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Jornal de Psicanálise

versão impressa ISSN 0103-5835

J. psicanal. vol.52 no.96 São Paulo jan./jun. 2019

 

CONVERSANDO E ESCREVENDO - ENCONTRO DO JORNAL DE PSICANÁLISE

 

Des-construção e trans-formação: sonhando a formação psicanalítica1

 

De-construction and trans-formation: dreaming the psychoanalytic formation

 

Des-construcción y trans-formación: soñando la formación psicoanalítica

 

Dé-construction et trans-formation: rêver la formation psychanalytique

 

 

Carmen C. Mion

Membro efetivo, analista didata, supervisora e docente da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP). Membro do Comité de Educación da Fepal de 2005 a 2010. Membro do Education and Oversight Committee da IPA de 2011 a 2017. São Paulo. carmenmion@uol.com.br

 

 


RESUMO

Em uma "Nota Preliminar" ao seu livro Mensagem, único publicado em vida, Fernando Pessoa enumera as cinco qualidades que considera necessárias ao interprete que pretenda o entendimento dos símbolos, "sem as quais os símbolos serão para ele mortos, e ele um morto para eles". As qualidades citadas - 1. Simpatia, 2. Intuição, 3. Inteligência, 4. Compreensão e 5. Graça - inspiram e são utilizadas pela autora como introdução para a discussão de alguns elementos considerados importantes para a formação do psicanalista.

Palavras-chave: formação psicanalítica, experiência estética, intuição psicanalítica, articulação clínico-teórica, personalidade do analista


ABSTRACT

In a "Preliminary Note" to his book "Message", the only one published in life, Fernando Pessoa enumerates the five qualities he deems necessary for the interpreter who intends to understand the symbols, "without which symbols will be dead to him, and he's dead to them". The qualities cited - 1. Sympathy, 2. Intuition, 3. Intelligence, 4. Comprehension and 5. Grace - inspire and are used by the author as an introduction to the discussion of some elements considered important for the formation of the psychoanalyst.

Keywords: psychoanalytic formation, aesthetic experience, psychoanalytic intuition, clinical-theoretical articulation, personality of the analyst.


RESUMEN

En una "Nota Preliminar" a su libro "Mensaje", único publicado en vida, Fernando Pessoa enumera las cinco cualidades que considera necesarias al injerto que pretenda el entendimiento de los símbolos, "sin las cuales los símbolos serán para él muertos, y el un muerto para ellos". Las cualidades citadas - 1. Simpatia, 2. Intuición, 3. Inteligencia, 4. Compromiso y 5. Graza - inspiran y son utilizadas por la autora como introducción para la discusión de algunos elementos considerados importantes para la formación del psicoanalista.

Palabras clave: formación psicoanalítica, experiencia estética, intuición psicoanalítica, articulación clínico-teórica, personalidad del analista.


RÉSUMÉ

Dans une "Note Préliminaire" de son livre "Message", le seul publié dans la vie, Fernando Pessoa énumère les cinq qualités qu'il juge nécessaires pour l'interprète qui entend comprendre les symboles, "sans quoi les symboles seront morts pour lui, et il est mort pour eux". Les qualités citées - 1. Sympathie, 2. Intuition, 3. Intelligence, 4. Compréhension et 5. Grace - inspirent et sont utilisées par l'auteur comme introduction à la discussion de certains éléments jugés importants pour la formation du psychanalyste.

Mots-clés: formation psychanalytique, expérience esthétique, intuition psychanalytique, articulation clinique-théorique, personnalité de l'analyste.


 

 

Como sempre acontece ao pensar ou começar a sonhar algum tema relacionado à formação, é inevitável uma espécie de flashback das minhas próprias experiências durante a formação no Instituto. Em 1988, às voltas com a escrita dos meus relatórios clínicos sobre as supervisões curriculares, deparei-me pela primeira vez com a impossibilidade de enquadrar o trabalho que faço, a psicanálise, nos moldes e padrões da ciência tradicional a que estivera sempre tão habituada no Centro de Investigações em Neurologia da Clínica Neurológica da fmusp, onde havia trabalhado durante os dez anos anteriores.

Percebi com o tempo que não poderia ser de outra forma, já que, em psicanálise, instrumento e objeto de estudo se confundem. Tal como nas artes, a subjetividade é o seu território. Ressente-se da observação severa e imparcial, pois esta, longe de se converter em conhecimento, suprime o re-conhecimento, torna estranho o familiar.

Nem sempre fui exclusivamente psicanalista. A mim mesmo me causa singular impressão a comprovação que meus casos clínicos carecem, por dizer assim, do rigoroso selo científico e apresentam muito mais um aspecto literário. Porém me consolo pensando que este resultado depende inteiramente da natureza do meu objeto de investigação e não das minhas preferências pessoais. (Freud, 1905/1973a, p. 124)

Penso que a vocação da psicanálise para conter paradoxos está presente desde a sua origem como uma área de saber transicional entre Ciência e Arte. Ela está contida no próprio termo psycho-analysis escolhido por Freud e cujo significado para os seus contemporâneos pode nos escapar em nossa cultura (Bettelheim, 1982). Psyche geralmente é representada na mitologia com asas de pássaro ou borboleta e transmite conotações de beleza, fragilidade e insubstancialidade, qualidades ainda associadas à alma que não só sugerem o respeito, o cuidado e a delicadeza que se deve ter ao abordá-la, mas também prenunciam as dificuldades encontradas ao se tentar capturá-la. Já analysis implica um método de pensamento voltado para a compreensão ou a explicação de qualquer fenômeno de natureza complexa empregado pela ciência e que consiste em reduzir uma realidade intrincada, de difícil apreensão global, em seus componentes básicos e mais simples.

Consequentemente, a formação em Psicanálise, desde a sua origem, transita entre um saber que se pode avaliar objetivamente, cujos métodos e teorias são objetiváveis e transmissíveis, e que inevitavelmente remetem aos conteúdos e ao campo das ciências; e outro saber que envolve criatividade, intuição psicanalítica, uma transformação pessoal que transcende teoria e técnica, uma experiência estética que nos remete ao campo das artes.

Certamente essa ambiguidade tem consequências e desdobramentos no processo de formação. A impossível função a que se propõem os Institutos de Psicanálise, mediante seu tripé de formação (análise pessoal, supervisões e seminários teóricos e clínicos), é exatamente a de proporcionar e favorecer esse fazer analítico, um "vir a ser psicanalista" que envolva não só o conhecimento da teoria e do método psicanalítico, mas também um projeto de autonomia pessoal fundado em uma atitude de interrogação e busca permanente que jamais termina e se constitui como uma peculiaridade única no âmbito do saber e do fazer humano (Mion, 2017).

Para a nossa conversa de hoje fui buscar inspiração nos poetas, mais especificamente no poeta português Fernando Pessoa, em seu livro Mensagem, publicado em 1934, um ano antes da morte do autor. A obra trata do glorioso passado de Portugal.

Pessoa se utiliza da palavra Mensagem a partir de uma condensação da expressão latina: Mens agitat molem (O espírito move a matéria), uma citação de Virgílio (70-19 a.C.): Eneida, Capítulo VI - "No mundo dos mortos". Eneias encontra o pai, Anquises, a quem pergunta quem são aqueles que bebem das águas do Lethes, o rio do esquecimento, ao que o pai lhe responde que são as almas que hão de vir a ter corpos e que esquecem as suas vidas passadas, a sua história.

Não por acaso, escolhi esse texto de Pessoa, pois compartilho sua concepção filosófica de que o ser humano, assim como suas produções, constitui-se historicamente, e que a sua atualidade, a forma em que se apresenta, é o resultado das inúmeras experiências que o constituíram.

Compreendo o sonho como um mito particular que expressa uma versão armazenada e comunicável de uma experiência emocional em linguagem mitológica, disponível para o pensamento onírico e que, por meio da verbalização, torna-se disponível também para o pensamento consciente. Porém, não apenas o sonho noturno nosso de cada dia, particular e privado, mas também esses sonhos que trazemos em nosso íntimo, que se originam da soma das nossas experiências afetivas ao longo da nossa história e que podem vir a ser sonhos compartilhados. Penso ser fundamental sonhar a psicanálise e a formação, buscá-las no mais profundo do ser, da própria experiência de vida. No entanto, concordo com Kaës et al. (1989) quando identificam uma ilusão que é preciso abandonar quando passamos a pertencer a uma Instituição. A ilusão primeira é: "Eu sou a Instituição"; seguindo-se a esta uma segunda: "A Instituição pertence a um ser poderoso e anônimo que tudo controla".

Demora-se muito a perceber que a Instituição é a soma de todos nós que a ela pertencemos - cada um dos membros, que traz consigo o seu sonho/mito pessoal sobre a formação e que ao ingressar na Instituição evoluirá para a realidade ao se tornar um sonho compartilhado. Como lembrou o filósofo espanhol Santayana "o povo que esquece a sua história está condenado a repeti-la" (1905, p. 284).

Benedictus Dominus Deus

noster qui dedit nobis signum.

(Bendito seja o Senhor nosso Deus,

que nos deu o signo.)

Essa invocação de Pessoa que se apresenta como epígrafe do livro Mensagem (1934) nos remete de imediato à perspectiva bíblica apresentada no Livro do Gênesis e reinterpretada por Walter Benjamin (1992, p. 193) para quem a designação mágica da linguagem sugere a sua infinitude. Parafraseando Benjamin, eu diria: a designação mágica do signo sugere a sua origem divina, referindo-me aqui à divindade interior, para nós, o Inconsciente infinito.

"Deus quer, o homem sonha, a obra nasce"

(Pessoa, 1934, p. 57)

Grotstein (2000) sugere que o sonhador nunca representado no sonho é o Sujeito Inefável do Inconsciente, podendo ser compreendido como uma qualidade de ser (being) que está sempre criando reflexões metafóricas sobre si mesmo. Os sonhos estão entre as mais criativas, magníficas, enigmáticas e incognoscíveis criações. Somos mais nós mesmos sonhando os sonhos que nos sonham. Vou tomar a liberdade de me utilizar, ao longo deste artigo, dessa graça poética de Fernando Pessoa, "Nota preliminar" (1934, p. 4), que aparece como introdução aos poemas de Mensagem, para conversar com vocês sobre alguns elementos que considero importantes na formação do psicanalista.

 

1. Simpatia

O entendimento dos símbolos e dos rituais (simbólicos) exige do intérprete que possua cinco qualidades ou condições, sem as quais os símbolos serão para ele mortos, e ele um morto para eles.

A primeira é a Simpatia; não direi a primeira em tempo, mas a primeira conforme vou citando, e cito por graus de simplicidade. Tem o intérprete que sentir simpatia pelo símbolo que se propõe interpretar.

Freud e a Psicanálise: um sonho/ideia, uma arte/ciência

Certamente foi um objeto de amor que no passado motivou Freud a criar a ipa e, alguns anos depois, alguns pioneiros a criarem as diversas sociedades de psicanálise pelo mundo e que na atualidade constituem o elemento unificador de todos nós seus membros, esse sonho/ideia, nessa arte/ciência que chamamos Psicanálise.

Além da capacidade de sonhar, coloco aqui a presença de um forte elemento comum aos analistas: a paixão pela psicanálise. Tenho uma tendência a pensar que, se isso acontece, provavelmente seja porque é um elemento necessário ao tornar-se analista. Necessário não só como parte do nosso arsenal psicanalítico, como assinala Bion (1963), mas também como força impulsora em nosso eterno "vir a ser" analistas, porque o contato com sofrimento, isolamento e solidão tornam o medo e a dúvida nossos companheiros inevitáveis nessa jornada, caso não estejamos tomados por idealizações ou outras defesas (Mion, 2017).

A própria análise do analista (e reanálise) irá capacitá-lo a tolerar as experiências emocionais que envolvem o confronto com incoerência, não compreensão e sentimentos de dúvida e até mesmo de persecutoriedade. Não é fácil esse caminho dos psicanalistas, sempre na contramão da cultura. Viver um processo contínuo de aprendizado e desenvolvimento só será possível enquanto o analista mantiver sua paixão pela investigação, pela exploração das profundezas do inconsciente, do desconhecido em seus pacientes e principalmente em si.

 

2. Intuição

A segunda é a Intuição. A simpatia pode auxiliá-la, se ela já existe, porém não criá-la. Por intuição se entende aquela espécie de entendimento com que se sente o que está além do símbolo, sem que se veja.

Não há lugar para teorias na sala de análise. Estamos irremediavelmente sós, guiando-nos pela intuição psicanaliticamente informada pela teoria pessoal que vamos construindo ao longo do nosso "vir a ser" psicanalistas, em nossa tarefa de auxiliar nossos pacientes a encontrarem a si mesmos, por meio do rudimentar instrumento de que dispomos.

A psicanálise se utiliza de modos de pensar muito distantes do senso comum. Como disse Green (1990) a associação livre desfaz a trama da linguagem e, consequentemente, a do pensamento e da lógica. Revela a loucura potencial do indivíduo, ameaça os limites da razão.

Acredito que nesse processo o psicanalista também não possa funcionar psiquicamente de forma diferente da que propõe ao paciente, utilizando-se da lógica e do pensamento racional. Deve poder perder-se, esquecer a categorização de pensamentos que é própria da vigília habitual. Todos esses processos, que ocorrem no interior de uma relação tão específica, podem desenvolver-se porque existe o próprio setting analítico, um espaço para intimidade e continência, favorecedor de espontaneidade, intensidade emocional e autenticidade.

 

3. Inteligência

A terceira é a inteligência. A inteligência analisa, decompõe, reconstrói noutro nível o símbolo; tem, porém, que fazê-lo depois, que no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia; no exame dos símbolos é o relacionar no alto o que está de acordo com a relação que está embaixo. Não poderá fazer isto se a simpatia não tiver lembrado essa relação, se a intuição a não tiver estabelecido.

Conhecimento e uso das teorias psicanalíticas

Penso que a transmissão da psicanálise atualmente não pode deixar de lado o reconhecimento da diversidade dos referenciais teóricos. Especificamente nas sociedades brasileiras, essas diferenças acrescentam complexidade e riqueza à formação que oferecemos aos membros filiados, possibilitando trocas de experiências que favorecem aprendizado e desenvolvimento pessoais. Sabemos que este é um dos problemas epistemológicos, que nos demanda reflexão e elaboração, com os quais os psicanalistas têm que se haver atualmente.

Como salientei em trabalho anterior (Mion, 2017), para que isso aconteça, no entanto, além da tolerância e do acolhimento às diferenças, é necessária a possibilidade do analista em formação sustentar as ansiedades relativas a uma nova condição na qual permanece com uma identidade em esboço, evitando a reivindicação para si de uma condição que ainda não possui, apoiando-se para isso em sua identidade prévia.

Mergulhar na experiência de formação inserido numa Instituição que o antecede e é ao mesmo tempo doadora de identidade (Kaës et al., 1989), submeter-se à análise com um analista experiente e comprometido com a tarefa de resgatar o ser e a individualidade do analista em formação, ciente das armadilhas dessa situação do iniciante, vivenciar as hordas primitivas internas e externas desperta angústias persecutórias e demanda muito do analista em formação. No entanto, como ressalta Outeiral (2005), por incrível que pareça, esse é o caminho da espontaneidade e da criatividade na formação psicanalítica.

A tentação de "rapidamente pertencer", levando à filiação precoce, durante a formação, assim como na vida, leva a um engessamento das ideias, à perda da individualidade e da espontaneidade, à submissão a um notório saber e à autoridade. A necessidade de pertencer e o medo da desconstrução empobrecem a criatividade.

O processo de formação analítica não consiste simplesmente na aquisição de conhecimentos que informam o analista. Trata-se também da desconstrução de um saber e da possibilidade de se renunciar à posição de detentor de um saber apriorístico.

Não se trata de uma proposta de desqualificar a experiência ou o conhecimento anterior do candidato, mas, sim, de resgatar o si mesmo, o que estava lá desde o princípio, o que não se sabe. Proteções contra verdades que não pudemos enfrentar. Um despir das camadas e camadas de "roupas" com que cobrimos nosso ser (being), per via di levare, como sugeriu Freud.

Articulação clínico-teórica

Um dos pressupostos epistemológicos do campo de conhecimento desenvolvido por Freud será sempre a referência clínica. A clínica era a sustentação que permitiu a Freud contestar cientificamente os imperativos teóricos do neopositivismo e da lógica do seu tempo. Histórica e epistemologicamente, portanto, a teoria psicanalítica origina-se da experiência clínica: refere-se a um método de observação e aproximação do psiquismo, que implica duas subjetividades, na qual aquele que investiga está sendo constantemente investigado e um corpo teórico crescente que organiza essas experiências relacionando-as ao desenvolvimento emocional do homem. Um método que inevitavelmente resulta em um corpo teórico psicanalítico em constante desenvolvimento.

A articulação clínico-teórica é, para mim, o seu maior legado. Tendo a acreditar, até mesmo pelas suas rupturas epistemológicas, que Freud tivesse clareza de que a utilização do método psicanalítico levaria inevitavelmente a uma evolução e ampliação natural das teorias, de que seu edifício teórico jamais seria concluído. Freud construiu uma obra aberta. Muda a época, muda a cultura, muda a clínica, mudam as questões que emergirão na sala de análise.

Na intimidade dos nossos consultórios temos encontrado atualmente fundamentalismos de toda sorte, autodefinições pela profissão, individualidades empobrecidas, homens e mulheres com aspirações de serem eles mesmos. Mais do que falta de percepção da realidade, parece haver um entreter-se com uma realidade paralela, como um desdobramento do real, uma espécie de duplo de si.

No momento de escolha entre si e seu duplo, dá-se preferência à imagem. As construções que fazemos a respeito de estados ainda sem representação partem dos detalhes fatuais e emocionais das interações no aqui e agora da relação analítica, que passam a adquirir significado, coerência e continuidade.

A presença da subjetividade do analista na sala de análise amplia as possibilidades de descrição do humano na atualidade, para que se possa existir e ser como um lugar básico a partir do qual se opera e para que não se perca a esperança na possibilidade de encontros. É necessário um psicanalista capaz de receber, conter e "sonhar" as sensações do paciente que não têm representação psíquica, a não ser sentimentos de vazio, pensamentos operacionais, terrores e agonias impensáveis.

Em qualquer trabalho ou encontro psicanalítico considero muito importante a possibilidade de discriminação entre um fenômeno observado clinicamente, uma conjunção constante, e a teoria utilizada para organizar essa experiência, dar-lhe um significado (Bion, 1983). As hipóteses originam-se da necessidade de o homem encontrar harmonia e sentido num universo caótico de elementos dispersos e não relacionados.

Como observou Poincaré e tão bem me demonstrou a experiência com um paciente a quem chamei Pedro (Mion, 2006), nossa mente é frágil assim como nossos sentidos: ela se perderia na complexidade do mundo se assim não o fizéssemos. Os espaços infinitos são por demais assustadores.

A meu ver, nada poderia sintetizar melhor a questão da escolha das teorias que utilizamos, invariavelmente impregnada de opções fortemente subjetivas, do que o poema de Carlos Drummond de Andrade:

A verdade

A porta da verdade estava aberta

mas só deixava passar meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,

porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade.

E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil.

E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos.

Era dividida em metades diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.

Nenhuma das duas era perfeitamente bela. E era preciso optar.

Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia. (1984)

 

4. Compreensão

A quarta é a Compreensão, entendendo por esta palavra o conhecimento de outras matérias, que permitam que o símbolo seja iluminado por várias luzes, relacionado com vários outros símbolos, pois que, no fundo, é tudo o mesmo. Não direi erudição, como poderia ter dito, pois a erudição é uma soma; nem direi cultura, pois a cultura é uma síntese; e a compreensão é uma vida. Assim certos símbolos não podem ser bem entendidos se não houver antes, ou ao mesmo tempo, o entendimento de símbolos diferentes.

Hoje em dia acredito que já tenhamos no íntimo do nosso ser o psicanalista que viremos a ser e que um analista não possa ser formado por via di porre, como dizia Leonardo em relação à pintura, cujos pigmentos de tinta são acrescentados à tela.

Franco Filho (2008) afirmava que a formação analítica não forma um analista, mas oferece condições para que determinadas funções da sua personalidade possam se expressar e se desenvolver no contato emocional com o outro, no campo analítico. Do seu ponto de vista, com o qual concordo inteiramente, o principal instrumento de trabalho do analista é a sua personalidade. Não por acaso Bion (1963) afirma que os elementos da psicanálise são funções da personalidade e que os objetos derivados deles, as associações e interpretações, contêm extensões nos domínios dos sentidos, dos mitos e da paixão.

Como assinalou Bonanimio (2013), a noção da pessoa ou da subjetividade do analista está no centro da psicanálise contemporânea tocando muitos dos nós teóricos, clínicos e conceituais que permeiam os debates na atualidade. Eu acrescentaria também os nós institucionais.

Sensibilidade, compreensão do humano

A meu ver, Junqueira (2008) toca profundamente a questão da sensibilidade do analista ao observar que no funcionamento metapsicológico, o mesmo psiquismo que sofre a dor psíquica é aquele que consegue senti-la após ter conseguido pensá-la. Todo analista necessita enfrentar seu amor e seu ódio em relação à psicanálise.

Diferentemente do homem da ciência, o analista não tenta colocar-se do lado de fora do homem, mas sim, no interior deste. Sendo ele mesmo objeto de sua investigação, é o seu próprio interior que também se oferece, de tal forma que cada experiência implica o envolvimento de duas subjetividades. A uma delas, no entanto, cabe a responsabilidade pela finalidade do encontro, a função analítica e a transmissão dessa experiência com a finalidade de des-envolvimento pessoal e do grupo.

Certa riqueza interior

Freud, em "A questão da análise leiga"(1926), sugere que a formação analítica deveria englobar também especialidades que o médico e o psicólogo não encontram em sua formação: história da civilização, mitologia, psicologia das religiões e literatura. Lembra ainda que sem uma compreensão destas áreas, o psicanalista fica sem entender uma grande parte do que lhe é oferecido pelo paciente.

Desde o seu início com Anna O., a psicanálise impôs-se como o método que praticamente inventou a si mesmo, por meio do encontro entre duas pessoas. Inconscientes que se apresentam e reapresentam na relação transferencial e contratransferencial contida no setting.

No dizer de Ogden (2005), reinventamos a psicanálise a cada novo paciente que recebemos. Aproxima-se da concepção de Winnicott (1986) de que, a cada sessão, "criamos" um mundo próprio de acontecimentos, jamais visto ou conhecido por nenhum dos dois participantes, de tal modo que, ao fim desse encontro, cada um sinta que saiu enriquecido e com maior compreensão do humano.

Em "Recordar, repetir e elaborar" Freud faz uma afirmação que sempre me chamou atenção:

tornamos a compulsão inofensiva, e na verdade muito útil, oferecendo-lhe o direito de se estabelecer em um campo definido. Nós a trazemos para a transferência como num playground (tummelplatz) onde é permitido se expandir em liberdade quase completa.2 (1914/1973d, p. 154)

Acredito que a função do analista seja a de promover e fornecer um playground para a constituição do espaço do sonhar. Tummelplatz, o playground do Inconsciente, onde, por meio das contra-trans-ferências, torna-se possível um sonho a dois. O campo intersubjetivo seria o mesmo campo onde as crianças criam e compartilham personagens imaginários, onde ocorrem os diálogos e se desenvolvem as relações, onde os sonhos e os pesadelos são criados. Penso que é ao campo intersubjetivo que Freud se refere como o nosso playground, onde ocorrem as emoções do encontro analítico, como ressaltou Hustvelt (2011).

 

5. Graça

A quinta é a menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é a Graça, falando a outros, que é a mão do Superior Incógnito, falando a terceiros, que é o Conhecimento e a Conversação do Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma dessas coisas, que são a mesma, da maneira como as entendem aqueles que delas usam, falando ou escrevendo.

Se fosse possível, diria que os analistas teriam de ser poetas. Como nem todos o somos, nós nos utilizamos da leitura de poesias, literatura, música, mitologia, com a finalidade de tomarmos emprestada uma linguagem que toque a alma dos nossos pacientes, uma linguagem de êxito.

Bion (1970) propõe que se a linguagem for empregada para elucidar a verdade, deve ser reconhecida como derivando não apenas das experiências sensoriais, mas também de impulsos e disposições muito distantes daquelas comumente associadas à discussão científica. Para encerrar, gostaria de relembrar que uma das justificativas para uma Sociedade de Psicanálise é a possibilidade de compartilhar diferentes experiências com a esperança de encontrar não só uma visão comum, matrizes identificadoras e conferir sanidade, mas também outro olhar, o diferente/estranho que nos obriga a questionar o familiar, o já compreendido, trazendo a possibilidade de desenvolvimento.

Similaridades, diferenças, confrontos e sofrimentos são indispensáveis para a construção do conhecimento e a expansão psíquica do indivíduo, do grupo, da Instituição, da nossa Sociedade.

Mais complexidade acrescentaremos à questão se passarmos a examinar a Instituição no interior do próprio Indivíduo, como mais um elemento nessa dialética individual-institucional, o que torna a questão inabordável do ponto de vista institucional, porém não no setting da análise de formação, lugar privilegiado para seu desvelamento.

No dizer de Kaës et al. (1989), a exteriorização de um espaço interno é a nossa relação mais anônima, mais violenta e mais forte que mantemos com a instituição. Cabe lembrar aqui os mitos bíblicos do Paraíso Perdido e da Torre de Babel, relacionados à aquisição de conhecimento e poder pelos homens.

Penso que o debate aberto torna a relação institucional mais transparente e, portanto, mais confiável e sólida nos nossos propósitos de torná-la objeto de pensamento. Nosso grande desafio permanente nesse caso, talvez seja a possibilidade de uma comunicação entre analistas capaz de atravessar a cesura dos diferentes referenciais psicanalíticos.

 

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Recebido em: 3/12/2018
Aceito em: 7/6/2019

 

 

1 Trabalho apresentado no Congresso da Federação Psicanalítica da América Latina (Fepal), Lima, 2018, e no Encontro do Jornal de Psicanálise em dez/2018, "Psicanálise hoje: clínica e formação".
2 Tradução livre da autora.

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