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versão impressa ISSN 0101-3106

Ide (São Paulo) vol.40 no.66 São Paulo jul./dez. 2018

 

EM PAUTA EASY RIDER: SEM DESTINO

 

Introjeção, incorporação e identificação com o agressor: considerações a partir de Sándor Ferenczi

 

Introjection, incorporation, identification to the aggressor: from Sándor Ferenczi

 

 

Elisa Maria de Ulhôa Cintra

Psicanalista, professora da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( PUC-SP) e do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP. Autora de Melanie Klein: estilo e pensamento e Melanie Klein (coleção Folha Explica), em coautoria com Luís Claudio Figueiredo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo trata da noção de identificação com o agressor oriunda do pensamento de Sándor Ferenczi, um mecanismo de defesa contra os traumas de abuso sexual na infância. A noção ferencziana de introjeção decorrente de processos libidinais é contrastada com a noção de incorporação (Abraham & Torok) um mecanismo antilibidinal responsável por manter o trauma não pensado em uma cripta, transmitido às futuras gerações de forma silenciada e não passível de elaboração. Compara-se a identificação com o agressor à identificação melancólica no pensamento de Freud em Luto e melancolia. A diferença entre identificações formadoras do ego, do superego arcaico (pulsional) e do superego pós-edípico é pensada a partir da oscilação entre as posições esquizoparanoide e depressiva (Klein e Bion) e do vértice dinâmico.

Palavras-chave: Cisão. Identificação com o agressor. Introjeção. Incorporação. Freud. Ferenczi. Klein. Abraham & Torok.


SUMMARY

This article discusses the identification with the aggressor, as one of the consequences of early abuse in Ferenczi's theory of trauma. The Ferenczian notion of introjection – a libidinal process resulting from mourning – is compared to the idea of incorporation– an anti-libidinal process which, as described by Abraham & Torok, is responsible for maintaining the trauma outside thinking, in a crypt, passing it on to future generations in a form that is cannot be the object of workingthrough. The identification with the aggressor is compared to the narcissistic melancholic identification in Freud's Mourning and melancholia. The differences between identifications at the origin of ego, archaic superego, and the post-oedipal superego are studied from the view point of the oscillation between the schizoid-paranoid and the depressive positions, as described by Klein and Bion.

Keywords: Splitting. Identification to the aggressor. Iintrojection. Incorporation. Melancholia identification. Freud. Ferenczi. Klein. Abraham & Torok.


 

 

Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa,
sem perigo de ódio, se a gente tem amor. Qualquer amor
já é um pouquinho de saúde, um descanso na loucura.
(Guimarães Rosa)

Qualquer forma de amor pode nos salvar da loucura. No entanto parece hoje impossível fugir do destino de ter feito parte de um relacionamento abusivo. Na clínica contemporânea, tem sido muito difícil encontrar alguém que tenha ficado completamente livre de alguma forma de abandono afetivo, de alguma relação abusiva, com elementos sádicos e masoquistas, ou de alguma forma de bullying.

Quais são as consequências disso? Será que tem início um movimento irresistível de se submeter ao agressor? Ou é o impulso a tornar-se um agressor que predomina? Só existem caminhos que perpetuam a dinâmica sadomasoquista? Será impossível fugir a esse destino?

Qual é a faixa de liberdade que se pode conquistar a partir desses acontecimentos? É possível vislumbrar caminhos de saída dos impasses que aprisionam o sujeito em uma dinâmica na qual se vê tendo que ocupar a posição de dominar ou de ser dominado? São essas questões tão amplas que têm ocupado os psicanalistas desde os estudos sobre a neurose obsessiva e a melancolia, de 1910 até hoje. É preciso então fazer um recorte e indicar algum caminho a ser percorrido. Minha ideia é apontar algumas direções de pesquisa que considero fecundas, para pesquisar o assunto a partir do que já foi pensado em psicanálise.

Depois de Freud, foi Sándor Ferenczi quem primeiro chamou a nossa atenção para a presença de traumas desestruturantes a que estavam sujeitos muitos de seus pacientes.

No pensamento ferencziano, encontramos a descrição do aprisionamento na dinâmica "dominar-ser dominado" através do mecanismo de identificação com o agressor, que é uma das consequências do abuso infantil.

O tema da identificação com o agressor sempre me atraiu e me parece conter um enigma, uma falta de explicitação quanto à sua metapsicologia. Se uma criança foi abusada, entendo que o transe hipnótico, o espanto que a paralisa, o desmentido dos outros adultos e a progressão traumática podem afetá-la de tal modo que, em vez de reagir e gritar de raiva e indignação, a única saída que ela encontra é se identificar com o agressor, fechando-se em um estado de submissão diante da autoridade do outro. Esse estado de submissão pode acontecer até em situações cotidianas, com os pacientes em análise, por exemplo, como observou Ferenczi: "[Os nossos pacientes] caem numa extrema submissão em consequência manifesta da incapacidade ou do medo em que se encontram de nos desagradar com suas críticas" (1933/2011, p. 113).

Como se dá essa identificação com o agressor? Quais são os seus efeitos? Essa defesa visa a dar razão ao agressor, a limpá-lo da sua culpa, atraindo a si toda a violência e a culpabilidade do agressor? Ou será que ela quer trazer o agressor para dentro de si, diante do impossível destino de ter que perdê-lo? De ter que abrir mão de sua proteção? De sua autoridade?

Todas essas perguntas nos são suscitadas ao ler Ferenczi, e cada uma delas contém uma parcela de verdade. Ao mesmo tempo, não cessam de fazer a exigência de pensar melhor o mecanismo de identificação com o agressor, em suas múltiplas dimensões e efeitos. E para isso é inevitável entrar no tema da identificação em um sentido mais amplo.

Meus autores de eleição são Freud, Ferenczi e Klein. Cada um deles pensou a identificação de forma diferente, mas em todos a metapsicologia da identificação deixa espaço para novas elaborações. Cabe a nós retomar os pontos de impasse, com o benefício da posterioridade histórica. Como pensar o mecanismo de identificação ao agressor em relação às identificações formadoras do superego pulsional, do superego pós-edípico e das identificações egoicas? Vou aqui propor três direções.

A primeira é aproximar a noção ferencziana acima mencionada (identificação ao agressor) da identificação melancólica, na linha de Luto e melancolia de Freud. Teresa Pinheiro (1993, 1995a, 1995b) foi a primeira a fazer essa articulação.

Em seguida, farei uma breve menção à noção ferencziana de introjeção, através do olhar do casal Nicolas Abraham e Maria Torok (1995). Eles criaram a ideia de incorporação para indicar os casos em que a introjeção não pôde acontecer.1

Minha terceira direção será pensar a diferença qualitativa entre as identificações que constituem o ego, em relação àquelas que formam o superego arcaico, a partir de Melanie Klein. Começo então fazendo conversar Freud e Ferenczi.

 

A noção de identificação com o agressor e a identificação melancólica

Lendo o texto Confusão de língua entre os adultos e a criança, encontrei a seguinte ideia:

os delitos que a criança comete por brincadeira só passam a ter um caráter de realidade pelas punições passionais que recebem de adultos furiosos, rugindo de cólera, o que acarreta numa criança, não culpada até então, todas as consequências da depressão. Um exame detalhado dos processos de transe analítico ensina-nos que não existe choque nem pavor sem um anúncio de clivagem da personalidade. A personalidade regride para uma beatitude pré-traumática, procura tornar o choque inexistente, o que não surpreenderá nenhum analista. (Ferenczi, 1933/2011 p. 119)

A ideia de clivagem do eu, que é um dos efeitos do evento traumático, pode levar à identificação com o agressor. Essa afirmação de que "não existe choque nem pavor sem um anúncio de clivagem da personalidade" me inspirou a voltar ao texto Luto e melancolia para examinar a clivagem do eu na melancolia.

 

Luto e melancolia

Em Luto e melancolia, Freud descreve bem a clivagem do eu em uma voz autoritária, acusadora e sádica e, do outro lado, uma dimensão do ego esmagada sob a sombra desse objeto portador das críticas. No caso da melancolia, a figura de quem abandona lança a sua sombra sobre o eu, cobrindo-o com a inferioridade, o erro, o caráter desprezível que justifica que a pessoa tenha sido abandonada. Toda a culpa pelo abandono fica então depositada no eu, e o objeto sádico aloja-se naquela voz autoritária, que sai triunfante e justificada. Freud não deixa de observar que as acusações que a pessoa abandonada lança sobre si mesma parecem muito mais pertinentes e adequadas à pessoa que desapareceu. O exemplo de Freud é o da noiva abandonada que fala mal de si para esconder a raiva e o ódio do noivo que a abandonou. Trata-se de um retorno para si da agressividade, do desprezo e do ressentimento que não se pode, por alguma razão, dirigir ao agressor. O que se observa é que esse retorno do ódio contra si perpetua o dinamismo atacante-atacado e instala uma repetição. Uma cultura pura de pulsão de morte se aloja no superego do melancólico que, em 1917, ainda era pensado apenas como uma voz. Temos aí uma primeira noção de clivagem para pensar a origem do superego: uma parte do ego se modifica por identificação com o objeto abandonador e se volta contra outra dimensão do ego, que se modifica por identificação com o objeto abandonado.

Há uma transformação de amor em ódio e do ódio voltado ao outro para um auto-ódio. Esse retorno dos afetos ao eu foi bem ressaltado por Freud ao enfatizar, nesse mesmo texto, vocábulos com o prefixo selbst (auto): auto-acusação, auto-depreciação e auto-recriminação, o que assinala um movimento narcísico e mortífero de retorno contra si. Podemos pensar que todos os traumas e qualquer forma de bullying produzem transformações análogas a essas e o aparecimento no ego de pares complementares atacante-atacado, ativo-passivo, que tendem a se repetir e dos quais é difícil escapar.

A clivagem entre agressor e vítima aparece na identificação ao agressor e na identificação melancólica. Ferenczi afirma que, após um abuso sexual, um primeiro movimento de recusa e de indignação fica impedido pelo medo, pelo espanto, pelo sentimento esmagador de não poder enfrentar o abusador:

a força e a autoridade esmagadora dos adultos que emudecem [as crianças], podendo até fazê-las perder a consciência. Mas esse medo, quando atinge o seu ponto culminante, obriga-as a se submeter automaticamente à vontade do agressor, a adivinhar o menor de seus desejos, a obedecer esquecendo-se de si mesmas e a identificar-se com o agressor. (Ferenczi, 1933/2011, p. 117)

Aí Ferenczi fala do processo de interiorização do agressor:

Por identificação [...] o agressor desaparece enquanto realidade exterior e torna-se intrapsíquico; mas o que é intrapsíquico vai ser submetido, num estado próximo ao sonho - como é o transe hipnótico -, ao processo primário, ou seja, o que é intrapsíquico pode, segundo o princípio de prazer, ser modelado e transformado de maneira alucinatória, positiva ou negativa. Seja como for, a agressão deixa de existir enquanto realidade exterior e estereotipada e, no decorrer do transe traumático, a criança consegue manter a situação de ternura anterior. (Ferenczi, 1933/2011, p. 117)

Ou seja, ao desaparecer enquanto realidade exterior, o que se interioriza mais precisamente é a cena sadomasoquista inteira, em todo o seu dinamismo: mais do que uma identificação com o agressor, no sentido de vir a tornar-se um agressor (embora isso também acabe acontecendo), trata-se de uma interiorização do par agressor e agredido. Ambos os polos da díade precisam continuar presentes de alguma forma, no entanto um dos polos parece ficar menos nítido na cena lembrada conscientemente. Tal dinâmica parece ocorrer para que a cena do abuso seja interiorizada e repetida.

Ferenczi afirma que a mudança significativa é a introjeção do sentimento de culpa do adulto, que leva a um estado de grande confusão na criança: "[Ela] já está dividida, ao mesmo tempo inocente e culpada, e sua confiança no testemunho dos próprios sentidos está desfeita" (Ferenczi, 1933/2011, p. 117).

Essa identificação com o agressor é o que impede a reação de ódio e de indignação, que poderia levar a uma mudança do ambiente, ou mudança aloplástica. No lugar desta, acontece uma espécie de mimetismo e gera-se uma reação autoplástica, uma modificação interior, um trazer para dentro de si a dupla agressor e agredido, sem que se possa ultrapassar o dinamismo ativo e passivo (Ferenczi, 1933/2011).

E prossegue ainda, comparando essa dinâmica com os relacionamentos abusivos, ao longo de toda a vida:

Os pais e adultos deveriam aprender a reconhecer, como nós, analistas, por trás do amor de transferência, submissão ou adoração de nossos filhos, pacientes, alunos, o desejo nostálgico de libertação desse amor opressivo. Se ajudarmos a criança, o paciente ou o aluno a abandonar essa identificação e a defender-se dessa transferência tirânica, pode-se dizer que fomos bem-sucedidos em promover o acesso da personalidade a um nível mais elevado. (Ferenczi, 1933/2011, p. 119)

Entretanto uma reação de maior passividade e de identificação com a vítima pode, em um momento posterior, dar origem a atitudes sádicas, com o objetivo de se livrar da posição de vítima através dessa identificação com o agressor, como foi descrito no texto de Robin Anderson Putting the boot in: violent defenses against depressive anxiety.

Creio que será preciso pensar melhor que identificações são essas, isto é, como avaliá-las qualitativamente? E para tanto vou recorrer a Melanie Klein e a Nicolas Abraham e Maria Torok.

 

Introjeção e incorporação em Nicolas Abraham e Maria Torok

No livro A casca e o núcleo, Nicolas Abraham e Maria Torok estabelecem uma diferença entre os processos de introjeção e de incorporação.

A introjeção, tal como foi pensada por Ferenczi em 1909, é o processo responsável pela interiorização de relações predominantemente libidinais. Em contraste com a introjeção, o casal Abraham & Torok propõe chamar de incorporação os mecanismos antilibidinais de identificação, que podem ser associados à dinâmica da pulsão de morte e à presença de injunções categóricas e cruéis de um superego pulsional, primitivo, diferentemente do superego que se constitui na elaboração do complexo de Édipo.

A identificação com o agressor e a identificação melancólica seriam, então, decorrentes de um processo de incorporação e manifestam justamente que não aconteceu a introjeção. De forma diversa, o processo de introjeção leva a uma expansão do eu: o vivido é simbolizado, e a perda e o limite podem ser inscritos simbolicamente, através de um processo de luto.

Por contraste, a incorporação ocorre, por exemplo, no caso de um abuso sexual na infância seguido de indiferença e de atitudes de desmentido por parte dos adultos significativos. Isso é um trauma que não pode ser simbolizado: ele atravessa o eu de ponta a ponta como um enclave. É algo indigesto, que foi "engolido sem mastigação", por assim dizer. O acontecimento traumático fica silenciado e isolado em uma cripta, onde a vergonha e a culpa o tornam indizível e intragável.

A perda inconfessável fica na cripta, que é uma espécie de invólucro, [...] onde a palavra foi sepultada para que se possa omitir o sofrimento, através de uma ilusão. Dessa forma, a cripta guarda o trauma e conserva a situação vivida através de uma clivagem do eu. Assim, transmite-se o segredo, a proibição de falar. O sujeito carrega algo, um silêncio ruidoso. Uma cripta é transmitida [de uma geração à outra] apesar das palavras, na ausência delas. (Berenstein, 2018)

Pode-se também estabelecer outras articulações dessas ideias com a noção de transmissão intergeracional, através, de um lado, das introjeções e, do outro, da transmissão transgeracional (Kaès, 2014), na qual predomina a falta de simbolização dos conteúdos encriptados, que vão assombrar as gerações seguintes.

Nicolas Abraham e Maria Torok esclarecem que os dois mecanismos de introjeção e de incorporação estão presentes nos sujeitos psíquicos, mas há casos em que os conteúdos encriptados predominam. O processo analítico caminha sempre no sentido de dar algum destino aos conteúdos incorporados e encriptados, favorecendo o fluxo afetivo e associativo e permitindo o acesso à narração e à construção de uma história que possa ser processada.

Na verdade, os conteúdos incorporados estão tão congelados que só podem ser acessados através da ação de uma outra pessoa: é preciso contar com uma escuta sensível que salve o que se encontra encriptado e congelado através de uma atitude oposta à indiferença e ao desmentido.

A identificação com o agressor funciona, pois, ao modo de uma incorporação, é algo que precisa ser nomeado e desencriptado. A identificação melancólica, que também precisa ser desconstruída e questionada, estaria do lado dos processos de incorporação, ao passo que poder aceitar a violência dos acontecimentos e a tragicidade do destino pode levar a realizar um luto, que seria o processo que estou associando à introjeção e ao encontro de uma relativa liberdade.

A citação de um trabalho meu pode ajudar a abrir esse caminho:

O luto será pensado em termos de movimento e passagem; na melancolia, dá-se um impasse, algo para: o objeto se foi e o eu se condena a não poder ser, a não poder fazer mais nada. A sombra do objeto cai sobre o eu. Ao ver-se julgado e condenado, o eu patina em uma inércia longa, desesperadora. O sentimento de inferioridade esmaga o desejo de ir em frente. A sensação de não poder ser cria um enclave no eu: já não é mais possível amar nem trabalhar, e os traços do luto - desânimo, perda de interesse pelo mundo e perda da capacidade de amar - tornam-se eternos, longos, intermináveis. Do lado do luto, surge a ideia de um trabalho de elaboração para deixar passar o passado e abrir o futuro. [Para isso é preciso]: Aceitar a perda, a mudança, a facticidade do destino. Os antigos falavam em Amor fati, que exige conviver com a realidade da morte, da separação, da perda e da falta. (Cintra, 2017, p. 134)

Mas trata-se de conviver com a dor para transformar a perda em algo novo, para sair do impasse em que o eu se viu aprisionado.

Estou, portanto, associando a possibilidade de fazer um luto com a dissolução dos conteúdos encriptados. Por outro lado, a permanência dessas criptas é o que acontece quando predominam processos de identificação com o agressor, nos quais o ego está clivado entre agressor e agredido. Como superar esse dinamismo complementar na direção da construção de relacionamentos mais paritários e libidinais?

Vejamos se a teoria kleiniana pode nos ajudar a pensar nas identificações com o agressor, a identificação melancólica e o superego pulsional quando comparadas com as identificações egoicas e superegoicas que resultam do luto e da elaboração do complexo de Édipo durante a posição depressiva.

 

Klein: identificações formadoras de ego e do superego

Diferenciar entre o processo de formação das identificações do ego e as do superego é algo que foi desenvolvido de forma insatisfatória tanto na obra de Freud quanto na de Klein. Na posteridade desses autores, as origens do ego e do superego suscitaram uma infinidade de teorias e leituras, mas não caberia aqui fazer um inventário de todas essas possibilidades.

A contribuição de Klein surge não de uma simples diferenciação da identificação superegoica e egoica, como se existissem isoladamente, mas pode ser mais bem apreciada se considerarmos o seu estilo de compreender os processos psíquicos. O que desejo enfatizar é que a contribuição maior dessa autora provém de uma visão dinâmica do funcionamento psíquico: em seu pensamento, figuras superegoicas e egoicas pertencem a cenas internas e tramas de relações, que dão origem a "situações totais". Ela nos obriga a pensar em campos de tensão e personagens interagindo nos teatros do eu. Nesse sentido, em vez de separar as identificações egoicas e superegoicas umas das outras, é preciso compreendê-las em suas diferentes clivagens e articulações, formando cenas internas de qualidades diferentes.

As cenas esquizoparanoides são diferentes das cenas da posição depressiva. Portanto, em cada uma delas, haverá um modo diferente de configurar a relação entre superego e ego. Na posição esquizoparanoide, em que predominam os processos de cisão, essas clivagens criam figuras superegoicas arcaicas e cenas sadomasoquistas, como foi descrito para a melancolia, criando o psiquismo como um sistema que tende a se fechar sobre si mesmo. O dinamismo sadomasoquista com tonalidade oral ou anal tende a criar uma clivagem entre um agressor e um agredido que se manifestam de forma alternada, mas os pares complementares se autoalimentam e, quando um aspecto predomina, o outro fica menos evidente, mas ainda é necessário para sustentar o par antitético. Predomina aqui um modo de relação narcísica e uma forma de narcisismo de morte.

Ocupar o lugar de vítima acaba dando ao sujeito o "direito" (imaginário) de se vingar da violência sofrida: isso alimenta uma intensificação e uma perseveração da clivagem entre os polos ativo-passivo. O aparelho psíquico tende a se fechar à influência de novas experiências que poderiam mediar, suavizar e transformar o impasse devido ao automatismo que se instala. As clivagens aqui são mais próximas ao que Freud descreveu como o retorno sobre si, a inversão em seu contrário, e funcionam de modo semelhante à Verleugnung e à Verferfung. Na atualidade podemos discernir esse modo de funcionamento psíquico subjacente às relações abusivas e às muitas situações de bullying sofridas pelo sujeito (ou em termos metapsicológicos, impostas ao eu).

Na posição depressiva, em que predominam processos de integração, o mecanismo de identificação com o agressor encontra-se mais diluído, e a figura superegoica se aproxima das "potências protetoras do Destino", como dizia Freud ao se referir a uma dimensão benigna do superego pós-edípico. Aqui as clivagens são mais porosas, o superego é porta-voz de limites e, ao mesmo tempo, permite a criação de um espaço potencial, lugar de negociação entre as instâncias. "Há uma maior articulação, instaura-se a dimensão simbólica e uma lei que circula melhor entre o "não" das interdições e o "sim" dos ideais do eu, abrindo projetos e caminhos para a realização do desejo. O aparelho psíquico tende a ficar mais aberto a novas experiências e, ao lidar com diferenças e alteridades, tende a se ampliar. Uma porção maior do Id e do recalcado pode ser assimilada ao eu, e as figuras mais sádicas do superego tendem a se suavizar e a se transformar. As clivagens aqui se aproximam mais do dinamismo da repressão, e os mecanismos de sublimação e reparação operam mais livremente.

Vejamos de forma breve onde encontramos noções de clivagem antes de Melanie Klein. A ideia de linhas de clivagem potenciais, dando origem a uma futura estrutura psíquica, está presente no pensamento de Freud desde o início, quando ele formula a ideia de uma tópica do aparelho psíquico, a noção de repressão e a própria noção de negação presente em todas as outras defesas, inclusive naquelas anteriores à repressão, como na reversão em seu contrário e na inversão contra a própria pessoa.

Freud desenvolve a ideia de que o aparelho psíquico se complexifica a partir de clivagens e pode ser então dissecado em instâncias. Isso acontece desde os primeiros modelos tópicos de Freud até o fim de sua vida, quando escreve que o doente mental pode ser comparado a um cristal: "Se lançamos um cristal ao chão, ele se quebra, mas não arbitrariamente; ele se parte conforme suas linhas de separação, em fragmentos cuja delimitação, embora invisível, é predeterminada pela estrutura do cristal" (Freud, 1933/2009, p. 194). Digamos que essas metáforas estão situadas predominantemente no campo de um espaço psíquico.

Entretanto, durante a década de 1910, a ideia de um mapa psíquico formado por sucessivas clivagens começa a dar espaço a um vértice dinâmico, sobretudo em Luto e melancolia. Como surge o superego? Antes da formalização do superego em 1923, a noção mais importante para pensarmos a origem dessa instância é a ideia de uma voz da consciência, gerada por uma clivagem, tal como Freud (1917/2010) a formulou no caso da melancolia: a clivagem do eu em uma voz autoritária, acusadora e sádica de um lado e, do outro lado, uma dimensão do ego esmagada sob a sombra dessa voz portadora de críticas e desautorizações.

Melanie Klein, que começava a pensar psicanaliticamente em 1914, mergulha nessa descrição dinâmica de Luto e melancolia e, a partir da noção de "voz" e de "objetos internos" que possuem um caráter "animado", começa a pensar o funcionamento psíquico, o que a leva a criar a teoria das posições esquizoparanoide e depressiva. O que interessa a nós nessas mudanças é poder recolocar a questão do ego e do superego na perspectiva desse conjunto dinâmico de angústias, defesas e relações de objeto que farão diferença ao pensar a origem e as diferenças das identificações formadoras dessas instâncias psíquicas.

A prévia descrição espacial do aparelho psíquico dividido em instâncias começa então a dar lugar à dimensão de um psiquismo habitado por vozes, processos e objetos internos. Ao ler Luto e melancolia, o modelo do luto como um paradigma da saúde e o modelo da melancolia como um paradigma da patologia que, no entanto, coexistem sem se superarem completamente, inspirou Klein a pensar o dinamismo processual das posições.

A posição depressiva foi associada à elaboração de lutos e acabou se articulando à elaboração do complexo de Édipo, com a aceitação da castração e dos limites e com a formação de um superego como instância da lei e caminho de acesso ao simbólico. Do outro lado, a posição esquizoparanoide foi relacionada à melancolia, à paranoia e à esquizofrenia e ficou associada à formação de um superego pulsional e de ideais arcaicos.

Na posição esquizoparanoide, os objetos são sempre idealizados: sendo excessivamente bons ou maus, tornam-se inassimiláveis pelo ego, caracterizando as formações mais arcaicas do superego, que funcionam como enclaves, atravessando o aparelho psíquico e dificultando a constituição de um espaço psíquico, onde possa acontecer a edição do vivido. Abaixo, reescrevo trechos de um capítulo do meu livro Por que Klein?:

os objetos bons e maus excessivamente idealizados são objetos parciais, que respondem ao dinamismo da etapa sádico-oral e sádico-anal. Compõem os estratos mais arcaicos do superego pulsional e tratam o ego (e as outras pessoas) de forma vampiresca, como se fossem um objeto oral a ser devorado e cuspido ou um objeto fecal que se retém, para maltratar e torturar ou para expulsar sem nenhuma consideração... O objeto ficará a serviço do eu, para ser consumido ou expelido; ele será um objeto oral e anal, ao mesmo tempo: este tipo de vínculo é muito intenso e muito frágil! Intenso, pela idealização que comporta, pela "invenção" do outro de acordo com um roteiro narcísico, e por que atrai toda a libido para devorar, expulsar ou confundir-se plenamente com a outra pessoa ou ideal. Esse vínculo é frágil, pois basta que o objeto se diferencie um pouco do roteiro imaginário para ele designado para que tudo se quebre em mil pedaços: surge então nas bordas desta ruína uma grande intensidade de ódio, decepção, ressentimento e rancor. (Cintra, 2017, p. 133)

Na melancolia e no trauma de abuso, as identificações se aproximam daquelas que levam à construção do superego arcaico. São narcísicas, decorrem de objetos parciais e predomina nelas o dinamismo sádico oral e sádico anal. Podemos aproximá-las ao que estamos chamando de incorporação (Abraham & Torok, 1995), que seria regido pela pulsão de morte. Em contraste com isso, a introjeção (Ferenczi, 1909/1992) seria um processo regido pela libido e decorrente dos processos de luto que definem a posição depressiva.

No pensamento de Klein, a "firme introjeção do objeto bom", que assinala um predomínio de libido e é a condição para entrar na posição depressiva, tem uma clara inspiração na noção ferencziana de introjeção. É nessa posição depressiva que é possível abrir mão da onipotência e da possessividade e se pode introjetar "as potências protetoras do Destino". A expressão vem de Freud ao se referir à formação de um aspecto benigno do superego pós-edípico, que nasce da identificação com a autoridade parental em sua dimensão benigna e fora de uma perspectiva moral: trata-se da função parental de cuidar e amar, que protege a criança de ficar abandonada a seu desamparo. A criança precisa gradualmente se autorizar a cuidar de si, e a mãe precisa ceder espaço a ela, saindo da posição de ser a única que pode cuidar. Só quando a mãe e a criança renunciam, portanto, à sua onipotência é que podem assumir uma autossuficiência necessária e o poder de se libertarem do circuito complementar do par "quem cuida e quem é cuidado", que pode sempre ser extraviado e se tornar uma tensão entre "quem manda/quem obedece", "quem agride/quem é agredido". O extravio acontece quando os papéis ativo e passivo se cristalizam, obrigando a mãe e a criança a permanecerem em uma relação dual de domínio e submissão, que tende a se fechar sobre si mesma.

Com Klein é possível então pensar a identificação com o agressor como algo que acontece dentro do dinamismo de uma posição esquizoparanoide: há uma formação de um par complementar agressor-agredido que tende a se cristalizar, sendo que o sujeito pode estar a cada momento em uma posição ou na outra, mas nenhum dos dois consegue se libertar desse dinamismo mortífero. Essa é uma dinâmica regida pela pulsão de morte.

A posição depressiva seria o caminho de criação de um outro tipo de identificação com o encontro de saídas, ainda que parciais, ao impasse de permanecer preso ao dinamismo centrípeto e sádico anal.

Além da identificação com o agressor, que se manifesta em uma face ativa e outra passiva, pode existir também, em Ferenczi, uma terceira identificação com o surgimento psíquico de uma parte autocuidadora, identificada com as funções materna e paterna e com a função analítica. Essa identificação representa uma busca de sair do impasse vítima-algoz e envolve mecanismos de reparação e de transformação do dilaceramento do trauma, procurando modular a força das paixões, cuidar e suturar as feridas narcísicas e agir de forma a realizar reparações ali onde o objeto externo falhou.

o mais estranho é ver funcionando no decorrer da identificação um segundo mecanismo, sobre o qual eu, pelo menos, não sabia grande coisa. Refiro-me à eclosão surpreendente e súbita, como ao toque de uma varinha mágica, de faculdades novas que surgem em resultado de um choque. (Ferenczi, 1933/2011, p. 119)

Ou seja, um dos efeitos das situações traumáticas é o surgimento de novas faculdades na criança, disposições latentes ainda não despertadas.

Uma aflição extrema e, sobretudo, a angústia de morte parecem ter o poder de despertar e ativar de súbito disposições latentes, ainda não investidas e que aguardavam tranquilamente sua maturação. A criança que sofreu uma agressão sexual pode, de súbito, sob a pressão da urgência traumática, manifestar todas as emoções de um adulto maduro, as faculdades potenciais para o casamento, a paternidade, a maternidade, faculdades virtualmente pré-formadas nela. Neste caso, pode-se falar, simplesmente, para opô-la à regressão que falamos de hábito, de progressão traumática (patológica) ou de prematuração (psicológica). Pensa-se nos frutos que ficam maduros e saborosos depressa demais, quando o bico de um pássaro os fere, e na maturidade apressada de um fruto bichado. (Ferenczi, 1933/2011, p. 119)

Penso que essa progressão traumática e o súbito surgimento de disposições latentes para curar e reparar precisam ser mais bem estudadas na obra de Ferenczi. No Diário clínico, ele faz referência à Orpha,2 um fragmento psíquico que resulta do trauma e tem a função de preservar a vida em situações de grande violência. Formando-se em momentos de extremo desamparo, ou na proximidade da morte, a Orpha permite uma reorganização eficaz das pulsões de vida, quando se perdeu a esperança na chegada de qualquer forma de ajuda proveniente do mundo externo. Em situações extremas, essa clivagem do eu a serviço da vida pode também levar a um sonho típico:

No plano não só emocional, mas também intelectual, o choque pode permitir a uma parte da pessoa de amadurecer de repente. Recordo-lhes o sonho típico do "bebê sábio", que isolei há tantos anos, em que um recém-nascido, uma criança ainda no berço, põe-se subitamente a falar e até a mostrar sabedoria a toda a família. O medo diante de adultos enfurecidos, de certo modo loucos, transforma por assim dizer a criança em psiquiatra; para proteger-se do perigo que representam os adultos sem controle, ela deve, em primeiro lugar, saber identificar-se por completo com eles. É incrível o que podemos realmente aprender com as nossas "crianças sábias", os neuróticos. (Ferenczi, 1933/ 2011, p. 120)

Essa capacidade de aprender com os neuróticos revela a convicção de Ferenczi de que o analista precisa se tornar vulnerável ao outro e à sua própria dimensão de criança traumatizada, para que a análise possa ter êxito. Isso nos lembra da figura de Asclépio, o médico ferido: ele se tornou capaz de curar por ter feito a travessia da sua dor. Dizia-se, no passado, que "pensar uma ferida" era limpar e passar nela os remédios que a poderiam fechar.

 

Considerações finais

Voltar a Freud, Ferenczi, ao casal Nicolas Abraham e Maria Torok e a Melanie Klein tem o propósito de trazer maiores elucidações à noção de identificação com o agressor, de forma a entender a natureza mortífera e a dinâmica pulsional, sem mediações simbólicas, que regem esse mecanismo de defesa.

Meu objetivo foi demonstrar que a identificação com o agressor não pode ser entendida unicamente como o movimento de "tornar-se, um dia, um agressor", mas envolve a entrada em modos de funcionamentos típicos da oralidade e da analidade, do sadismo e do masoquismo, criadores de estados confusionais, com níveis de indiferenciação entre sujeito e objeto e que envolvem exigências absolutas: submeter-se ao outro para não perdê-lo ou triunfar sobre ele para não ser por ele derrotado.

O abusado assume em si mesmo a falta, a culpa, a enormidade do abuso. Precisa limpar o outro da sua falta, idealizá-lo e desculpá-lo pois não conseguiria continuar a amá-lo se não fizesse isso. Mas, ao negar o seu ódio ao outro, transformando-o em auto-ódio, a cena do abuso é preservada inteira, e a dinâmica de ódio acaba consumindo o amor que ainda restava.

Quis ressaltar o valor das posições esquizoparanoide e depressiva que nos permitem pensar que há dois superegos - um arcaico e melancólico e outro pós-edípico, porta-voz da lei e do simbólico. Que há um eu ideal, decorrente de um narcisismo primário e, do outro lado, ideais do eu que surgem de um narcisismo secundário e podem ser associados ao que Freud chamou de potências benignas do destino. Estes últimos são manifestações de uma autoridade parental que se situa fora do campo das interdições morais, mas se define pela capacidade de cuidar, reparar e abrir espaço para conviver com as alteridades do mundo. E essas diferentes facetas da figura do superego precisam ser consideradas ao pensar a identificação com o agressor.

O que resta é um grande desafio para a tarefa terapêutica:3 o que fazer para sair do impasse criado pelas identificações mais arcaicas? Um trauma decorrente de abuso e de abandono afetivo nunca poderá ser completamente elaborado e esquecido, mas, de forma paradoxal, precisa ser esquecido para dar lugar à vida e para encontrar descanso da loucura. O sujeito traumatizado precisará encontrar alguém com quem compartilhar a sua dor. A sua loucura precisará ser narrada, transformada em prosa e poesia, em rima, em canto, ritmo e melodia para se tornar audível, para ser superável, ao menos em alguma dimensão. Pois algo do traumático permanece sempre não elaborável.

Freud, Ferenczi, Klein, Winnicott e outros analistas nos ajudaram a nos darmos conta de que o aparelho psíquico existe, antes de mais nada, para metabolizar o vivido, para deixá-lo passar, para esquecer, condição esta sine qua non para que se possa, mais tarde, lembrar. Deixar passar o passado e poder sonhar, eis dois critérios freudianos de saúde mental. Pois então será possível rir e chorar de verdade, entrar na dinâmica do jogo e do senso de humor. É preciso encontrar passagens e saídas para escapardos enclaves melancólicos e da identificação com o agressor.

 

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Endereço para correspondência:
ELISA MARIA DE ULHÔA CINTRA
Rua Vargem do Cedro, 201/ 112
01252-050 - São Paulo-SP
tel.: 11 97152-1119 / 3086-4016
elcintra01@gmail.com

Recebido 09.09.2018
Aceito 14.10.2018

 

 

1 Vali-me de um texto sobre o pensamento do casal húngaro, da jovem analista Ilana Safro Berenstein (2018), que me foi apresentada por minha orientanda Vanessa Chreim.
2 Ver mais informações sobre a Orpha no trabalho de R. Soreanu (2018).
3 Na busca por sair desses impasses, penso que na linhagem iniciada por Ferenczi, eu situaria como extremamente importante a contribuição de Winnicott. A noção de transicionalidade e a noção de uma destrutividade primária que precisa se expressar, encontrando um objeto que possa sobreviver a ela, são fundamentais para encontrar saídas aos impasses aqui apontados. E a partir de Winnicott, André Green, René Roussillon e autores mais recentes como Jessica Benjamin são os que começaram a delinear um pensamento clínico para lidar com os enclaves identificatórios originados pelo trauma.

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