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Construção psicopedagógica
versão impressa ISSN 1415-6954versão On-line ISSN 2175-3474
Constr. psicopedag. vol.26 no.27 São Paulo 2018
ARTIGOS
O conto utilizado como ferramenta psicopedagógica: um relato de experiência
Tales used as a psycopedagogical tool: a story of experience
Adriana Greco Marega Ferreira1
Sedes Sapientiae - SP
RESUMO
Este artigo busca explorar teoricamente, sob o olhar da Psicologia Analítica, porque os contos fazem sentido para os seres humanos, como eles nos ajudam a modificar comportamentos e demonstrar por meio de um relato de experiência, como um conto pode facilitar a diminuição da resistência diante de processos de aprendizagem. Destina-se também a produzir conhecimento sobre o uso de contos como ferramenta para atendimentos psicopedagógicos de crianças. O sintoma-problema de aprendizagem pode levar uma criança a resistir aos processos de aprendizagem, como uma possibilidade frente às angústias, às frustrações que acompanham o acesso ao conhecimento. O conto se apresenta, nessa experiência relatada, como importante ferramenta para diminuir a resistência, ao facilitar o surgimento de conteúdos arquetípicos, como os da sombra e a expressão simbólica destas forças inconscientes. Por meio do diálogo com estas representações simbólicas na relação terapeuta e paciente, o conto e sua expressão possibilita que o sintoma da não aprendizagem possa ser compreendido e atenuado. Pode-se concluir que o trabalho com o simbólico é um caminho para a diminuição da resistência frente a processos de aprendizagem e que o conto pode ser uma ferramenta muito útil em atendimentos psicopedagógicos.
Palavras-chave: Psicopedagogia Clínica, Dificuldade de Aprendizagem, Resistência, Contos.
ABSTRACT
The article aims to explore in theory under the view of Analytical Psychology the reasons why tales make sense to the human being. Mostly, how tales help behavioral changes and to demonstrate using an experienced case of how a tale can facilitate and decrease the resistance to learn during the learning process. This article also has the objective to produce knowledge about the use of tales as a tool for the psychopedagogical consult with children. The problem-symptom of learning can lead a child to resist the learning process using it as a possibility to face anguish and frustrations that come along together with the knowledge access. The tale shows in this related experience how it can be used as an important tool to decrease the resistance once it facilitates the emergence of archetypes contents, such as the shadows and the symbolic expression of the unconscious strengths. Using the dialogue along with those symbolic representations in the therapist-patient relation, the tale and its expression enable that the symptom of no-learning can be understood and attenuated. It can be concluded that the work with the symbolic it is a way to decrease the resistance in front of learning processes and that the tale can be a very useful tool for psychopedagogical consults.
Keywords: Clinical Psychopedagogy, Learning Difficulties, Resistance, Tales.
Introdução
A partir do meu interesse pessoal sobre o assunto, devido o uso de um conto específico no atendimento de um paciente na Clínica do Instituto Sedes Sapientiae e os ganhos advindos de tal atividade, decidi escrever sobre o tema. Este paciente apresentava resistência diante de processos de aprendizagem, o que era um grande entrave para os atendimentos psicopedagógicos que visavam ajudá-lo em suas dificuldades de leitura e escrita.
Escolhi a Psicologia Analítica como principal teoria para discorrer este artigo devido o meu interesse pessoal e profissional, afinidade com esta teoria e os conceitos explicitados por autores adeptos às ideias de Jung (1976 e 1998). Assim como utilizei uma importante autora2 da psicopedagogia para realizar uma interlocução possível com o intuito de responder o seguinte questionamento: Como as intervenções psicopedagógicas, que permitem o surgimento de símbolos arquetípicos, contribuem para o desenvolvimento de crianças resistentes diante dos processos de aprendizagem?
Levando em consideração que os símbolos, entendidos como uma linguagem universal, podem ser utilizados para atingir o inconsciente e permitir ao paciente se abrir para mudanças, levantei como hipótese que o trabalho com o simbólico é um caminho para a diminuição da resistência frente a processos de aprendizagem.
O objetivo geral foi o de buscar explicar teoricamente, sob o olhar da Psicologia Analítica, porque os contos fazem sentido para os seres humanos e como eles nos ajudam a modificar comportamentos. O objetivo específico foi o de demonstrar, por meio de um relato de experiência, como um conto pode facilitar a diminuição da resistência diante de processos de aprendizagem. Para tal, foi realizada uma pesquisa qualitativa e teórica, na qual apresento um relato de experiência, destacando aspectos que foram analisados a partir do referencial teórico abordado neste estudo.
Este artigo destina-se a produzir conhecimento sobre o uso de contos como ferramenta para atendimentos psicopedagógicos de crianças. Bem como, exemplificar, por meio de um relato de experiência, como um conto pode proporcionar a diminuição da resistência de uma criança, diante dos processos de aprendizagem.
Os arquétipos e a importância dos símbolos e das representações simbólicas dos contos
Segundo Jung (1976), a psique é constituída por conteúdos inconscientes que podem ser pessoais, fruto de experiência pessoal; e coletivos, de natureza universal, denominados de arquétipos. Os conteúdos do inconsciente coletivo são universais e inatos, enquanto os conteúdos do inconsciente pessoal são produtos de experiência individual.
Para Pavoni (1989) "os arquétipos não têm conceitos morais, éticos ou estéticos que se ajustam aos nossos conceitos culturais e religiosos" (p.35). Segundo Silveira (1994) arquétipos são possibilidades herdadas para representar imagens, são formas instintivas de imaginar que funcionam como um nódulo de concentração de energia psíquica. No momento em que esta energia toma forma, atualiza-se, surge a imagem arquetípica. "São matrizes arcaicas onde configurações análogas ou semelhantes tomam forma" (p. 77). Os arquétipos são uma base psíquica comum a todos os humanos e é por isso que nos contos de fadas, nos mitos, nas produções inconscientes de um modo geral, aparecem temas idênticos em diferentes épocas e lugares.
Para o desenvolvimento psíquico e intelectual de um indivíduo, Sargo (2005) destaca a importância de dois arquétipos principais: o arquétipo da Grande Mãe e o arquétipo do Pai. Para ela, a base indispensável para o desenvolvimento psíquico da criança é inicialmente estabelecida pela relação com a mãe (pessoa que exerce esse papel). Relação que irá mobilizar o arquétipo da Grande Mãe, "que tem como padrão proporcionar segurança e, principalmente, proteção para a continuidade da existência desse ser. Esse arquétipo é regido pelos princípios do prazer, da fertilidade, da sensualidade, da emoção e da nutrição" (p.57).
A autoconfiança e a segurança pessoal no decorrer da vida irão depender também da vivência harmoniosa com a mãe, nesta primeira etapa. Porém, se o arquétipo da Grande Mãe for ativado em seu aspecto negativo devido o excesso de cuidado com o filho, na busca por suprir as necessidades dos pais mais que as do filho, o dinamismo matriarcal poderá ser prolongado, criando uma relação de dependência e proteção que despotencializa o filho. Isto poderá levar a criança a opor-se aos limites e às regras, o que no futuro lhe trará dificuldades em assumir responsabilidades necessárias para a evolução e o desenvolvimento da aprendizagem.
Tão importante como a relação com a mãe, é a relação com o pai (pessoa que exerce esse papel), que gradualmente insere na vida da criança o dinamismo patriarcal e permite que o Ego dela continue se desenvolvendo e passe a se articular com o próprio Self. No patriarcado, começa a ocorrer um afastamento entre consciente e inconsciente, essa separação irá exigir melhores discriminações das coisas do mundo e então, a criança passará a polarizar o bem e o mal, o bom e o ruim, o certo e o errado, o objetivo e o subjetivo, entre outros. Essas ambivalências, que permitem a criança alternar suas percepções são necessárias para a experiência do mundo físico.
Para Sargo (2005) limites e normas devem ser ensinados com tolerância e ternura, a aprendizagem deve se dar de maneira criativa, pois a inibição de comportamentos indesejáveis de forma castradora pode gerar sombras defensivas, que obstruem a evolução do processo de aprendizagem e levam a criança a perder o desejo de aprender. Ao vivenciar o arquétipo do Pai e as diversas experiências de aprendizagem no meio familiar, a criança vai arquetipicamente se construindo como filho e como pai, como aprendiz e como mestre. A estruturação criativa deste arquétipo possibilita que a criança passe a sentir fascínio pelo mundo do conhecimento, da independência e para conhecer seu ambiente, ela começa a utilizar operações de identificação, ordenação e classificação de objetos e seres.
"Se este ciclo não for bem estruturado, a criança atuará defensivamente na sua relação com a aprendizagem e com as normas escolares. Apresentará dificuldades para, de acordo com a lógica patriarcal, organizar o pensamento, raciocinar, abstrair, memorizar, obedecer às convenções e às normas, valorizar o estudo, disciplinar-se e concentrar-se para estudar e desenvolver uma metodologia de estudo" (SARGO, 2005, p. 94).
Ainda segundo a autora, é a partir deste dinamismo que a criança passa a estruturar seus comportamentos e papéis sociais, que serão utilizados para se relacionar em seu ambiente. Ela começa a perceber que existem comportamentos que são aprovados e outros que não, e a tendência é de que ela se comporte de forma a ser aprovada por seus pais e seu meio social, para receber amor e aceitação. Nesta maneira ela irá estruturando o que a Psicologia Analítica chama de Persona. A Persona (do latim: máscara) é o modo como a pessoa se comporta nos diferentes papéis sociais, é a expressão da individualidade útil à adaptação coletiva e ao relacionamento com as outras pessoas.
Paralelamente ao desenvolvimento da Persona, ocorre a constituição da Sombra. Segundo Von Franz (1985) pode-se dizer que a sombra representa a parte obscura, não vivida e reprimida da estrutura do ego. A sombra é aquilo que nos diz respeito, mas que não podemos conhecer diretamente. Ela consiste em parte de elementos coletivos (sombra do grupo) e em parte de elementos pessoais, sendo difícil a distinção destes aspectos ao estabelecer um contato inicial com a sombra.
Para Jung (1976) uma prova de coragem no caminho interior, durante o processo de individuação3 da Psique, é o encontro com a sombra, com aquilo que evitamos por ser desagradável. A sombra é uma parte viva da personalidade que não pode ser anulada com argumentos, ou tornada inofensiva com racionalizações.
O mau, o errado, o que é desagradável, são conteúdos reprimidos na sombra, que passam a ser temidos. Portanto, um trabalho terapêutico não pode evitar o contato com a sombra, pois um dos seus objetivos "é uma acomodação recíproca dos dois irmãos, ego e sombra, e uma proporcionalidade de suas precedentes atitudes antagônicas, iluminando a escuridão e obscurecendo a luz" (HILLMAN, 1978, p.78).
Segundo Silveira (1994), é no conflito e na colaboração entre inconsciente e consciente que diversos componentes da personalidade se unem, amadurecem, na formação de um indivíduo único. Parte do caminho para a individuação é o reconhecimento da sombra, a dissolução de complexos constelados, a eliminação de projeções, a assimilação de aspectos da psique e consequentemente, o alargamento do mundo interior.
O valor dos contos e representações arquetípicas
Os contos apresentam diversos arquétipos e seus símbolos, podemos destacar os seguintes arquétipos: sombra, persona, anima, animus, puer (juventude eterna), senex (velho sábio), grande mãe, curador, herói, criança, pai, entre outros.
Para Pavoni (1989) os contos e mitos contam simbolicamente, o processo de individuação. Ao lermos um conto sob a perspectiva da Psicologia Analítica Junguiana, temos que levar em conta que todos os personagens são um só, é o protagonista diante de todos os aspectos de sua psique e o caminho frequentemente difícil para alcançar a individuação. O personagem principal somos nós e os demais são as representações arquetípicas que projetamos nas características e tarefas do herói e demais personagens da narração. O personagem (ego) ao vencer inúmeros obstáculos vai integrando os arquétipos. "No caminho da individuação, tudo são possibilidades de conscientização, tudo são vitórias" (p. 61).
Uma criança ao ouvir um conto, não necessariamente precisa de uma interpretação do mesmo, as imagens que ele contém vão direto ao inconsciente, podem resolver algum eventual problema, levá-lo a uma mudança pessoal, sem que para isso haja o uso do intelecto (entendimento/compreensão). Os contos e mitos usam a mesma linguagem do inconsciente (representações simbólicas), são manifestações psíquicas que refletem a natureza da alma, falam diretamente com as crianças por meio de uma linguagem simbólica, sem a necessidade de explicações, do uso da razão, ou de conselhos.
Os contos apresentam uma variação do mesmo tema, que é: "o ser humano se buscando e buscando o sentido de sua vida" (BONAVENTURA, 1992, p.19). Cabe ao leitor perceber que todo o conteúdo apresentado em um conto poderia se passar dentro de si, as experiências positivas e os personagens bons, bem como as experiências conflituosas e os personagens ruins, mas esta não é uma tarefa simples. Não existe uma vida sem angústia, sofrimento e medo. Os monstros existem e sempre apareceram, mas quando se toma consciência disto, já se percorreu metade do caminho. O herói crescerá por meio de suas lutas, conquistas e passará pela experiência de se aproximar da morte durante os combates, mas também vencerá os maiores dragões; nada é impossível, basta confiar.
Para Silveira (1994) os contos apresentam "verdades subjetivas narradas na linguagem dos símbolos" (p.120) e que ao serem lidos
"Obscuramente o homem pressentirá que ali se espelham acontecimentos em desdobramento no seu próprio e mais profundo íntimo. São essas ressonâncias que fazem o eterno fascínio dos contos de fada" (SILVEIRA, 1994, p. 120).
Segundo Von Franz (1985), os contos de fada refletem a estrutura psicológica elementar do homem reduzida aos seus elementos estruturais básicos, por isso fazem sentido a qualquer um. Através deles podemos estudar as estruturas de comportamento mais básicas, vir a conhecer certos complexos estruturais e assim nos tornarmos mais capazes de distinguir entre o que é individual e o que não é, e possivelmente ver soluções.
O problema de aprendizagem como sintoma e o papel do Psicopedagogo
Segundo Sargo (2005), no período inicial da vida, a criança busca por meio do ato de mamar, de comer, de sugar, o prazer no início do seu desenvolvimento e o conhecimento do mundo a sua volta. Podemos entender que, a partir do momento que ela expressa o desejo de possuir e conhecer os objetos do mundo, "como se quisesse comê-los" (p.82), ela está expressando o seu desejo de aprender, assimilar e interiorizar este mundo. Posteriormente, o ato de defecar será entendido como algo criativo, que gera sentimentos de realização, de reconhecimento de esforço e produção. Ao olhar com atenção o filho, os pais buscam atribuir significados às primeiras formas de expressão da criança (movimentos, sons) e passam, aos poucos, a valorizar o filho como sujeito pensante e o encaminham para a posterior aprendizagem da leitura e escrita.
Se a criança, por algum motivo, for privada de agir, sentir, de vivenciar suas formas de manifestação, de expressar seus desejos, suas possibilidades de elaboração intelectual ficam prejudicadas e ela poderá vir a perder o vínculo com os desejos. Sendo assim, sua produção poderá ser aquém de seu potencial e a criança se tornará socialmente passiva, com condutas estereotipadas e desvinculadas de seus recursos criativos. Por isso, segundo Sargo (2005), é na vivência do dinamismo matriarcal que surge a motricidade, o pensamento e a linguagem. As relações estabelecidas neste dinamismo são arquetípicas e decisivas para o estruturação do desenvolvimento da psique, pois possibilitam uma abertura significativa ao mundo e indispensável ao desenvolvimento intelectual.
Segundo Jung (1998), normalmente entre os três e cinco anos de idade a criança começa a desenvolver a consciência do "eu", que é uma grandeza complexa que vai se constituindo por agrupamentos graduais de fragmentos do inconsciente, desenvolvendo vínculos entre processos psíquicos inconscientes até então, e o "eu". É a partir deste momento, que se pode considerar a existência de uma psique individual. Porém, a psique individual só atingirá relativa independência após a puberdade, permanecendo até este momento como "joguete dos impulsos e das condições ambientais" (p. 63).
Durante o desenvolvimento e a busca de independência, a escola exerce papel fundamental por ser o primeiro ambiente em que a criança será inserida, fora da família. "Os companheiros substituem os irmãos, o professor o pai, e a professora a mãe" (JUNG, 1998, p. 64), portanto, é importante que os professores tenham consciência disto. Afinal, a tarefa deles não será apenas de transmissão de certos conhecimentos, mas também de influência sobre as crianças em favor do desenvolvimento de sua personalidade. A finalidade da educação escolar é conduzir a criança para o mundo mais amplo, apoiar o processo de formação da consciência e assim completar a educação dada pelos pais.
A escola é a primeira parte do grande mundo real, ela ajuda a criança a desprender-se, em certa medida, do ambiente familiar.
"O que importa não é o grau de saber com que a criança termina a escola, mas se a escola conseguiu ou não libertar o jovem ser humano de sua identidade com a família e torná-lo consciente de si próprio" (JUNG, 1998, p. 65).
Para Sargo (2005), durante o processo de escolarização, a criança pode negar-se a aprender se a escola oferecer a ela um conhecimento sem significado para a sua vida, ou se ensinar ignorando as condições que ela possui para aprender. Além desses fatores, as relações interpessoais desenvolvidas desde a infância influenciam o processo de aprendizagem e, portanto, as relações insatisfatórias podem ocasionar
conflitos às crianças e gerar dificuldades específicas que se apresentam na leitura, na escrita, no raciocínio, nas atitudes de indisciplina, apatia e dispersão. Estes comportamentos muitas vezes são sintomas, que funcionam como resistência diante das influências externas de adultos e ocultam um conflito ou problema.
Fernández (1992) apud Sargo (2005) nos fala da importância da relação da criança com os pais, da seguinte forma:
"[...] se os pais aceitam e desejam como filho um sujeito pensante, devem ouvir a criança para fertilizar o terreno e conduzi-la na aprendizagem da fala. Por intermédio da fala, eles poderão saber o que ela pensa. Ao ser ouvida, a criança terá uma gratificação de prazer por enunciar sua própria palavra. A ausência de uma escuta materna e paterna ou a não aceitação da diferença entre o que a criança fala e o que os pais desejam ouvir traz como consequência o ataque à autonomia de pensamento, podendo até surgir dificuldade de aprendizagem como o sintoma [...]" (p.85).
Para Fernández (1990 e 2001), existem dois motivos principais que podem levar uma pessoa a vivenciar entraves no processo educacional, são eles: externo à estrutura familiar e individual, chamado de problema de aprendizagem reativo; ou interno à estrutura familiar e individual, que pode ser a manifestação de um sintoma ou uma inibição cognitiva. O problema de aprendizagem pode ser de ordem individual e/ou coletiva e é influenciado por aspectos socioeconômicos, educacionais, emocionais, de ordem intelectual, orgânica e corporal.
O problema de aprendizagem reativo é também denominado como fracasso escolar, e afeta a aprendizagem do sujeito e suas manifestações, sem inibir a inteligência. Na maioria das vezes, o fracasso escolar surge devido divergências entre o aprendente e a instituição educativa e a não aprendizagem permanece vinculada aos entraves da relação aluno e escola. Para resolver o problema de aprendizagem reativo, devemos recorrer principalmente aos planos de prevenção nas escolas, intervir no sistema ensinante que priva o sujeito do espaço de autoria de pensamento. Depois de instaurado o fracasso, é necessário intervir realizando indicações adequadas, como por exemplo, assessoramento à escola. O fracasso escolar, portanto, pode desencadear um problema de aprendizagem.
Segundo Fernández (1990) para resolver o problema de aprendizagem de origem sintomática ou de inibição, necessita-se de uma intervenção psicopedagógica especializada, em que uma das funções dos psicopedagogos é a de buscar revelar o significado que o aprender tem para a criança e sua família, "assim como o significado atribuído de maneira inconsciente à operação particular que constitui o sintoma no aprender" (p.43). O psicopedagogo também deve encontrar a funcionalidade do não aprender para a família, diferenciando qual o seu significado e para que serve ao sistema familiar a não aprendizagem de um de seus componentes.
Ainda segundo a autora, "o problema de aprendizagem que constitui um "sintoma" ou uma "inibição" [...]" (p. 82) afeta a dinâmica de articulação entre os níveis de inteligência, do desejo, do organismo e do corpo, ocasionando em um aprisionamento da inteligência. Para a compreensão de seu significado, é importante a realização de um diagnóstico psicopedagógico que ajude a identificar os sintomas do aprender ou não aprender. É preciso desvendar a funcionalidade do sintoma dentro da estrutura familiar e realizar uma intervenção psicopedagógica clínica com o objetivo de libertar a inteligência. Porém, segundo a referida autora "a liberação da inteligência aprisionada só poderá dar-se através do encontro com o prazer de aprender que foi perdido" (FERNÁNDEZ, 2001, p.27). No sintoma de aprendizagem, a inteligência encontra-se bloqueada, os recursos para elaboração cognitiva estão indisponíveis, consequentemente o sujeito renuncia ao aprender, ou aprende com dificuldade, ocasionando marcas na construção de sua inteligência e de seu corpo.
O aprender é um possibilitador de autonomia, que pode ser inibido por desejos inconscientes e quando isto ocorre, será perturbada a capacidade de comunicar as ideias e os afetos. Portanto, quando surge o problema de aprendizagem, este acaba provocando uma má articulação "inteligência-desejo" (FERNÁNDEZ, 1990, p.127). A inteligência se apropria do objeto conhecendo-o, incluindo-o em uma classificação, através da elaboração objetivante com movimentos de aproximação e apropriação do objeto; e o desejo apropria-se do objeto representando-o, incluindo-o em alguma metáfora própria em um movimento de elaboração subjetivante.
Um sintoma-problema de aprendizagem, uma inibição cognitiva, ou uma recusa ao aprender pode surgir como uma possibilidade diante da angústia que acompanha o acesso ao conhecimento. Angústia que surge do contato com o novo, o inesperado, o desconhecido, que nos movimenta em busca de algo a ser compreendido, porém não nos garante o êxito. Aprender, apropriar-se do conhecimento, é o outro caminho possível.
O psicopedagogo possui como objeto de estudo e de trabalho a problemática da aprendizagem e para que consiga olhar para ela, precisa considerar o que sucede entre os desejos inconscientes e a inteligência. Considera-se, portanto, a importância da compreensão sobre o mecanismo de resistência e suas possíveis implicações nos processos de aprendizagem, tema que será aprofundado a seguir.
Concepções psicológicas sobre o fenômeno da resistência
A resistência, segundo Jung (1998), acontece com certa frequência frente a toda atuação educativa e não apenas em relação a demandas ou regras pedagógicas. Quando isto ocorre, é preciso olhar de forma atenta ao meio familiar da criança, pois muitas vezes, suas peculiaridades explicarão a falta de adaptação e a incapacidade de adaptar-se. É importante pesquisar a vida que o educando leva em casa e conhecer os efeitos que as causas externas produziram na alma da criança. Atingimos este conhecimento pesquisando a história psíquica do indivíduo, a partir de seu meio ambiente e de suas indicações. Jung, naquela época, nos apresenta a importância de olhar e integrar os diversos grupos de convivência da criança, mostrando a relevância de um olhar sistêmico para o não aprender.
Segundo Adler (1977) "[...] a resistência tenta manter o status quo e impedir que surjam atitudes e possibilidades novas, mas temidas" (p.65). Qualquer situação atual de conflito pode gerar resistência, não sendo esta fundamentada apenas em antecedentes infantis. Uma resistência específica frequentemente é caracterizada pela identificação com certo ponto de vista, cujo sacrifício exige uma mudança no padrão de vida.
Para Ribeiro (2007) "resistir é um processo existencial, natural e parte essencial do comportamento humano" (p.74), que se define como sendo qualquer força que se oponha a outra, independente da finalidade. Os corpos resistem às forças que possam ameaçar o equilíbrio interno. A resistência pode ser considerada como um mecanismo de defesa contra a angústia e a ansiedade, que são sentidas como insuportáveis pelo indivíduo, assumindo assim um papel controlador e protetor, um instrumento de regulação do indivíduo com seu meio circundante.
Ainda segundo Ribeiro (2007), ao resistir, o indivíduo "constituiu um modo de funcionar que, provisoriamente, o ajuda a levar a vida sem muitas angústias e ansiedades" (p.77). A resistência pode ajudar a manter o equilíbrio, enquanto uma tentativa de deixar tudo como está para evitar ansiedade e medo diante da possibilidade de ter que lidar com algo novo ou temido e escolher coisas novas. Ela surge então, como um caminho para algo que ainda não se tornou consciente, pois a consciência pode trazer soluções e mudanças para as quais a pessoa não está preparada.
Em conclusão, o sintoma-problema de aprendizagem pode levar uma criança a resistir aos processos de aprendizagem, como uma possibilidade frente às angústias e às frustrações que acompanham o acesso ao conhecimento. Se quisermos realizar uma intervenção que provoque alterações, precisamos passar para a consciência fatos inconscientes, vencer a resistência e permitir a elaboração do sintoma, pois por meio da consciência é possível transformar atitudes, comportamentos emocionais e funções cognitivas que operam nos processos de aprendizagem.
Os contos e a Psicopedagogia
Para Cardella (1994) o terapeuta se oferece como instrumento para ajudar o paciente a experimentar com segurança todo o sofrimento auto-imposto e descobrir seus modos de existir, para que consiga compreender-se, confirmar-se e amar-se. O terapeuta deve ser capaz de refletir para o paciente suas capacidades, potencialidades, seus aspectos construtivos, para que o paciente não se depare apenas com os medos e as dificuldades, mas possa deparar-se também com a própria individualidade.
As atitudes do terapeuta facilitam a atualização das potencialidades do paciente, favorecem o livre trânsito entre as polaridades da personalidade e refletem potencialidades não desenvolvidas. Sendo assim, ao oferecer um clima de segurança, o psicopedagogo permite ao paciente experimentar sua vulnerabilidade, reconhecer necessidades, recuperar a aceitação de si mesmo e caminhar para a diminuição de suas dificuldades de aprendizagem.
Em muitos casos, crianças aprendem a temer a própria espontaneidade e substituem comportamentos autênticos por outros que visem preservar a aceitação e o amor dos adultos, pois sentem-se ameaçadas de perder o amor. Podem acabar desenvolvendo crenças negativas sobre si mesmas, sobre a capacidade de despertar o amor e passam a viver experiências repletas de ansiedade e medo de que essas crenças se realizem. Estas vivências podem interferir de algum modo no crescimento destas crianças, que acabam desenvolvendo resistências, padrões rígidos e repetitivos de comportamento diante de novas relações e sintomas, como as dificuldades de aprendizagem.
O sintoma apresentado por uma criança pode determinar a maneira pessoal de aproximar-se do conhecimento e conformar seu saber em um determinado momento, impedindo que esta maneira se modifique e alivie a angústia diante do processo de aprendizagem. A simbolização permite ressignificar e a ressignificação possibilita que a maneira pessoal de aprender possa ir se modificando, proporcionando um melhor aprender, pois o sintoma implica em colocar em outro lado, jogar fora, atuar o que não se pode simbolizar (FERNÁNDEZ, 1990).
Segundo Souza (2012) os contos, ao desencadearem o interesse das crianças, permite-lhes refletir sobre o enredo, identificar-se com personagens, julgar as atitudes no contexto ficcional e estender suas reflexões para o contexto real. O conto também pode permitir a simbolização de temas da realidade, provocar nas crianças reflexões sobre ações e estratégias e, de certa forma, prepará-las para as situações reais e concretas. Com o uso de um conto em um atendimento psicopedagógico podemos diminuir a resistência ao facilitar o surgimento de conteúdos arquetípicos, como os da sombra e a possível simbolização dos mesmos, abrindo espaços para que o sintoma da não aprendizagem possa ser elaborado. Afinal, os contos, os mitos, a arte em geral, são formas simbólicas, pelas quais a psique se manifesta.
Relato de experiência
J. (8 anos) repetiu o primeiro ano do Ensino Fundamental e aparentemente estava apresentando dificuldade para se alfabetizar. Foi encaminhado para o atendimento psicopedagógico por sua terapeuta da clínica do Instituto Sedes Sapientiae. Nos atendimentos psicopedagógicos, J. apresentou muita dificuldade em aceitar limites, tudo precisava ser do seu jeito, caso contrário, ele demonstrava-se irritado, bravo e às vezes agressivo (uso de xingamentos, arremesso de objetos). Em alguns momentos utilizava da estratégia de relatar dores e mal-estar para não realizar aquilo que não desejava ou que ia ao encontro de sua dificuldade (fluência na leitura e escrita).
J. tinha dificuldade no cumprimento das regras, desejava decidir tudo o que fazer na sessão, baixa tolerância à frustração e necessidade de receber atenção, ser reconhecido. Durante o processo ele fez muita birra, dizia que não sabia ler e escrever e que não iria conseguir. Às vezes, ameaçava chorar para que eu interrompesse alguma atividade que considerava difícil. Ele preferia não arriscar quando achava que não iria conseguir desenvolver uma atividade e eu precisava insistir para ele tentar. Outra dificuldade apresentada por ele era a de poder errar e suportar que não sabe algo e que por isso, precisa da ajuda de alguém, que não irá criticá-lo e sim incentivá-lo. Estes comportamentos apresentados por ele podem ser entendidos como resistência diante dos processos de aprendizagem.
A partir dos atendimentos, do diagnóstico psicopedagógico interventivo e dos comportamentos apresentados por J., verificou-se como principal demanda a necessidade de desenvolver com ele questões referentes à possibilidade de tolerar a frustração, de poder compreender regras e limites e de aceitar a ajuda do outro (Psicopedagoga). Nos atendimentos desenvolvi as questões descritas anteriormente visando conseguir realizar atividades que o ajudasse a desenvolver suas habilidades de leitura e escrita e que atenuassem suas dificuldades de aprendizagem.
Darei destaque desta pesquisa para o livro O reizinho mandão - Ruth Rocha, que aborda questões referentes à dificuldade de tolerar frustrações e o desejo de fazer tudo como quer (mandar em tudo), e as atividades que foram realizadas a partir de sua leitura. Com o intuito de ilustrar como um conto que mobilizada conteúdos simbólicos, pode proporcionar a diminuição da resistência de uma criança diante dos processos de aprendizagem e seus entraves, foco do atendimento psicopedagógico.
Durante algumas sessões, após a leitura, desenvolvi com ele atividades relacionadas ao livro O reizinho mandão, com o objetivo de possibilitar a simbolização dos conteúdos trazidos no livro. Foi realizado um desenho, a construção de uma capa de rei e a construção da coroa do rei.
A seguir serão descritos os atendimentos em que foram realizadas a leitura do livro e as atividades referentes à temática apresentada:
1º Atendimento
Sentamos no colchonete para a leitura da história O reizinho mandão - Ruth Rocha e J. resolveu deitar e começou fingir que estava dormindo. Eu tive que chamar sua atenção e pedir para ele sentar-se, eu comecei mostrando as imagens no livro e ele passou a se interessar pela história. Ele rejeitou a possibilidade de tentar ler a história, ou pelo menos uma frase. Acompanhou a leitura que foi realizada por mim e fez alguns comentários de antecipação das ações da história.
No final, pedi para ele falar sobre o que entendeu do livro e principalmente retomar as características do reizinho. J. disse em poucas palavras que o rei era chato, só queria mandar nas pessoas e fazer tudo do seu jeito. Ele não demonstrou interesse em falar mais sobre a temática.
Depois, solicitei que ele fizesse um desenho sobre a história. Ele começou fazendo um desenho e disse que estava errado, pediu para fazer outro e jogou a folha no lixo. Aparentemente havia começado a desenhar o reizinho da história. Na segunda folha, seu desenho ficou ainda melhor que o primeiro (reizinho), mas mesmo assim, ele disse que errou o solicitou uma terceira folha, jogando esta segunda no lixo. Antes de começar o terceiro desenho, ele começou a falar de super-heróis, do Homem de Ferro e disse que iria desenhar ele. Retomei a proposta do desenho e questionei qual a relação do homem de ferro com o reizinho mandão. J. começou a desenhar, dizendo que o rei se veste de homem de ferro e que desenhou o homem de ferro rei e o papagaio.
Este livro foi escolhido para que algumas temáticas pudessem ser abordadas com ele, frente a identificação de seu comportamento de recusa na realização de atividades referentes à leitura e escrita, sua dificuldade de tolerar a frustração e seu desejo por fazer tudo como quer, resistindo em aceitar o que eu lhe solicitava. Não insisti em realizar atividades sobre o livro neste momento para que não aumentasse sua resistência, dificultando os atendimentos psicopedagógicos. Pode-se supor que a temática simbólica do livro foi mobilizadora e J. resistiu em olhar para este conteúdo.
Após alguns atendimentos e a permanência do comportamento resistente de J. optei por retomar o livro e tentar novamente possibilitar o trabalho simbólico com os conteúdos apresentados pelo conto.
2º Atendimento
Pontuei ao J. que neste atendimento retomaríamos o livro O reizinho mandão oralmente e ele logo reagiu reclamando, dizendo que não queria. Perguntei por que não e ele respondeu que sente ânsia de vômito com esta história, que ele iria vomitar se tivesse que ler de novo. Ele disse que o reizinho é muito mandão e que isso o irrita. Destaquei que eu também fico brava quando encontro pessoas que fazem birra, que não querem obedecer e que só sabem mandar (suas características).
Na sequência J. disse: "Também ele não tem mãe! Ele não tem uma mãe que cuida, que acompanha, que mora com ele, que estuda junto, que ensina a ler e escrever e que ensina a não ser mandão". Perguntei se não existiram outras pessoas que poderiam também fazer este papel da mãe e ajudar com estas questões. Exemplifiquei com a sua vida, falei sobre a importância dos seus avós e de mim, para ajudá-lo neste processo.
Ele falou sobre as coisas que o irritavam no reizinho mandão (o comportamento de ser mandão, não saber ouvir os outros, quer fazer tudo do seu jeito, não respeitar as pessoas, ser bravo, chato, irritante e grosseiro) e eu pontuava os comportamentos do personagem fazendo referência às pessoas que se comportam desta forma alegando que eu também me irritava. Em certo momento, questionou-se se a minha fala era sobre ele, ou sobre o reizinho mandão, demonstrando novamente sua identificação com o personagem. Relembramos a história e J. falou que no final o reizinho muda, não fica mais mandão.
Aproveitei para falar sobre essa possibilidade de mudança e propus a confecção da capa deste reizinho transformado. Inicialmente ele resistiu, mudando de assunto, pedindo para desenhar super-heróis e eu retomei a proposta. Ao ver os materiais que eu havia trazido para a construção da capa (papel pardo, diversos tecidos coloridos, canetas coloridas, giz de cera, lápis de cor, cola, tesoura, lantejoulas, colas brilhantes, tinta, pedaços de fitas), ele demonstrou-se entusiasmado.
No papel pardo, a primeira coisa que ele desenhou foi o baú do tesouro. Inicialmente ele tentava me mandar fazer várias coisas por ele, fazendo-se de incapaz. Eu pontuava sua capacidade de fazer sozinho e a possibilidade de ele pedir minha ajuda. J. então solicitou que eu me aproximasse dele e o ajudasse, pediu meu companheirismo e uma construção conjunta. Disse que depois construiria a coroa do rei também.
3º Atendimento
Nesta sessão continuamos a construção da capa e finalizamos. Aparentemente ele se demonstrou pouco motivado em terminar, por não conseguir cortar os pedaços de tecido que desejava. Grande dificuldade em manejar a tesoura, pois é canhoto e os tecidos eram grossos. Continuou pedindo que eu fizesse várias coisas por ele, reclamou várias vezes dizendo estar cansado e pintou de qualquer jeito o passarinho. Enquanto eu cortava o que ele me pediu, J. passou a brincar na sala e dizer que era um macaco, o rei macaco. Depois ele escolheu o papel cartão amarelo para fazer a coroa e pediu para fazê-la de bolinhas.
No final, ele colocou a capa do rei, a coroa e sentou-se no alto de uma pilha de cadeiras, representando a cadeira do rei. Disse ser o rei macaco e eu o coroei, como um reizinho que não é mandão e que pode se transformar. Antes de ir ele pediu para se balançar um pouco e de capa e coroa ele brincou por alguns minutos na balança.
Análise
A partir da leitura de um conto, podemos realizar diversas atividades que permitam a avaliação e o desenvolvimento de habilidades importantes para o processo de aprendizagem. Essas habilidades, podemos nomeá-las como qualidades de aprendizagem possíveis de serem exploradas a partir da leitura de um conto ou mito. Com o uso do conto escolhido no caso, pude desenvolver com a criança as seguintes qualidades de aprendizagem: reflexão; interpretação; afetividade; identificação; assimilação; acomodação; leitura; escrita; imaginação; transformação; desejo; estrutura do texto; linguagem metafórica; conflito; atenção; memória; seleção; a linguagem do conto - simbólico; conscientização; organização do pensamento; frustração; paciência; tolerância; discriminação auditiva; integração do multissensorial. Além de possibilitar a reflexão sobre: O que a história quer nos dizer, além do literário? O que ela significa para mim? Que arquétipo mobiliza?
Durante a realização do atendimento psicopedagógico descrito neste trabalho (relato de experiência), o livro O reizinho mandão - Ruth Rocha foi escolhido inicialmente para abordar questões referentes à dificuldade de tolerar frustrações, o desejo de fazer tudo como quer (mandar em tudo) e permitir que o paciente pudesse se identificar com aspectos do conto e simbolizar conteúdos inconscientes. Até a realização da segunda leitura do livro e das atividades propostas na sequência, o paciente apresentava-se muito resistente aos atendimentos psicopedagógicos que visavam ajudá-lo em suas dificuldades na leitura e na escrita (processo de alfabetização).
O paciente resistia para evitar a ansiedade e o medo diante da possibilidade de ter que lidar com algo novo ou temido, como suas dificuldades diante do processo de alfabetização, e ter que lidar com as frustrações que acompanham o acesso ao conhecimento. Neste sentido, a resistência também surgia como um caminho para algo que ainda não era consciente, pois a consciência pode trazer mudanças para as quais a pessoa não está preparada.
O paciente apresentava o seu problema de aprendizagem como um sintoma, que surgiu diante da angústia que acompanha o acesso ao conhecimento. Seu sintoma estava fixando sua modalidade de aprendizagem (maneira pessoal de aproximar-se do conhecimento e conformar seu saber) em um determinado momento do processo de alfabetização, impedindo que ele se transformasse e pudesse caminhar pelo mesmo.
O seu sintoma atuava nos atendimentos psicopedagógicos, levando o paciente a resistir às possibilidades de mudança e temer o surgimento de aprendizagens até então, desconhecidas. Esta resistência aos atendimentos psicopedagógicos era perceptível também em sua escola (aprendizagem de novos conteúdos) e em seu meio familiar (realização das lições escolares). No sintoma de aprendizagem os recursos para elaboração cognitiva estão indisponíveis, consequentemente o sujeito renuncia ao aprender ou aprende com dificuldade, ocasionando marcas na construção de sua inteligência por parte da estrutura simbólica inconsciente. Considero que isto era o que ocorria com o paciente.
Para que eu, como psicopedagoga, pudesse ajudá-lo, acreditei que era preciso realizar uma intervenção que provocasse alterações, que permitisse que ele passasse para a consciência fatos inconscientes, que vencesse a resistência e possibilitasse a elaboração de seu sintoma. Porém, estes são alguns dos caminhos possíveis, visto que meu olhar para este paciente e as escolhas pelas atividades realizadas deram-se com base na teoria da Psicologia Analítica e da Psicopedagogia, como já descrito na introdução.
Partidária da ideia de que para atingir estes objetivos eu precisava escolher uma ferramenta de intervenção que possibilitasse a simbolização do sintoma, para uma possível ressignificação de sua dificuldade de aprendizagem, escolhi o conto. Pois, um conto fala diretamente com uma pessoa por meio de uma linguagem simbólica, expressa de forma simples vivências de nosso mundo interior e permite que outras imagens surjam.
A partir disto, realizei uma primeira leitura do conto para que ele pudesse se familiarizar com a história, e pude observar que J. resistiu em olhar para o conteúdo simbólico apresentado, deixando perceptível que algo o mobilizou. Seu comportamento de realizar dois desenhos que aparentemente faziam referência ao rei da história, depois jogá-los fora e por ultimo desenhar algo com uma temática diferente, podem ser indicativos da resistência frente sua identificação com o personagem. O rei pode simbolizar o arquétipo do Pai e as resistências associadas a dificuldade de diálogo com esta força. Este diálogo é necessário para mobilizar as forças do herói, que possibilitam a autoconfiança e determinação na tarefa da aprendizagem.
Sua identificação ficou clara a partir da realização da segunda leitura. Foi neste momento que o conto passou a dizer algo sobre a própria história, suscitou lembranças de experiências vividas. Neste atendimento uma fala importante marcou sua identificação com o conto, "Também ele não tem mãe! Ele não tem uma mãe que cuida, que acompanha, que mora com ele, que estuda junto, que ensina a ler e escrever e que ensina a não ser mandão".
A relação com a sua mãe, as angústias vividas neste relacionamento, os sentimentos de medo, de desamparo, de insegurança e os desejos de proximidade e de ser cuidado por essa mãe, passaram a surgir com recorrência nos atendimentos psicopedagógicos. A dificuldade de J. em compreender por que sua mãe não mora com ele, não acompanha seus estudos, não participa ativamente de seu cotidiano e desenvolvimento, possivelmente contribuíram para o surgimento do seu sintoma de não aprendizagem. Sua dificuldade em compreender o que ocorre nesta relação e o medo de descobrir os motivos pelos quais não recebe mais atenção e carinho desta mãe contribuíram para a sua fixação em um comportamento de recusa aos processos de aprendizagem.
O arquétipo da Grande Mãe e o arquétipo do Pai são essenciais para o desenvolvimento psíquico e intelectual de um indivíduo. Aparentemente, o paciente apresentava-se mobilizado por aspectos negativos do arquétipo da Grande Mãe, não se sentia seguro diante dos processos de aprendizagem, estava despotencializado e pouco apresentava desejo em aprender.
Podemos pensar que a força arquetípica da Grande Mãe precisava ser mobilizada, no sentido de fortalecer sua autoconfiança, autonomia e possibilitar o contato com as forças arquetípicas do Pai, que ajudam a lidar com a frustração, adaptar-se aos limites e ao que é imposto pela aprendizagem e pelo meio. O dinamismo patriarcal que gradualmente é inserido na vida da criança permite que o Ego se desenvolva e se articule com o Self, no processo de individuação. Esta mobilização que ocorria com dificuldade no caso descrito, levava a criança a agir defensivamente na sua relação com a aprendizagem e com as normas escolares. Ele apresentava dificuldades para, de acordo com a lógica patriarcal, organizar o pensamento, raciocinar, abstrair, memorizar, obedecer às convenções e às normas, valorizar o estudo, disciplinar-se e concentrar-se.
A partir do momento que ele se identificou com o conto, que conteúdos arquetípicos puderam surgir principalmente originários do arquétipo materno, ele pôde passar a nomear suas dificuldades e caminhar para a vivência de um possível alívio de seu sintoma. Abriu-se a possibilidade de conteúdos inconscientes serem trazidos à consciência.
A construção da capa e da coroa do rei, que são símbolos da persona relacionados à força e ao poder, foram atividades propostas com o intuito dele simbolizar os conteúdos arquetípicos mobilizados e vivenciar os novos significados que agregou ao conto (novas imagens), como a possibilidade de o rei mudar e parar de ser mandão.
A oposição aos limites e as regras, como negação das forças do arquétipo do Pai, apresentados pelo paciente, foram obstáculos para que ele pudesse assumir responsabilidades necessárias à evolução e ao desenvolvimento da aprendizagem. Compensatoriamente, identificava-se com a força da onipotência, não aceitando as frustrações e limites do meio e apresentava comportamento autoritário durante os atendimentos e nos outros contextos. Estes comportamentos também demonstravam aspectos de sua sombra que eram utilizados como resistência, defesa, diante de mudanças e suas implicações. Nestas atividades ele se abriu para a minha ajuda, solicitou minha presença para a confecção da capa e da coroa do rei. Aparentemente minha atitude como psicopedagoga, de maternagem, a Grande Mãe que acolhe, mas que também abre espaço para as forças arquetípicas do Pai, possibilitou que ele entrasse em contato com o arquétipo do Pai, simbolizado na representação do rei.
Após a leitura deste conto algumas mudanças de comportamento puderam ser observadas, o paciente passou a aceitar algumas intervenções como: a realização da leitura de livros, a confecção de atividades com a minha ajuda, a possibilidade de jogar sem burlar regras, uma maior aceitação de regras e limites, passou a suportar melhor momentos de frustração e principalmente, começou a demonstrar desejo em aprender.
Acredito que minhas atitudes foram na direção de estimular, atualizar, as potencialidades do paciente e favorecer o livre trânsito entre as polaridades da personalidade. Ao oferecer um clima de segurança, o psicopedagogo permite ao paciente experimentar sua vulnerabilidade, reconhecer necessidades e caminhar para a diminuição de suas dificuldades de aprendizagem, de seu sintoma. E, ao acreditar no potencial do paciente, favorece o encontro dele consigo mesmo.
Considerações finais
Pretendi, ao realizar a fundamentação teórica e um relato de experiência a partir de recortes de atendimentos psicopedagógicos realizados por mim, ilustrar como um conto, que tem sua importância reconhecida e explorada pela Psicologia Analítica, pode ser uma ferramenta de intervenção para psicopedagogos. Com esta pesquisa, busquei fazer livres associações das representações simbólicas que surgiram com o conto, porém, acredito que mais associações arquetípicas, que possibilitam uma compreensão do processo de individuação do paciente, poderiam ser realizadas, ampliando este estudo.
Os recortes realizados fazem referência ao início de um atendimento psicopedagógico, portanto, as melhoras observadas bem como a diminuição da resistência, oscilaram durante todo o processo; houve momentos em que a resistência se intensificou novamente e alguns comportamentos insistiram em aparecer. Porém, destaco que os ganhos para o processo de alfabetização foram visíveis e significativos, pois o paciente passou a ler com uma melhor fluência, desenvolveu sua escrita e principalmente pôde ir se permitindo vivenciar experiências de aprendizagem.
Podemos entender que as dificuldades de aprendizagem, sentidas como desagradáveis ao indivíduo, passam a ocupar um lugar na sombra e como consequência da dificuldade de entrar em contato com esses conteúdos, o indivíduo resiste. Portanto, um psicopedagogo que trabalhe a partir desta vertente, deve estar atento a este fenômeno associado às defesas do aprendiz, e disposto a desenvolver estratégias que ajudem o indivíduo a diminuir sua resistência diante do aprendizado, deparando-se com suas dificuldades e sentindo-se capaz de superá-las.
A pesquisa se propôs a exemplificar esta experiência psicopedagógica, com estratégias que podem ser utilizadas pelo psicopedagogo por meio dos contos de fadas e expressões criativas dos aprendizes que apresentam dificuldades de diferentes naturezas. O conto, portanto, se apresenta nessa experiência relatada como importante ferramenta para diminuir a resistência, ao facilitar o surgimento de conteúdos arquetípicos, como os da sombra e a expressão simbólica destas forças inconscientes. Por meio do diálogo com estas representações simbólicas na relação terapeuta e paciente, o conto e sua expressão possibilita que o sintoma da não aprendizagem possa ser compreendido e atenuado.
O processo de ensino-aprendizagem pode ser pensado com um todo que deve considerar a integração do cognitivo e do afetivo, portanto, para os psicopedagogos, é fundamental buscar conhecer as questões afetivas para desenvolver os aspectos cognitivos.
O conto é um ótimo exemplo de instrumento que, ao ser utilizado, facilita o surgimento do emocional, do afetivo. O conto usa a mesma linguagem do inconsciente (símbolo), por isso, fala diretamente com uma criança por meio de uma linguagem simbólica, sem a necessidade de explicações, do uso da razão e as imagens existentes vão direto ao inconsciente, podem resolver algum eventual problema e levá-lo a uma mudança pessoal. Nos atendimentos, o conto e as representações simbólicas do paciente foram utilizados como instrumentos psicopedagógicos para a mobilização imaginativa dos conteúdos arquetípicos e expressões criativas, que possibilitaram o desenvolvimento e compreensão da linguagem oral, escrita e gestual da leitura.
O conto despertou o interesse da criança, que se identificou com o personagem principal, o reizinho mandão, e a partir disto refletiu sobre seus comportamentos. O paciente pôde dizer os comportamentos que achava interessante e aqueles que eram considerados insuportáveis para as pessoas (como na história) e que consequentemente precisavam ser alterados. A partir de então, ele começou a apresentar mudanças de comportamento, diminuiu sua atitude autoritária, entendida como onipotência diante da fragilidade do Ego. Sua identificação com o rei e a possibilidade de reflexão sobre poderes e limites, abriu espaço para o contato com as forças do arquétipo do Pai; ele passou a aceitar melhor minhas intervenções, ajudas e se abriu para a possibilidade de desenvolver a leitura e a escrita. Ao estabelecer contato com as forças arquetípicas do pai, a criança pôde sair do lugar de identificação onipotente com o perfil de mandão, e assim lidar melhor com as frustrações e limites do processo de aprendizagem.
Por meio da simbolização do conteúdo presente no conto, ele pôde levantar a temática da ausência materna, as angústias e dúvidas vividas neste relacionamento, os sentimentos de medo, de desamparo, de insegurança, a dificuldade em compreender por que sua mãe não acompanha seus estudos, não participa ativamente de seu cotidiano e desenvolvimento. Foi a partir desta atividade que o paciente começou a expressar conteúdos, até então inconscientes e sintomáticos, relacionados a figura materna, que passaram a receber atenção. Intervenções posteriores foram realizadas para que este conteúdo continuasse sendo simbolizado.
O conto facilitou mudanças de comportamento, ocasionou a diminuição da resistência aos processos de aprendizagem ao facilitar o surgimento de conteúdos arquetípicos e a possível simbolização dos mesmos, abrindo assim o caminho para o provável alívio de um sintoma de não aprendizagem. Portanto, pode-se concluir que o trabalho com o simbólico é um caminho para a diminuição da resistência, frente aos processos de aprendizagem e que o conto pode ser uma ferramenta muito útil em atendimentos psicopedagógicos.
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1 Psicóloga graduada pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Especialista em Psicopedagogia pelo Instituto Sedes Sapientiae. Atuação em consultório particular no atendimento de crianças, adolescentes, adultos e idosos. E-mail: psicologa@adrianagreco.com.br
2 Alicia Fernández (1990 e 2001).
3 Individuação é a "tendência instintiva a realizar plenamente potencialidade inatas" (SILVEIRA, 1994, p. 88). O homem é capaz de tomar consciência do processo de desenvolvimento de suas potencialidades e influenciá-lo.