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Imaginário

versão impressa ISSN 1413-666X

Imaginario v.12 n.13 São Paulo dez. 2006

 

 

 

Poesia infantil contemporânea: dimensão lingüística e imaginário infantils

 

Contemporary infantile poetry: linguistic dimension and infantile imaginary

 

Poesía infantil contemporanea: dimensión lingüística e imaginario infantil

 

 

Maurício Silva*

Centro Universitário Nove de Julho (UNINOVE)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Quando se fala em poesia de modo geral, e particularmente de poesia infantil, não se pode prescindir de uma abordagem fundamental para se apreender todo o intricado mundo da arte poética: trata-se de seu âmbito estrutural, que, associado ao já citado universo infantil, faz dessa poesia um campo particularmente propício à representação do imaginário da criança. Nesse sentido, qualquer análise que se pretenda fazer da poesia infantil requer um domínio relativamente amplo dos componentes estruturais que determinam sua constituição como gênero literário, já que os efeitos estéticos promovidos pelo texto poético ganham especial relevo quando se trata de um público diferenciado, como é aquele composto por crianças. O objetivo desse trabalho é exatamente analisar os componentes estruturais (conteúdo e forma) da produção poética infantil contemporânea, a fim de depreender suas linhas e força, sobretudo comparando-a à produção tradicional, além de inserir essa poesia na discussão teórica que opõem, no âmbito da literatura infantil, os aspectos estético e pedagógico, já que a poesia infantil pode-se situar precisamente na conjunção das esferas pedagógica e artística, na medida em que se afirma, a um só tempo, como instância própria do complexo instrutivo do ser humano e como manifestação estética, inscrevendo-se de forma singular e irredutível no complexo universo da criança.

Palavras-chave: Literatura infantil, Poesia infantil, Linguagem, Imaginário, Literatura contemporânea.


ABSTRACT

When we talk about poetry in general, and mainly about infantile poetry, one must not renounce a fundamental approach in order to comprehend all the complex world of poetic art: it is about its structural ambit, which, associated to the already mentioned infantile universe, makes this poetry a field particularly suitable to the representation of the child’s imagination. Thus, any analysis of the infantile poetry intended to be done requires a relatively wide mastership of the structural components that determine its constitution as a literary kind, provided that the esthetic effects promoted by the poetic text gain special relief when it comes to a different audience, like the one composed of children. The purpose of this work is exactly to analyze the structural components (content and form) of the contemporary infantile poetic production, in order to infer its force lines, mainly comparing it to the traditional production, and insert this poetry into the theoretical discussion that opposes, within the infantile literature scope, the esthetic and pedagogic aspects, provided that the infantile poetry can situate itself exactly in the conjunction of the pedagogic and artistic spheres, as it affirms itself, at once, as a private instance of the human being’s instructive complex and an esthetic manifestation, engraving itself in a singular and irreducible manner in the child’s complex universe.

Keywords:Infantile literature, Education, Poetry, Aaesthetics, Imaginary.


RESUMEN

Al hablar de poesía de forma general, y particularmente de poesía infantil, no se puede prescindir de un abordaje fundamental para aprender el intricado mundo del arte poético: se trata del ámbito estructural, que, asociado al ya citado universo infantil, hace de esa poesía un campo particularmente propicio para la representación del imaginario del niño. Así, cualquier análisis que se pretenda realizar de la poesía infantil requiere un dominio relativamente amplio de los componentes estruturales que determinan su constitución como género literario, ya que los efectos estéticos promovidos por el texto poético adquieren especial relevo cuando se trata de un público diferenciado, como el de niños. El objetivo de este trabajo es exactamente analisar los componentes estructurales (forma y contenido) de la producción poética infantil contemporanea, con el fin de deprender sus líneas de fuerza, sobre todo comparándola a la producción tradicional, además de inserir esa poesía en la discusión teórica que opone, en el ámbito de la literatura infantil, los aspectos estético e pedagógico. La poesía infantil se puede situar precisamente en la conjunción de las esferas pedagógica y artística, ya que se afirma, al mismo tiempo, como instancia propia del complejo instructivo del ser humano y como manifestación estética, inscribiéndose de forma singular e irreductible en el complejo universo del niño.

Palabras clave: Literatura infantil, Poesía infantil, Lenguaje, Imaginario, Literatura contemporanea.


 

 

Mais do que qualquer outra manifestação artística, a literatura infantil sempre desempenhou, de modo muito especial, as mais diversas funções, que vão do desenvolvimento lingüístico da criança ao aperfeiçoamento de sua sociabilidade, tornando-se, neste sentido, instrumento indispensável no processo de aprimoramento do pensamento reflexivo e crítico, de aquisição da cidadania plena, de aprofundamento de conceitos abstratos etc. Para esse complexo formativo/informativo concorrem fenômenos variados, aos quais a literatura infantil está atenta e com os quais contribui, como a própria construção da identidade social da criança.

Evidentemente, não se pode considerá-la apenas desse ponto de vista funcional, já que sua essência encontra-se exatamente naquele aspecto que a literatura infantil mais deve à arte, isto é, em seu âmbito estético, fora do qual tornar-se-á fatalmente mero recurso pedagógico, a serviço da educação formal da criança.

É precisamente na conjunção das esferas pedagógica e artística que se situa a poesia infantil, na medida em que se afirma, a um só tempo, como instância própria do complexo instrutivo do ser humano e como manifestação estética, inscrevendo-se de forma singular e irredutível no complexo universo infantil.

 

Poesia infantil: gênese e identidade

Quando se fala em poesia de modo geral, e particularmente de poesia infantil, não se pode prescindir de uma abordagem fundamental para se apreender todo o intricado mundo da arte poética: trata-se de seu âmbito estrutural, que, associado ao já citado universo infantil, faz dessa poesia um campo particularmente propício à representação do imaginário da criança. Nesse sentido, qualquer análise que se pretenda fazer da poesia infantil requer um domínio relativamente amplo dos componentes estruturais que determinam sua constituição como gênero literário, já que os efeitos estéticos promovidos pelo texto poético ganham especial relevo quando se trata de um público diferenciado, como é aquele composto por crianças.

Há, por exemplo, um particular interesse da parte do público infantil pelo ritmo poético, uma vez que, mais do que qualquer outro potencial leitor/ouvinte, a criança identifica no texto poético uma inextricável relação entre a palavra e sua cadência melódica, relação esta que acaba lhe acarretando um agradável efeito musical. Na poesia infantil, portanto, ritmo e métrica são trabalhados em toda sua ilimitada potencialidade. Parentesco fônico entre determinadas partes dos vocábulos – ora no fim dos versos, ora no meio –, a partir da repetição de sons semelhantes, a rima é outra instância estrutural do poema que atinge sua plenitude expressiva no âmbito da poesia infantil, podendo ser trabalhada tanto do ponto-de-vista de sua posição no verso e da semelhança dos fonemas quanto do pontode- vista de sua distribuição no corpo do texto e de sua tonicidade. Por fim, mais ligada à visualidade do que à sonoridade, as estrofes atuam como articuladores da unidade do poema, por meio da composição dos versos em conjuntos distintos.

Agindo diretamente sobre a sensibilidade infantil, particularmente sobre seus aspectos sensoriais, os elementos que compõem a estrutura do poema têm grande incidência também sobre sua formação lingüística, já que atua diretamente do processo de aquisição da linguagem, contribuindo sobremaneira para o aperfeiçoamento de seu esquema fônico e do complexo sistema de representação da linguagem verbal, conferindo à criança, entre outras coisas, maior competência lexical e domínio sintático. Promovendo ainda a oralidade, por meio do lúdico, a poesia infantil incide diretamente sobre o processo de interação discursiva da criança e, por extensão, sobre sua própria sociabilidade, levando-a, de modo mais eficaz, dos estágios fonológico, morfológico e sintático (substrato lingüístico) aos estágios semântico e pragmático (superestrato lingüístico).

Ainda que se possam vislumbrar na poesia infantil fatores que propiciem seu emprego como recurso pedagógico, é seu caráter estético que queremos aqui ressaltar, singularidade esta que não dispensa considerações acerca de sua origem e sua identidade.

É certo que não podemos negar que a literatura infantil é o resultado da interação entre intenção pedagógica do texto ficcional – a qual estimula o aprendizado – e sua intenção lúdica – que, por sua vez, estimula a criatividade de uma forma geral, tudo, evidentemente, mediado pela natureza estética da literatura, que, no limite, fundamenta a própria concepção do que seja a arte. Portanto, o fato é que a poesia infantil nasce de condições muito especiais, as quais se relacionam diretamente com um efeito lúdico-pedagógico que a arte promove quando aliada ao universo mítico da criança.

Tendo sua origem mais remota nas manifestações populares, a poesia infantil resgata, tanto no seu plano fônico quanto no âmbito semântico, propriedades específicas da poética popular, como o apego à sonoridade e ao ritmo, a narratividade simples, o mundo mágico-maravilhoso, a linguagem repetitiva, o apelo à emoção (em oposição à racionalidade do discurso culto), a intenção pedagógica etc. É o que se verifica, por exemplo, nas principais manifestações da poética popular, em geral de natureza folclórica, como as canções de roda, as cantigas de ninar, as parlendas, as advinhas e muitas outras. Fonte de inspiração para a literatura infantil em todas as épocas, como já disse com propriedade Meireles (1979), a poesia popular sofreu, na cultura ocidental, concorrência direta de uma poesia infantil mais tradicional, uma poesia de natureza culta e de intenção educativa, isto é, voltada para a exemplaridade, para a constituição de uma moralidade cívica e, muitas vezes, abusando dos estereótipos e da exagerada idealização da realidade: trata- se, em suma, de uma poesia em que não faltam um descritivismo canhestro, métrica regular e o tom retórico, no âmbito da forma, e uma ideologia pedagógica assentada no rigor moral e na ameaça de sanções, no plano do conteúdo.

No Brasil, essa poesia de cunho mais tradicionalistas, de caráter conservador e natureza assumidamente didática, vigorou sobretudo a partir de meados do século XIX, com autores como Francisca Júlia, Zalina Rolim, Maria Eugênia Celso, Olavo Bilac e outros.

Comparemos, a título de ilustração, duas poesias cujos temas (e títulos) são idênticos, mas que diferem radicalmente no tipo de abordagem e na proposta estética:

 

 

As diferenças, evidentemente, são flagrantes. A primeira, de autoria do parnasiano Olavo Bilac, poeta infantil bissexto e convenientemente enquadrado na poética oficializada de sua época, revela, já na primeira leitura, uma linguagem completamente imprópria à infância, com seu tom retórico, seu discurso pedante, com a profusão de verbos no imperativo (vê, deves, ama, pede), com uma sintaxe arrevesada (aqui recebes da virtude o exemplo), com um vocabulário precioso (implume, maternal, fatigado) ou ligado a uma semântica moralista (virtude, exemplo, pura, justo) e pessimista (lágrimas, ausente, velho, fatigado, chorar). Dotado de uma estrutura deliberadamente conservadora, com estrofes compostas por decassílabos e rimas alternadas, o poema de Bilac sugere uma mensagem francamente impositiva e uma exortação intimidatória, absolutamente inadequadas ao universo da criança.

De outra lavra é a poesia do modernista Vinicius de Moraes, em que o tema da casa surge a partir de outro diapasão lingüístico e ideológico. Aqui, o tom retórico e imperativo cede lugar ao tonos lúdico e popular, e a linguagem preciosa e pedante é substituída por um registro mais simples e emotivo. Não se trata mais de uma casa em que emanam os rigores de um ambiente artificial, restritivo e em tudo apropriado à experiência adulta, mas uma casa hipotética, mais afeita à fantasia do que à realidade e, portanto, mais próxima do imaginário infantil. Esse nonsense que, imediatamente, identificamos no plano do discurso poético corresponde indiscutivelmente à expectativa infantil, toda ela ligada ao mundo do fantástico e do maravilhoso. Em Vinicius de Moraes, o tema da casa surge relacionado tanto ao lúdico (engraçada) quanto ao universo da intimidade infantil (fazer pipi), situando-se nos limites da quimera e da fantasia, já que se trata se uma realidade que, ao se negar como espaço (não tinha teto, não tinha chão, não tinha parede), perde sua concretude palpável e passa a habitar o imaginário da criança. Escrita em versos de quatro sílabas, sem divisão estrófica e sem uma rima padronizada, seu poema encontra facilmente guarida no universo fantasioso da criança.

Essas diferenças sintomáticas revelam, enfim, a distância entre um fazer poético mais limitado aos cânones de uma pedagogia calcada na exemplaridade moralizante, como é a literatura infantil tradicional, e uma produção literária em que a liberdade criativa e o prazer estético tornam-se condições essenciais à sua existência, qualidades, aliás, próprias da mais distinta poesia contemporânea.

 

Poesia infantil contemporânea: domínio da fantasia

A poesia infantil contemporânea nasce como uma alternativa à produção poética tradicional, que, como vimos, apresenta uma faceta mais conservadora na forma e mais moralista no conteúdo. Ao contrário desta, contudo, as manifestações contemporâneas da poética infantil valorizam o lúdico e desenvolvimento crítico da realidade, optando antes por uma intenção pedagógica não-moralizadora, já que parece haver um consenso em relação ao fato de que a poesia infantil “de todos os gêneros, deve ser o menos comprometido com aspectos morais ou instrutivos” (CUNHA, 1999, p. 121). Não que ela não possua um caráter didático, não que não possa ser utilizada dentro de um contexto em que a formação da criança como indivíduo e cidadão esteja em questão, mas o que se deve considerar, nesse aspecto, é, como já disse uma vez Nelly Novaes Coelho, uma didática voltada para a descoberta e a experimentação:

se partirmos do princípio de que hoje a educação da criança visa basicamente levá-la a descobrir a realidade que a circunda; a ver realmente as coisas e os seres com que ela convive; a ter consciência de si mesma e do meio em que está situada (social e geograficamente); a enriquecer-lhe a intuição daquilo que está para além das aparências e ensiná-la a se comunicar eficazmente com os outros, a linguagem poética destaca-se como um dos mais adequados instrumentos didáticos (COELHO, 1984, p. 158).

Tais afirmações restabelecem o laço original da poesia infantil com a vivência lúdica da criança, já que, para ela, a poesia é vista, muitas vezes, como um brinquedo, como um jogo que não prescinde da criatividade, da fantasia e do maravilhoso. É o que constatamos, por exemplo, na leitura de um poema sensível como este de Sidônio Muralha:

Xadrez

“É branca a gata gatinha

É branca como farinha.

É preto o gato gatão

É preto como o carvão.

E os filhos, gatos gatinhos,

São todos aos quadradinhos.

Os quadradinhos branquinhos

Fazem lembrar mãe gatinha

Que é branca como a farinha.

Os quadradinhos pretinhos

Fazem lembrar pai gatão

Que é preto como carvão

Se é branca a gata gatinha

E é preto o gato gatão,

Como é que são os gatinhos?

Os gatinhos eles são,

São todos aos quadradinhos.

(MURALHA, 1997)

O lúdico, aqui, manifesta-se desde o primeiro instante, tanto pelo fato de se poder brincar com as palavras, que estabelecem entre si uma relação de oposições (gato/gata, branco/preto, pai/mãe), quanto pelo inusitado que resulta da mistura entre a gata branca e o gato preto: filhotes quadriculados, sugerindo o xadrez já presente no título do poema. Trata-se de uma peça que, lingüisticamente, se assenta na idéia de contraste, já que, do ponto de vista fonológico, prevalecem as oposições entre fonemas sonoros (branca, gatinhos) e surdos (preto, quadradinhos) ou entre diminutivos (gatinha, farinha) e aumentativo (gatão, carvão). Já do ponto de vista semântico, as oposições se dão em relação ao gênero (gata/gato), às cores (branca/preto), ao parentesco (e/pai) ou à faixa etária (adulto/ criança). A par dos efeitos sonoros causados pela aliteração recorrente, o que sugere uma musicalidade intrínseca ao poema, do ponto de vista estrutural percebe-se um trabalho voltado para o universo lúdico da criança, já que os versos são todos rimados, em geral com rimas emparelhadas, escritos em redondilhas maiores, mais apropriadas à musicalidade e à memorização. Tudo isso mantém a unidade do poema, até visualmente sugerida, já que as três primeiras estrofes em que os conceitos centrais estão disseminados, aparecem unificadas na quarta estrofe e resgata nas demais. Há, no poema um sentido de circularidade próprio da dinâmica da vida biológica: gato e gata que se unem, gerando seus filhotes que, separados na última estrofe, ao mesmo tempo em que trazem consigo as marcas dos progenitores, se revelam independentes para dar continuidade ao ciclo vital. Causa espécie, portanto, o fato de todo o poema se apresentar – tanto no que se refere à sua disposição gráfica quanto no que concerne ao tema veiculado – ao mesmo tempo tão disperso e tão unificado, resultando num efeito que somente o dispositivo estético do poema é capaz de oferecer ao leitor.

O resultado de todo esse processo representa exatamente a subsunção do lúdico na literatura, pressuposto fundamental, como já se disse uma vez, da poesia destinada às crianças:

[os textos literários] estimulam [a] relação que transcende o cognitivo, numa percepção ampliada da realidade tratada no texto. Para a leitura dos textos dirigidos a crianças, a atenção pode ser despertada por meio da atividade lúdica, atividade caracterizada, entre outros aspectos a serem apontados, pela suspensão do real e a vivência voltada para a ação desenvolvida (GEBARA, 2002, p. 27).

Efeitos estéticos semelhantes, também vinculados à dimensão lúdica da literatura, podemos encontrar nos vários poemas para crianças escritos por Vinicius de Moraes, dos quais segue um exemplo:

 

Relógio

“Passa tempo, tic-tac Tic-tac, passa, hora

Chega logo tic-tac Tic-tac, e vai-te embora

Passa, tempo

Bem depressa

Não atrasa

Não demora

Que já estou Muito cansado

Já perdi

Toda a alegria

De fazer

Meu tic-tac

Dia e noite

Noite e dia

Tic-tac Tic-tac

Tic-tac.”

(MORAES, 1991)

Como no exemplo anterior, aqui também os efeitos sonoros, ligados ao ludismo, se destacam à primeira leitura: a começar pelo recurso da onomatopéia (tic-tac), que se torna o fio condutor da mensagem poética, estendendo-se à repetição, à musicalidade dos versos, até tornar-se uma grande brincadeira com a sonoridade. Há um forte sentido de oposição no poema, que pode ser detectado não apenas na expressão onomatopaica tic-tac (em que os fonemas/i/ e /a/ se opõem), mas também na escolha de termos cujos sentidos são contrastantes: “Chega logo tic-tac /Tic-tac, e vai-te embora”; “Bem depressa (...) / Não demora”; “Dia e noite / Noite e dia”.

Esse sentido de oposição estende-se, ainda, à própria estrutura do poema, já que as métricas dos versos se alternam entre versos heptassilábicos e trissilábicos: os quatros primeiros versos são de sete sílabas sonoras; os quatro seguintes são de três sílabas; os outros três versos são de sete sílabas (com o pé quebrado na terceira); e os cinco últimos versos são de três sílabas.

Com efeito, o que se destaca nesses exemplos analisados é a possibilidade lúdica que o poema oferece à criança, tornando sua leitura não apenas fonte de aprendizado, mas sobretudo de prazer estético, o que é marca singular da poesia infantil contemporânea, como ressalta Regina Zilberman:

a valorização do lado lúdico da linguagem propiciou a expansão da poesia endereçada à infância, a partir dos anos 80. Introduzindo, nos versos e nas estrofes, a perspectiva da diversão, do jogo e da brincadeira, o gênero poético pôde se livrar dos problemas que experimentou principalmente na primeira metade do século XX (ZILBERMAN, 2005, p. 129).

 

Poesia infantil contemporânea e linguagem

Outro aspecto bastante valorizado da poesia infantil contemporânea é a linguagem, de fato, em nenhuma outra época de nossa literatura – mesmo a literatura adulta – os recursos lingüísticos foram tão prestigiados como no século XX (com o advento do Modernismo literário), estendendo-se para o XXI. E na literatura infantil, esse fato é ainda mais verdadeiro, na medida em que o texto que se volta para a criança procura destacar, além de seus naturais aspectos estéticos, outras dimensões humanas, nomeadamente a linguagem.

Faz-se necessário, nesse sentido e logo de início, atentar para a adequação entre o texto infantil e a fase de desenvolvimento da linguagem em que a criança se encontra, a fim de que sua experiência com a literatura infantil não seja contraproducente, fazendo com que – pela carência de compreensão/interação com o texto – a criança adquira uma aversão crônica à literatura e à leitura. O auxílio de outras áreas do conhecimento, como a Psicologia do Desenvolvimento e a Psicolingüística, torna-se assim precioso, já que elas procuram distinguir as fases em que a criança se encontra no processo de desenvolvimento lingüístico. A poesia infantil deve, portanto, adequar-se tanto à fase pré-lingüística, em que prevalece o estágio fonológico da linguagem (de um mês a um ano), quanto à sua fase lingüística, em que prevalecem os estágios morfológico (de um a dois anos), sintático (de dois a quatro anos), semântico (a partir dos dois anos) e pragmático (a partir dos dois anos). Em cada um desses estágios, a criança passa por processos distintos de aquisição e desenvolvimento da linguagem, como a aquisição de novas palavras (naming explosion); dos primeiros rudimentos gramaticais (gramática do estágio I), expressos na construção de frases curtas e simples; como um maior avanço gramatical (gramática do estágio II), aprendendo as flexões e as palavras funcionais; a formação de frases mais complexas; o desenvolvimento do significado das palavras e a relação entre linguagem e pensamento; ou, finalmente, com o processo de interação lingüística.1

Evidentemente, o contato com a literatura infantil – e, particularmente, como a poesia, que trabalha no limite da palavra, explorando ao máximo o que a linguagem pode oferecer – contribui sobremaneira para vários desses aspectos aqui listados, tudo resumido na aquisição do que Luft (1985, p. 29) chamou, com muita propriedade, de gramática interior,2 mas alcança também outros aspectos da linguagem humana, como a distinção de registros lingüísticos, a descoberta da narratividade e, por fim, o próprio desenvolvimento da escrita, como sugere Rego (1985, p. 52):

a literatura infantil tem, assim, potencialmente duas credenciais básicas para ser o caminho que poderá conduzir a criança, de forma muito eficaz, ao mundo da escrita. Em primeiro lugar, porque se prende geralmente a conteúdos que são do interesse das crianças. Em segundo, porque através desses conteúdos ela poderá despertar a atenção da criança para as características sintático-semânticas da língua escrita e para as relações existentes entre a forma lingüística e a representação gráfica.

São muitos, nesse sentido, os poetas que privilegiam, no trabalho de criação literária, os aspectos lingüísticos do texto, como é o caso exemplar de José Paulo Paes, cuja obra procura interferir, criativamente, em todos os meandros do universo lingüístico da criança. Analisemos esse exemplo retirado de seu livro Poemas para Brincar:

Cemitério

1

“Aqui jaz um leão

chamado Augusto.

Deu um urro tão forte,

mas um urro tão forte,

que morreu de susto.

2

Aqui jaz uma pulga

chamada Cida

Desgostosa da vida,

tomou inseticida:

era uma pulga suiCida.

3

Aqui jaz um morcego

que morreu de amor

por outro morcego.

Desse amor arrenego:

amor cego, o de morcego!

4

Neste túmulo vazio

jaz um bicho sem nome.

Bicho mais impróprio!

Tinha tanta fome

que comeu-se a si próprio”.

(PAES, 1994)

Num trabalho bastante criativo com a linguagem, próprio das poesias de José Paulo Paes, o autor começa valorizando a dimensão fônica da língua, ao empregar, por exemplo, recursos estilísticos como a aliteração, já presente na primeira estrofe (urro, forte, morreu), ou como a rima consoante e grave (Augusto, to). A dimensão morfológica está melhor representada na segunda estrofe, quando o poeta faz do nome próprio Cida um elemento formador de outras palavras do texto, amplificando seu alcance fono-morfológico (Cida, inseticida, suicida). Tanto a dimensão fonológica quanto morfológica reaparecem na terceira estrofe, num jogo lúdico com a palavra morcego, na medida em que esse vocábulo passa a ser sistematicamente desmembrado em dois outros (amor e cego), fazendo com eles uma espécie de contraponto. Assim, além da aliteração em /r/ (morcego, amor, morreu, por, arrenego), temos ainda, no último verso da estrofe a relação entre a expressão amor cego que se reproduz no vocábulo morcego, recuperando uma sutil correspondência morfológica entre os dois, além de ressaltar a oposição metafônica presente no fonema /e/ (cego, morcego). Na última estrofe, merece um destaque a dimensão semântica das palavras (aliás, já evidente desde a primeira estrofe, no contraste entre um leão que se chama Augusto, mas que, a despeito de ser leão e ter um nome tão simbolicamente valorizado, morre de susto!), já que o poeta elege agora como tema um bicho sem nome, que recebe o epíteto de impróprio, sugerindo que este termo possa se relacionar a algo sem nome próprio, mas que, apesar disso, teria comido a si próprio.

De fato, essas e outras brincadeiras que José Paulo Paes faz com seus poemas fazem dele um de nossos poetas mais criativos, mas também mais preocupados com sua dimensão lingüística, como aliás a crítica já tinha assinalado:

as brincadeiras com palavras criadas por José Paulo Paes, além de desencadearem o caráter cômico dos seus poemas, evidenciam uma possibilidade de brincar com a língua, descobrir novos sentidos, e revelar novas experiências (SILVA, 2000, p. 84).

Ao lado de José Paulo Paes, Ruth Rocha emerge como outro nome de relevo de nossa poética infantil, preocupada com os fenômenos lingüísticos da literatura, criando uma obra que também se volta para as experiências e vivências lingüísticas que a criança pode ter no contato com a literatura infantil. É o que demonstram, por exemplo, todos os poemas que compõem seu livro sugestivamente intitulado Palavras, Muitas Palavras..., do qual extraímos para análise o seguinte:

“O Rato

Roeu

A Roda

Do Carro

Do Rei

Da Rússia.

O Rato

Morreu

De dor

De barriga”.

(ROCHA, 1998)

Seguindo a tradição do travalíngua, num conhecido exemplar de nosso imaginário infantil, a autora cria uma situação inusitada ao mudar o contexto da peça em dois sentidos: primeiro, substituindo a célebre expressão “a roupa do rei de Roma” por “a roda do rei da Rússia”; depois, por acrescentar ao dito popular um inesperado final, em que o referido rei acaba morrendo... de dor de barriga! Além de destacar visualmente a letra r, empregando letras maiúsculas e o recurso gráfico do negrito, a autora enfatiza o fonema por meio da aliteração, que se espalha por todos os versos do poema (roda, carro, rei, Rússia, rato, morreu, dor, barriga). Há, ainda, um jogo com a métrica dos versos, na medida em que todos eles são dissilábicos, com exceção do último, que é trissilábico, rompendo inesperadamente com o padrão métrico da peça. Certamente, trata-se de um exemplo de poesia perfeitamente apropriada ao exercício de aquisição e desenvolvimento da linguagem infantil, que passa a ser explorada ora pela repetição dos vocábulos, ora pelo jogo de idéias, ora pela extensão dos versos, ora ainda pela reiteração sonora.

Vinculada ao universo infantil e a ele dando novo alento, ocasionando outras possibilidades de expressão, proporcionando novas descobertas, a poesia infantil, ao trabalhar no limite da palavra, reconstrói, a todo instante, a relação da criança com a linguagem, dando à palavra um sentido pleno e tornando-a elemento central na constituição de seu imaginário. Como disse Elói Bocheco,

a poesia oferece-se como possibilidade de reavivamento da relação sensível com o mundo, ao encontro do que é profundo e original nos seres e nas coisas, porque na poesia, como arte, a palavra readquire a face perdida, retoma a aura lúdica, a plenitude da palavra original (...) O mergulho no tempo do poético, na plenitude da palavra, traz de volta os elos mágicos entre palavras e seres. A imagem poética exalta a riqueza das palavras; imanta-se através da corrente metafórica e promove um retorno ao verbo original (BOCHECO, 2002, p. 33-35).

Com efeito, a poesia infantil prima – entre outros gêneros literários, pela pesquisa da sonoridade e da visualidade das palavras, pela ênfase no ritmo poético das frases, pelo trabalho insistente com as figuras de linguagem, sobretudo os jogos de palavras (trocadilhos, anagramas, travalínguas etc.), pelo desenvolvimento da sensibilidade lingüística, pela exploração do sensorial, privilegiando a função poética da linguagem em oposição à sua função referencial e valorizando seu conhecimento intuitivo, em oposição ao seu conhecimento objetivo. Servindo, finalmente, de estímulo e reforço no processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem, a literatura para crianças desempenha ainda um papel fundamental no âmbito das teorias behavioristas do desenvolvimento infantil.

 

Conclusão

Tanto relacionada ao domínio da fantasia quanto ao domínio da linguagem, essa poesia reconfigura e ressemantiza o universo infantil, conferindo-lhe novas formas de expressão e contribuindo, sobremaneira, para com o desenvolvimento psicofísico, sociointeracional e lingüístico da criança. Por isso, além de trabalhar, como procuramos demonstrar, no limite da palavra, a poesia para crianças atua igualmente no limite do imaginário infantil.

Não são poucos os poetas que, conscientes desses dispositivos da poesia, explora criativamente esse imaginário, pelo apelo ao lúdico, pelo emprego de situações insólitas, pela perspectiva criativa que a poesia oferece. Em Duda Machado, por exemplo, as situações mais inesperadas adquirem novas dimensões dentro do universo poético dirigido ao público infantil:

 

A galinha cor-de-rosa “

Era uma galinha cor-de-rosa,

Metida a chique, toda orgulhosa,

Que detestava pisar no chão

Cheio de lama do galinheiro.

Ficava no alto do poleiro

E quando saía do lugar,

Batia as asas para voar.

Mas seus pés acabavam na lama.

Aí armava o maior chilique,

Cacarejava, bicava o galo,

E depois, com ar de rainha,

Lavava os pés numa pocinha”.

(MACHADO, 1997)

Criando uma poesia narrativa, o poeta busca explorar ao máximo a “irrealidade” do imaginário infantil, pelo deslocamento contextual (uma galinha chique, que dá chilique), pela despadronização da realidade (uma galinha cor-de-rosa que não gosta de pisar no chão), pela instabilidade e relatividade do cotidiano (uma galinha que, apesar de viver num galinheiro enlameado, lava os pés numa pocinha de água). Enfim, nesta como em outras poesias de Duda Machado (são exemplares, nesse sentido, seus poemas “O passeio da poltrona” e “O maçado que queria voar”, do mesmo livro), procura flagrar as situações comuns no que elas podem apresentar de mais irreal, de mais ilógico, mas dentro do enquadramento mental da criança, para quem a experiência existencial passa exatamente pelas possibilidades de subversão do real.

É o que faz, por exemplo, com igual maestria, Cecília Meireles, em seu consagrado livro Ou isto ou aquilo:

 

Canção

“De borco no barco.

(De bruços no berço...)

O braço é o barco.

O barco é o berço.

Abarco e abraço

o berço

e o barco.

Com desembaraço

embarco

e desembarco.

De borco no berço...

(De bruços no barco...)”.

(MEIRELES, 2002)

Trabalhando tanto a linguagem quanto a fantasia, a célebre autora procura adentrar no próprio universo infantil, a fim de, a partir dele, criar um poema perfeitamente adequado ao imaginário da criança. Escreve, nesse sentido, um poema que imita, na sua cadência melódica, o balançar do berço e do barco, usando ainda, no âmbito da linguagem, as aliterações, os ritmos pausados, as inversões léxicas, explorando os níveis semântico e fonológico dos vocábulos. O poema torna-se lúdico, misturando vários elementos de contextos diferentes (barco, berço), mas em completa sintonia, como se o berço fosse um barco, como se o barco fosse um berço; dando movimento ao poema, ora com a criança de borco no barco e de bruços no berço, ora com ela de borco no berço e de bruços no barco; mesclando, do mesmo modo, atitudes diferentes, como abarcar, embarcar, desembarcar e abraçar. Tudo isso, fazendo com que a palavra – como disse Glória Pondé – torne-se, em vez de ser signo, símbolo (PONDÉ, 1983, p. 95-102).

Espaço do imprevisível e do inconstante, da volubilidade do real, a poesia infantil, indo a fundo no imaginário da criança, capacita-a a lidar com a realidade de modos diversos, como aliás sugere Maria da Glória Bordini:

naturalmente admiradora, a criança tende a acostumar-se à surpresa do mundo, principalmente porque os adultos lhe parecem orbitar em torno de certezas imutáveis, vendo tudo sempre pelo mesmo prisma. É então que a experiência do poético pode transtornar esse habituar-se da consciência precoce, propondo- lhe e requerendo-lhe que se abra para o diverso, que jogue com sons, conceitos e vivências fantásticas, que investigue e indague a natureza das coisas nessa brincadeira, que busque os lados não-vistos, que pressinta, que não se contente com as versões recebidas, que mantenha viva a capacidade de maravilhar- se (BORDINI, 1986, p. 40).

É essa indagação contínua da realidade, com sua capacidade de desautomatizar, na criança, sua percepção do cotidiano; de desenvolver- lhe a sensibilidade e a inteligência; de despertar-lhe uma consciência crítica da realidade; de alicerçar sua conduta ética e moral, aperfeiçoando-lhe suas relações humanas; de desenvolver, nela, a capacidade de compreensão e absorção da atividade estética – que a poesia infantil promove, tornando sublime, para a criança, a própria experiência de existir.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: maurisil@gmail.com

Recebido em 19/07/2006
Aceito em 04/10/2006

 

 

* Professor de Literatura Brasileira e Literatura Infantojuvenil (graduação e pós-graduação) no Centro Universitário Nove de Julho (UNINOVE); pós-doutorado em Literatura Brasileira pela Universidade de São Paulo
1 Para uma abordagem mais ampla da aquisição e do desenvolvimento da linguagem pela criança, consultar Rappaport (1981), Biagio, (2001), Bee (1996), Menyuk, (1975) e Peterfalvi (1970)
2 Para Luft, “é lendo que se fortalece, apura e sutiliza a gramática introjetada desde as primeiras palavras ouvidas na infância. É lendo que se refina o ‘ouvido idiomático’ ou ‘sentimento lingüístico’, que outra coisa não é senão a mesma gramática interior.”

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