida cotidiana", pôs-se sob o selo do equívoco, ou seja, em parceria com os esquecimentos, os lapsos, os atos falhos, as lembranças encobridoras, nos quais o sujeito se sente atropelado por outro sujeito, que ele próprio desconhece. São as manifestações que pertencem ao sujeito do inconsciente. E, nesse desencontro, ou melhor, "onde falha a significação, pode nascer o sentido" (Herrmann, 2005, p. 26).

A perspectiva não linear do psiquismo chama os psicanalistas a se aproximarem dos fenômenos do mundo por meio da atenção flutuante. A investigação dos acontecimentos da atualidade lança-nos ao inusitado, ao acaso, criando condições para construir um olhar singular sobre o mundo, que, por sua vez, amplia a escuta clínica.

É sobre isso que Fabio Herrmann trata ao pensar o poema de Mallarmé, "Um lance de dados jamais abolirá o acaso" (Herrmann, 2002). Ao propor o poema como um guia para a psicanálise nos faz pensá-la como um jogo de dados, em que a exatidão absoluta é a condição do acaso, considerando o que surpreende como matéria-prima da psicanálise.

 

Criar é destruir

A ideia paradoxal "criar é destruir" é um dos princípios que norteia a prática de alguns artistas contemporâneos, de acordo com João Frayze. A partir dessa concepção de criatividade, o autor estabelece relação com o pensamento de Winnicott e de Merleau-Ponty, em torno das questões do existir, da criação e da experiência. Nessa complexa articulação, o que quero destacar são as noções sobre o transcender e a experiência. Transcender "[...] significa transformar o dado em outra coisa e, para isso, ele terá que ser destruído" (Frayze-Pereira, 2010, p. 21). E experiência pode ser entendida como o que nos abre para o que não é "nós", ela nos abre para o outro, "[...] tudo aquilo que não é 'eu' exige de mim criação, isto é, exige que eu exista para que eu possa ter experiência dele. Ou seja, para que eu o perceba" (Frayze-Pereira, 2010, p. 21). A experiência possui uma dimensão estética, pois envolve esta percepção para o que está, aparentemente, fora de nós no mundo sensível.

Verifica-se, tanto na arte quanto na psicanálise, um constante processo de construção e destruição no qual as articulações entre o dentro e o fora, o sujeito e o objeto, são mediadas pela pessoa do analista ou pela pessoa do artista. Aí reside a possibilidade da alteridade ser reinaugurada a cada transferência analítica e a cada convocação artística e, assim, não ficarmos reduzidos apenas a nós mesmos.

Como observa Frayze, essa maneira de pensar é próxima às ideias de Cristopher Bollas, quando escreve que os artistas "[...] têm liberdade de destruir as figuras de nossa vida, contudo, confiam na integridade da figura mesmo que eles a destruam. Como os psicanalistas, eles reconhecem o paradoxo dessa liberdade" (Bollas, 2010, p. 208).

A livre associação libera, em um espaço delimitado, a possibilidade de fragmentar um sonho, um pensamento, uma memória – portanto são destruídos – e, nesse processo, novas figuras são construídas, sobrepondo umas às outras. Mas o patrimônio, tanto na história da arte quanto na história do paciente, "[...] sobrevive à destruição, permanecendo como memória, em relação àquilo que é novo e que a partir dele surgiu" (Frayze-Pereira, 2010, p. 21).

Bollas toca no centro desse tema:

O que a psicanálise oferece à criatividade? Freud inconscientemente compreendeu o processo que não estava apenas no coração da criatividade, mas era o próprio processo criativo – um processo que envolve duas pessoas no qual apenas uma, de modo isolado, havia estado antes. Narrando seus dias, seus sonhos, suas associações, os analisandos criam a si próprios na presença do analista. Eles podem tentar "figurar" a si mesmos, mas o processo associativo finalmente rompe essas figuras e os analisandos afirmam-se, a partir das linhas quebradas, das harmonias discordantes, das caesurae das criações psíquicas. (Bollas, 2010, p. 200)

Atenção flutuante e associação livre promovem e dão corpo ao ato criativo no processo da dupla analítica.

 

Explosão do suporte

Quem se aproxima da arte contemporânea descobre a "[...] concepção de uma arte apoiada não em convicções, mas em incertezas, explosão do suporte, valorizando o cerne da matéria e ambiguidade" (Ajzenberg, 2003, p. 11) e de um tempo que interroga tudo.

Sem as tradicionais bases da escultura e molduras da pintura, as obras de arte ganharam novos contornos, se expandiram, e, assim, nasce o diálogo permanente entre a obra e seu espaço circundante.

Folly é um exemplo da arte que procura quebrar as barreiras entre o espectador e a situação, levando o primeiro a abandonar-se ao espaço que o envolve, interagindo com ele. É uma obra pautada no jogo das imagos inconscientes, permeada por encontros e desencontros, criando a possibilidade de um sonho a dois – espectador e artista.

Não há dúvida de que a arte contemporânea tem como uma de suas fontes a psicanálise. E do seu lado pode nos oferecer repertório para a formação de um psicanalista que crie condições para dar conta dos excessos, do vazio, dos novos suportes da clínica atual. Em uma via de mão dupla, a arte pode relançar a psicanálise às suas contradições, convocando-a a se rever, a se atualizar e, quiçá, a se reinventar.

 

Referências

Ajzenberg, E. (Org.). (2003). Marcantonio Villaça – passaporte contemporâneo. Catálogo: MAC USP.

Azambuja, S. C. de. (2007a). Carta a um jovem psicanalista. Jornal de Psicanálise, 40 (72), 177-191.         [ Links ]

Bollas, C. (2010). Criatividade e psicanálise. Jornal de Psicanálise, 43 (78), 193-209.         [ Links ]

Frayze-Pereira, J. (2010a). Debate. O lugar da criatividade na formação psicanalítica. Jornal de Psicanálise, 43 (78), 19-42.         [ Links ]

Freud, S. (1976). Escritores criativos e devaneio. In S. Freud. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (J. Salomão, trad., Vol. IX). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1908).         [ Links ]

Herrmann, F. (2002). Da clínica extensa à alta teoria. Primeira meditação. A história da psicanálise como resistência à psicanálise. Percurso, 15 (29), 15-20.         [ Links ]

Herrmann, F. (2005). Da clínica extensa à alta teoria. Meditações clínicas. Quarta meditação. A intimidade na clínica. Texto utilizado no curso "Da clínica extensa à alta teoria", São Paulo, Instituto de Psicanálise, SBPSP. Texto não publicado.         [ Links ]

Rivera, T. (2007). O sujeito na psicanálise e na arte contemporânea. Psic. Clin., Rio de Janeiro, vol 19, N1, 13-24.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
MAGDA GUIMARÃES KOURI
Rua da Consolação, 3741, cj.22
01416-001 – São Paulo – SP
tel.: 11 3083 3002
E-mail: magdakhouri@uol.com.br

Recebido: 23.11.2014
Aceito: 15.12.2014

 

 

* Psicanalista e membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Diretora de Cultura e Comunidade da Federação Psicanalítica da América Latina (2014-2016).
1 Instituto Inhotim, Minas Gerais, aberto ao público em 2006; espaço de arte contemporânea e Jardim Botânico.
2 Valeska Soares (Belo Horizonte, 1957) vive em Nova York, Estados Unidos. Entre as exposições internacionais, Bienal de São Paulo, em 1994, 1998 e 2008, e Bienal de Liverpool, em 2004. Sua maior exposição individual foi realizada no Museu de Artes do Bronx, Nova York, 2005.
3 Cloud Gate, escultura de Anish Kapoor, localizada no Millennium Park de Chicago, que, devido à sua forma de feijão, ficou conhecida como The Bean.