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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.42 no.69 São Paulo jan./jun. 2020
RESSONÂNCIAS DA ENTREVISTA
A scene for the interview
Rô Reyes
Autora, diretora e atriz de teatro. Diretora do projeto Casa Via Magia. Doutora em arte-educação pela Universidade de Campinas (Unicamp), mestre em educação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e mestre pelo Goddard College Graduate Program - Theather Education Project, nos Estados Unidos, licenciada em pedagogia e com formação em psicanálise / E-mail: roreyes2009@gmail.com
RESUMO
O jornalista George Sylvester entrevista Freud em sua residência de verão, onde está convalescente e sendo cuidado carinhosamente por sua filha e por Paula, a governanta. Fica evidente sua proximidade com o universo feminino na relação com elas e na visita de Lou Salomé. Sylvester quer saber mais da história de vida e das ideias atualizadas do criador da psicanálise. Mostra-se encantado com o legado cultural da psicanálise, mas questiona sua eficácia no sentido de incrementar a felicidade humana, já que sua investigação revela nosso lado obscuro. Freud fala de si mesmo, da vida e da morte regendo igualmente o mundo, do que a clínica pode contribuir e onde será insuficiente para garantir felicidade permanente, dadas as divisões psíquicas, assim como os conflitos humanos intermináveis com relação às exigências e restrições culturais.
Palavras-chave: Psicanálise. Legado. Vida. Eros. Morte.
SUMMARY
Journalist George Sylvester interviews Freud at his summer residence, where he is convalescing and lovingly cared by his daughter and Paula, the housekeeper. It's evident his proximity to the female universe in the relationship with them and in the visit of Lou Salomé. Sylvester wants to know more about the life story and updated ideas of the creator of psychoanalysis. He is delighted with the cultural legacy of psychoanalysis, but questions its effectiveness in terms of increasing human happiness, as his investigation reveals our dark side. Freud speaks of himself, of life and death equally governing the world, of what the clinic can contribute and where it will be insufficient to guarantee permanent happiness, given the psychic divisions and endless human conflicts regarding cultural demands and restrictions.
keywords: Psychoanalysis. Legacy. Life. Eros. Death.
Antes de iniciar este texto dramático (repensado para apreciação das pessoas de modo geral e não endereçado à gente de teatro), preciso pedir-lhes uma licença poética, quer dizer, dramática. Essa cena fez parte da montagem de um espetáculo, O mal-estar na civilização (imagens e fôlder ilustram o texto), há quase vinte anos, que trazia os últimos trinta anos da vida de Freud. Retomando-a para uma segunda versão, com desejo de compartilhá-la com vocês, percebo que não tenho clareza da origem de certas informações, qual delas teria sido encontrada em qual fonte, se da leitura de biografias ou de estudo dos textos de Freud; se do filme Freud além da alma ou do seu roteiro escrito por Sartre; ou ainda se foram informações advindas de conversas com amigos/amigas psicanalistas.
Juntei circunstâncias ao texto da entrevista de George Sylvester para compor o drama, resultando em momentos que não aconteceram de fato, ou pelo menos não daquela maneira, ou não naquele momento, por isso são consideravelmente fictícios. É o caso da visita de Lou Salomé a Anna, supostamente para uma sessão, que substituiu a saída do paciente de Anna, também supostamente de uma sessão, conforme o que está registrado na entrevista de Sylvester. Também é o caso do momento inicial da cena, da coleta dos cogumelos.
Seria bom considerar que, além de Freud, os demais personagens desta cena também trazem elementos imaginários. A mobilização de conflitos subjetivos do jornalista que a presença de Freud teria provocado; a relação exuberante de Freud e Lou Salomé; a relação edípica evidente entre Freud e sua filha Anna; tudo isso, assim como o relato da governanta Paula, que de fato escreveu um livro sobre o que viveu na casa do professor, foi apreciado pelo véu da fantasia e inclui emoção, para não dizer projeção.
Pensando no protagonismo do personagem Freud aqui, é oportuno retornar a ele, também como forma de assumir a construção dessa cena híbrida, esse ambiente suposto de diálogo com as inquietudes de um jornalista quando fala de suas ideias, até hoje incompreendidas e impactantes. Porque Freud afirmou que toda biografia é uma forma de ficção. O imaginário relacionado ao nosso herói tornaria sempre a representação mais nossa do que dele próprio. A paixão que nos liga ao herói nos remeteria às nossas relações originais - penso em tudo o que essas relações tiveram de estruturantes, de amorosidade e prazer, mas também de desproporção, dependência e sobrecarga de afetos.
Freud é pensador e figura humana que sempre me interessou, desde muito jovem. Mergulhei em processos clínicos psicanalíti-cos cedo, e a psicanálise alcançou minha experiência de trabalho também, com o teatro e com a educação. Sem dúvida, é um dos meus heróis. Desta vez, pescando informações, palavras e frases também na tradução da versão ampliada desta entrevista, foi interessante observar como interferir nas falas do criador da psicanálise pôde soar-me uma ousadia.
Na versão para o palco, embasada na versão condensada desta entrevista, fiz pequenas modificações de linguagem, mais adaptações no linguajar e na sequência dos diálogos, pequenos cortes de texto. Nessa segunda transformação textual da entrevista original para a dramaturgia, estão explicitados, nas rubricas que acrescentei, mais elementos associados à ação e às intenções dela; à atmosfera dessa interlocução; à intimidade da morada de Freud e sua família.
Por fim, conto-lhes que, ao reescrever essa cena, surpreendi-me com a relação entre as palavras sexo e amor, consideradas de certa forma como equivalentes nesse discurso de Freud. No Banquete de Platão, Lacan chama nossa atenção, a palavra amor é substituída pela palavra desejo, sem nenhuma justificativa para essa mudança na narrativa. Nessa entrevista, registro de oralidade e contato humano direto, parece-me que Freud vai numa espécie de direção inversa, ao substituir o termo sexo pela palavra amor. De uma forma ou de outra, estão amalgamados amor/desejo e sexo/amor. Então, por outro lado, se o amor e a morte, juntos, governam o mundo, conforme Freud diz ao jornalista, podemos entender que é Eros a vida.
É conhecido o mito grego de Eros e Tânatos, quando as flechas de um e de outro se misturaram, após uma noite em que Eros, exausto, dormiu, ignorando estar na caverna em que morava o deus da morte. No dia seguinte, Eros levou algumas flechas do deus da morte e deixou algumas das suas misturadas com as dele, pois eram muito parecidas. Por isso é que pode acontecer (e há quem diga frequentemente) de pessoas idosas, e até moribundas, se apaixonarem, serem tocadas por Eros, assim como corações jovens serem capturados por Tânatos. Dessa for-ma, vida e morte estão presentes sempre, ainda que em medidas diferentes. Freud, nessa entrevista, diria que sim, estão sempre presentes e são igualmente potentes.
Parece-me que, ao encarar a pulsão de morte ganhando terreno em sua vida, não somente por conta de seu envelhecimento, mas também por seu adoecimento e pela guerra, Freud pode vê-la como uma força tão presente como a pulsão de vida.
Mas, apesar de seu drama pessoal, permaneceu atendendo seus pacientes, tomando sua própria experiência clínica como objeto de estudo; permaneceu ativo, atento, pesquisando e escrevendo, sempre dedicado e interessado em compreender mais a alma humana, até praticamente o fim de sua vida.
Freud, nessa encenação, é um personagem sofrido, contudo amoroso. Um sábio que sabe que não sabe muita coisa, que vislumbra muito caminho a ser percorrido a partir do que desvela; que havia perdido a inocência ao enfrentar a dor em muitos planos de sua história pessoal, inclusive pela grande rejeição à psicanálise criada por ele, especialmente por parte de cientistas e pensadores.
Um personagem desbravador dos enigmas da existência que, no diálogo com esse jornalista, pôde expressar sofrimento e ressentimento, mas também prazer com seu trabalho, no convívio com as pessoas queridas, com a natureza e com a poesia. Pois foi dessa forma, entre Eros e a morte, que Freud ainda viveu mais treze anos. Eros, que foge do aniquilamento e quer prazer eterno, e Tâ-natos, que fecha o ciclo da luta pela vida com o descanso da morte.
UMA CENA PARA A ENTREVISTA
PERSONAGENS:
Freud, criador da psicanálise
Anna, filha de Freud
Paula, a governanta
George Sylvester, o jornalista
Lou Salomé, amiga de Freud e analista de Anna
ÉPOCA: 1926
LUGAR: Casa de verão de Freud nos Alpes austríacos
(Residência de verão nos Alpes austríacos. Freud caminha com sua filha Anna e com Paula, procurando cogumelos pelo jardim. Parece envelhecido, está convalescente, pois acabara de se submeter a uma intervenção cirúrgica devido a uma doença maligna na mandíbula superior. Desde então, leva implantado um aparelho para facilitar a articulação. Mesmo assim, Freud tem grande alegria com momentos como este)
QUADRO 1 - FREUD FERIDO
ANNA
(Mostrando para Paula)
Olhe aquele...
FREUD
(Animando Anna e Paula a coletarem os cogumelos) Deve haver muitos por aqui... Vão catando.
(Anna mostra-os a Freud, que faz um gesto conhecido delas: joga o chapéu para cima, comemorando. Anna festeja com o pai e, em seguida, entrega os cogumelos à Paula)
ANNA
(Para Paula) Vamos levar para cozinhá-los.
PAULA
(Rindo)
Como o senhor sabe se não são venenosos, professor?
FREUD
(Rindo)
Depois que você experimentar, você vai saber...
JORNALISTA
(Para si mesmo e para o público)
Existe outro mortal, que como Freud, tenha estado tão próximo de encontrar uma explicação para o insondável mistério do comportamento humano?
(Jornalista chega à casa de Freud e é recebido por Paula, depois por Anna)
PAULA
Boa tarde. Entre, por favor. Vou avisar ao professor.
JORNALISTA
Boa tarde. Pois não.
(Entra Anna)
ANNA
Boa tarde.
JORNALISTA
Boa tarde. Como está?
ANNA
Gostaria de lhe antecipar que meu pai não deveria estar falando muito. Teve um grande alívio da dor que sentia, mas não pode abusar da fala. Por isso, por favor, não deixe que se canse demais. (Entra Freud, sai Anna) Com licença.
FREUD
(Com cortesia impecável)
Olá. Como está o senhor? (Freud faz um gesto que convida o jornalista a se dirigir ao jardim, anda após esse, mas o interrompe quando ele ensaia falar algo) Detesto esta mandíbula mecânica. A luta com esse mecanismo me faz desperdiçar uma energia preciosa. Mas prefiro ter uma mandíbula mecânica do que não ter nenhuma, a sobrevivência à extinção. (Freud aponta a poltrona para o jornalista se sentar, depois se acomoda também) Talvez, ao tornarem a vida impossível conforme envelhecemos, os deuses estejam mostrando compaixão. Afinal, a morte nos parece menos intolerante que as múltiplas cargas que suportamos.
(Jornalista observa a face contraída de Freud, como se ainda sentisse dor na mandíbula)
JORNALISTA
(Fala para si mesmo e para o público, enquanto Freud acende um charuto)
Freud não pode admitir que o destino o trate com tal dureza.
FREUD
(Como se tivesse ouvido o pensamento do jornalista)
Por que deveria esperar um tratamento especial? A velhice chega para todos. Não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, vivi 70 anos. (Sentindo alívio da dor física após sentar-se na poltrona) Sempre tive o suficiente para comer. Desfrutei de muitas coisas: da camaradagem de minha mulher, de meus filhos, do pôr do sol... (Meio chistoso) De vez em quando tenho a satisfação de apertar uma mão amiga. (Mais chistoso) Em algumas ocasiões encontrei seres humanos que quase chegaram a me compreender. (Sereno) Que mais se pode pedir?
QUADRO 2 - FREUD RESSENTIDO
JORNALISTA
(Contra-argumentando entusiasmado com a influência freudiana expandida)
O senhor alcançou a fama. Seu trabalho influi na literatura de todos os países. (Vangloriando-se de como é bem informado) O homem vê a si próprio e contempla a vida com outros olhos graças ao senhor. E agora o mundo se uniu para prestar-lhe uma homenagem. (Provocativo) Exceto sua própria universidade.
FREUD
(Beirando a rispidez)
Se a Universidade de Viena me tivesse oferecido seu reconhecimento, somente me teria envergonhado. Não existe razão alguma pela qual devam reconhecimento a mim ou à minha doutrina só porque faço 70 anos. (Ressentido) A fama chega depois da morte, e, francamente, o que ocorrer depois da minha não me preocupa.
JORNALISTA
(Desconfiado da recusa de reconhecimento)
Para o senhor não significa nada que seu nome sobreviva?
FREUD
(Aparentemente resignado)
Nada em absoluto. O futuro dos meus filhos me interessa. Espero que a vida deles não seja tão dura. Eu não posso torná-la mais fácil. A guerra praticamente acabou com a minha modesta fortuna, a poupança de toda uma vida. Por sorte, minha velhice não é carga muito pesada. Meu trabalho ainda me dá prazer. (Começa a tocar uma planta que está ao lado de sua poltrona. Pausa, silêncio. Volta a falar, olhando as plantas) Interessa-me muito mais esta planta do que qualquer coisa que possa ocorrer quando eu já estiver morto.
JORNALISTA
(Insistindo)
Não deseja a imortalidade?
FREUD
(Desiludido)
Sinceramente, não. Quando alguém percebe o egoísmo por trás de toda conduta humana, não sente o menor desejo de renascer. Nossa vida é uma luta interminável entre o ego e seu ambiente. Satisfaz-me saber que o eterno aborrecimento da vida finalmente passará.
(Acontece um intervalo na conversa, Freud parece cansado)
QUADRO 3 - FREUD VIVO
JORNALISTA
Então o senhor é, afinal de contas, um profundo pessimista?
FREUD
(Pensativo)
Não, não sou. Não permito que nenhuma reflexão filosófica estrague a minha fruição das coisas simples da vida. Sou razoavelmente feliz porque agradeço a ausência de dor e desfruto dos pequenos prazeres da vida, da presença de meus filhos e das minhas flores. (Toca as flores e reanima-se à reflexão) É possível que a própria morte seja uma necessidade biológica. Cada ser vivo, por mais forte que arda nele o fogo da vida, tende ao Nirvana, deseja que a febre chamada vida chegue ao seu fim. Do mesmo modo que no nosso interior convive simultaneamente o ódio e o amor por uma pessoa, a vida combina o desejo de sobrevivência com um ambivalente desejo de aniquilação. Como um elástico que tem a tendência de recuperar sua forma original, a matéria viva, consciente ou inconscientemente, deseja conseguir de novo a inércia total e absoluta da existência inorgânica. O desejo de morte e o desejo de vida convivem em nosso interior. A morte é o par natural do amor. Juntos governam o mundo. Talvez pudéssemos vencer a morte se não fosse pelo aliado que ela tem dentro de nós. (Sorrindo) Assim, poderíamos dizer que toda morte é um suicídio encoberto.
PAULA
( Trazendo o casaco de Freud)
Está ficando frio, professor.
(Paula ajuda Freud a vestir o casaco.
Os três entram. Ela os serve chá e biscoitos)
JORNALISTA
(Olhando escritos sobre a mesa)
Em que o senhor está trabalhando atualmente?
FREUD
Escrevo uma defesa da psicanálise secular. Pretendem tornar ilegal a prática por pessoas que não sejam médicos em exercício.
JORNALISTA
O senhor teve apoio dos leigos?
FREUD
Alguns dos meus melhores discípulos são leigos.
JORNALISTA
O senhor já se analisou?
FREUD
Obviamente. O psicanalista deve analisar-se constantemente. Aumenta nossa capacidade de analisar os outros. (Rindo) O psicanalista é como o bode expiatório dos hebreus. Os demais depositam nele os seus pecados.
JORNALISTA
Tenho a impressão de que a psicanálise desperta em seus praticantes o espírito da caridade cristã. Não há nada na existência humana que a psicanálise não nos ajude a compreender. E compreender tudo é perdoar tudo.
FREUD
(Severamente)
Pelo contrário! Compreender tudo não é perdoar tudo. A psicanálise ensina o que podemos suportar e o que devemos evitar. Tolerar o mal não é em absoluto uma consequência do conhecimento.
JORNALISTA
(Para o público, levantando-se agitado, enquanto Freud reacende o charuto)
A noção de retidão de Freud é herança de seus antepassados. É uma herança cultural da qual ele tem orgulho.
FREUD
(Indignado)
Meu idioma é alemão. Minha cultura e minhas conquistas são alemãs. Intelectualmente, eu me considerei alemão até perceber que os preconceitos antissemitas iam aumentando na Alemanha e na Áustria. A partir de então, deixei de considerar-me alemão. Prefiro definir-me judeu.
JORNALISTA
(Para o público, desapontado)
O espírito de Freud deveria voar mais alto, acima de qualquer preconceito racial e permanecer à margem do rancor pessoal. (Surpreendendo-se) No entanto sua cólera o faz humanamente muito mais atraente. Aquiles seria intolerável, não fosse seu calcanhar! (Voltando-se para Freud) Agrada-me descobrir, professor, que o senhor também tem seus complexos.
QUADRO 4 - FREUD AMOROSO
FREUD
Nossos complexos são causas de nossas fraquezas; mas também, constantemente, são a nossa fortaleza.
JORNALISTA
(Ansioso, emocionado)
Imagino quais seriam os meus complexos!
FREUD
Uma análise pode durar dois ou três anos... (Interpretando-o, provocativo) Você tem se dedicado a entrevistar pessoas de destaque, como Roosevelt, Bernard Shaw...
JORNALISTA
(Rindo, lisonjeado)
É parte do meu trabalho.
FREUD
Mas é também sua preferência. O grande homem é um símbolo... A sua busca é a busca do seu coração. Você pode estar procurando o grande homem para ocupar o lugar de seu pai.
(O jornalista balança a cabeça discordando, embora sorrindo gentilmente)
JORNALISTA
(Seduzindo o mestre)
Gostaria de poder ficar aqui o bastante para vislumbrar meu coração através de seus olhos. Talvez, como a Medusa, eu morresse de pavor ao ver minha própria imagem. (Defendendo-se, arrogante) Mas tenho medo do que pode significar estar muito informado sobre a psicanálise. Acho que frequentemente anteciparia ou tentaria antecipar suas intenções.
FREUD
(Percebendo a inexperiência clínica do jornalista)
A inteligência num paciente não é um empecilho, meu amigo. (Lembrando de pacientes...) Pelo contrário, às vezes facilita o trabalho.
JORNALISTA
(Ansioso, falando mais rapidamente)
Algumas vezes me pergunto se não seríamos mais felizes sabendo menos dos processos que dão forma aos nossos pensamentos e emoções. A psicanálise despoja a vida de seus encantos. Descobrir que alojamos no coração um selvagem, um criminoso, uma besta não nos faz mais felizes.
FREUD
(Reagindo severamente)
O que você tem contra as bestas? Eu prefiro muito mais a companhia dos animais. São mais simples. Muito mais agradáveis são as emoções simples e diretas de um cão, ao balançar a cauda alegremente ou ao latir expressando seu desprazer. O cão não tem a personalidade dividida do ser humano, se ajustando precariamente a padrões de civilização muito exigentes, sempre em conflito entre seus instintos e a cultura. O selvagem, como a besta, é cruel, mas está livre da mesquinharia própria do ser civilizado; sua falta de respeito, falsidade, covardia. Um selvagem pode nos cortar a cabeça, nos devorar, nos torturar, mas nos poupará das pequenas e contínuas ferroadas, que às vezes fazem com que a vida em uma comunidade civilizada seja quase intolerável.
JORNALISTA
(Sustentando o embate)
Talvez o senhor seja o responsável, ao menos em parte, pelas complicações da civilização moderna. A psicanálise converteu a vida em um complicado quebra-cabeça.
FREUD
(Didático, apaziguando)
Em absoluto. Ela simplifica a vida. A psicanálise reorganiza o labirinto de impulsos dispersos e tenta encaixá-los à meada a que pertencem. Ou, para mudar a metáfora, proporciona o fio que nos permite sair do labirinto de nosso próprio inconsciente.
ANNA
Com licença, papai. Lou deseja despedir-se do senhor.
LOU
(Para o jornalista, que se levanta imediatamente)
Hum...! Vejo que conseguiu um momento com nosso mestre. Aproveite! A vida lhe dará poucos presentes, acredite. Se o senhor quer uma vida, é preciso que a roube.
FREUD
(Abraçando-a)
Caríssima Lou, foi tão bom tê-la por perto novamente...
LOU
Estou levando comigo aqueles ensaios e escreverei em breve para o senhor!
FREUD
É sempre um prazer ter notícias suas.
LOU
(Para o jornalista)
Até logo e passar bem.
FREUD
(Para o jornalista)
Um momento, eu vou levá-la até a porta. (No caminho, para Lou) Fiquei sabendo, e pela melhor fonte, que a senhora está dedicando dez horas diárias à clínica!
LOU
Eu estou bem, professor, muito bem. A psicanálise deu um novo norte à minha vida.
FREUD
Mas isso é uma tentativa de suicídio mal dissimulada e, pelo que eu saiba, a senhora não tem tantos sentimentos neuróticos de culpa.
JORNALISTA
(Para Anna, discretamente)
Esta senhora... (Tentando relembrar)
ANNA
(Discretamente)
É Lou Andreas Salomé. (Encantada) Uma mulher extraordinária!
JORNALISTA
Sim! Claro!
LOU
(Já na porta de saída, para Freud)
Eu preciso trabalhar, professor, preciso trabalhar muito. Minha situação financeira piorou muito. O senhor, melhor do que ninguém, sabe disso. Aliás, sou-lhe muito grata pela ajuda que me tem dado.
FREUD
Aumente o preço de suas consultas em um quarto ou na metade...
LOU
(Citando Freud para ele mesmo)
Parece que a arte de "contar" foi esquecida pela multidão de fadas que se reuniram em torno do meu berço quando eu nasci.
ANNA
(Para o jornalista)
É uma escritora conhecida! Interlocutora e amiga de homens como Nietzsche e papai. Imagine!
JORNALISTA
Haveria problema em citá-la em minha entrevista?
ANNA
Certamente, não.
FREUD
(Para Lou Salomé)
Por favor, não jogue pela janela este meu aviso.
LOU
Jamais, professor. O senhor tem me ajudado tanto...
FREUD
Você também, caríssima, me tem ajudado em meus pensamentos mais íntimos. Em algo que jamais poderia fazer sozinho.
LOU
Refere-se à minha amiga Anna, não?
FREUD
Ah, caríssima Lou. Sou tão incapaz de renunciar à Anna quanto de parar de fumar.
LOU
Não importa o caminho que se escolhe, o importante é segui-lo até o fim. Vamos, professor, assuma essa situação transgressora.
FREUD
A única coisa que poderia desejar é que ela encontrasse razões para trocar seu apego pelo velho pai por outro mais durável.
LOU
Ela precisa de influências e ligações que satisfaçam altas exigências! Deixe-me ir, afinal este jornalista lutou muito por um momento com o senhor.
FREUD
Adeus, querida.
LOU
Adeus, professor.
FREUD (Voltando para o jornalista, entusiasmado)
É impressionante o refinamento feminino do trabalho intelectual desta senhora. Precisa conhecê-la.
QUADRO 5 - FREUD POETA
JORNALISTA
(Aproveitando o assunto do trabalho intelectual)
Tenho a impressão de que a estrutura científica que o senhor construiu é altamente elaborada. Seus elementos fixos, como a teoria da substituição, da sexualidade infantil, a simbologia dos sonhos... parecem inamovíveis.
FREUD
(Desmistificando)
Isso é só o começo. A vida muda. A psicanálise também. Creio que a psicanálise jamais fechará a porta a uma nova verdade. Não sou mais que um principiante. Tive êxito no que se refere a desenterrar monumentos submersos no substrato da mente. Mas onde encontrei uns poucos templos, outros poderão descobrir um continente.
(Entra Anna discretamente e senta-se com eles)
JORNALISTA
O senhor continua colocando o máximo de ênfase no sexo?
FREUD
Posso ter cometido muitos erros, mas estou completamente seguro de que não me equivoquei ao considerar predominante o instinto sexual. Como mecanismo de autodefesa, a humanidade tenta negar a suprema importância desse instinto poderoso, que ameaça as convenções e salvaguardas da civilização. Analise qualquer emoção humana, não importa o quão distante pareça estar da esfera sexual, e descobrirá em algum lado o impulso primário ao qual a própria vida deve a sua perpetuação. (Anna toma-lhe discretamente o charuto e apaga-o) Entretanto agora coloco ênfase quase igual naquilo que está "além" do prazer: a morte, a negação da vida. Esse desejo explica por que alguns homens amam a dor, por que todos buscam o descanso, por que os poetas agradecem. Como é mesmo, Anna?
ANNA
"Quaisquer deuses que existam
Que nenhuma vida viva para sempre Que os mortos jamais se levantem E também o rio mais cansado Deságue tranquilo no mar."
JORNALISTA
(Entusiasmado, reforçando seu argumento anterior)
O senhor sem dúvida transmitiu seu ponto de vista aos escritores modernos...
FREUD
A psicanálise também recebeu muito da literatura e da filosofia. Nietzsche foi um dos primeiros psicanalistas. Ninguém se apercebeu mais profundamente dos motivos da conduta humana e da insistência do princípio do prazer em predominar indefinidamente. Lembre Zaratustra!
ANNA
(Tomando timidamente a cena)
"A dor
Grita: Vai!
Mas o prazer quer eternidade
Pura, profunda eternidade."
(Anna levanta-se, considerando a pausa após a poesia como o fim da entrevista)
FREUD
Tenho receio de minha popularidade nos Estados Unidos. A popularização lá leva à aceitação superficial, sem estudo sério. Eu prefiro a ocupação intensa com a psicanálise, tal como ocorre nos centros europeus. A América foi o primeiro país a reconhecer-me oficialmente, mas fez poucas contribuições originais à psicanálise. Os médicos americanos, e ocasionalmente os europeus, procuram monopolizar para si a psicanálise. Seria um perigo deixá-la exclusivamente nas mãos dos médicos.
ANNA
(Ponderando)
Anoiteceu. Logo será hora, papai, de o senhor Sylvester pegar o trem de volta para a cidade.
JORNALISTA
(Organizando-se com suas anotações, lembrando-se do pedido inicial de Anna)
Realmente. Tenho que ir. Desse jeito vou acabar perdendo o trem... Esta conversa poderia durar dias... (Levantando-se) Muito obrigado, professor.
FREUD
(Despedindo-se sorridente)
Foi um prazer. (Fazendo o repórter voltar-se, em seu caminho à saída) Não me faça parecer pessimista, hein? Não desprezo o mundo. Mostrar desprezo ao mundo é só uma forma de o adular para obter reconhecimento. Não, não sou pessimista, não enquanto tiver meus filhos, minha mulher e minhas flores. E não me sinto infeliz. Ao menos, não mais do que os outros. Setenta anos ensinaram-me a aceitar a vida com humildade. Até logo.
JORNALISTA
Adeus.
( O jornalista é conduzido por Paula. Freud e Anna acompanham sua saída de longe, acenam, depois se sentam e tomam chá, pensativos)
JORNALISTA
(Sai e dirige-se ao público, capturado pela possibilidade de evitar a negação dos conflitos)
Se a psicanálise paga o preço de ter trazido uma má nova à humanidade, ela também saberá acolher essa angústia renovada? Por outro lado, de qualquer maneira... se os questionamentos sobre a verdade forem abafados, o mal-estar não será cada vez maior?
(Black. Som de trem, que vai se distanciando. Fim)
Correspodência:
RÔ REYES
Av. Sete de Setembro, 2572/604
Vitória 40080-005 - Salvador/BA
Tel.: 71 99991.0454
Recebido 01.07.2020
Aceito 10.07.2020