SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.38 número94Qualidade de vida e autismo de alto funcionamento: percepção da criança, família e educadorReflexões teóricas sobre a psicologia analítica índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.38 no.94 São Paulo jan./jun. 2018

 

TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASOS

 

 

Adolescentes anoréxicas e suas percepções das relações com familiares1

 

Anorexic adolescents and their perception of family relationships

 

Adolescentes anoréxicas y sus percepciones de las relaciones con familiares

 

 

Fabiana Neme Nogueira Ramos2; Sandra Leal Calais3; Carmen Maria Bueno Neme4; Fernanda Pádua Rezende5

 

 


RESUMO

A anorexia é um transtorno alimentar que tem como principais sintomas a baixa ingestão alimentar, a preocupação constante em não ganhar peso acompanhada de comportamentos que interferem em seu ganho e alterações na percepção do próprio peso ou forma corporal. Pesquisadores da área difundiram a ideia de que a anorexia está ligada a dificuldades de organização familiar, mas esta concepção vem sendo questionada, o que mostra a necessidade de novos estudos. Realizou-se estudo qualitativo com o objetivo de compreender as percepções de nove adolescentes anoréxicas, com idades entre 16 e 22 anos, escolhidas por conveniência, em clínicas de saúde mental, nas relações com seus pais e irmãos. Foi utilizado um roteiro de entrevista com questões sobre as relações familiares (adolescente e mãe; adolescente e pai; adolescente e irmãos). As adolescentes do estudo percebem a mãe mais próxima, física e afetivamente. As figuras paternas são percebidas como inseguras, dependentes ou ausentes. Não se evidenciam conflitos na percepção da relação com os irmãos e, de modo geral, as adolescentes percebem suas relações familiares como pouco conflituosas. Uma limitação do estudo foi investigar somente a percepção das adolescentes e não de seus familiares. Conclui-se que a visão dessas adolescentes sobre a família não pode ser encarada como negativa, não se deixando de lado as considerações particulares.

Palavras-chave: Anorexia, adolescência, relações familiares.


ABSTRACT

Anorexia is an eating disorder that has as main symptoms low food intake, constant concern about not gaining weight accompanied by behaviors that interfere in its gain and changes in the perception of one's own weight or body shape. Researchers in the area spread the idea that anorexia is linked to difficulties in family organization, but this conception has been questioned, which indicates the need for further studies. A qualitative study was carried out in order to understand the perceptions of nine anorexic adolescents, aged between 16 and 22 years, chosen for convenience in mental health care clinics, in the relations with their parents and siblings. An interview script was used with questions about family relationships (adolescent and mother, adolescent and father, adolescent and siblings). For these adolescents the mother is much closer in the physical and affective sense. The paternal figures are perceived as insecure, dependent and absent. There is no evidence of conflict in the perception of the relationship with siblings and, in general, the adolescents perceive their family relations as not very conflictual. One limitation of the study was to investigate only the perception of adolescents and not their relatives. It is concluded that the adolescents' view of the family cannot be viewed as negative, and particular considerations cannot be overlooked.

Keywords: Anorexia, adolescence, family relations.


RESUMEN

La anorexia es un trastorno alimenticio que tiene como principales síntomas la baja ingesta alimentaria, la preocupación constante en no ganar peso acompañada de comportamientos que interfieren en su ganancia y alteraciones en la percepción del propio peso o forma corporal. Los investigadores del área difundieron la idea de que la anorexia está ligada a dificultades de organización familiar, pero esta concepción viene siendo cuestionada, lo que muestra la necesidad de nuevos estudios. Se realizó un estudio cualitativo con el objetivo de comprender las percepciones de nueve adolescentes anoréxicas, con edades entre 16 y 22 años, elegidas por conveniencia, en clínicas de salud mental, en las relaciones con sus padres y hermanos. Se utilizó un guión de entrevista con preguntas sobre las relaciones familiares (adolescente y madre, adolescente y padre, adolescente y hermanos). Las adolescentes del estudio perciben a la madre más cercana, física y afectivamente. Las figuras paternas son percibidas como inseguras, dependientes o ausentes. No se evidencian conflictos en la percepción de la relación con los hermanos y en general, las adolescentes perciben sus relaciones familiares como poco conflictivas. Una limitación de este estudio fue investigar solamente la percepción de las adolescentes y no de sus familiares. Se concluye que la visión de esas adolescentes sobre la familia no puede ser considerada como negativa, sin dejar de lado las consideraciones particulares.

Palabras clave: Anorexia, adolescencia, relaciones familiares.


 

 

Introdução

O sistema de classificação das doenças mentais da Associação Psiquiátrica Americana - DSM-V (2013), inclui a anorexia nervosa (AN) no quadro de transtornos alimentares, que são caracterizados por uma perturbação persistente na alimentação resultando no consumo ou absorção alterada de alimentos que podem comprometer a saúde física e o funcionamento psicossocial dos indivíduos. Alguns aspectos principais da anorexia são: a restrição persistente de ingestão calórica, o medo constante de ganhar peso e engordar, uma perturbação na percepção do próprio peso ou da forma corporal, em associação a comportamentos que impedem o ganho de peso.

As mulheres são acometidas pela anorexia nervosa de 10 a 20 vezes mais, comparativamente aos homens, sendo que o início dos sintomas se dá mais frequentemente entre os 13 e 14 anos e entre os 17 e 18 anos de idade (Busse, 2004). A taxa mundial de prevalência de pacientes com anorexia é de 1% e, destes, cerca de 90% dos casos são de mulheres e a incidência de Anorexia Nervosa tem aumentado nas últimas décadas (Balone, 2008).

A AN apresenta dois subtipos: o tipo restritivo, quando a principal estratégia para emagrecer é a restrição alimentar, por meio de jejuns ou exercícios físicos em excesso e o tipo compulsão periódica purgativa ou bulímica, que ocorre quando há utilização de métodos purgativos, como vômitos auto induzidos e uso de laxantes ou diuréticos. É considerada patologia grave, com alto grau de morbidade principalmente na adolescência, quando geralmente os sintomas se iniciam, sendo raro antes da puberdade ou depois dos 40 anos (DSM-V, 2013). Por vezes, a AN é colocada como doença psicossomática, mas Bouça, Sampaio e Cordeiro (1992) questionaram esta inclusão devido ao forte fator biológico na doença. No entanto, o aparecimento e agravamento dos sintomas pode mostrar relação psicossomática.

As causas da anorexia são imprecisas, mas estudos clínicos indicam hipóteses sobre a gênese deste transtorno, como psicopatologia familiar, dificuldade no funcionamento autônomo do paciente, envolvimento em conflitos familiares, entre outros (Valdanha, Scorsolini-Comin, Peres, & Santos, 2013). A interação sociocultural mal adaptada, fatores biológicos e psicológicos são fatores também apontados como possíveis causas da AN, caracterizando um quadro multideterminado (Smink, van Hoeken & Hoek, 2012). Para Ida (2008), a anorexia deve ser vista além de uma perspectiva individualizante voltada para as jovens anoréxicas e suas interações disfuncionais no âmbito familiar, postulando que os transtornos alimentares são uma denúncia do extremismo das formas de pensar e vivenciar o corpo na sociedade ocidental, tratando-se mais de um sintoma social do que de uma problemática individual de origem familiar.

Verschueren et al. (2015), indicam que a anorexia se apresenta mais comumente em pessoas com dificuldades na regulação emocional e, em alguns casos, mostram que as adolescentes emitem comportamentos para se punirem, utilizando auto lesivos (cortes, banhos quentes, uso de álcool, morder, vômitos), além de um repertório excessivo de autocrítica. A falta de autonomia e emoções instáveis estão presente nas pessoas com AN, gerando uma condição psicológica vulnerável que também indica um julgamento de si próprio, distorcido da realidade.

Oliveira e Santos (2006) mostram que pessoas com AN estabelecem um julgamento de si mesmas baseado na alteração da imagem corporal e na auto percepção da forma e/ou do tamanho do corpo frequentemente distorcida, estando constantemente insatisfeitas. Fortes, Morgado e Ferreira (2013) ressaltam que a insatisfação corporal é um fator de risco para comportamentos alimentares inadequados como na anorexia. A insatisfação corporal e a influência das mídias também devem ser consideradas como fatores de risco, dada a pressão social para se atingir um padrão corporal de magreza (Alvarenga, Scagliusi & Philippi, 2011).

A autoimagem e a percepção da forma corporal são desenvolvidas ao longo das experiências vividas, envolvendo sentimentos, percepções e atitudes em relação ao corpo. Para Barbosa, Matos e Costa (2011) este é um processo que se constrói por meio de vivências dinâmicas e emocionais de um corpo repleto de significados, que foram formados ao longo do tempo e das vivências de cada um em um meio social e cultural que cria o que deve ser valorizado. É comum as adolescentes a necessidade constante de agradar e de serem aceitas por um grupo, levando à busca pelo peso idealizado e muitas vezes não alcançado, devido ao padrão de beleza ilusório socialmente imposto (Alves, Vasconcelos, Calvo, & Neves, 2008).

O desencadeamento da doença pode estar associado a um evento específico, por exemplo, sair da casa dos pais para estudar fora, término de namoro, dificuldade de aceitação pelo grupo de amigos e conflitos familiares. O curso e o desfecho do transtorno serão de forma diferente para cada pessoa, dependendo de seu contexto e habilidades individuais (Verschueren et al., 2015, Valdanha et al., 2013).

O entorno familiar é apontado como contexto importante para a compreensão da anorexia em adolescentes e tem sido observado desde as primeiras descrições da doença, associado às causas do transtorno. Araújo, Henriques, Brandão e Torres (2012), descrevem como a família tem sido considerada na literatura sobre anorexia ao longo do tempo, destacando três aspectos: como psicossomática, sendo base da etiologia do transtorno; como adoecida, pois se reorganiza em torno da doença e como resiliente, apoiando e vencendo a doença. Em seu trabalho, Araújo, Henriques, Brandão e Torres descrevem vários papéis, como os de vilões, vítimas e heróis, revezados entre pais, irmãos, anoréticos e o terapeuta. Ressaltam a importância de ampliação do olhar sobre a anorexia, pois muitas vezes o foco em um só aspecto pode deixar de considerar a complexidade que a realidade apresenta.

Numa perspectiva familiar, Sherkow, Kamens, Megyes e Loewenthal (2009), mostram como os transtornos alimentares podem ser transmitidos de uma geração para outra, enfatizando a dinâmica familiar como psicogênica. As mães são descritas como não sintonizadas com as necessidades próprias da criança, e, a família, é caracterizada pelo aglutinamento, processo por meio do qual ocorrem intromissões constantes nos pensamentos e sentimentos uns dos outros nas relações familiares. Desta forma, a percepção de si mesmo e a dos outros membros da família é pouco diferenciada, contribuindo para a baixa autonomia do sujeito anoréxico, pois suas ideias se confundem com as de seus familiares.

Oliveira e Santos (2006) relatam algumas características de famílias com pacientes anoréxicas, como: os pais geralmente tendem a ter preocupação excessiva com a alimentação; apresentam muitas vezes rigidez na maneira de lidar com as mudanças impostas pelo desenvolvimento humano; tendem a dificultar a autonomia e o crescimento de seus filhos; os conflitos são dificilmente resolvidos, pois há na família baixa tolerância ao estresse e pouca habilidade para resolver os problemas. Também pais que buscam conforto emocional em suas filhas, ao invés de proporcioná-lo (Bemporad & Ratey, 1985). Estas famílias dificilmente apresentam respostas positivas para o enfrentamento da doença, prejudicando o curso dos sintomas.

Uma melhor percepção da imagem corporal associa-se a vinculações parentais positivas. Adolescentes que desenvolvem uma vinculação parental negativa, além de exibirem uma percepção da imagem corporal distorcida, apresentam dificuldades em relacionamentos interpessoais (Barbosa et al., 2011).

No entanto, a ênfase dada aos aspectos familiares como desencadeadores do transtorno está sendo questionada na literatura. Souza e Santos (2012) apontam que não se tem dados empíricos suficientes para confirmar esta ideia. Quando se enfatiza a dinâmica familiar como problemática e causadora de transtornos mentais, o discurso culpabiliza a família, o que pode deixar os pais em uma posição de impotência diante do problema que parece ser irreversível sob essa ótica. Desta forma, a AN deve ser compreendida de forma multideterminada.

Bechara e Kohatsu (2014), Brauhardt, Zwaan e Hilbert (2014), Honey, Clarke, Halse, Kohn e Madden (2006) e Voldanha et al. (2013), afirmam que é fundamental a união entre família e paciente, para que juntos encontrem maneiras e alternativas variadas para a reconstrução e busca de novos significados mais adaptativos em suas vivências com a anorexia. O envolvimento familiar é uma ferramenta indispensável para a melhora do paciente em todos os casos de transtornos mentais, independentemente de estar ou não associada à gênese dos transtornos. Também, em outras visões psicológicas, aponta-se a questão da multideterminação do evento (Herscovici & Bay, 1997). Assim, a família deve ser alvo de constantes investigações científicas para aprimoramento dos processos de intervenção, e para que possam também, ser ouvidas e construírem repertórios para lidarem com as situações desafiadoras, sem ocuparem a posição de culpados, mas de agentes e de sujeitos que também sentem suas dificuldades e necessitam de auxílio. Tem-se por hipótese de que a anorexia pode estar diretamente ligada a conflitos familiares, com controle excessivo sobre as adolescentes.

Tendo em vista a complexidade de fatores individuais, familiares e sociais possivelmente envolvidos na gênese e evolução da AN, bem como o conceito de saúde e adoecimento existencial apresentado por Forghieri (1996), considera-se relevante compreender como adolescentes com o diagnóstico deste transtorno percebem as relações com seus familiares e suas possíveis influências na experiência anoréxica, na perspectiva das próprias adolescentes. Dada a prevalência da AN em mulheres, ouvem-se nove adolescentes do sexo feminino, com diagnóstico de AN, com o objetivo de descrever e compreender suas percepções das relações com seus familiares (pai-mãe-irmãos).

 

Método

Trata-se de estudo qualitativo, descritivo/prospectivo, transversal e delineamento de estudo de casos múltiplos, norteado pelo método fenomenológico de pesquisa, descrito por Martins e Bicudo (1989) e Valle (1997).

 

Participantes

A amostra do estudo, constituída por conveniência, compõe-se de nove adolescentes do sexo feminino com diagnóstico de anorexia nervosa, do tipo restritivo e bulímico, na faixa etária de 16 a 22 anos de idade, solteiras, com escolaridade mínima de ensino fundamental incompleto, independentemente de classe social. Como critério de inclusão se estabelece: pertencer ao sexo feminino, estar em acompanhamento psicológico (em grupo ou individual; particular ou em ambulatórios de saúde mental) e/ ou em tratamento médico. Os nomes apresentados nos resultados são fictícios para preservar a identidade das participantes.

 

Instrumentos

Utilizam-se entrevistas individuais com base em roteiro composto de questões gerais estimuladoras do relato das adolescentes, abordando suas percepções acerca de suas relações familiares (adolescente e mãe; adolescente e pai; adolescente e irmãos), com quatro questões norteadoras: Como você vê as suas relações com seus familiares (atualmente/no passado)? Como você vê suas relações com sua mãe (atualmente/no passado)? Fale sobre sua mãe, como você a vê. Fale sobre seu pai e irmãos (se houver), como você os vê.

 

Procedimentos

As entrevistas realizam-se em clínicas particulares de psicólogos e nutricionistas e em um ambulatório de transtorno alimentar de uma cidade do interior do estado de São Paulo, mediante obtenção de autorização dos responsáveis pelas clinicas e ambulatório para o convite às pacientes para participarem do estudo.

Todos os cuidados éticos preconizados pela Resolução MS 466/12 do Conselho Nacional de Saúde foram tomados, além do parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa (Processo nº 474/46/01/07). Após o convite para a participação são esclarecidos os objetivos e procedimentos, o termo de consentimento livre e esclarecido é assinado pelas participantes, e, quando menores de idade, os pais são solicitados a autorizar a participação da menor, incluindo a permissão para gravar a entrevista.

A entrevista com uma das participantes realiza-se com a presença da mãe, por solicitação desta e da adolescente, porém sem intervenção direta da mãe durante o procedimento. As demais entrevistas ocorrem entre adolescente e pesquisadora e todas são gravadas em áudio e transcorrem em encontro único com cada participante, com duração média de 39 minutos.

Com base nas proposições de Martins e Bicudo (1989) e Valle (1997), analisam-se as entrevistas, de acordo com passos ou etapas. Inicia-se com a transcrição, na íntegra, do material gravado e a leitura geral de cada descrição, sem buscar interpretação dos relatos, para obter-se a compreensão global do fenômeno. A seguir, as entrevistas são relidas para se identificar, nas falas das participantes, o conteúdo diretamente relacionado ao fenômeno investigado. Identificam-se, assim, as unidades de significado, que são os significados atribuídos pelas adolescentes às experiências relatadas. Realiza-se, então, a transformação das unidades de significado em linguagem psicológica. O pesquisador analisa o conteúdo das falas e o transforma em fala psicológica, com a compreensão psicológica das vivências ou experiências que emergiram nos relatos. Martins e Bicudo (1989) afirmam a importância destas etapas para que o pesquisador possa elucidar os aspectos psicológicos das falas, buscando sua compreensão, a partir da expressão do mundo privado e subjetivo dos indivíduos. O próximo passo envolve transformar as unidades de significado em categorias temáticas, que se relacionam com o tema do estudo.

Elas são temas repetidos nas entrevistas que sinalizam para a essência do fenômeno, ou seja, a percepção das relações familiares para as adolescentes. No último passo, elabora-se a síntese de todo o fenômeno encontrado; síntese, porque agrupa as partes separadas (redução) em novas partes, permitindo compreender as percepções e vivências das adolescentes com anorexia com seus familiares, construindo-se uma proposição da estrutura do fenômeno analisado.

 

Resultados e discussão

Apresentam-se as categorias de significado emergentes da análise das entrevistas, referentes às vivências com o pai (relacionamento e percepção do pai), com a mãe (relacionamento e percepção da mãe) e com os irmãos (relacionamento e percepção dos irmãos).

Relações com o pai

Categoria: o pai percebido como figura distante

De acordo com os relatos das participantes, os genitores masculinos são percebidos como distantes, o que dificulta um relacionamento de proximidade afetiva e liberdade para o diálogo. Giovana elucida este aspecto da relação com o pai na seguinte passagem:

"A gente conversa, lógico, mas eu não tenho abertura com ele, pra chegar e falar qualquer assunto, qualquer coisa, sobre a minha vida particular, ou, assim eu não falo, mas a minha relação com ele é boa, também não é nada que nem se olha na cara, a gente conversa, a gente brinca, a gente briga, às vezes, também, só que não é tão aberto quanto a relação que eu tenho com a minha mãe" (Giovana, 17 anos).

O mesmo aspecto se evidencia no relato de Denise acerca de sua relação passada com o pai. Denise refere que hoje, percebe sua relação com o pai como de mais abertura ao diálogo, porém não igual à que tem com a mãe.

"Antes eu com o meu pai não conversava muito não. Conversava, mas não igual à liberdade de hoje. Hoje eu tenho liberdade pra conversar com o meu pai de tudo, não igual a minha mãe, que eu falo ó saí com o fulano, ciclano, isso não, ele é mais fechado" (Denise, 20 anos).

Nestes relatos identificam-se dificuldades na relação adolescente-pai, na qual não há abertura ao diálogo, ou esta abertura não permite que falem sobre suas intimidades, o que não parece acontecer com as mães. Para Valdanha et al. (2013), os pais de pacientes anoréxicas tendem a ser descritos como afastados. Na falta de abertura com o pai, as adolescentes recorrem à mãe ou outros familiares - o que se revela em Talita e Manuela.

"A gente não tem contato, assim ..., não é muito de conversar, eu sou mais apegada à minha mãe" (Talita, 16 anos).

"Eu me dou super bem com a minha mãe, com a minha tia, com o resto da minha família, com todos bem; com o meu pai eu tenho uma certa dificuldade... com o meu pai a relação é bem difícil" (Manuela, 20 anos).

Talita e Manuela referem boas relações com a mãe e com outros, revelando dificuldades de contato e aproximação com o pai, com o qual, a relação é vista como afetivamente distante, com pouco diálogo.

Categoria: o pai percebido como figura imatura e passiva

Nas entrevistas de duas participantes, o pai aparece como figura imatura e passiva. Diz Giovana (17 anos):

"O meu pai, às vezes, eu sinto que ele não amadureceu muito, por ser filho único era muito mimado, quando casou com a minha mãe, minha mãe continuou fazendo as coisas por ele, igual a minha vó fazia, então ele não amadureceu muito, então às vezes eu sinto que eu não posso contar com ele em qualquer situação, eu acho que tem vez que ele precisa de mim, mais do que eu dele, é meio assim... tem vez que ele tem umas atitudes, meio de criança ...

Continua seu relato, no qual se revelam conflitos com o pai, pela percepção de que há confusão de papéis pai-filha:

[...] eu acho que daí eu acabo brigando com ele... tem vezes que eu brigo com ele como se eu fosse a mãe dele, e ele meu filho, porque eu acho que eu esqueço às vezes um pouco que eu sou filha dele e acabo me alterando, aí quando minha mãe escuta assim, ela fala para eu maneirar, porque apesar de não parecer em certos momentos ele é meu pai, então, eu tenho que ter respeito pelo menos (Giovana, 17 anos).

Denise (20 anos) também expressa sua percepção do pai como alguém passivo, revelando uma preocupação que parece não o afetar:

"O meu pai, é uma pessoa assim mais fechada... Ele é uma pessoa que não busca muito crescer na vida, ele é sossegado, tipo, ele não busca crescer financeiramente, nem nada, pra ele tudo tá bom, nada pra ele tá ruim".

Nessas passagens é possível compreender certa frustração de Giovana e de Denise com a atitude paterna, o que parece pautar a relação pai-filha. Giovana sente-se, em alguns momentos, como se fosse a mãe de seu pai, mostrando que se percebe mais madura do que ele. Bemporad e Ratey (1985) referiram tal condição. As falas de Denise e de Giovana sinalizam uma dificuldade parental em se colocar como figura paterna, estabelecendo regras, limites e diálogo. Barbosa et al. (2011) referem que a vinculação parental negativa pode estar associada a uma imagem corporal distorcida, um dos elementos descritos na literatura sobre anorexia.

Categoria: o pai como figura distante, porém percebido com qualidades positivas.

Nas falas de cinco das participantes, aparecem aspectos mais positivos do pai e da relação com a figura paterna, apesar de ainda revelarem um relacionamento distante.

"Ele é distante, sabe, assim, não sabe muito sobre a gente, não conhece muito... se ele não tivesse em casa eu sentiria falta do papel de pai de homem, dentro de casa, assim, mas é que é meio distante, mas ele faz quando ele pode" (Mônica, 21 anos).

"Eu me dou muito com ele sabe, assim, em relação, a gente não briga nada, porque também ele quase não fica em casa, porque ele é viajante então ele viaja muito ... quem convive mais é a minha mãe" (Amanda, 22 anos).

"Com o meu pai eu brigo um pouco, mas é normal... Meu pai... eu sou meio distante, mesmo por não morar junto com ele, mas mesmo assim a gente se fala todo dia, eu conto algumas coisas para ele também, a gente também é unido de certa forma... com a separação deles, hoje em dia não é mais a mesma coisa" (Carla, 20 anos).

"A gente se dá bem, eu não fico quase em casa, quando a gente se encontra a gente conversa, ele ainda fala você é burra, mas eu me dou muito bem com ele, de casa se tiver mil problemas e minha mãe ou meu irmão for tentar explicar ele não vai entender, mas se eu explicar ele entende. Ele me escuta" (Iara, 21 anos).

Nas falas destas adolescentes, aparece a distância em relação ao pai, justificada, por elas, por morarem em casas diferentes, ou por questões de trabalho. Porém elas consideram que o relacionamento é bom, ou reconhecem, no caso de Mônica, que o pai se esforça fazendo aquilo que pode. Iara revela que o pai fala que ela é "burra", mas considera, a despeito disso, que o relacionamento é bom pois o pai ainda a ouve mais do que ouve a mãe ou o irmão.

Outros aspectos positivos da forma como o pai é percebido, revelam-se nas falas de Talita, Mônica e Amanda.

"Ele é uma boa pessoa" (Talita, 16 anos).

"Meu pai é muito zeloso... a gente parece um bibelô para ele... um pai muito bom, no sentido, assim, de preocupação mesmo sabe, se ele ta fora ele sempre liga para saber como que você ta tudo, mas um pai muito distante... ele trabalha viajando, ele não fica em casa o dia todo assim sabe, então ele é muito distante assim, eu não sei como te falo" (Mônica, 21 anos).

"Ele é meu amigo. Tudo... às vezes, se eu faço alguma coisa de errado ele não é aquele pai agressivo, tanto que ele nunca nem me relou a mão. Ele é de conversar entendeu? Tanto que na semana passada eu briguei com a minha mãe, aí ele tava viajando ele ligou, falou que não podia ser assim que ia conversar comigo, porque não pode ser assim normal sabe? Eu acho que eu me dou bem com ele" (Amanda, 22 anos).

Tanto Talita, quanto Mônica e Amanda apontam qualidades positivas do pai, vendo-o como uma pessoa boa, zelosa, preocupada, ou com atitude de conversar ao invés de punir como medida educativa. Entendem a distância como decorrente do trabalho paterno, como refere Mônica, sinalizando uma forma de compreensão do modo de agir de seu pai. Para estas adolescentes, o pai é distante, mas não ausente, pois não há exclusão de afeto. O relacionamento mais fácil com a mãe não a torna o único foco de afeto. Amanda, vê o pai até mesmo como um amigo, assim como Ida.

Ao descreverem suas relações com seus genitores masculinos, as participantes revelam percebê-los mais negativamente, como distantes ou imaturos. Porém também aparecem percepções de aspectos positivos na figura paterna, como bondade, preocupação e cuidado com a família.

Ao abordar o transtorno anoréxico e as relações familiares, Gabbard (1998) descreve estudos, cujos resultados apontam para uma figura paterna mais frágil ou mais distante afetivamente, com preponderância da figura materna como foco de afeto central, frequentemente ambíguo, ambivalente e codependente.

Relações com a mãe

Categoria: a mãe percebida como figura de apego afetivo e de apoio

Para as adolescentes entrevistadas, a mãe é vista como apoio e a figura com quem podem contar sempre, além de mostrar alguns elementos de controle parental. Nas falas nota-se este sentido.

"Eu tenho na minha mãe uma amiga, eu sei que eu posso pedir conselho para ela, falar com ela sobre qualquer assunto, que ela vai conversar comigo, como mãe, só que não é também na ditadura, que ela me impõe. Ela me aconselha, ela fala o que ela acha melhor, quando eu erro ela me dá bronca, é isso" (Giovana, 17 anos).

Talita, Bruna e Carla também mostram, em seus relatos, a estreita e forte relação afetiva com suas mães. Revelam, em suas falas, que a mãe é amiga e em alguns casos significam "tudo" para elas, numa relação de grande proximidade.

"Ela é minha amiga e sempre me apoia" (Talita, 16 anos).

"Ah, a minha mãe é tudo, é ela que ficava o dia inteiro comigo, que fica, é ela que viu tudo, todas as crises que eu tive, sempre foi com ela, então nela eu tenho tudo" (Bruna, 16 anos).

"A minha mãe, eu e ela, a gente é bem amiga, a gente conversa sobre tudo, eu conto as coisas para ela, ela me fala as coisas também" (Carla, 20 anos).

"A gente era grudada, mas grudada assim, muito grudada, eu mamei até os quatro anos nela, desde criancinha minha mãe não deixava eu com ninguém, então eu só gostava dela, mas, assim, ... não era tão grudada não, eu saía assim, ia pra baile essas coisas, mas não era tanto, ela não ficava pegando tanto no meu pé, não ficava me ligando toda hora, agora é bem mais...

Categoria: a mãe percebida como figura afetiva central, com ambivalência e dependência nas relações.

O depoimento desta adolescente sugere a experiência de uma relação de exclusividade e de dependência mãe-filha, na qual se evidencia o desmame tardio e a vivência de serem "grudadas" conforme as palavras da própria adolescente. Houve aparente flexibilização desta forma de relação com o crescimento da adolescente, que permitia que ela saísse de casa e frequentasse atividades comuns na adolescência.

Porém, no relato de Denise, evidencia-se sua percepção de um retrocesso na relação mãe-filha após sua doença, a qual volta a ser pautada por excessivo controle materno, vivida pela filha, atualmente, como sufocação e aprisionamento. Aparece certa frustração da adolescente, por sentir que a mãe não reconhece e não valida sua melhora.

[...] ela me prende muito, é a mesma coisa se eu fosse grudada a ela, ela me sufoca, ela não me deixa viver, assim ela não me deixa ter liberdade, eu queria viver em total liberdade, sabe?...se eu tô com dúvida em alguma coisa, ela fica falando, tipo não faz isso, tal, se eu vou comer alguma coisa, ela fica falando, antes eu pedia pra ela pra comer, agora ela quer que peço, do mesmo jeito de antes, sendo que eu vou lá na geladeira e pego, coisa que eu já aprendi a fazer, entendeu? Ela quer que eu continue fazendo, ela já se acostumou com aquele jeito meu, de quando eu estava doente. "Agora ela não consegue voltar para a realidade que eu melhorei" (Denise, 20 anos).

Denise revela insatisfação na relação atual com a mãe, na qual a extrema ligação e preocupação materna imprime um caráter de excessivo controle exercido pela mãe, influenciando suas escolhas, inclusive na alimentação. Sente que continua sendo tratada como uma pessoa doente que precisa de cuidados constantes.

Giovana (17 anos), também sinaliza a percepção de um excessivo controle materno quando afirma: "só que também não é na ditadura que ela me impõe". O relato de Mônica (21 anos), mostra o conflito ligado ao excesso de proteção e cuidados da mãe e também do pai, limitando seu amadurecimento. Percebe a ambivalência dos pais ao esperarem que ela "cresça" porém, impedindo tal crescimento e, desta forma, mantendo uma relação de dependência.

"Sempre foi muito difícil, eu acho que, não sei se é excesso de amor, que ela tem, tanto ela quanto meu pai, hoje eu to meio difícil de achar as palavras, mas tanto ela quanto meu pai, eles é, eu acho que deve ter um cuidado muito grande é assim, um cuidado que quer que a gente cresça, mas na hora que a gente vai crescer eles não aceitam, assim eles limitam, querem que cresça, como eu me lembro na época minha mãe falava assim é porque você não quer crescer você quer ficar sempre um bebezinho".

Mônica prossegue seu relato, demonstrando perceber o próprio conflito vivido por sua mãe, caracterizada como controladora e manipuladora e que sofre, ao sentir a perda de poder e controle sobre os filhos que estão crescendo e buscando sua independência.

"Minha mãe sempre foi muito controladora, sempre foi muito controladora e manipuladora, e é até hoje, então uma das minhas lutas com ela é isso, porque se ela fala A eu quero B. Então tipo, ela não aceita que eu quero B... a minha vida foi a minha mãe que sabe que me guiou que ta sempre ali, mas tem esse lado aí dela, um lado, que né... Ela sofre, tanto é que ela não deixa, ela tenta controlar, ficar para ela, porque ela quer que os filhos vão, mas a hora que eles vão, ela quer eles para ela, ela perdeu o poder, quando ela percebe que ela perdeu o poder, aí tem conflito sabe".

Para ela, os pais a superprotegem, impedindo-a de crescer e limitando suas escolhas. Entende que os pais a veem como incapaz, como se ainda fosse uma criança. A mãe, "controladora e manipuladora" é percebida como contraditória, querendo que ela cresça e, ao mesmo tempo, impedindo este movimento.

Sherkow et al. (2009) consideram que as mães que não reconhecem as necessidades da própria filha, são descritas como dominadoras, cuidam das filhas de acordo com suas próprias necessidades e, desta forma, invalidam a identidade da adolescente. Bechara e Kohatsu (2014) abordam tais dificuldades de individualização no contexto familiar, o que pode ser visto nos depoimentos das adolescentes estudadas.

As mães também são vistas pelas adolescentes como o centro da família, como amigas, conselheiras e mais próximas afetivamente. Para a maior parte das entrevistadas, a mãe é objeto de admiração, com quem apresentam uma forte ligação afetiva.

"Ela é o porto seguro de lá de casa, tanto para mim, pro meu irmão, pro meu pai, todo mundo se apoia nela... minha mãe, apesar de eu não falar isso pra ela porque eu sou meio tímida, não consigo me expressar direito, eu tenho muita admiração pela minha mãe". (Giovana, 17 anos).

A mãe é vista como figura forte e com admiração pela filha, ao mesmo tempo em que ela se descreve como alguém mais frágil, tímida e com dificuldades de expressão, quase estabelecendo um contraponto entre ambas. Giovana prossegue, justificando sua admiração pela mãe.

"Porque ela estudou, ao mesmo tempo que ela fez faculdade, ela era casada, tinha eu já, já tinha uma filha, no último ano de faculdade, meu irmão, ela tava grávida do meu irmão, então ela conseguiu estudar, criar um filho e trabalha e sustenta uma casa, tudo junto, e conseguiu fazer tudo certinho assim, direitinho. Deu conta de fazer tudo, e hoje em dia se eu consigo ter, se eu posso ter uma boa escola, se ela pode tá pagando esse tratamento pra mim, é graças ao esforço que ela fez."

Cita, também, a contribuição do pai, mas reforça seu reconhecimento e gratidão à figura materna.

"[...] meu pai também fez, só que ela fez um pouco mais, então tudo isso que eu tenho hoje eu devo a ela, e ao meu pai também, lógico, só que quem mais se esforçou quem teve mais trabalho, até que foi ela" (Giovana, 17 anos).

A forte identificação com a mãe, chegando a sugerir uma relação simbiótica, é evidenciada nos depoimentos de Denise e de Talita.

"Minha mãe ... é a mesma coisa que ela fosse eu" (Denise, 20 anos).

"Sem ela eu não vivo, se ela partisse, eu ia com ela, eu não consigo viver sem ela" (Talita, 16 anos).

Todas as adolescentes entrevistadas mostram, em seus relatos, perceberem as mães como figuras centrais de apoio, detentoras de maior poder ou autoridade na dinâmica familiar, ficando, os genitores masculinos, em segundo plano. Ao mesmo tempo em que se configura uma relação de dependência, vivida como positiva, pois proporciona proximidade, amparo e aconchego, alguns depoimentos mostram a percepção de uma ambivalência afetiva, em que o excesso de zelo e cuidados maternos, também aprisiona e limita suas existências, dificultando seu amadurecimento e conquista de independência.

Não se evidenciam perturbações significativas nas relações das adolescentes com suas mães, pais e irmãos, com base nas percepções e relatos das adolescentes entrevistadas, confirmando resultados de estudos encontrados na literatura, mostrando que nem sempre a família de pessoas com anorexia é psicopatológica, gênese do transtorno ou apresenta problemas de outra natureza (Ida, 2008; Souza & Santos, 2012). No entanto, Gabbard (1998) cita estudos realizados nas últimas décadas que esclareceram importantes aspectos subjetivos acerca das relações familiares de adolescentes anoréxicas, enfatizando os relacionamentos perturbados da criança e da mãe, além de confusões quanto aos papéis familiares. De acordo com Bruch (1987), a mãe não reconhece as necessidades próprias da criança, parecendo cuidar dela de acordo com suas próprias necessidades e, desta forma, invalidando a criança, a ponto desta não se perceber como um ser separado, mas como seu complemento. Aspectos deste modo de relação aparecem no relato de algumas das entrevistadas. Práticas parentais negativas também aparecem no relato das adolescentes, tal como apontado por Barbosa et al. (2011), no contexto da anorexia.

Vivência com irmãos

Categoria: os irmãos percebidos como figuras não conflituosas e relativamente próximas afetivamente

A relação com os irmãos, de modo geral, é vivenciada com tranquilidade, sem conflitos ou sentimentos negativos, mas também sem grande aproximação afetiva.

"Meu irmão é bem calmo, bem tranquilo então ele não se envolve muito, quando tem briga minha e do meu pai ou da minha mãe com meu pai, meu irmão não se envolve, ele fica mais na dele, ele não procura esquentar a cabeça com isso, ele deixa as coisas resolverem sozinhas, ele não se preocupa muito" (Giovana, 17 anos).

"O meu irmão, tipo assim, ah é, meninão, 21 anos, alegre, gosta de curtir, sair, badalar, entendeu? Quer curtir a vida, não quer saber de compromisso, de namorada, não quer nada sério, ele conversa comigo normal, tenho uma relação com ele normal. Antes a gente brigava, coisa de criança, mas hoje a gente se dá bem" (Denise, 20 anos).

"Ela é uma boa pessoa" (Talita, 16 anos).

Bruna vê o irmão como amoroso com todos os familiares, porém também sem grande proximidade afetiva com ela. Compara o irmão com o pai, percebendo-os como acomodados e dependentes dos cuidados da mãe.

"Ah meu irmão ele é bem assim fresco, ele é bem na dele, é, se minha mãe não vai dar alguma coisa para ele, ele já fica bravo, é característica do meu pai, ele é igualzinho meu pai, por exemplo, ele pede uma roupa pra ir pra faculdade, aí a minha mãe, ai eu esqueci de passar, nossa mas você esqueceu de passar? Não é aquela coisa de ficar bravo, sabe ele brinca, mas ele fala sério sabe? Ele e o meu pai querem tudo prontinho. Uma coisa boa assim, meu irmão é muito amoroso com as pessoas, com o meu pai também, com a minha mãe também" (Bruna, 16 anos).

Giovana, Talita e Mônica descrevem os irmãos como pessoas boas e alegres, tendo um bom relacionamento com eles. No entanto, não é uma relação de grande proximidade. Há um certo distanciamento, mas há afeto positivo e conversa.

Categoria: os irmãos percebidos como figuras afetivas presentes, amorosas e de apoio.

"Meu irmão é sempre muito zeloso, tudo que precisa dele, ele ta lá para ajudar... se eu precisar de alguma coisa da minha irmã ela ta ali, não sei se vai poder servir, mas... se eu precisar contar alguma coisa, algum segredo assim, é para o meu irmão, apesar que eu não conto muito, eu sou muito fechada ... mas é para ele que eu contaria" (Mônica, 21 anos).

"O meu irmão, assim ... eu acho que eu me dou bem com ele tudo, porque ele é assim uma pessoa super compreensiva, sabe? Eu sempre fui mais nervosa, sempre, e o meu irmão é o oposto né, porque ele é muito calmo... o meu irmão é muito mais carinhoso do que eu, sabe?" (Amanda, 22 anos).

Os irmãos são, para as adolescentes figuras de afeto, mas com menor intensidade, comparativamente à proximidade que vivenciam com a mãe. São vistos como afetivamente mais próximos ou mais distantes, com qualidades (amoroso, tranquilo e alegre) e defeitos (dependentes). O papel dos irmãos é reconhecido no relacionamento familiar, porém, nas entrevistas não há informações sobre se e como exercem algum tipo de influência sobre as participantes, seu adoecimento e tratamento. Para Mônica e Amanda, os irmãos influenciam de forma positiva, pois são vistos como modelo de apoio e de cuidados.

Honey et al. (2006) mostram que os irmãos podem influenciar suas irmãs com anorexia, tanto de forma positiva quanto negativa, no que tange ao conhecimento pelos irmãos sobre a doença, como lidam com os sintomas, seu estilo de vida e também para o encorajamento ou desencorajamento de alguns comportamentos das irmãs e outros relacionamentos interpessoais. Valdanha et al. (2013) ressaltam que os irmãos podem exercer influência sobre as irmãs com anorexia, incentivando ou não o tratamento, além de poderem prejudicá-lo, tecendo comentários pejorativos sobre o corpo e a imagem corporal das irmãs. No entanto, neste estudo não foi possível identificar como a relação entre as participantes e seus irmãos afeta ou é afetada pela doença das adolescentes pesquisadas. Bouça et al. (1992) também não encontraram uma estrutura familiar típica em casos de anorexia. Herscovici e Bay (1997) apontam para o caráter de multideterminação do transtorno, o que aqui também parece deva ser considerado.

 

Considerações finais

As percepções das adolescentes de suas relações com os familiares, especificamente, com as figuras maternas, paternas e com os irmãos, mostram, de modo geral, relações afetivamente mais positivas do que negativas. A percepção de algumas entrevistadas, permitindo vislumbrar dificuldades e conflitos nas relações com a mãe e com o pai, não invalida a percepção concomitante de qualidades positivas e de apoio e cuidados disponibilizados pelos progenitores. Não se evidenciam graves conflitos ou psicopatologias familiares, de acordo com o que aparece no relato das entrevistadas. No entanto, desvelamse elementos importantes, tais como, um controle excessivo por parte da mãe e relações mães-filhas com forte identificação e certa indiferenciação, bem como, distanciamento afetivo com a figura paterna. O pai é visto, em alguns relatos, como pessoa boa e zelosa, porém imatura ou dependente. Tais elementos, entretanto, não são suficientes para afirmações que os relacionem ao adoecimento das adolescentes com anorexia, no contexto do presente estudo.

Não se negligenciam as influências da família sobre o adoecimento, mas ela não deve ser vista como a principal influência na gênese da anorexia, visto que este transtorno é complexo e multideterminado. Talvez quando o "ser magro" deixar de ser uma qualidade, a incidência de tal transtorno seja diminuída.

A família precisa ser analisada sob a ótica de que também necessita de atenção especializada e que pode servir como parceira nas intervenções junto à adolescente com anorexia nervosa. A prática parental positiva é um recurso promissor para qualquer tratamento, pois disponibiliza apoio e cuidados necessários para a recuperação da pessoa doente.

O estudo apresenta limitações no que se refere à investigação apenas da percepção das adolescentes, o que dificulta o aprofundamento da investigação. Esta pode ser ampliada, incluindo a percepção dos pais e irmãos em sua relação com a adolescente com anorexia, permitindo compreender tais relações em sua complexidade. No entanto, a despeito de suas limitações, o estudo permite identificar que, do ponto de vista das adolescentes, não se pode centrar na família, aspectos significativos ou específicos ligados ao desenvolvimento da anorexia nervosa. A hipótese deste estudo foi contrariada, pois não há elementos que possam comprovar que na família está a gênese dos quadros de AN.

Os depoimentos das adolescentes participantes trazem uma visão de suas relações com seus familiares que atenua a frequente concepção de culpabilização da família pelo adoecimento e sofrimento nos casos de adolescentes com este diagnóstico. Além disso, da perspectiva da psicologia fenomenológico-existencial, embora com um diagnóstico de anorexia nervosa, as adolescentes participantes mostraram-se saudáveis, expressando suas vivências paradoxais de convivência com os aspectos positivos e negativos de seus pais, bem como, demonstrando sua percepção das ambivalências e conflitos presentes nas relações pais-filhos, revelando e elucidando suas experiências.

 

Referências

Alvarenga, M. S., Scagliusi, F. B. S., & Philippi, S. T. (2011). Comportamento de risco para transtorno alimentar em universitárias brasileiras. Revista Psiquiatria Clínica, 38(1), 3-7. <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-60832011000100002>         [ Links ].

Alves, E., Vasconcelos, F. A. G., Calvo, M. C. M., & Neves, J. (2008). Prevalência de sintomas de anorexia nervosa e insatisfação com a imagem corporal em adolescentes do sexo feminino do Município de Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Caderno de Saúde Pública, Rio de Janeiro, 24(3), 503-512. <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2008000300004>         [ Links ].

American Psychiatric Association (APA) (2013). Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais. DSM V Porto Alegre: Artmed.         [ Links ]

Araújo, M., Henriques, M., Brandão, I., & Torres, A. R. (2012). Os heróis, vítimas e vilões: discursos sobre a anorexia nervosa. Psicologia & Sociedade, 24(2), 472-483. <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822012000200025>         [ Links ].

Balone, G. J (2008). Anorexia Nervosa. Obtido 20 de novembro de 2015, de <http://www.psiqweb.med.br/>         [ Links ].

Barbosa, M. R., Matos, P. M., & Costa, M. E. (2011). As relações de vinculação e a imagem corporal: exploração de um modelo. Psicologia: Teoria e Pesquisa, Brasília-DF, 27(3), 273-282. <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010237722011000300002&scri pt=sci_abstract&tlng=pt>         [ Links ].

Bechara, A. P. V., & Kohatsu, L. N. (2014). Tratamento nutricional da anorexia e da bulimia nervosas: aspectos psicológicos dos pacientes, de suas famílias e das nutricionistas. Vínculo - Revista do NESME, 11(2), 1-18. <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1806-24902014000200003>         [ Links ].

Bemporad, J. R. & Ratey, J. (1985). Intensive psychotherapy of former anorexic individual. American Journal Psychotherapy, 39, 454-466.         [ Links ]

Brauhardt, A., Zwaan, M., & Hilbert, A. (2014). The Therapeutic Process in Psychological Treatments for Eating Disorders: A Systematic Review. International Journal of Eating Disorders, 47(6), 565-584. <http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/eat.22287/epdf>         [ Links ].

Bouça, D., Sampaio, D., & Cordeiro, J. C. D. (1992). Anorexia nervosa e a investigação em psicossomática. Acta Médica Portuguesa, 443-445.         [ Links ]

Bruch, H. (1987). The changing picture of an illness: anorexia nervosa. In: Sacksteder, J. L. et al. Attachment and The Therapeutic Process. International Universities Press, 205-222.         [ Links ] Busse, S. R. Anorexia, Bulimia e Obesidade. Barueri: Manole, 2004.         [ Links ]

Forghieri, Y.C. (1996) Saúde e Adoecimento Existencial: O paradoxo do Equilíbrio Psicológico. Temas em Psicologia Sociedade Brasileira de Psicologia, Ribeirão Preto, v. 1, p. 97-110.         [ Links ]

Fortes, L. S., Morgado, F. F. R., & Ferreira, M. E. C. (2013). Fatores associados ao comportamento alimentar inadequado em adolescentes escolares. Revista Psiquiatria Clínica, 40(2), 59-64. <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010160832013000200002>         [ Links ].

Gabbard, G.O. (1998). Transtorno por uso de substâncias e transtornos alimentares. In: Psiquiatria Psicodinâmica. Porto Alegre: Artmed, 241-259.         [ Links ]

Herscovici, C. R., & Bay, L. (1997). Anorexia Nervosa e Bulimia - Ameaças à autonomia. Porto Alegre: Artes Médicas.         [ Links ]

Honey, A., Clarke, S., Halse, C., Kohn, M., & Madden, S. (2006). The influence of siblings on the experience of anorexia nervosa of adolescent girls. European Eating Disorders Review, 14(5), 315-22. <http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/erv.713/pdf>         [ Links ].

Ida, S.W. (2008). Anorexia e Bulimia: Uma Perspectiva Social. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre.         [ Links ]

Martins, J., & Bicudo, M. A. V. (1989). A pesquisa qualitativa em Psicologia: fundamentos e recursos básicos. São Paulo: Moraes.         [ Links ]

Oliveira, E. A., & Santos, M. A. (2006). Perfil psicológico de pacientes com anorexia e Bulimia nervosas: a ótica do psicodiagnóstico. Medicina, Ribeirão Preto, Simpósio: transtornos alimentares: anorexia e bulimia nervosas 39 (3), 353-60. <http://revista.fmrp.usp.br/2006/vol39n3/6_perfil_psicologico.pdf>         [ Links ].

Sherkow, S. P., Kamens, S. R., Megyes, M., & Loewenthal, L. (2009). A clinical study of the intergenerational transmission of eating disorders from mothers to daughters. Psychoanalytic Study Child, 64, 153-89. <http://search.proquest.com/docview/747155087/fulltextPDF/6959D1F693BE4F1DPQ/1?accountid=8112>         [ Links ].

Smink, F. R. E., van Hoeken, D., & Hoek, H. W. (2012). Epidemiology of Eating Disorders: Incidence, Prevalence and Mortality Rates. Current Psychiatry Reports, 14(4), 406-414. <https://link.springer.com/article/10.1007%2Fs11920-012-0282-y>         [ Links ].

Souza, L. V. & Santos, M. A. S. (2010). A participação da família no tratamento dos transtornos alimentares. Psicologia em Estudo, 15(2), 285-294. <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-73722010000200007>         [ Links ].

Souza, L. V., & Santos, M. A. S. (2012). Familiares de Pessoas Diagnosticadas com Transtornos Alimentares: Participação em Atendimento Grupal. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 28(3), 325-334. <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-37722012000300008>         [ Links ].

Valle, E. R. M. (1997). Câncer infantil: Compreender e agir. São Paulo: Psy.         [ Links ]

Valdanha, E. D., Scorsolini-Comin, F., Peres, R. S., & Santos, M. A. (2013). Influência familiar na anorexia nervosa: em busca das melhores evidências científicas. Jornal Brasileiro de Psiquiatria, 62(3), 225-33. <http://www.scielo.br/pdf/jbpsiq/v62n3/07.pdf>         [ Links ].

Verschueren, S., Berends, T., Kool-Goudzwaard, N., van Huigenbosch, E., Gamel, C., Dingemans, A., et al. (2015). Patients with Anorexia Nervosa Who Self-Injure: A Phenomenological Study. Perspectives in Psychiatric Care, 51, 63-70. <http://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/>         [ Links ].

 

 

Recebido: 27/09/2017 / Corrigido: 31/01/2018 / Aprovado: 08/02/2018

 

 

1 Agradecimentos à FAPESP.
2 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem - Faculdade de Ciências - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho UNESP, Bauru - SP - Rua Rene Guimarães Ney, 52, Residencial Florenza 19062-160 Presidente Prudente, SP.
3 Prof.ª Dr.ª no Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem - Faculdade de Ciências - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho UNESP, Bauru - SP. Departamento de Psicologia - UNESP - Av. Edmundo Carrijo Coube 14-01, 17033-360 Bauru SP; tel. (14) 3101-6087; e-mail: scalais@fc.unesp.br.
4 Prof.ª Dr.ª no Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem - Faculdade de Ciências - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho UNESP, Bauru - SP. Departamento de Psicologia - UNESP - Av. Edmundo Carrijo Coube 14-01, 17033-360 Bauru, SP; tel. (14) 3101-6087; e-mail: cmneme@gmail.com.
5 Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem - Faculdade de Ciências - Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho UNESP, Bauru - SP. Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho UNESP, Bauru - SP. Departamento de Psicologia - UNESP - Av. Edmundo Carrijo Coube 14-01, 17033-360 Bauru SP; tel. (14) 3101-6087; e-mail: fernandarezende@gmail.com.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons