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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.50 no.93 São Paulo dez. 2017

 

TEMAS LIVRES

 

Travessia: a clínica de um término anunciado

 

The crossing: the clinical practice of an announced end

 

La travesía: reflexiones sobre la clínica de un fin anunciado

 

Le passage: la clinique d'une fin annoncée

 

 

Sonia Maria Camargo Marchini

Membro associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, SBPSP. São Paulo. smcmarchini@gmail.com

 

 


RESUMO

A autora propõe uma reflexão sobre desenvolvimento simbólico e trabalho de luto com foco na angústia de separação na análise de criança pequena. Trata-se de uma situação específica na qual o término da análise foi decidido pelos pais, e a interrupção se deu após seis meses, conforme o acertado entre analista e pais. Esta reflexão baseia-se no trabalho analítico alcançado por meio da busca de sentido dos afetos vivenciados e expressos nos movimentos da transferência e contratransferência em diferentes níveis de simbolização.

Palavras-chave: psicanálise de crianças, término, angústia de separação, simbolização


ABSTRACT

The author proposes a reflection on symbolic development and the work of mourning, which was particularly focused on the anguish of separation in the analysis of a young child. It is about a specific situation in which the end of analysis was decided by the parents. The analysis was suspended six months later, as agreed between analyst and parents. This study is based on the psychoanalytic work that resulted from searching for the meaning of affects which were both experienced and expressed in the movements of transference and countertransference at different levels of symbolization.

Keywords: child psychoanalysis, interruption, anguish of separation, symbolization


RESUMEN

La autora propone una reflexión sobre el desarrollo simbólico y el trabajo de luto a partir de la angustia de separación en el análisis de niños pequeños. Presenta una situación clínica en la que los padres decidieron terminar el análisis. La interrupción ocurrió seis meses más tarde, como había sido combinado previamente entre la analista y los padres. Esta reflexión se fundamenta en el trabajo analítico logrado a través de la búsqueda del sentido de los afectos vivenciados, expresados en los movimientos de transferencia y contra-transferencia en diferentes niveles de simbolización.

Palabras clave: psicoanálisis del niño, interrupción, ansiedad de separación


RÉSUMÉ

L'auteur propose une réflexion sur le développement symbolique et le travail de deuil ciblée sur l'angoisse de la séparation à la fin de l'analyse d'un jeune enfant. Il s'agit d'une situation spécifique où l'interruption de l'analyse a été demandée par les parents et l'analyste et l'enfant ont travaillé cette séparation pendant six mois, selon ce qui a été accordé. Cette réflexion s'appuie sur le travail d'analyse qui a été accompli au moyen de la recherche du sens des affects vécus et qui se révèlent dans les mouvements de transfert et de contre-transfert en différents niveaux de symbolisation.

Mots-clés: psychanalyse d'enfant, interruption, angoisse de la séparation, symbolisation


 

 

Introdução

O analista de criança frequentemente se depara com a interrupção da análise, por determinação dos pais. Ainda que eles sejam as pessoas mais adequadas para cuidar dela se tudo correr bem, a decisão de recorrer a um analista para o atendimento da criança leva inevitavelmente os pais a se sentirem incapacitados e ressentidos em algum nível. Na minha experiência clínica, observo que quanto menor a criança mais os pais resistem a admitir a necessidade de recorrer à ajuda profissional, devido à presença de dificuldades, sejam elas emocionais ou mesmo em seu desenvolvimento mais global. Além do ressentimento narcísico, é possível que, numa época em que o vínculo de confiança básica na relação pais-criança ainda está sendo construído, seja mais difícil confiar o filho aos cuidados de um terceiro. Dada esta característica da psicanálise de crianças, vários autores, como Anzieu (1988), Lisondo et al. (1996) e Petricciani (2011), consideram que a receptividade do analista pode ajudar os pais a elaborarem suas fantasias em relação ao filho e à sua análise, não só acolhendo-as, como também permanecendo atento à contratransferência em relação a eles. Hoje considero que, nesse trabalho com os pais, a construção ou mesmo a restauração da confiança, em suas próprias competências enquanto pai e mãe, pode tornar-se uma forte aliada. Na análise da criança que cunhei como João, aqui considerada, entretanto, não foi possível evitar a interrupção, apesar do trabalho de entrevistas mensais com seus pais.

A partir do relato clínico do último semestre dessa análise, que se iniciou quando João estava com 3 anos e 10 meses, proponho uma reflexão sobre angústia de separação, desenvolvimento simbólico e trabalho de luto. Penso que a busca de sentido dos afetos vividos que se revelaram nos movimentos de transferência e contratransferência em diferentes níveis de simbolização propiciou a elaboração do luto por sua perda e a consequente renúncia da analista. Para fundamentar essa reflexão apresentarei inicialmente a visão de alguns teóricos do desenvolvimento emocional relativo à primeira infância, tendo como foco a elaboração da angústia de separação e o desenvolvimento simbólico.

 

Angústia de separação, desenvolvimento simbólico e trabalho de luto

Para passarmos da indiscriminação do objeto primário ao reconhecimento de si mesmo com mente própria, é necessário um longo processo. Processo com o qual nos ocupamos no dia a dia dos nossos consultórios, mas que nunca é concluído, na incessante busca de identidade, nossa e das pessoas que nos procuram. Na realidade, tarefa primeira e da vida inteira.

Segundo Quinodoz (1991/1993), pode-se dizer que Freud dedicou toda sua vida ao estudo das reações inconscientes à separação e à perda do objeto amado. Em 1926, Freud (1926/2014) fala em angústia de aniquilamento - reação automática originária ao desamparo, diante da incapacidade de dominar o acúmulo de excitação - e angústia como sinal na situação de perigo. É quando o bebê passa a perceber a mãe como objeto que a situação de perigo se desloca para a separação e perda dele. Ele introduz diferentes níveis de angústia, conforme as distintas situações de perigo, articulando a angústia de separação ligada à relação entre duas pessoas e a angústia de castração ligada à relação triangular.

Klein (1934/1981a; 1946/1981b) também fala em angústia de aniquilamento, só que a liga à ameaça de destruição advinda da pulsão de morte. De sua perspectiva, a angústia de separação pode ser vivida de modo persecutório (posição esquizoparanoide), com vivência de fragmentação e temor de ataque do objeto sentido como mau, e de modo depressivo (posição depressiva), possibilidade de integração e angústia de perder o objeto bom, depois de ter sido amado como objeto total. Com suas descobertas, Klein propiciou muitos desdobramentos com relação à compreensão dos primórdios do desenvolvimento emocional, dos estados de não integração originais.

Dos pós-kleinianos destaco as contribuições de Bion e de Hanna Segal. Bion (1962/1980) acrescenta ao conceito de identificação projetiva de Klein uma nova função - a de comunicação entre o bebê e a mãe, com base em sua intuição de que o bebê necessita da mente da mãe como continente transformador de suas angústias e experiências sensoriais em experiências emocionais. Proposições de enorme alcance clínico por oferecer um novo vértice para a função do analista - a de continente pensante para o analisando no desenvolvimento de sua autonomia mental.

Segal (19581982) contribuiu com o estudo do papel da diferenciação entre o ego e objeto no desenvolvimento simbólico. Denomina equação simbólica a equiparação do símbolo ao objeto original, cuja concretude se presta a "negar a ausência do objeto e controlar o objeto persecutório" (1957/1982, p. 88). Na discriminação gradual entre realidade interna e externa, a simbolização é fundamental: o símbolo passa a representar o objeto e a ser usado para sobrepujar a ausência ou perda dele. De acordo com o grau de organização do ego e consequente nível de angústia, há uma oscilação entre equação simbólica e símbolo verdadeiro.

A contribuição de Winnicott é fundamental nessa síntese. Trata-se da formulação do espaço transicional (Winnicott, 1971/1975) - zona de transição entre a ilusão narcisista do bebê de a mãe ser sua extensão e o reconhecimento da separação entre eles. Conforme França (2014), podemos pensar com esse conceito nas possibilidades simbólicas como um continuum: da equação simbólica, passando ao espaço transicional e deste ao símbolo verdadeiro.

O trabalho do luto desempenha um papel central nesse desenvolvimento. A evolução normal pode, até mesmo, ser considerada como uma sucessão de lutos, ligados às mudanças, ao longo de toda a vida. É uma das passagens obrigatórias na elaboração das angústias de diferenciação e de separação, e fator decisivo na elaboração edípica. Assim como na interrupção/alta da análise, o trabalho do luto faculta ao analisando e ao analista tolerarem a solidão sem angústia excessiva, renunciarem à onipotência e ao sentimento de imortalidade, internalizando e desenvolvendo a função analítica. Sim, esse trabalho de luto também se impõe ao analista a cada interrupção ou término de análise, na medida em que ele está tão implicado quanto seu próprio paciente.

 

A situação

A família de João, recém-transferida de sua cidade natal, me procurou para que eu o atendesse. João era uma criança tranquila, desenvolvia-se bem até a chegada do irmão, quando tinha 3 anos. Após alguns meses, com a mudança de cidade, suas dificuldades se intensificaram, e ele se tornou agressivo e "reclamão", encontrando dificuldade na adaptação escolar. Penso que, nesse momento crítico na vida da família, necessidade de muitas adaptações, foi ele quem se rebelou mais ruidosamente, demandando dos pais a busca de ajuda.

Sua mãe o apresentou como uma criança intensa, indagativa e que se expressava muito bem verbalmente. Já nos primeiros contatos pude observar que havia um descompasso entre seu desenvolvimento emocional e o nível intelectual. Por ser uma criança sensível e muito inteligente, que demandava um grau de compreensão bastante elevado e dispor de um ambiente relativamente precário para lhe oferecer a continência necessária, faltavam-lhe recursos internos para lidar com suas angústias, tanto as mais primitivas, de separação em relação ao objeto primário, como as ligadas à problemática edípica, ansiedade de castração e rivalidade com o irmão. Sua mãe mostrava-se desanimada diante do trabalho que o trato com ele lhe impunha, e seu pai tendia a se apresentar como o que encontrava soluções para tudo, sendo pouco receptivo. Quando conheci João em entrevista conjunta com a família, ele nos surpreendera, a mim e aos pais, ao perguntar se poderia ficar ali mil horas. Teria ele reconhecido que ali comigo ele poderia encontrar o que lhe faltava? Em análise, outras manifestações suas, como, diante da aflição de não se lembrar de um filme, aliviar-se com a ideia, que lhe ocorreu, de que aquele era o seu filme e que, portanto poderia fazer como quisesse, ou ainda ele dizer que ali (sala de análise) era um teatro, e eu tinha que dizer o que estava acontecendo, levaram-me a considerar que ele intuía a função psicanalítica do atendimento, e, de fato, ele desenvolveu uma transferência prevalentemente positiva.

Houve momentos em que duvidei de minha competência para atendê-lo. Sensível a qualquer quebra de sintonia, João tornava-se tirânico, gritava, desesperava-se, e era-me difícil não me contaminar e também desanimar, como sua mãe. Se, por um lado, João instigava no objeto o desejo de atendê-lo, sua sensibilidade excessiva às falhas dele, também expunha o objeto a sentimentos de insuficiência e, possivelmente, de ambivalência com relação a ele. Esta aparecia explicitamente no pai, que, com relativa frequência, atrasava a chegada de João à sessão. No entanto, eles também estavam mobilizados pelo sofrimento de João e buscaram o atendimento, aderindo à indicação de análise com a frequência inicial de duas e, após alguns meses, três sessões semanais.

Quando soube da decisão de interromperem a análise, já haviam empenhado o valor dela na prestação de um carro novo, o que considerei como uma atuação transferencial da parte dos pais sobre a análise de João. Posteriormente soube que a família retornaria à cidade natal, pois o pai aceitara uma nova proposta de trabalho lá, ainda que isso estivesse fora de seus planos. Considerei, então, que estavam em jogo, além da questão transferencial, outras questões que ultrapassavam a relação dos pais com a análise do filho. Ainda assim, foi possível negociar com eles o período de seis meses e a manutenção das três sessões semanais para o término da análise.

 

Último semestre

Então com 6 anos, um dia João adoeceu. No final de uma sessão em que tinha estado agitado e disperso, pede-me para colar em sua caixa uma fita com os dizeres: Socorro! Eu estou morrendo. Teve que ser hospitalizado. A punção à qual fora submetido, por suspeita de meningite, deixou-o com dor nas costas e sem andar por três dias, não tendo ficado esclarecida a causa dessa imobilidade transitória. Foi diagnosticada uma pneumonia.

Em entrevista com os pais, soube da decisão deles de interromper a análise de João. Na ocasião, baseando-me na leitura teórica que Meltzer (1993) faz do modelo bioniano do aparelho protomental, desenvolvi a hipótese de que o adoecimento de João fora um transbordamento de angústia numa reação psicossomática à captação (inconsciente ou por uma escuta desavisada) da decisão dos pais, que só lhe contaram posteriormente. Meltzer compara o aparelho protomental à mentalidade do computador: "... se o computador não é programado (a mentalidade segundo os supostos básicos é uma tentativa de programação), os dados saltam para fora... atacando os órgãos e suas funções e são portadores do caos".1 A preocupação com a data do término acompanhou-o desde o início da análise (as mil horas), evidenciando sua intensa angústia de separação e dependência da analista, devido à sua ainda incipiente capacidade simbólica para representar a ausência dela.

Posteriormente João teve crises menores. Sentimento de traição, protesto, agressão física à analista, um curto período de enurese, dores de cabeça foram algumas de suas manifestações durante o difícil processo de elaboração da separação anunciada. As brincadeiras o aproximaram das concepções de passagem do tempo e de espaço. Tais como a construção de uma enorme ampulheta feita com garrafas pet e muitas "viagens", nas quais diferentes distâncias eram encenadas e ele as tentava medir. Foram muitas as oscilações entre busca de sentido e ataque à capacidade de pensar.

João propôs cenas, nomeadas por ele como As tranças do rei careca e A volta do que não foi, e o jogo Quem sou eu. Penso que buscava expressar seu sentimento de que fora enganado, o que o levava à indagação relativa à sua identidade, ao lugar que ocupava na família, na análise. Apesar dessas tentativas de expressão, elaboração e, provavelmente, de representação da ausência futura da analista, sua agressividade acabou prevalecendo, o que o levou a jogar a caixa lúdica no lixo, numa espécie de ataque à sua capacidade de ligação, ao vínculo com a analista. A caixa estaria representando o receptáculo da história da dupla. A revolta e o ódio prevaleceram e a impossibilidade de uma elaboração suficiente levou consigo, por ora, a esperança de João.

As seguintes vinhetas se deram após esse momento.

Prólogo da separação definitiva

Última sessão antes de uma quinzena de férias. João entra me apontando uma vareta de plástico, com uma expressão ligeiramente ameaçadora. Rápido, senta-se na minha cadeira. Com as mãos apenas a meio caminho do alto, digo pausadamente: - Isto é... uma arma? Responde que não. Continuo: "Hum...

Então é um sinal de que tenho que estar alerta". Ele, ignorando-me, "atira". Ele também me engana, assim como se sentira enganado por mim, por eu ter-lhe dito, mais de uma vez, que nós dois saberíamos quando chegasse a hora de terminar?

Em seguida faz da vareta uma bengala e anda pela sala, encurvado. Depois luta como um samurai. Seus golpes me atingem de leve. Durante algum tempo alterna o velhinho e o samurai. Assinalo a presença na sessão do "João velhinho" e do "João samurai". Ele acrescenta: - E o da explosão. Mas é como Samurai que prossegue a ação.

Transforma então a sala em sua fortaleza e me expulsa. Propõe que eu diga: - Ai, eu queria morar numa fortaleza, sair desta podridão. Penso que as limitações humanas são vistas aqui como podridão, e, por isso, ele procura se reassegurar que pode proteger-se. A podridão poderia também estar representando o lugar das entranhas, suas pulsões destrutivas, aquilo que o enfraqueceria, e ele, como Samurai, refugiar-se-ia na fortaleza. De todo modo, presencia-se aqui uma intensa luta entre desvitalização (o velho) e coragem e força (o samurai e o da explosão).

Numa sequência de mensagens, fico sabendo que deverei ir ao Japão porque serei rainha, quase rainha... rei! Quando chego fico sabendo que era tudo mentira. Devo ir para o outro lado do Japão, meus pais morreram... Não, meu pai está doente, mas minha mãe morreu. Não tenho escolha, está no meu sangue. Vou ter que salvar o mundo da destruição, enfrentando o Dark Side e o Apocalipse. Tudo isso me é dito num tom ora duro, ora zombeteiro, sádico. Encenando desespero, digo: - O que está acontecendo? Não estou entendendo mais nada. Primeiro o samurai me chama para ser rainha da sua fortaleza, depois para ser rei. Mas era tudo mentira! Aí eu fico sabendo que meus pais morreram, depois, só a minha mãe... Quem sou eu, afinal? Por que estão me confundindo tanto? Por que estão me enganando? Verbalizei dramaticamente aqui seu sentimento de perda da constância do objeto interno.

Aos gritos, ele reage: - Calada! Calabouço, Guardas, calabouço! Digo, então, meio baixinho: - Neste lugar não posso dizer o que sinto, tenho que engolir tudo, ficar quietinho, se não... Calabouço!

Após uma pausa, em tom reconfortante, ele me conta que foi o Dark Side, Apocalipse e Medusa, que me prendeu, eu e meus pais, mas o samurai vai nos salvar. Ele deve subir aos saltos uma montanha muito alta. Da prisão, "conseguimos" vê-lo. Cai, cansa-se, é atingido por um raio, que o devolve à condição de criança. Tocada por essa transformação, procuro espontaneamente estimulá-lo: - Vai! Você consegue, você é corajoso! Ele prossegue: - Vou tentar desfazer o efeito do raio. Não consigo! Vou ter que enfrentar essa montanha como criança? Digo: - É, tem coisas que uma criança não consegue enfrentar sozinha, e ela se sente como se tivesse que atravessar uma montanha. Estava convicta dessa ligação entre separação transitória e separação definitiva. Porém, contratransferencialmente me sentia muito pressionada a não saturar o campo com a ideia do término e, justamente por isso, não descarto a possibilidade de ter saturado a interpretação com a ligação que fiz.

Penso que, talvez, como rainha (função materna) ou como rei (função paterna), eu pudesse intervir para que não sofresse tanto. À medida que nomeio meus próprios sentimentos "na pele" dele, consegue refazer-se e "me" confortar, cindindo o casal parental: os bons pais estão impotentes porque foram presos, juntamente com o filho, pelos personagens terrivelmente destrutivos, Apocalipse e Medusa, do Dark Side. O Dark Side poderia estar representando o lugar em que se dá a vida erótica dos pais: seria maligno por lhe ser inconcebível e, por isso, se prestaria como continente de projeção da hostilidade diante da sua impotência em relação aos pais. E ainda, conforme Rocha Barros (2015) sugere, ao sentir-se derrotado como Samurai, ele perderia a condição de proteger os pais de seu lado Dark Side, e assim a separação significaria ser deixado desamparado diante dessa força avassaladora dentro dele. Da prisão, os pais "conseguem" vê-lo e "estimulá-lo", isto é, continuam preocupados com ele, o que o leva a se aproximar de sua realidade de criança. Encorajam-no. E ele se indaga, então, sobre sua potência. França (2014), citando Anne Alvarez, aponta a importância de que as vivências de exclusão se limitem ao relacionamento erótico dos pais, uma vez que a criança necessita perceber-se incluída na vida afetiva deles.

Barros (2015), a propósito dessa vinheta, comenta que o herói sempre é órfão, pois, ao nascer, seus pais desaparecem. Daí o Édipo do herói ser sempre parcial. Ele traz consigo a nostalgia dos pais que nunca teve. A possibilidade de ter sentimentos de hostilidade em relação aos pais o devolve à condição de criança, e, aí sim, ele vai poder viver o Édipo construtivo, em torno do qual se estrutura a mente. Vai poder levar algo consigo.

Verbalização da cena traumática pós-expressão da agressividade

João queria muito ir dormir na casa de um amigo e dissera aos pais que ele poderia ter a sessão em outro dia, mas eu não pude atender ao seu pedido, que me chegou pela mãe. Sugeri que o deixassem escolher, e ele escolheu não vir. Assim, pôde experimentar ser ele quem escolhe como e quando se ausentar.

Ao entrar, percebo que está zangado comigo, pois ele queria ir à casa do amigo e não perder a sessão, conforme sugerira à mãe. Não traz nada nas mãos.2 Aponto sua raiva por não ter podido fazer do seu jeito e a associo com a marcação da data do término, quando ele também não pôde fazer do seu jeito. Ele me faz calar com um blá, blá, blá... Pega papel e lápis, que tenho deixado disponíveis desde que está sem sua caixa, e me propõe que escreva os nomes dos Pokémons3 que gostaria de ter, atividade que ocupa boa parte da sessão. Desenha a pokebola (de onde saem os Pokémons), cujo centro é vermelho. Pede-me lápis vermelho para pintá-lo, e eu digo que só tem na caixa. Como ele já sabia que eu a guardara, ele sugere que eu a traga de volta, dizendo: - Tá bom, você traz o lápis e depois pode jogar aquela porcaria no lixo.

João me despreza por minha limitação: não atendi seu pedido de mudar o dia da sessão e, penso, não fui capaz de impedir a interrupção, como ele parece acreditar que o poderia. Sente-se sozinho, então, decidindo trazer os Pokémons para a sala. Com isso parece não só negar sua condição de dependência do objeto (ele se bastaria com seus Pokémons inseparáveis, literalmente bonecos levados no bolso), quanto negar a própria triangulação (eles surgiram de geração espontânea). Ao mencionar a caixa, penso ter acentuado uma ausência, as construções da dupla como o terceiro ausente.

No dia seguinte, ao deparar com a caixa, tem um ataque de fúria: ataca-a aos pontapés. Durante vários minutos atira todos os objetos para longe. Ainda zangado, pede-me que lhe ajude a recolher tudo. Acalma-se. Com o lápis vermelho pinta, então, o centro da pokebola. Fala em sangue, lembra-se do exame que fez no hospital (a punção e sua impossibilidade de andar durante três dias). Diz que seu pai ficou muito bravo com o médico, tendo lhe dito: - Nunca mais faça isso sem me avisar!

Podemos, então, conversar sobre o episódio pela primeira vez. Eu o associo à decisão do término da sua análise: ter deixado ele fora desta decisão tinha doído muito, ele até tinha ficado doente, três dias sem conseguir andar. "Fizemos isso" sem perguntar o que achava. Dessa vez ele me escuta. Penso que a reintrodução da caixa, como representante de algo inacessível, porque sua presença lhe era insuportável até então, torna possível nomear a cena traumática e integrá-la à invasão do setting pela decisão dos pais.

Realização simbólica possível da separação

Recebo-o em silêncio, com uma ligeira inclinação da cabeça. Estava muito emocionada nesse início de sessão, e, penso, esse foi o modo com que expressei a importância da ocasião. Ele me pergunta por que o recebo com o cumprimento do judô (parece associar essa sessão a uma luta) e me conta que foi aprovado no judô. Ele, por sua vez, anuncia-me que inicia sentindo-se potente.

- Vamos brincar - diz. Pega o barbante na caixa e amarra suas pontas nos puxadores das duas gavetas da minha mesa e as abre à distância, puxando o barbante. Muito satisfeito, repete o movimento várias vezes. Como praticante da ação, ele provavelmente fantasia os dois seios4 à sua disposição. Houve muitos "abrir das gavetas à distância" conforme o dia D se aproximava. Ocasiões em que reconheci e lhe apontei seu desejo de ter, sob seu controle, o acesso aos meus guardados como representantes da minha capacidade de pensar com ele sobre seus sentimentos.5 Nesse dia, apenas o observo em silêncio, até que ele me solicita a sacola bem grande que me pedira na sessão anterior, quando, ao enumerar tudo que levaria, dissera, meio jocoso, que levaria até mesmo os móveis, nomeando cada um. Penso que assim, na concretude da sacola, expressou a necessidade de um continente mental no qual pudesse guardar consigo sua experiência analítica. Entrego-lhe a sacola, dizendo: - Esta não é tão grande, que dê para pôr todos os móveis, eu...

Ele diz baixinho, rindo: - Só se fosse do tamanho do saco do homem do saco. Baixinho também, me escuto dizendo: - O saco da Joana do saco só existe nas estórias. De pronto ele protesta: - Mas eu disse homem do saco!!!

Procurando me refazer do impacto com o meu ato falho, prossigo: - Então... temos o Homem do Saco, que quer levar no seu saco tudo da sala, até eu... e a Joana do saco... ela quer levar quem? - A joaninha, ué! Diz simplesmente, certeiro. Identificado com o homem do saco, João parece acreditar que só assim, roubando os conteúdos da sala, estaria a salvo como menino. A essa altura, ele está se sentindo arrancado da análise, impotente. Não se sente pronto ainda. Ao introduzir a Joana6 "com seu saco" - revelação de um aspecto inconsciente meu, antes de poder usar minha capacidade de pensar, como diz Annie Anzieu (1988) -, verbalizei o desejo complementar de retê-lo comigo, por me sentir igualmente impotente, diante da interceptação (dos pais) indesejada, e roubada. Considerava, pois, ter condições de continuar a lhe dar a continência necessária para que prosseguisse até poder prescindir de mim. O surpreendente é que a expressão do meu protesto inconsciente em deixá-lo partir fez com que João se apropriasse de sua identidade de menino. Ele desfez a indiscriminação (João/Joana),7 lidando assim com a angústia de castração (aqui, como medo da perda de seus bons conteúdos internos). À Joana, caberia a joaninha-menina e a ele... bem, ele teria ainda tempo ali de ter a experiência de sentir-se capaz de prosseguir sem mim, com os recursos de menino que tinha desenvolvido até então?

Quando o barbante de uma das gavetas solta, diz que dá para brincar de limbo.8 Outra brincadeira do nosso repertório - o barbante amarrado em duas extremidades da sala, sob o qual tínhamos que passar sem esbarrar nele, para não cair no limbo, isto é, sair da brincadeira. Um jogo de eliminar/ser eliminado, assim interpretado por mim em outras ocasiões. Mas desiste da brincadeira. Por um momento fugaz, parece acreditar onipotentemente que, se ganhar o jogo, ele não vai sair da análise.

Vai até a caixa e começa a ensacar as coisas que vai levar. Não registrei o que selecionou então, e isso me levou a pensar que não era mesmo o mais importante. Ao encontrar uma moto de fricção com seu piloto, decide construir uma ponte entre a minha mesa e aquela onde costumava brincar. Travessia que parece representar seu desejo de dar continuidade ao trabalho iniciado comigo, contando com o que ele já desenvolveu ali, seu próprio suporte (a mesa menor).

Está difícil construir a ponte, a fita crepe que utiliza para tanto é estreita. Fica impaciente. Atendo-o ao reclamar minha ajuda. Quando se dá por satisfeito, testa. Após a moto cair várias vezes, resolve tentar lançá-la sem o piloto e aí consegue. Talvez uma travessia teledirigida, já que ele tem medo de "cair", não se sustentar com o que tem? Não! João não desiste. Há que estar inteiro nessa travessia. É urgente que consiga, pois o tempo se escoa. Se na construção da ponte ajudei-o, na travessia só me cabe aguardar. Aguardar num silêncio expectante, prenhe de uma aposta apaixonada. Estamos tão concentrados, que é como se o destino de tudo o que ele desenvolvera na sua análise dependesse do sucesso daquela empreitada.

Volta a insistir com o piloto sobre a moto, até que consegue, já no final da hora. Passado o júbilo imediato pelo feito, ele calma e naturalmente apenas acrescenta à sua sacola a moto e o piloto. Eleito o objeto princeps, representação do encontro comigo e consigo mesmo, penso que ele pode então enfrentar a separação, concluir a passagem pela "ponte" construída pela dupla, vínculo afetivo entre nós, e partir.

 

Comentários finais

Nessa última sessão, podem-se verificar diferentes níveis da capacidade de simbolização que sugerem o continuum: da equação simbólica, passando pelo espaço transicional à representação simbólica. O saco do homem do saco equacionado ao aparelho para pensar e os móveis e conteúdos das gavetas, aos pensamentos. João está no espaço transicional, quando faz a travessia da moto - concentrado, em silêncio e sem a minha ajuda -, demonstrando sua capacidade de estar só em minha presença. E, finalmente, ao eleger a moto com seu piloto, cria o símbolo com o qual pode fazer a "travessia", como disse acima. Brincando, ele criou a sua metáfora para a capacidade de autossustentação (Quinodoz, 1991/1993), relativa, naturalmente, dada sua idade? Quinodoz assim a define:

É uma sensação nova e complexa, em que se misturam a alegria e um pouco de medo, acompanhada do sentimento de finalmente ser ele mesmo, de saber que pode dirigir a si próprio conhecendo seus limites no tempo e no espaço, e de perceber as idas e vindas do objeto sem angústia excessiva. (p. 171)

Considero essa sessão a síntese do percurso da análise, que durou dois anos e meio. O fato de ela ter sido mais silenciosa do que o padrão habitual - João brincou a maior parte do tempo, e eu mais observei - leva-me a pensar que há ocasiões na análise, como na vida, em que se dispensam as palavras e que o compartilhamento de uma vivência intensamente investida de afeto pode ser a interpretação. A posteriori, considero que ao ter permanecido em silêncio não o desviei da experiência que estava vivendo, e isso propiciou o andamento do que estava se processando no seu Self. Recorro ainda a Ogden (1995), para lembrar que é no silêncio que se cria o espaço para que surja o terceiro analítico.

Uma palavra a respeito da contratransferência. Com as vinhetas clínicas, além da evolução da análise, pretendi ilustrar o desafio que enfrentei de manter a capacidade suficiente de elaboração, a cada momento, para que pudesse tomar a distância necessária à interpretação, para que a ideia saturada de que nosso tempo estava acabando não prevalecesse. Como aponta Anzieu (1988), a presença real dos pais reativa no analista os conflitos infantis com suas próprias figuras parentais, remetendo-o aos sentimentos de impotência e aos processos de elaboração da separação.

Para finalizar, pode-se dizer que, com os recursos simbólicos desenvolvidos, João conseguiu elaborar o luto relacionado à perda da analista como pessoa real, por seu caráter único de intimidade. Seria demais dizer que ele conseguiu internalizar um modo de separar-se que pode lhe ser útil vida afora? A condição de mobilidade psíquica (um critério para avaliar o término, segundo Hanna Segal, citada por Quinodoz, 1991/1993) demonstrada no continuum me leva a considerar que o nosso trabalho conjunto foi suficientemente bom, apesar da interferência externa na situação analítica.

 

Referências

Anzieu, A. (1988). Construction et contre-transfert en psychanalyse de l'enfant. J. Psychanalyse de l'Enfant, 5,63-86.         [ Links ]

Barros, I. G. (2015). Reunião Científica na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, agosto.         [ Links ]

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Recebido em: 3/5/2017
Aceito em: 7/9/2017

 

 

1 Tradução livre da autora.
2 Desde que rejeitou a caixa, invariavelmente traz seus brinquedos para a sessão.
3 Literalmente, Pokémon significa "monstros de bolso". Os Pokémons foram criados pelo programador japonês Sathoshi Tajiri. São criaturas que se desenvolveram ao longo do tempo e fizeram amizade com os humanos (Wikipedia).
4 Metaforicamente a capacidade de pensar do analista (Bion).
5 Sua versão do que fazíamos juntos, ao responder para sua professora: - Ela fala comigo dos meus sentimentos.
6 Joana remete à "casa da mãe Joana", expressão idiomática: lugar onde todos podem entrar e sair quando bem entendem.
7 João/Joana aparece como "terceiro analítico" (Ogden, 1995). Terminologia empregada pelo autor ao se referir à intersubjetividade inconsciente da dupla analítica resultante do encontro entre a subjetividade singular de cada membro da dupla.
8 Limbo: lugar para onde vão as crianças que morrem sem batismo; lugar onde se deixa aquilo a que não se dá importância (Dicionario Contemporâneo Caldas Aulete, 1958).

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