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versão impressa ISSN 0101-3106
Ide (São Paulo) vol.44 no.73 São Paulo jan./jun. 2022
ODE AO DIVINO EM TI: A TRAVESSIA DO HERÓI ENTRE CRENÇA E FÉ
A epopeia de herói ou profeta enviado pelos deuses a um mortal comum que exerce sua profissão: a religião e a religiosidade que permeia as práticas psicanalíticas1
The epic of the hero or prophet sent by the gods to an ordinary mortal who practices his profession: the religion and the religiosity that permeates psychoanalytic practices
Claudio Castelo Filho
Membro efetivo e analista didata da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Psicólogo pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), doutor em Psicologia Social e livre docente em Psicologia Clínica pela usp, editor da Revista Brasileira de Psicanálise. São Paulo / claudio.castelo@uol.com.br
RESUMO
Baseado em sua experiência clínica, o autor discorre sobre o entranhamento de ideário moral-religioso na prática psicanalítica, da qual ele não deveria fazer parte, sendo ela uma atividade investigativa científica. Observa a postura profissional e teórica de vários psicanalistas que confundem sua prática com a de uma criatura superior que supostamente se percebe ou se apresenta como estando acima das questões humanas corriqueiras, da carnalidade sensual, das mesquinharias e limitações humanas. Assim, tendem a ver seus analisandos como compêndios de psicopatologia. Em questões relacionadas à sexualidade não observam a diversidade de possibilidades humanas neste campo e dessa forma não distinguem teoria científica e prática clínica de uma atividade sacerdotal, "correcional" e, amiúde, hipócrita. Tal como profetas ou enviados do Olimpo, observam do alto e criticam com desdém os mortais inferiores. Uma efetiva e profunda análise pessoal do postulante a analista é evidenciada como fator decisivo para que ele faça sua passagem de arauto dos deuses para o plano terrestre dos mortais comuns. Nela, terá de percorrer todas as turbulências desse Mediterrâneo, tal como Odisseu e Eneias, que precisaram até entrar e sair do Hades para chegarem à terra que lhes era própria.
Palavras-chave: epopeia, herói, moral, religião, psicanálise
ABSTRACT
Based on his clinical experience, the author discusses the entrenchment of moral-religious ideas in psychoanalytic practice, of which he should not be a part, since it is a scientific investigative activity. He observes the professional and theoretical posture of several psychoanalysts who confuse their practice with that of a superior creature who supposedly perceives himself or presents himself as being above common human issues, sensual carnality, pettiness and human limitations. Thus, they tend to view their analysands as psychopathology textbooks. In matters related to sexuality, they do not observe the diversity of human possibilities in this field and thus do not distinguish scientific theory and clinical practice from a priestly, "correctional" and, often, hypocritical activity. Just as prophets or envoys from Olympus watch from above and criticize lesser mortals with disdain. An effective and deep personal analysis from the postulant to the analyst is evidenced as a decisive factor for him to make his passage from the herald of the gods to the earth plane of ordinary mortals. In it, he will have to go through all the turbulences of that Mediterranean, like Odysseus and Aeneas, who even needed to enter and leave Hades to reach the land that was their own.
Keywords: epic, hero, moral, religion, psychoanalysis
Psicanálise surgiria como um fenômeno efêmero, retratando forças na superfície do qual a raça humana tremeluz, chameja e evanesce em resposta à não reconhecida, porém, gigantesca realidade. O ponto prático é não fomentar a investigação da psicanálise, mas da realidade que ela revela. Esta precisa ser investigada por meio de padrões mentais; isto que é indicado não é um sintoma; isto não é uma causa de sintoma; isto não é uma doença ou qualquer coisa subordinada. A própria psicanálise é apenas uma listra no pelo de um tigre. Em última instância, ela pode encontrar o Tigre - a Coisa em Si - O. (Bion, 1991b, p. 112)
Roland: ... Você era responsável por todos nossos problemas sexuais, suponho?
Diabo: Certamente não. Sexo, como o xerez, frequentemente produz sentimentos perfeitamente genuínos de amor e afeição. Eu me valia de vários professores religiosos e moralistas para inflamar o ódio moral e o ódio para aquelas práticas agradáveis e inofensivas. (Bion, 1991c, p. 445)Bion - Ou talvez você tornou-se amorosa (loving)?
Alice - Não, eu amo Rosemary.
Bion - Se você estiver certa, você tornou-se capaz de amar (loving).
Alice - Pensei que, como psicanalista, diria que sou homossexual.
Bion - Ao contrário, tanto quanto sou capaz de "ser", contrastando com "tendo a pretensão" de ser, um psicanalista, penso que você está incorreta ao dizer que você ama Rosemary se você for homossexual; você deve tornar-se capaz de amar. Tornar sexual é parte da maturação física. O amor real não é uma função da coisa amada, mas de a pessoa amar (loving).
Essa é a arte da maturação psíquica ou mental, e ela não é obstruída
por aspectos acidentais da coisa ou da pessoa amada.
Eu mesmo - Entre os aspectos que você chama "acidentais"
você está incluindo o sexo da pessoa?
Bion - Certamente; sexo aplica-se à anatomia e à fisiologia e, como é habitual no caso de quando falamos da mente, foi usurpado pelos psicanalistas porque temos de nos haver com uma linguagem inventada para a vida física ou "experiência sensual". "O amor apaixonado" é a coisa mais próxima que eu considero para expressar uma transformação verbal que "representa" a coisa em si, a realidade última, o "O", tal como o denominei, aproximando-se a ele.
(Bion, 1991b, cap. 38, p. 183)o amor apaixonado não é apenas físico ou mental,
mas um desenvolvimento da fusão de ambos.
(Bion, 1991b, p. 472)
Nas curtíssimas vinhetas clínicas que menciono a seguir uso o tempo presente, o que não implica que o tempo verbal coincida com a atualidade do material, pois são oriundos de 35 anos de trabalho no consultório. São usadas como modelos e como tais devem ser lidas.2
Nestor já passou por algumas análises anteriores em outro país. Depois de um tempo do término da última e de seu retorno ao Brasil, procurou-me. Evidencia-se a angústia em ser julgado por mim, visto que se vê envolvido por desejos e eventuais práticas das quais "já deveria ter superado" ou "sublimado". Tem uma vida profissional e social bem-sucedida conforme as convenções estabelecidas. Contudo anseia e tem eventuais aventuras fora dos padrões moralmente julgados como corretos. Sua forma de me relatar tais episódios e desejos implicam um julgamento moral e uma implicação diagnóstica, ou seja, convida-me a enquadrá-lo em algum tipo de "perversão", "neurose", ou "psicose". Comunico-lhe essa minha impressão, de que, para ele, na análise teríamos de achar as causas de suas patologias e que aquilo que me descreve caberia em algum escaninho de decrepitude mental.
Segundo ele, os analistas anteriores insistiam para que cuidasse de seu casamento e deixasse essas coisas de lado. Comportava-se conforme o "figurino", mas após algumas semanas, em que estava de acordo com o que devia ser "certo", entrava em desespero, precisando recorrer a medicamentos como Valium para fugir da tensão que experimentava, e, às vezes, o entorpecimento o levava a situações de falta de atenção que poderiam ser consideravelmente perigosas.
Propus que deixássemos esse viés médico psiquiátrico ou "psicanalítico" em busca de um diagnóstico com viés de valor, desincumbindo-nos desse vértice para podermos ter contato com algo real, de pessoas reais e sem o a priori de que o que está vivendo seja algo de errado.
Também assinalei que ele temia que, ao estar comigo, tanto quanto à minha possibilidade de recriminá-lo para que se comportasse "bem" e o desprezasse caso não o fizesse, que eu não agisse como censor, deixando-o à mercê de seus desejos, anseios, turbulências e impulsos, pois sentia não dispor de suficiente capacidade de administrar o que vivia, temendo ser levado de aluvião caso as "repressões" fossem levantadas. Minha ideia não era tampouco uma psicanálise para tirar a repressão, mas para ajudá-lo a desenvolver capacidade suficiente de reconhecer, nomear e assimilar aquilo que experimentava, de modo que tenha condição de pensar e negociar com seus sentimentos, impulsos e desejos e, assim, levá-los a algum acordo a um caminho em conformidade com seus próprios interesses, sem se tornarem desastrosos. Nem sempre o que se deseja é realmente o que se quer. Às vezes quando frustrados, desejamos matar alguém que não queremos, de forma alguma, que seja efetivamente destruído.
Cassandra, em condições similares, narra uma série de ambiguidades nos seus desejos sexuais. A despeito de ter uma excelente relação amorosa e física com o marido, muito satisfatória, sente que lhe falta algo. É uma pessoa muito culta e sensível, muito produtiva e bem-sucedida em seu trabalho. Já passou por outras experiências analíticas nas quais sentiu-se constantemente instada a cuidar de seu casamento e "evoluir" desejos que não seriam "ortodoxos". Sente-se constrangida por ver que eles voltam a se apresentar, mesmo tendo se esforçado para viver durante muitos anos uma vida burguesa respeitável na qual alcançou grande sucesso social. Sente-se sufocada nessa condição e, ao mesmo tempo, apavorada em dar qualquer abertura para as coisas que a tentam. Seu receio, análogo ao de Nestor, é de que eu a despreze pela sua falta de "crescimento" e "evolução", sua fala sempre implica me informar sua "patologia" de modo que encontremos suas causas e o possível caminho da "cura". Informo à paciente essa minha observação e também proponho que deixemos esse modo de enxergar e encarar as coisas. Que ficássemos descomprometidos da busca da doença e da cura e pudéssemos aprender com base no que se apresentasse.
Há, contudo, outro receio que também lhes propus considerar. Se eu não for uma autoridade moral que os corrija, que possam me sentir como um demônio que quer levá-los ao abismo, tal como Cila ou Caríbdis ou alguém tão "inferior" quanto eles próprios se considerariam por não ficar chocado ou reprimir aquilo que me relatam.
Recebo Helena para entrevista: uma mulher extremamente bonita e atraente, na faixa de 40 anos de idade. Vestia-se com um belo traje, certamente de alguma grife cara, mas que tinha uma particularidade: ele moldava completamente seu corpo e salientava, de forma não vulgar, mas evidente, todos os contornos e volumes de sua silhueta. Logo ao sentar-se na poltrona à minha frente, passa a queixar-se da maneira com que é abordada pelos homens, sempre explicitamente sexual, erótica, não sendo percebida como algo mais que isso, até mesmo pelo próprio marido. Comento que observava o modo com que se vestia: sua roupa era bonita e elegante, possivelmente de alguma loja de prestígio, mas que também tinha como traço marcante salientar todos os seus atributos físicos de uma forma bastante notória. Querendo ou não, essa era a primeira notícia que ela deu ao entrar. Destaco que não tinha nada a opor quanto a seu modo de se vestir, mas também não podia negar o efeito que, certamente, tinha sobre quem a via. Ela se espanta com meu comentário e depois diz: passei 10 anos indo a outro analista. Toda vez que ele me recebia na porta de seu consultório, eu via que punha os olhos nos meus peitos, mas em seguida fazia cara de psicanalista, e nunca falamos sobre isso.
Durante uma supervisão ouço a pessoa que me apresenta o caso relatar, durante cerca de 20 minutos, sua preocupação quanto ao que teria acontecido de estranho ou traumático à analisanda que, após muitos anos de casamento, viu-se apaixonada por outra mulher, sem que nunca houvesse experimentado nada similar em toda sua vida pregressa. Proponho que ouvia a situação como se algo errado e patológico estivesse, necessariamente, acontecendo com a paciente, sem que ela considerasse aquela nova situação como mais uma das possibilidades humanas, mesmo que surpreendente para aquela que a vivenciava, sem que fosse algo antinatural ou desviante. A supervisionanda se espanta e admite que havia um preconceito de sua parte e um intuito de corrigir a paciente e percebe que minha observação havia lhe permitido acessar outra perspectiva.
Em um atendimento ouço Ganimedes, cujas relações são, preferencialmente, com homens, queixar-se de ser execrado ou visto como alguém que está mentindo ou falsificando algo quando, eventualmente, sente atração genuína por uma mulher e se relaciona com ela, sobretudo por parte de seus amigos gays. Sente-se muito chateado e vítima de preconceito, que provém de pessoas que costumam sofrer preconceito.
Nos atendimentos que faço, na minha posição de analista e com as titulações que possuo, a grande maioria dos analisandos e supervisionandos considera que estou longe de ter qualquer contato com essas "baixezas" humanas e que eu seria algo para além de um deus olímpico (pois estes são bastante sexualizados e tomados por rancores, fúrias, paixões, crueldades etc.) e flutuaria em um âmbito sublim(e)ado e des-encarnado. Alguns me tomam como um oráculo ou profeta. O contraponto é ser percebido como um demônio ou feiticeiro, caso não corresponda a essas idealizações. Tanto numa dimensão como na outra (na verdade, dois lados de uma mesma moeda) a situação é persecutória e precisa ser evidenciada. O desprezo pelo analista-ser humano comum também é o que pode se seguir uma vez desfeita a ilusão. Cabe ao analista sustentar a desilusão e sua queda dos céus ou infernos para a terra dos mortais comuns.
Verifico amiúde nos meus atendimentos, em um primeiro momento, uma espécie de surpresa e às vezes um choque, por parte dos analisandos, pela forma direta e sem rodeios que abordo questões relacionadas à sexualidade e a outros temas que são vistos como tabus, como racismo, inveja, ódios, ciúmes, mesquinhez, evidências de estados religiosos de mente, sobretudo dos que se acreditam não religiosos, de uma maneira que pretendo apenas descrever essas questões humanas e deixá-las explícitas para que delas possam se dar conta, sem que isso implique uma meta de correção ou cura, mas de torná-las conscientes para que se possa pensar com base nelas e possivelmente negociar com estas a partir do momento em que se tornem reconhecidas e assimiláveis.3
Considero que a naturalidade com que me expresso livremente está associada ao longo tempo de análise pessoal a que me submeti.4 Isso me permitiu ter um considerável contato com minhas próprias questões e limitações, para não me julgar capaz de olhar os outros de cima para baixo. Sinto-me muito receoso e preocupado quando me vejo diante de psicanalistas "curados" que pairam acima dos mortais comuns, "sublimados" de toda carnalidade e de limitações humanas.5 É necessário fazer a travessia do Mediterrâneo e depararmos com todos os nossos Polifemos, Circes, Calipsos, Tífons, sereias, sátiros, centauros, Aquiles, Eneias, Turnos, Diomedes, Amatas, Camilas, Mezêncios, e entrar e sair do Hades etc., para termos uma efetiva noção daquilo que nos habita para poder lidar com essas entidades que nossos analisandos nos trazem toda vez que entram em nossas salas.
- não há postulante à análise que não tema os elementos psicóticos nele existentes e não creia poder atingir um ajustamento satisfatório, sem que se analisem esses elementos. Uma solução desse problema é particularmente perigosa para quem estiver engajado em dar formação: o indivíduo busca lidar com dito medo tornando-se candidato, de sorte que o fato de ser aceito para formação possa ser tomado como um atestado oficial de imunidade passado por aqueles que melhor se qualificam para sabê-lo. Com a ajuda do próprio psicanalista, poderá seguir fugindo de se defrontar com o seu temor e terminar por vir a ser um pseudo-analista. Devido à identificação projetiva (na qual não acredita), sua qualificação como analista consiste na capacidade de se vangloriar de se haver libertado da psicose - motivo por que menospreza os pacientes e os colegas. (Bion, 1967, pp. 143-144)
Para vários dos analisandos que atendo o que se segue é a surpresa de se verem falando de coisas que nunca haviam mencionado para ninguém, que mal e mal conseguiam admitir pensar sobre (ou rechaçavam tacitamente) e tampouco haviam conseguido expor as situações que conversam comigo a nenhum outro terapeuta ou mesmo psicanalista com quem já haviam estado. Ao contrário, tendiam a produzir a melhora que acreditavam que era deles esperada, incluindo a necessidade de preservar casamentos, status quo e valores morais. Têm a ideia de que um psicanalista seria alguém que já teria superado essas questões e que para alguém se tornar um analista deveria estar livre das "tentações" humanas. O alívio vivido no decorrer da análise é notório, visto que sentem que podem realmente se expor sem julgamento ou expectativa de alteração de seus modos e condutas. Também fica evidente o medo de ficarem sem rédeas e à mercê de suas sereias. A alta frequência nos atendimentos em análise, preferencialmente quatro sessões por semana, permite um espaço físico e mental de acolhimento das angústias do analisando, para que essas forças poderosas possam se tornar conhecidas e administráveis sem que sejam necessárias correntes, enclausuramentos ou evitar que velas sejam içadas para navegar pelos sete mares e que descobertas possam ser feitas. O principal instrumento para tal é a mente do analista que esteja acostumada a navegar por borrascas e a conversar com toda sorte de entidades que possa se manifestar durante essa odisseia. Esse equipamento mental é o que também permite ao analista dispor-se a ter contato intensivo e extenso com seu paciente, e que o estimule a aceitar tal desafio, intuindo que o primeiro é um navegador experiente.6
Penso que a maneira normativa e "evolutiva" de perceber e lidar com a sexualidade e outros aspectos da natureza humana é religiosa, valorativa, moral, repressora e deletéria, e é exercida por muitos de nossa atividade profissional. Ouvi certa vez o comentário de uma figura conhecida e respeitada de que o verdadeiro e superior7 prazer é mental - as outras satisfações são espúrias e inferiores. Outro também mencionou durante um encontro científico que certas coisas (sexuais) são somente para ser pensadas, mas nunca atuadas. Outro ainda disse que relações entre pessoas de mesmo sexo eram coisas de loucos, que o "certo" é homem com mulher.
Não me parece muito diferente do que papas, bispos, cardeais, pastores ou rabinos poderiam dizer.
Na Igreja Católica de João Paulo II e Bento XVI chegou-se à conclusão de que os homossexuais poderiam ser acolhidos, desde que não praticassem sua sexualidade. Como contrapartida, diz o sério pesquisador Fréderic Martel em seu livro In the closet of the Vatican (2019),8 baseado no testemunho anuente e gravado de 41 cardeais, 52 bispos e 45 núncios apostólicos (e pesquisas feitas durante cinco anos em todos os continentes e em arquivos dos serviços de polícia e secretos da Europa, América Latina e Estados Unidos), a grande maioria dos prelados é homossexual, e mesmo aqueles que têm um virulento discurso antigay são homossexuais e têm sexo com outros homens e com prostitutos. O aspecto mais impactante do livro, contudo, não é a hipocrisia da incoerência entre a virulência homofóbica e misógina do clero, com verdadeira e intensíssima vida sexual dentro e fora dos muros do Vaticano, mas a associação dos papas, sobretudo João Paulo ii e seu sucessor Bento xvi (chamado de Opera Queen, por muitos dos cardeais que também o eram), com os narcotraficantes da Colômbia e do México, ligados a cardeais como Trujillo e Marcial, apoiados pelos cardeais Sodano, Bertone, Dizwisz, Sarah, Burke, etc., que constituíram ordens religiosas ligadas aos mais escabrosos escândalos de violência e pedofilia, com o assassinato sistemático de sacerdotes opositores, para o financiamento de suas guerras anticomunistas conservadoras, que levavam malas de dinheiro de Pablo Escobar e similares para o Vaticano para o financiamento das "batalhas" na Polônia, financiando o Solidariedade e outros grupos de extrema direita por todo o mundo, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos; menciona também, a despeito dos sermões moralistas, as ligações íntimas de cardeais corruptos e pedófilos no Chile, Alemanha, Argentina, Peru, Polônia, África etc., com seus respectivos ditadores Pinochet, Videla etc., e seus milhares de assassinatos e torturas de presos políticos.
O que falo acima não se restringe, obviamente, à Igreja Católica. Escândalos sexuais, de corrupção e violência impregnam todas as demais seitas religiosas e, volta e meia, recebemos a notícia de pastores puritanos sendo pegos com prostitutas ou garotos de programa, gurus acusados de estupros etc. Praticamente todas as instituições humanas são permeadas pelas mesmas questões, incluindo instituições científicas, esportivas e também psicanalíticas. Vale a pena dar uma olhada na extensa biografia do livro False self - The life of Masud Khan (Hopkins, 2006), escrita pela americana Linda Hopkins, em que explicita as guerras intestinas e violentas entre essas instituições e internamente a elas.
Eu poderia me estender por mais uma infinidade de situações similares que angustiam os analisandos e analisandas (e sobremaneira os que estão no nosso campo de trabalho) porque penso que efetivamente existe em nosso meio uma grande confusão entre um viés psicanalítico/científico e um viés moral/religioso, frequentemente confundido com algo científico.
O viés moralista e religioso pode ser vivido como extremamente importante para pessoas que precisam de um exoesqueleto, pois não sentem que dispõem de algo que as sustente por dentro. Não reconhecem o equipamento emocional e mental para administrar suas turbulências internas e impulsos contraditórios, agarram-se inconscientemente a estruturas fechadas e morais que substituem a ética que seria desenvolvida, caso houvesse uma condição interna para tolerar as oscilações das posições esquizoparanoide e depressiva, pela moral estabelecida de fora para dentro. O medo de que tal estrutura lhes seja subtraída pode tornar a análise aterrorizadora e mesmo catastrófica. A manutenção destas também as leva ao temor de morrerem em vida sem poder usufruir dela. A análise poderia auxiliá-las no desenvolvimento do equipamento mental para assimilar as turbulências e intensidades, tanto das angústias quanto dos prazeres, pois mesmo os autênticos podem ser vividos como insuportáveis, caso suas intensidades sejam percebidas como disruptivas para um frágil continente mental. Se isso ocorre, a estrutura moralista externa poderia ser abandonada sem que a ela se faça combate, pois algo mais eficaz, interno e egossintônico, se desenvolveria para negociar com essas intensidades e, se possível, encaminhá-las a um rumo mais favorável aos próprios interesses do indivíduo. Penso que tal encaminhamento é o que está descrito em A memoir of the future, em que o psicanalista faz a intermediação, apresentação e mediação da conversa entre as diferentes tendências da mente (incluindo as dele mesmo) de um analisando, de modo que ele possa desenvolver essa conversa e negociação interna e prescindir do analista quando isso ocorre. O rumo que o analisando decidir tomar diz somente respeito a ele mesmo. Bion destaca a importância do aspecto religioso de todos nós por meio de personagens como o diabo e o sacerdote.9 Em um diálogo com o sacerdote em "The past presented" (Bion, 1991c), ele contrasta o vértice do psicanalista com o do primeiro ao explicitar que como cientista ele não poderia dizer que Deus não existe.10 Ele mesmo nunca teve a realização de tal ideia de Deus, mas sendo um investigador não pode partir da premissa da não existência Dele, pois isso fecharia a pesquisa e a abertura para o desconhecido. O vértice religioso do sacerdote não permite aceitar a não existência de Deus, estando fechado para o encontro da realização dessa preconcepção caso ela se apresente.11 O investigador sempre mantém a dúvida. O psicanalista (P.A.), contudo, ressalta sua abertura para uma possível (porém, até então, não encontrada) realização da ideia de um Deus que não ofenda a sua inteligência.
Esse problema da moralidade já se evidenciou com Freud e com a ideia de perversão (que originalmente significava um não desenvolvimento do que ele denominava finalidade genital do sexo, mas que tem, desde então, ficado associada à ideia de maldade, quando se diz que alguém é perverso), sublimação (e esquece-se o quanto a sublimação - um fenômeno físico - fica confundida com o sublime, superior, em contraponto ao carnal-inferior). Freud, como aponta muito bem Roudinesco (2014) em sua recente biografia dele, era um homem do século xix e, apesar de ser um crítico severo da religião, muito de seu pensamento, observações e teorias estaria imiscuído por toda sua pesada herança religiosa e preconceitos de um homem com caráter de patriarca bíblico.
Sua posição em relação às mulheres, e como as considerava, deixa isso muito patente, assim como acreditava, segundo Roudinesco, que o lugar das mulheres era efetivamente no lar, cuidando dos filhos. Obviamente contradições paradoxais nessa sua crença também apareciam, pois, se não idealizarmos Freud (o que para muitos psicanalistas é praticamente uma blasfêmia), podemos percebê-lo cheio de incongruências12 irreconciliáveis.13 Nessas contradições de Freud vemos o grande apreço e admiração que teve por mulheres notáveis como Lou Andreas Salomé, Marie Bonaparte e a abertura dada a elas para se juntarem ao movimento psicanalítico e se tornarem psicanalistas, numa época em que sistematicamente elas eram podadas explícita ou veladamente em atividades profissionais. Da mesma forma, sua carta para a mãe de um rapaz homossexual e sua abertura e apoio à filha que também o era explicitam essas oscilações humanas do grande gênio. Cedeu todavia à pressão de Ernest Jones quanto à continuidade de acesso à formação analítica de candidatos assumidamente homossexuais.
Em Manuscrito inédito de 1931 (Freud, 2019) verificamos a censura sofrida por Freud do trabalho que desenvolveu com William C. Bullit sobre o presidente Thomas Woodrow Wilson, em que seus comentários sobre a sexualidade do governante americano e as implicações dessa na adesão ao catolicismo por parte dos homens cristãos foi completamente subtraída da publicação de Bullit, sendo que a colaboração de Freud só foi redescoberta recentemente no meio de documentos encontrados do primeiro.
No seu artigo escrito com Oppenheim, "Dreams in folklore" (Freud & Oppenheim, 1911/1978), Freud não teve pruridos em colocar todos os palavrões e descrições sexuais explícitas neles contidos. Significativamente, todavia, o trabalho só foi publicado em 1958! O que evidencia a necessidade do grupo psicanalítico de tornar-se social e "moralmente" respeitável, conforme cânones morais e religiosos estabelecidos, fugindo do contato com a verdade que lhe cabe.
Em "The occurrence in dreams of material from fairy tales" (Freud, 1913/1978b) houve, nas traduções inglesas, a frequente amenização ou mesmo supressão de trechos de passagens mais explícitas.
Ao cotejar traduções para o português de importantes textos em inglês contendo material com conteúdo sexual explícito e com palavrões, vejo que muitas vezes o texto é transformado em linguagem científica ou culta, excluindo o impacto emocional que as palavras originais contêm, o que distorce a proposta do autor.
Bion tornou muito clara a distinção de um trabalho psicoterapêutico, psiquiátrico, médico, religioso, de um trabalho psicanalítico. As ideias de cura e melhora não caberiam em um trabalho psicanalítico propriamente dito, que visaria apenas apresentar o paciente a ele mesmo, para que possa ser ele mesmo, seja lá o que isso venha a ser.14
Em Bion in New York and São Paulo, podemos ler:
Q: Quais são as causas da inibição para se pensar adequadamente? Preguiça? Busca de facilidade? Ou emoção?
Bion: Pode haver todas essas causas, mas não estou certo de que seja muito iluminador considerar apenas os obstáculos. Não obstante a maneira com que queira expressar alguma coisa em você mesmo - tal como um compositor ou um escritor -, todas essas abordagens são difíceis, em parte porque muitos dos primeiros anos da vida são gastos no esforço de se tentar livrar de quem você realmente é. Como você diz, há uma inibição, uma obstrução. Uma criança tenta ser boa, tenta ser quem ou o que ela pensa que seu pai ou sua mãe quer que ela seja; uma grande parcela de tempo é gasta em tentar não ser quem ela ou ele realmente é. Portanto, é difícil mudar para querer expressar quem você é; é como mudar a direção do seu pensamento. (Bion, 1980, pp. 106-107)
Quando ouvimos ou lemos um artigo psicanalítico que descreve o progresso do paciente de uma situação em que era devasso, desconsiderava os filhos e a família, traía a esposa e não ganhava dinheiro para uma em que virou um esposo e pai exemplar e passou a ter um bom trabalho e ganhar dinheiro, estamos diante de uma situação em que alguém efetivamente se desenvolveu ou houve um desastre em que alguém se tornou a caricatura do que se espera dele (incluindo o psicanalista). Pode ser que, com a análise, a pessoa tenha se encontrado consigo mesma, e essa descrição esteja em conformidade com o desenvolvimento de reais possibilidades dela, mas, mais amiúde, parece-me que houve um desastre valorizado social e moralmente, com forte teor religioso e dogmático.
Talvez possa depender, também, se a personalidade do analista permite que o paciente o ponha no lugar de seu ego ideal, o que envolve a tentação para o analista de interpretar o papel de profeta, salvador, ou redentor do paciente. (Freud, 1923/1978a, p. 50)
Considero que toda análise, não só a assim chamada pelas instituições psicanalíticas, é didática, no sentido socrático, que distingo nitidamente de uma análise pedagógica (que, para mim, não é psicanálise). A análise didática é importante e necessária para as instituições que cuidam da psicanálise e de seu desenvolvimento. Deveria ser exercida por analistas que são reconhecidos pela instituição que os avaliou como tendo noção realista (e não teórica) do que seja propriamente psicanálise, e não outra coisa.15 Na prática do consultório não a distingo da análise de qualquer outro paciente, pois penso que, para um analista ajudar um outro indivíduo a tornar-se ele mesmo (Castelo Filho, 2020), o próprio analista tem de ter se encontrado (pelo menos de modo razoável) consigo mesmo e tenha a condição de se acolher e de se aceitar por aquilo que de fato é, e não por aquilo que se espera dele, e muito menos o que seu analista ou uma instituição psicanalítica esperaria que ele fosse. Surpreendentemente, penso que somente aqueles que têm respeito e consideração por aquilo que efetivamente se percebem ser podem oferecer isso a outrem e desenvolver real capacidade ético-civilizatória, o que distingo totalmente de algo moralista ou normativo.
Uma das maiores dores a serem experimentadas em uma análise é nos descobrirmos mais um, tal como nosso insignificante planeta vagando pela imensidão do cosmos, cuja existência, ou não, não fará qualquer diferença no universo. Para a quase totalidade da humanidade nossa existência é irrelevante e nem sequer será notada. Somos, todavia, únicos e insubstituíveis para nós mesmos, e podemos ver que melhor partido podemos tirar daquilo de que dispomos, a despeito de não sermos deuses, semideuses, arautos dos deuses. Pode ser um alívio não ter de cumprir um destino supostamente grandioso e esmagador como o de um Aquiles ou de um Eneias. Na Odisseia o primeiro a ser visitado no Hades por Odisseu, disse que seria melhor ser o último dos escravos e estar vivo a ser a sombra que lá se tornara ao trocar a longa e feliz vida que poderia ter escolhido pela brevíssima e turbulenta pela qual optou para ser lembrado pela eternidade.
Penso que o trabalho psicanalítico não tem qualquer propósito de modificar a natureza e as características de um analisando, mas pode ajudá-lo a desenvolver recursos mentais e emocionais para negociar e administrar essas características ao reconhecê-las como próprias - à medida que sejam percebidas na mente, adquiram consciência, tornando-o capaz de pensar antes de agir, não para se livrar de si mesmo ou curar-se de quem ele é, mas para ter condição de gerenciar suas potencialidades, de modo que lhes sejam mais favoráveis e para ter a melhor qualidade de vida que puder alcançar reconhecendo sua verdadeira natureza e tirando o melhor partido que for possível dela. Como mencionei acima, é a proposta de Bion em A memoir of the future, em que o analista intermedia e apresenta aspectos diferentes, antagônicos e controversos de um indivíduo para ele mesmo. Nessa intermediação ele também conversa e negocia com seus próprios aspectos internos, de maneira que, ao final, não existe uma cura, mas uma eventual possibilidade de conversa entre os diferentes grupos e dimensões internas que possam ter um resultado criativo, e, por conseguinte, sempre há um potencial de turbulência por ser criativo, como o próprio livro o é.
Tenho como modelo um artigo que li em um jornal em que um empreendedor trouxe da França um importante enólogo porque tinha a intenção de plantar vinhas em uma terra no sul de Minas Gerais que parecia propícia para esse cultivo. Com a chegada do enólogo, informou-o de que pretendia plantar certa qualidade de uva porque tinha por meta produzir um tipo específico de vinho. O enólogo retrucou que não era ele, o empreendedor, que iria decidir o tipo de vinho que iria produzir, mas o terreno dele, era o "terroir" que faria isso. Sendo assim, orientou para que fossem plantadas diversas cepas de uvas no terreno para ver qual se adaptaria e se desenvolveria de forma proveitosa naquela terra específica, que seria, ela sim, quem decidiria o encaminhamento. Lembro também que os vinhedos do vale do Douro se desenvolvem em terreno tremendamente difícil, escarpado e inadequado para outros cultivos. O reconhecimento da natureza real, e não daquela que deveria existir, ou ser a certa, é o que pode resultar em bons frutos.
Outro modelo que também me ocorre, aproveitando-me de um mencionado por Freud (Princípio do Itzig16), podemos descobrir que, montados em um cavalo fogoso e arisco, o melhor a fazer seria não achar que podemos decidir qual rumo dar a ele, para que pelo menos possamos desenvolver suficiente destreza, com base no reconhecimento de suas características, e não cair dele, e talvez tornarmo-nos capazes de aproveitar o galope.
"Whishing you all a Happy Lunacy and a Relativistic Fission..."17 (Bion, 1991a, p. 578).
I met a traveller from an antique land
Who said:-Two vast and trunkless legs of stone
Stand in the desert. Near them on the sand,
Half sunk, a shatter'd visage lies, whose frown
And wrinkled lip and sneer of cold command
Tell that its sculptor well those passions read
Which yet survive, stamp'd on these lifeless things,
The hand that mock'd them and the heart that fed.
And on the pedestal these words appear:
"My name is Ozymandias, king of kings:
Look on my works, ye mighty, and despair!"
Nothing beside remains: round the decay
Of that colossal wreck, boundless and bare,
The lone and level sands stretch far away.Tradução
Encontrei um viajante vindo de uma antiga terra
Que me disse: - Duas imensas e destroncadas pernas de pedra
Erguem-se no deserto. Perto delas, sobre a areia
Meio enterrado, jaz um rosto despedaçado, cuja carranca
Com lábio enrugado e sorriso de frio comando
Dizem que seu escultor soube ler bem suas paixões
Que ainda sobrevivem, estampadas nessas coisas inertes,
A mão que os escarneceu e o coração que os alimentou
E no pedestal aparecem estas palavras:
"Meu nome é Ozymandias, rei dos reis:
Contemplai as minhas obras, ó poderosos e desesperai-vos!"
Nada mais resta: em redor a decadência
Daquele destroço colossal, sem limite e vazio
As areias solitárias e planas se espalham para longe.
(Percy Shelley's "Ozymandias")
Referências
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1 Todas as citações deste artigo são traduções livres do autor.
2 Os nomes que uso são ficções e os tomei de empréstimo a Homero e a Virgílio.
3 "P.A. - Eu me arvoro o direito de dizer coisas que são psicanálise correta apesar de serem dolorosas. Um cirurgião usa o bisturi, mas não se corta a carne por conta da dor que se inflige. Um sádico pode ser um cirurgião de modo que possa encobrir um prazer proibido. Eu posso ter de demonstrar que um paciente estava obtendo prazer sub-reptício da sobrevivência - sobrevivência ativa - de uma ideia emocionalmente carregada de que eu era um pai infligindo punição corporal" (Bion, 1991a, p. 548).
4 Penso que cinco anos de análise didática são apenas o aperitivo da refeição que precisa ser feita, para que viagens em grande profundidade possam ser realmente possíveis.
5 "Considero a ideia de o desenvolvimento ser terapeuticamente significativo menos importante que a de que ele seja psicanaliticamente significativo. ... Toma-se de empréstimo à religião ou à moral ou à política julgamentos de valor moral ou social, sem que se leve em conta sua aplicabilidade à psicanálise. ... O desejo de ser um bom analista é um obstáculo a que seja um analista" (Bion, 1967, p. 138).
6 Um navegador experiente não é um insensato. Lembro-me de três episódios que me foram narrados de situações difíceis no mar. No primeiro, um grupo de turistas havia contratado um passeio de saveiro pela baía de Todos os Santos em Salvador. Na volta do idílico passeio pelas ilhas uma violenta tempestade se abateu sobre a embarcação. Ondas violentas a sacudiram e caiu uma chuva torrencial. Todos os passageiros com exceção de um ficaram em pânico, começaram a gritar e se desesperar. Quando chegaram a salvo ao porto, os desesperados indagaram ao que ficou tranquilo fumando um cachimbo, sentado em um banco, como havia conseguido manter aquela fleugma. Ele respondeu que ficara observando o capitão no timão. Viu que ele estava tranquilo. Considerou que faria jus se desesperar na hora que o visse se desesperar. Não foi o que viu durante todo o trajeto. No segundo evento, um amigo atravessava num ferry boat o Mediterrâneo de Atenas para Creta. O curso da embarcação foi alterado, e esta foi se abrigar à sombra de um imenso rochedo no meio do mar. Surpreendeu-se de ver abrigados não só outros ferries e pequenos barcos, mas um gigantesco porta-aviões da Marinha americana. Um alerta de possível tsunami havia sido dado e mesmo os equipamentos mais poderosos e modernos não desprezaram as forças titânicas e foram se proteger delas, sem hubris. Na terceira narrativa uma amiga me contou que recebera parentes do exterior e contrataram um barco, por um dia inteiro, para visitar as ilhas em torno de Parati. O céu estava azul e não havia uma nuvem sequer. Não muito tempo depois do passeio iniciado, o barqueiro disse que iam parar numa ilha adiante, abortando o passeio. Os turistas se revoltaram e começaram a reclamar se sentindo logrados. O barqueiro só disse que iriam para aquela ilha o mais rapidamente possível e assim prosseguiu por mais que todos protestassem. Essa amiga disse que algo espantoso se deu poucos instantes depois de descerem à terra nessa ilha. O céu completamente azul escureceu em poucos instantes, e uma tempestade violentíssima caiu. Certamente o barco teria afundado se o navegador não fosse capaz de perceber o dilúvio no céu azul. A análise longa, intensa e extensa do analista não o tornará um deus olímpico capaz de domar ou evitar tempestades, mas poderá torná-lo apto a percebê-las antes que se tornem realidades manifestas e provavelmente com consequências desastrosas. Intuição e premonição são talentos inatos, porém, necessitam ser desenvolvidos pela longa epopeia de uma análise efetiva.
7 A palavra superior foi proferida em um tom pernóstico e impregnado de afetação autoritária.
8 Em português, No armário do Vaticano (Editora Objetiva). O original francês tem um título bem mais significativo: Sodoma: une enquête au coeur du Vatican (Éditions Laffont). Um eminente cardeal no Vaticano, ao receber o jornalista para uma entrevista, lhe disse: "Bem-vindo a Sodoma".
9 "P.A.: Não tenho dúvida do 'fato' da religião como uma parte, talvez uma parte inalienável, do caráter humano" (Bion, 1991c, p. 521).
10 "P.A: Certamente. Não tenho dificuldade em aceitar que exista tal possibilidade, mas, até o ponto em que minha limitada capacidade permite-me alcançar a verdade, eu não experimentei a realidade da qual você fala" (Bion, 1991c, p. 342).
11 "Devotees of religion often do not appear to develop any increase of mental ability - Devotos da religião amiúde não parecem desenvolver qualquer aumento na capacidade mental" (Bion, 1991c, p. 549).
12 Que podem ser verificadas na postura antiprofeta da citação de "The ego and the id" (Freud, 1923/1978a) que faço adiante.
13 Alguns colegas torcem o nariz para o livro que menciono a seguir, pois nele estaria o testemunho de uma pessoa digna de pouca consideração, apesar de ter sido a governanta da família Freud por mais de 30 anos. O comentário desqualificante eu ouvi de uma colega graduada, e indicava claramente que pessoas da classe dela ("esse tipo de gente") não mereceriam ser levadas a sério. Acho, ao contrário, que o livro é altamente interessante para revelar Freud e sua família (incluindo sua filha Anna) como criaturas cheias de características iguais às dos demais mortais, encarnadas, e com vicissitudes tão humanas e comuns. O livro não contém quaisquer julgamentos de valor por parte da governanta, que trata do que relata com muita naturalidade e respeito, e choca os que anseiam por um Freud zen e por sua família estando "acima de qualquer suspeita" (Berthelsen, 1996). O anseio em preservar um Freud idealizado e "santo" nem sequer permitia que o livro pudesse ser considerado ou lido pela colega.
14 "Deve-se fazer uma distinção no emprego dos termos 'psicótico' e 'insano'; um analisando pode ser psicótico e insano, bem como psicótico e são. É útil admitirmos um tipo de progresso analítico que vai da psicose insana à sanidade psicótica" (Bion, 1967, p. 133).
15 Diferente de terapias de suporte, de apoio, psicoterapias, terapias cognitivas, psiquiatria, e tantas outras práticas que podem ser com elas confundidas, visto que o nome "Psicanálise" tem sido apropriado por todo tipo de "praticantes", até mesmo por membros de seitas religiosas que dela querem se apropriar, mas distorcendo e corrompendo completamente sua essência.
16 Deixando-se levar pelo inconsciente (o cavalo), em vez de a ele se opor, Freud chegou à Interpretação dos sonhos.
17 Desejo a todos uma Feliz Loucura e uma Fissão Relativística... (seria uma possível tradução).