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Revista Brasileira de Psicodrama

versão On-line ISSN 2318-0498

Rev. bras. psicodrama vol.27 no.1 São Paulo jan./jun. 2019

https://doi.org/10.15329/0104-5393.20190007 

DOI: 10.15329/2318-0498.20190007
Artigos Originais

 

Psicologia, palhaçaria e psicodrama: construção coletiva de aprendizados e intervenções

 

Psychology, clowning and psychodrama: collective construction for learning and intervention purposes

 

Psicología, payasaría y psicodrama: construcción colectiva de aprendizajes e intervenciones

 

 

Marília Meneghetti BruhnI*; Kim Ouakil BoscoloII; Rita Pereira BarbozaIII; Lilian Rodrigues CruzIV

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia, Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional – Porto Alegre/RS - Brasil  ORCID: 0000-0002-7078-1530 
IIViver Psicologia: Psicodrama – Tubarão/SC – Brasil  ORCID: 0000-0003-4177-2093 
IIINúcleo de Estudos e Práticas em Psicologia e Palhaçaria (NEIP) – Porto Alegre/RS – Brasil ORCID: 0000-0002-5042-6515
IVUniversidade Federal do Rio Grande do Sul – Porto Alegre/RS - Brasil  ORCID: 0000-0002-1850-3023

 

 


Resumo

Este artigo tem como objetivo compartilhar a experiência do Grupo de Estudos e Práticas em Psicologia, Palhaçaria e Psicodrama (GEP), destacando-se as potencialidades de se trabalhar com metodologias ativas de aprendizagem na aproximação entre Psicodrama e Palhaçaria. O GEP – coordenado por psicólogas com formação em Psicodrama e Palhaçaria – visa pensar intervenções criativas que promovam a saúde e a expressão de questões sociais. Cada encontro mensal e aberto é construído junto aos participantes, estimulando seu protagonismo na construção coletiva e transdisciplinar dos conhecimentos.

Palavras-chave: psicodrama, palhaçaria, psicologia, metodologias ativas, grupos


Abstract

This article aims to share the experience of the Psychology, Clowning and Psychodrama Study and Practice Group (GEP), highlighting the potential of working with active learning methodologies in binding Psychodrama and Clowning concepts. GEP, coordinated by psychologists with Psychodrama and Clowning degrees, promotes a reflection on health and social issues through creative interventions. Each monthly and open meeting is run together with the participants, encouraging their empowerment in the collective and transdiciplinary construction of knowledge.

Keywords: psychodrama, clown, psychology, active methods, groups


Resumen

Este artículo tiene como objetivo compartir la experiencia del Grupo de Estudios y Prácticas en Psicología, Payasaría y Psicodrama (GEP), destacándose las potencialidades de trabajar con metodologías activas de aprendisaje en la aproximación entre Psicodrama y Payasaría. El GEP, coordinado por psicólogas con formación en Psicodrama y Payasaría, pretende fomentar intervenciones creativas para la promoción de la salud y la expresión de problemas sociales. Cada encuentro mensual y abierto se construye junto a los participantes, estimulando su protagonismo en la construcción colectiva y transdisciplinaria de los conocimientos.

Palabras clave: psicodrama, payasaría, psicología, metodologías activas, grupos


 

 

ENCONTROS E FRACASSOS: O INÍCIO DO GEP

Pode parecer estranho o que vamos dizer, mas o Grupo de Estudos em Psicologia, Palhaçaria e Psicodrama (GEP) surgiu de um sociodrama que não deu certo, de um fracasso. Ou melhor, a ideia do GEP emergiu a partir de um encontro que deu muito certo, mas que desconstruiu conservas culturais1 planejadas. Aconteceu assim: duas de nós, Marília e Kim, estávamos esperando um grupo de clientes para dirigir um sociodrama sobre o papel profissional. Já havíamos feito outros sociodramas semelhantes com mais de dez participantes e a expectativa era compor um grupo com várias pessoas para desenvolver um trabalho interessante naquela noite. No entanto, um grande temporal cercava Porto Alegre, e os organizadores do local, no qual fariam o sociodrama, não tinham divulgado o evento como tinham feito anteriormente. Dez minutos depois do horário marcado para o início da atividade, ninguém havia chegado; quando Marília pensou: “ainda bem que não tem ninguém para testemunhar nosso fracasso”, adentra uma mulher apressada, mas animada, com cabelos e roupas encharcadas. Ela disse que tinha vindo para o nosso sociodrama, e Marília e Kim ficaram constrangidas porque provavelmente ela seria a única participante da noite.

Marília e Kim se sentaram nas almofadas e começaram a conversar com a inesperada visitante, que se chamava Rita e era psicóloga, atriz e palhaça. Rita – a terceira autora deste artigo – já tinha ouvido falar do Grupo 3 de Nós2 e achou que era uma ótima chance de conhecer o Psicodrama. Por ser atriz e psicóloga, era comum Rita escutar que o Psicodrama tinha tudo a ver com o que ela gostava de trabalhar, pois misturava teatro e Psicologia. Marília e Kim disseram que era ótimo ela querer conhecer o Psicodrama, mas que, infelizmente, não havia participantes suficientes para fazer a intervenção sociodramática planejada.

Para aproveitar o encontro, Marília e Kim se propuseram a conversar sobre como trabalham com Psicodrama enquanto Rita compartilhava suas intervenções como palhaça e psicóloga. Ao som dos relâmpagos e acompanhadas de deliciosos croissants, iniciamos essa conversa inesperada sobre Psicologia, Palhaçaria e Psicodrama. O embrião do GEP, pode-se dizer.

Antes de conhecer Rita, Kim e Marília não se interessavam por palhaços: imaginavam aquele personagem do circo que repete sempre as mesmas piadas, sem espontaneidade. Marília não conseguia entender como um palhaço ou uma palhaça poderia potencializar intervenções de Psicologia. Contudo, Rita apresentou outra possibilidade de Palhaçaria, na qual o improviso, o humor, a experimentação de papéis e o encontro eram terapêuticos. Nossa conversa foi tão inspiradora que combinamos de nos encontrar em outros momentos para pensar em composições possíveis entre as nossas áreas de atuação como psicólogas.

Alguns meses após essa primeira conversa, decidimos sistematizar os encontros e os estudos. Criamos, então, o Grupo de Estudos e Práticas em Psicologia, Palhaçaria e Psicodrama (GEP). A ideia era fazer encontros mensais abertos, nos quais leríamos previamente um texto sobre Psicodrama ou Palhaçaria e proporíamos jogos, dramatizações ou práticas relacionadas.

Durante a organização do GEP, fomos tendo algumas surpresas e desfazendo algumas conservas culturais que tínhamos sobre o público esperado e as referências bibliográficas disponíveis. Por exemplo, achávamos que haveria poucas pessoas interessadas em Psicologia, Palhaçaria e Psicodrama e que os interessados seriam atores, atrizes, palhaços e palhaças profissionais. No entanto, a maioria dos participantes do GEP são estudantes e profissionais em Psicologia, que não apresentam formação em artes cênicas, mas que gostariam de experimentar outras formas de propor intervenções. Também há vários participantes do GEP que possuem formações profissionais em diferentes áreas como filosofia, pedagogia, jornalismo, publicidade, medicina e serviço social. Quanto ao material publicado sobre o assunto, foi surpreendente não achar publicações que associassem os dois temas, considerando que ambos são ferramentas de intervenção que dialogam com a Psicologia e o teatro. No Portal de Periódicos CAPES, por exemplo, com centenas de artigos sobre ambos, não foi encontrado nenhum artigo que incluísse ambos os assuntos – na busca foram utilizados os termos “psicodrama” e “palhaçaria”, “psicodrama” e “palhaço” ou “psicodrama” e “clown”.

A busca por textos que envolvessem algum compartilhamento de experiência que fizesse aproximações entre Psicodrama e Palhaçaria não teve êxito. Isso fez com que, desde os primeiros encontros do GEP, nós – organizadoras e participantes – precisássemos criar, sem nenhuma conserva cultural prévia escrita, uma integração teórica e prática que conseguisse compor com as intervenções propostas pelo grupo. Inicialmente, selecionamos alguns textos introduzindo a teoria e a filosofia moreniana, assim como alguns artigos, dissertações e teses que falassem da Palhaçaria como arte de vida. Intercalamos encontros em que a ênfase era ou sobre palhaças e palhaços ou sobre Psicodrama. Não adiantava tentarmos aproximar as duas práticas se não soubéssemos minimamente o que propunha cada abordagem e suas diferenças filosóficas. A cada encontro, fomos nos apropriando mais de ambas, e as interlocuções entre as duas abordagens foram ocorrendo de forma espontânea.

 

GEP: METODOLOGIAS ATIVAS, COLETIVAS, NARRATIVAS, INVENTIVAS

Inspiradas pelos encontros alegres3 proporcionados por nosso grupo de estudos e práticas, nos propomos neste artigo a fazer um relato do processo de aprendizagem que estamos desenvolvendo no GEP desde novembro de 2017. O GEP utiliza-se das metodologias ativas de aprendizagem para construir coletivamente as aproximações entre Psicodrama e Palhaçaria, valorizando as experiências singulares de cada participante, assim como autonomia, liberdade e protagonismo em propor outras leituras e vivências para o grupo.

Na maioria das edições do GEP, é enviado um material de referência (texto ou filme) uma semana antes do encontro para que os participantes possam estudar o material a fim de discuti-lo e propor práticas que se relacionem com o tema abordado. Em geral, os encontros começam com algum aquecimento, sugere-se um jogo ou uma dramatização específica sobre o tema e, depois, é realizado um compartilhamento de como foi a experiência para cada participante, relacionando o material teórico de referência com as práticas propostas. Apesar de o GEP ser organizado e coordenado por um grupo de psicólogas, há flexibilidade para improvisos, de acordo com os momentos do grupo. Qualquer participante pode propor materiais de leitura ou dirigir jogos ou dramatizações que enriqueçam o aprendizado – antes ou durante o encontro – desde que tenha a anuência do grupo.

Para registrar esse percurso metodológico de aprendizado, é utilizado um diário de campo coletivo, no qual – através da escrita – são registrados falas, ações, sentimentos, pensamentos e reflexões ocorridos durante e após os encontros. O diário de campo coletivo é aberto para todos os participantes que queiram ler ou narrar as experiências que aconteceram no grupo. No diário coletivo, quem escreve pode ou não se identificar; no entanto, combinamos que as narrativas têm sempre a intenção de compor e conversar com os outros fragmentos escritos por outros autores. Quanto ao sigilo e às questões éticas, é importante ressaltar que os participantes do GEP consintam que o material produzido durante os encontros – escritas e narrativas – pode compor pesquisas e artigos. Contudo, são utilizados nomes fictícios para preservar a identidade dos participantes no diário de campo coletivo.

A abordagem coletiva de produção de conhecimento no GEP é inspirada pela pedagogia problematizadora, proposta por Paulo Freire (2006), a qual contribui filosoficamente para pensar a construção de metodologias ativas de aprendizagem (Simon, Jezine, Vasconcelos & Ribeiro, 2014). Como no projeto socionômico de Moreno (1994), a promoção de autonomia é um dos focos, seja do estudante seja do grupo em questão. A pedagogia problematizadora propõe “um processo ensino-aprendizagem que pressuponha o respeito à bagagem cultural do discente, bem como aos seus saberes construídos na prática comunitária” (Mitre et al., 2008, p. 2.136).

Assim, as metodologias ativas se mostram como um processo – mais do que fim – via problematização, inserida em uma proposta de construção conjunta entre discente e docente, podendo abranger outras relações e papéis, como um grupo de estudos em que todos podem colaborar com seu conhecimento (Simon et al., 2014). Como uma maneira de proporcionar práticas formativas no GEP, utilizamos metodologias ativas que buscam articular todos os atores no processo de construção coletiva de aprendizado pela promoção da liberdade no processo de pensar e trabalhar em equipe, a fim de aproximar as temáticas de Psicologia, Psicodrama e Palhaçaria.

 

QUE PALHAÇARIA É ESSA?

Quando nos referimos à Palhaçaria, não estamos falando de estereótipos de palhaço, os quais frequentemente aparecem na televisão ou nos espetáculos ensaiados de circo. A Palhaçaria da qual falamos é a arte do encontro, coconstruída no improviso, assim como o Psicodrama. É uma Palhaçaria marcada pelo signo do humor, do riso com o outro, em vez do riso do outro. Rita Barboza (2016) – ao falar do palhaço – afirma que o riso é singular, conectado ao “aqui e agora”; o humor está associado a uma transgressão do status quo, ou seja, do que está conservado culturalmente. A Palhaçaria é um devir, um constante processo de vir a ser em movimento; por isso, a palhaça ou o palhaço não tem como ser totalmente definido na conserva cultural das palavras. Há quem diga que responder à pergunta “O que é um palhaço?” seja mais difícil que realizar quaisquer dos incríveis números realizados sob a lona do circo. Isso porque a força dessa arte reside justamente aí – nesse ser mutante e espontâneo.

Ainda assim, arriscamos dizer que palhacear é estar em uma relação diferente com o mundo dos humanos, na qual o que impera sobre a razão é a sensibilidade e o encontro. A lógica da Palhaçaria é a da ingenuidade, da crueldade, da simplicidade, da empatia e da afetividade. Dorneles (2003) refere-se ao palhaço como um visitador às avessas do mundo dos humanos. Em geral, ele aparece em contraponto a alguma outra persona que representa o equilíbrio, a ordem e a perfeição. O palhaço é aquele que tem medo e, não raro, representa as fraquezas humanas. Assim também acontece no circo, quando o palhaço contrasta com as virtuoses apresentadas sob a lona.

Barboza (2016) destaca que, em geral, os palhaços se dividem em duas linhas: uma que valoriza a gag4 e a outra que privilegia o como vai ser feito – em vez do que vai ser feito – considerando o “aqui e agora” e o encontro. A linha que buscamos nos aproximar no GEP é a que trabalha com os improvisos e os encontros. “Para produzir um clown é preciso criar-se um corpo e uma abertura para o que acontece, para o que vem de fora – para o imprevisto, o acaso, a improvisação, o público” (Kásper, 2004, p. 33).

Diferentemente do Psicodrama, a Palhaçaria não tem um criador ou uma criadora descrito na literatura. “A partir da recusa da ideia de uma ‘única e verdadeira’ origem, abre-se à possibilidade de conceber vários começos para os clowns-palhaços” (Sacchet, 2009, p. 1). De acordo com Kásper (2004), o palhaço, ou clown, constitui-se por enunciação coletiva: diversos palhaços e palhaças vão construindo outras possibilidades de uma lógica de existência.

Há representantes dessa arte nas mais diversas culturas, como figuras clownescas tribais ou excêntricas nas mais diversas culturas e ritos antigos. O riso – que figuras como o palhaço provocam – é utilizado por povos antigos para espantar o medo, principalmente o medo da morte (Castro, 2005). Por exemplo, na cultura Iorubá, as seis máscaras da cultura Egun-gun são um corcunda, um albino, um leproso, um prognata, um anão e um aleijado, figuras que representam bufões: personagens grotescos e cômicos. Em tribos indígenas, há uma espécie de xamã, que tinha como função “transmutar tristezas, dissipar tensões dos participantes e até curar enfermidades” (Sacchet, 2009, p. 4). Atualmente, ainda temos a figura do Hotxua, espécie de palhaço sagrado da tribo Krahô, do Tocantins, no Brasil.

Além de o palhaço estar presente em inúmeras culturas e ritos sagrados, o cômico é uma das profissões mais antigas do mundo. Os bobos da corte, por exemplo, eram bufões e palhaços a serviço de reis, da nobreza ou de pessoas que os contratavam para festividades e ritos de passagem. A função desses profissionais é, principalmente, fazer rir.

Para se pensar a história do palhaço, a autora Sacchet (2009) propõe o conceito de rizoma descrito por Deleuze e Guattari (1995). Na introdução da obra “Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia”, os autores comparam um rizoma com a árvore genealógica. A raiz da árvore genealógica se bifurca a partir de um caule central; as ramificações obedecem a uma ordem hierárquica. Ou seja, a partir da raiz, é possível estabelecer ordens de ascendência e descendência, e, por isso, a árvore é chamada de genealógica. No entanto, o rizoma é uma porção de caules, geralmente, subterrâneos (assim como as raízes), mas que crescem horizontalmente sem haver uma hierarquia de origem ou uma obediência a determinada regra preestabelecida. “Adotando uma lógica própria e mutável, de vários começos e múltiplas saídas, as relações rizomáticas começam e terminam ao sabor das intensidades dos encontros, criando e desmanchando territórios temporários” (Sacchet, 2009, p. 8).

A Palhaçaria se constitui por rizomas: sua história e sua organização se dão por múltiplas possibilidades de conexão ao longo do tempo. Não há uma preocupação em categorizar ou classificar. A potência do palhaço está em sua flexibilidade de compor e criar outras lógicas de existência e de humor – não há um jeito certo ou errado de clownear. De acordo com Sacchet (2009), é importante compreender a arte do palhaço ou da palhaça em sua multiplicidade e sua capacidade de sobreviver e reinventar-se a cada variação de papel. Os encontros vão nutrindo esses papéis de palhaço, que contagiam outros papéis sociais dando sentido a um viver relacional.

 

COM VOCÊS, NOSSAS PALAVRAS

Como falar sobre uma experiência sem matá-la, sufocá-la em palavras certeiras e respostas polidas? Aqui apresentamos aos leitores o que acontece no GEP, por meio de recortes do diário de campo, no qual colhemos pistas sobre as aproximações entre Psicologia, Palhaçaria e Psicodrama mediante as experiências vividas.

A palhaçaria é a nossa obra, diz a autora.

E eis que obramos um encontro.

Entre lidos e não lidos, psicólogas, palhaças, psicodramaticistas, ou não.

DASEIN – Ser aí. Ser no mundo. Ser em relação.

Presentificar-se. (Trecho do diário de campo coletivo)

 

Assim como a Palhaçaria e o Psicodrama, o GEP acontece no presente, no “aqui e agora” das relações. Apesar de termos um planejamento prévio (jogos, texto e temática principal), cada encontro se dá no momento, compondo com a singularidade de cada um dos participantes. Eis a espontaneidade-criatividade moreniana no GEP: a capacidade de um ser humano adaptar-se adequadamente a novas situações ou propor novas respostas a situações antigas (Moreno, 1997). No GEP, busca-se estimular situações em que a espontaneidade-criatividade esteja conectada no “aqui e agora”, expandindo o estado de espontaneidade de um participante para todos os demais do mesmo grupo.

A energia foi chegando em muitos estados. Mais tímida para uns, que chegaram solitários e sem conhecer ninguém, mais fechada para outros que até vieram em grupo, mas querendo ficar só observando. Não dá pra só observar. De fora não se vê!!! Tudo acontece em relação. Outros repetem a sua presença. Mas de forma completamente diferente. Falamos sobre Psicodramas. Psicodrama e educação, psicodrama e terapia, psicodrama e democracia! Falamos, mas também massageamos, caminhamos, jogamos. Que louca capacidade esta do GEP de se transformar. Saio do encontro curiosa: o que será que seremos no mês que vem? (Trecho do diário de campo coletivo)

 

Uma das lógicas de vida que o palhaço nos convida é experienciar a alegria. A proposta da Palhaçaria é ampliar os afetos alegres que promovem encontros, movimentos e mais possibilidades de existências (Kásper, 2004). Marília Bruhn (2018) ressalta que “a abordagem psicodramática, ao invés de focar-se . . . nas dificuldades de cada pessoa, enfatiza a espontaneidade e a capacidade criativa que cada ser humano possui” (p. 101). Desse modo, a espontaneidade-criatividade moreniana se aproxima da alegria como uma Palhaçaria de Espinosa: ambas aumentam a nossa capacidade de agir e ser a partir de afetos.

Ahhhh não vai dar tempo

se vira então mais mar, sol, lua, pássaro

se vira de novo, pois

e de novo e de novo e de novo

agora sim você deu o Novo, esse diferente-só teu, só-nosso

sabe, existem coisas que só você pode nos dar – ninguém mais!!! é claro

e sabe, existe o tempo que é como vento

e o tempo que é pra voar com o vento

Então, recebendo o novo de fulano, ciganos, letranos, folclores

como cores que correm. (Trecho do diário de campo coletivo)

 

A relação com o tempo é também presente na intersecção entre Palhaçaria e Psicodrama. O GEP ocorre no tempo dos afetos, no “aqui e agora”, momentos em que nos permitimos jogar. Em ambos, o jogo pode ser definido como um divertimento, um passatempo sujeito a certas regras, existindo de acordo com os limites do tempo e do espaço, em que nos tornamos mais espontâneos, relacionais, criativos. “A essência do jogo reside nesta capacidade de espontaneidade, que faz surgir no jogo o sentido de liberdade e permite ao homem ‘viajar’ ao mundo da imaginação e, através dele, recriar, descobrir novas formas de atuação” (Monteiro, 1994, pp. 18-19). O jogo possibilita estarmos integrados com a ação, o pensamento e as emoções. Para haver jogo, é fundamental que os participantes queiram jogar e estejam disponíveis para o jogo, para que não se perca toda a sua “seriedade”, o seu valor espontâneo e criativo. Ou seja, para haver jogo, os jogadores precisam de liberdade.

um encontro muito loko

komeçou com o Seu Ary, poeta louco sábio

aí vieram outros devaneios e lançamentos de bergamotas.

veio Flicts que é cor de burro quando foge

fomos à lua

e à realidade nua e crua do preconceito racial

conceição, evaristo, djamila, ziraldo, pretas, pretos.

e nós brancos, brancos, brancas.

potências psicodramáticas e circenses, salvai-nos de nossa estupidez!

meia, meia lua, um, dois, três! (Trecho do diário de campo coletivo)

O clown é composto de muitos impulsos e vontades, e o improviso ocorre quando o palhaço exterioriza esses impulsos produzidos em conexão com as pessoas no “aqui e agora”. Os jogos de Palhaçaria utilizados no GEP trabalharam com a maximização do eu, aumentando sentimentos, permitindo fracassos e medos, mostrando nosso ridículo e nos fazendo rir – também envolvem o corpo, evidenciando como a pessoa está sentindo no “aqui e agora”. Um dos jogos propostos foi o de sentir por meio de porcentagens – transbordar o sentimento proposto pela facilitadora. Na parte da dramatização desse mesmo encontro, uma das participantes disse estar sentindo raiva, e foi pedido a ela que a exteriorizasse e aumentasse. O exagero e a extrapolação de sentimentos e características do eu é um dos recursos do papel de palhaço ou palhaça. Esses jogos facilitaram o contato com o eu, aumentando a espontaneidade e colaborando com o processo criativo do Psicodrama.

Que grande e potente é o psicodrama e a palhaçaria, que grande ideia essa de unir as duas técnicas, garantindo essa possibilidade, liberdade de desaguar, se descobrir, se projetar e se deixar tomar por tudo que vem numa sessão como a nossa . . . (Trecho do diário de campo coletivo)

 

Se o Eu só existe em uma perspectiva relacional, relações e encontros são a alma do GEP. Encontros, assim como aqueles do Hassidismo, que inspiraram Moreno e Buber, em que o divino, o criativo e o criador afloram a partir do entusiasmo do contato pessoal, da alegria, do prazer, da contemplação unida ao movimento e da consequente não alienação dos pensamentos (Boscolo, 2015; Fonseca, 1980). O Psicodrama e a Palhaçaria têm uma perspectiva integral de ser humano, na qual não há divisão entre corpo e mente. Como nos lembra Dorneles (2003), a corporeidade do palhaço – tudo o que há nele – é expresso (ou aumentado) por suas caretas, seu corpo, sua respiração, seu olhar. Amaral (2013) ainda descreve o corpo do clown como um “corpo-mutante que transita em diferentes ambientes, transformando e sendo transformado . . . artesão dos ambientes onde atua e das metamorfoses que acontecem em seu próprio corpo” (p. 80).

 

UMA ESTRANHA (IN)CONCLUSÃO

Os relatos do diário de campo coletivo produzido nos encontros do GEP possibilitaram a tessitura deste artigo, no qual um dos principais objetivos é compartilhar experiências que aproximam conceitos psicodramáticos à arte do palhaço. Nesse percurso de aprendizado, as metodologias ativas tiveram destaque – tanto nos processos formativo do grupo de estudos quanto na coconstrução deste artigo –, permitindo uma visão ampliada e complexa de outras formas de aprender e intervir. No GEP, o grupo torna-se protagonista do seu aprendizado, facilitando composições entre Psicologia, Psicodrama e Palhaçaria.

Após relatos do GEP e aproximações com as metodologias ativas de aprendizagem, torna-se estranho uma conclusão como sendo um ato de se fechar em algo. Digamos que esta é, então, uma inusitada, criativa, espontânea conclusão. Assim como nosso estranho primeiro encontro-fracasso, apresentamos uma conclusão que não conclui, um final que não termina, uma dança que aguarda a próxima música. Como bem vimos, Psicodrama e Palhaçaria se complementam, pois enxergam um ao outro de maneira sensível, cuidadosa, singular, ao mesmo tempo em que as metodologias ativas propõem uma aprendizagem construída em conjunto, a partir de relações eu-tu.

Se Moreno (1997) já dizia que uma resposta incita muitas outras perguntas, e não uma solução definitiva, as metodologias ativas se apresentam de forma psicodramática ao colocar em prática o ensino baseado na problematização, na dúvida, na reflexão – e não em um ponto final –, assim como essa estranha (in)conclusão.

 

 

REFERÊNCIAS

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Barboza, R. P. (2016). Intervenções riso-clínicas: entre palhaços e trabalhadores na educação permanente em saúde mental. (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto AlegreRS.

Boscolo, K. O. (2015). Fale com ela – Uma interpretação fenomenológica da obra de Almodóvar. (Trabalho de Conclusão de Curso). Faculdade de Psicologia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo-SP.

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Deleuze, G., & Parnet, C. (1998). Diálogos. São Paulo, SP: Escuta.

Dorneles, J. (2003). Clown, o avesso de si: uma análise do clownesco na pós-modernidade. (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS.

Freire P. (2006). Educação como prática de liberdade (29a. ed.). Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.

Fonseca, J. S. (1980). Psicodrama da loucura: correlações entre Buber e Moreno. São Paulo, SP: Ágora.

Kásper, K. M. (2004). Experimentações clownescas: os palhaços e a criação de possibilidades de vida. (Tese de Doutorado). Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas-SP.

Mitre, S. M., Siqueira-Batista, R., Girardi-de-Mendonça, J. M., Morais-Pinto, N. M., Meireles, C. A. B., Pinto-Porto, C., Moreira, T., & Hoffmann, L. M. A. (2008). Metodologias ativas de ensino-aprendizagem na formação profissional em saúde: debates atuais. Ciência & Saúde Coletiva, 13(Suppl. 2), 2.133-2.144.         [ Links ]

Monteiro, R. F. (1994). Jogos dramáticos. São Paulo, SP: Ágora.

Moreno, J. L. (1994). Quem sobreviverá? Fundamentos da Sociometria, Psicoterapia de Grupo e Sociodrama (vol. 3). Belo Horizonte, MG: Dimensão.

Moreno, J. L. (1997). Psicodrama. São Paulo, SP: Cultrix.

Sacchet, P. O. (2009). As múltiplas genealogias de clownear-palhaçar. Revista Cena em Movimento, 1, 1-11.         [ Links ]

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Recebido: 1/1/2019
Aceito: 7/5/2019

 

*Autora correspondente: marilia_bruhn@hotmail.com

 

 

Marília Meneghetti Bruhn. Psicóloga graduada pelo Centro Metodista de Educação do Sul (IPA) com ênfase em Saúde Coletiva e Direitos Humanos. Mestranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Psicodramatista (Nível I) pelo Instituto de Desenvolvimento Humano (IDH-Unifia). Sócia idealizadora do Grupo 3 de Nós – Psicologia Criativa.

Kim Ouakil Boscolo. Psicóloga formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Psicodramatista (Nível 1) pela Viver Psicologia: Psicodrama. Sócia idealizadora do Grupo 3 de Nós, na qual realiza consultoria e sociodramas temáticos em cidades do Rio Grande do Sul.

Rita Pereira Barboza. Psicóloga. Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Formada em Palhaçaria. Atua principalmente nas áreas de psicologia clínica, acompanhamento terapêutico, educação permanente em saúde e cuidado ao uso e abuso de álcool e outras drogas. Coordena o Núcleo de Estudos e Práticas em Psicologia e Palhaçaria (NEIP).

Lilian Rodrigues Cruz. Psicóloga. Pós-Doutora em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Docente do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional (PPGPSI) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

 

 


1 Conserva cultural é a cristalização de um produto resultante de um processo de criação. “A conserva cultural propõe-se ser o produto acabado e, como tal, adquiriu uma qualidade quase sagrada” (Moreno, 1997, p. 158).

2 O Grupo 3 de Nós trabalha com intervenções sociopsicodramáticas e tem como integrantes as autoras deste artigo: Marília Meneghetti Bruhn e Kim Ouakil Boscolo.

3 Na obra “Diálogos”, Deleuze e Parnet (1998) se inspiram no filósofo Espinosa para pensar a alegria e a tristeza. Para esses autores, paixões alegres são afetos que podem aumentar a nossa capacidade de agir e ser.

4 Piadas ou cenas prontas que são ensaiadas e repetidas.

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