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Nova Perspectiva Sistêmica

versão impressa ISSN 0104-7841versão On-line ISSN 2594-4363

Nova perspect. sist. vol.29 no.67 São Paulo maio/ago. 2020

 

ECOS

 

Responsividade reflexiva: um conceito para meios criativos de transformação em práticas colaborativas-dialógicas

 

 

Alexandra R. Moreira

Universidade Católica de Lisboa, Portugal

 

 

Considero uma honra comentar pela segunda vez um artigo do Bruno Lenzi. Senti-me instigada desde o início pelo seu texto e convidada para conversar sobre meus ecos internos. Quando li a forma com que finalizou a sua reflexão falando da esperança em relação à continuidade desta conversa, entendi então como mais um convite. E resolvi aceitar.

A forma com que escolhemos (ou pelo menos tentamos escolher) estar relacionalmente com o outro por meio da coconstrução de uma postura mais dialógica possível suscita pensamentos muito vivos neste momento da minha vida, uma vez que este assunto é justamente o meu foco de investigação no curso de mestrado. Além de um interesse de cunho teórico e científico, estas reflexões me remetem inevitavelmente para a forma com que tenho estado nas relações, não apenas dentro, como também fora do consultório.

Estar de maneira dialógica na vida ultrapassa os limites da "ciência", pois se trata de uma postura, de uma filosofia, de uma forma de olhar para dentro de nós mesmos, para as nossas histórias, e perceber que nelas há uma imensidão de personagens que me fazem lembrar que não estou sozinha: sou habitada por eles. Trabalhar sob a luz do construcionismo social e das práticas colaborativas-dialógicas foi um caminho sem volta. Um caminho que diariamente me alegra pela escolha e que me tira constantemente do lugar na busca de uma forma mais altruísta de estar nas relações. E isto é tão necessário. Eu não sou, você não é. Nós "inter-somos"1. Eu estou em você e você está em mim. Eu sou um "nós". E, assumindo a postura colaborativa-dialógica, eu (que não sou só eu), estou aqui genuinamente com você. Quem é você neste encontro comigo? Quem somos nós quando estamos juntos e o que produzimos neste momento em que buscamos colaborativamente construir significados?

Algumas ideias apresentadas me captaram no artigo, assim como acontece com a fala dos nossos clientes. Estamos a todo instante sendo responsivos a algo. Buscar entender por que alguma fala, algum movimento, algum silêncio nos conectam mais do que outros é primordial para a construção da sintonia relacional. O outro também fala de quem somos, do que e como sentimos.

Este termo surgiu de uma conversa de aquecimento, denominada momento "Ecos", que antecede os encontros mensais realizados no curso Aportes Filosóficos e Conceituais para uma Prática Dialógica que vem sendo ministrado por Leonora Corsini no Instituto Noos, desde julho de 2019.

Pautada no pensamento de Rober (2017) acerca da importância da sintonia emocional marcada como um processo central de qualquer ligação interpessoal, penso no que me facilita e no que me dificulta esta espécie de conexão com o(s) cliente(s). Como o meu corpo reage naquele exato momento? E como trabalho isto internamente para oferecer de volta as minhas reflexões gentilmente e cuidadosamente a quem está comigo e seguir gerando aberturas para a conversação?

Nas palavras de Shotter (2017): "uma vez que aceitemos a importância do papel de nossa responsividade corporal espontânea ao nosso entendimento dos enunciados dos outros, começamos então a ver que outro tipo de narrativa - em lugar da frequente narrativa referencial-representacional - é necessária. Nós também precisamos do que eu nomeio como uma narrativa responsivo- relational" (p.12).

Pensando nas ideias de dialogismo trazidas por Bakthin (1981; 2016) e por Lenzi (2020), em que o conceito de diálogo é tido como condição da linguagem e do discurso, sair do mundo presumido para um mundo que nos desperte mais curiosidade sobre coisas, fenômenos e pessoas torna-se essencial na construção desta responsividade reflexiva. Também importante é sentir nós mesmos como corpos que cedem espaço para as narrativas habitarem - como algo fica conectado ou desconectado de mim.

Tomo emprestado um conceito de Derrida (2014) que fala sobre a herança na figura do herdeiro, do legatário, não como sendo algo confortante, mas como uma responsabilidade que cabe a nós repensar e reafirmar no sentido do que existe antes de nós. O sentido desta reafirmação é uma espécie de escolha que devo fazer antes de me comportar como um sujeito livre. Necessário se faz tomar uma decisão, fazer uma seleção do que me apropriar do meu passado, refletir sobre o que não faz mais sentido, o que se trata de uma memória filosófica. Em outras palavras, reafirmar não é apenas aceitar nossas heranças sem nenhum cunho reflexivo, mas colocar luz sobre algumas delas para que possam continuar vivas. Para o autor, isto passa por uma atitude de decisão que se define por uma tensão interna e necessária.

Esta ideia de tensão, ainda na perspectiva de formas para construirmos colaborativamente o nosso diálogo e consequentemente nossa responsividade, também me leva à ideia de que dialogismo fala igualmente de dissenso, de estranhamento, de diferenças. Quantas vezes nos sentimo incompetentes na manutenção destas diferenças? Refletir no que o outro quer me dizer pode inevitavelmente se relacionar com as diferenças entre mim e ele. Nem sempre o que chega a nós vem carregado de um sentido que podemos logo abraçar como nosso, e a busca para construirmos juntos o significado do que não me é familiar engloba não uma síntese, mas o oposto disto, a polifonia; o que nós produzimos como forma de solucionar uma equação entre duas singularidades que não podem e nem devem se fundir. Portanto, o que produzimos é um discurso polifônico, que foi negociado cautelosamente e de forma altruísta, doando-nos a vontade de conhecer mais sobre esta diferença. Vamos fazendo isto não apenas seguindo palavras e silêncios, mas também seguindo os nossos corpos, como templo das nossas emoções.

Quando utilizo a palavra altruísta, penso numa posição de real entrega ao outro e ao que ele está tentando me contar. Estou ali com ele e para ele, para construirmos juntos nossos entendimentos. Seikkula e Trimble (2005) nos oferecem uma reflexão sobre um encontro terapêutico em que podemos suportar as emoções fortes, conversar abertamente sobre nossos medos num ambiente polifônico seguro: "Usamos as nossas lentes teóricas para examinar as atividades que parecem ser fatores de cura: criação de uma linguagem nova e partilhada a partir de uma linguagem multifacetada na conversação, experiência emocional partilhada e criação de comunidade, todas elas, acreditamos, são apoiadas por uma poderosa sintonia emocional mútua, uma experiência que a maioria das pessoas reconheceria como sentimentos de amor" (p.464).

Talvez consiga relacionar o altruísmo a um estado de amor - que entendo, neste contexto, como uma maneira sensível de conversar, que traz elementos de uma narrativa alternativa de forma sintônica, emocionalmente falando, em que o sofrimento é cuidado a partir de uma escuta presente e carinhosamente atenta. Um sentimento que me conectei quando Lenzi, em seu artigo, nos oferece a possibilidade de cuidar de nossa responsividade de forma reflexiva antes da partilha com quem estamos naquele momento coconstruindo novas possibilidades de ser e performar na vida.

 

REFERÊNCIAS

Bakhtin, M. (2016) Os gêneros do discurso. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Bakhtin, M. (1981) Marxismo e Filosofia da Linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi. São Paulo: Editora HUCITEC.         [ Links ]

Brait, B. (org.) (2015) Bakhtin. Dialogismo e construção do sentido. Campinas: Editora Unicamp.         [ Links ]

Derrida, J. & Roudinesco, E. (2014). De que amanhã... Diálogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, Cap. 1 - Escolher sua herança.         [ Links ]

Lenzi, B. (2020). Responsividade Reflexiva: um conceito para meios criativos de transformação em práticas colaborativas-dialógicas. Nova Perspectiva Sistêmica, v. 29, n. 66, p. 22-35.         [ Links ]

Rober, P. (2017). In therapy together: family therapy as a dialogue. London: McMillan.         [ Links ]

Seikkula, J. & Trimble (2005). Healing elements of therapeutic conversation: dialogue as an embodiment of love. Family Process, 44(4),461-475.         [ Links ]

Shotter, J. (2017) Momentos de referência comum na comunicação dialógica: uma base para colaboração clara em contextos únicos. Nova Perspectiva Sistêmica, n. 57, p. 9-20.         [ Links ]

 

 

ALEXANDRA R. MOREIRA
Psicóloga, terapeuta de casal/família, pedagoga, mestranda em Psicologia (Universidade Católica de Lisboa) com investigação na área das práticas colaborativas e dialógicas. Integra a equipe clínica e o grupo de estudo do Núcleo de Saúde Mental do Instituto Noos. É membro titular da Associação Brasileira de Terapia Familiar e membro efetivo da Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar. Possui diplomado internacional em práticas Generativas e é também pós-graduada em Linguagem/ Comunicação e em Recursos Humanos.
https://orcid.org/0000-0002-3356-0982
E-mail: alexandramoreira.psicologa@gmail.com

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