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Boletim - Academia Paulista de Psicologia

versão impressa ISSN 1415-711X

Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.41 no.100 São Paulo jan./jun. 2021

 

I. TEORIAS, PESQUISAS E ESTUDOS DE CASO

 

Adolescência e autolesão: uma proposta psicodiagnóstica compreensiva e interventiva

 

Adolescence and self-harm: a comprehensive and interventive Psychodiagnostic proposal

 

Adolescencia y autolesión: una propuesta psicodiagnóstica Integral e Intervención

 

 

Gislaine ChavesI; Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo (Cad.23)II; Helena Rinaldi RosaIII; Antônio Augusto Pinto JúniorIV

IDoutoranda do Departamento de Psicologia Clínica (IP.USP). ORCID: http://orcid.org/0000-0002-9239-8401
IIProfessora Associada do departamento de Psicologia Clínica (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8391-0610
IIIProfessora Associada do departamento de Psicologia da Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil). ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0068-4177
IVDocente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF). ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1667-4865

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A Organização Mundial da Saúde categoriza o comportamento autolesivo na adolescência como um problema de saúde pública. No Brasil, as investigações ainda são incipientes, especialmente, aquelas dedicadas ao estudo da dinâmica psíquica e dos meios de intervenção com essa população. Esse estudo objetivou descrever as possíveis contribuições do Psicodiagnóstico Compreensivo e Interventivo realizado com uma pré-adolescente que se autolesionava, apresentando uma análise psicodinâmica psicanalítica de sua personalidade com base nos aportes winnicottianos. Para tanto, foi realizado um estudo de caso único em que o processo psicodiagnóstico é descrito em duas etapas: primeira aplicação e fase de follow-up. Os dados obtidos permitiram conceber que comportamento autolesivo realizado pela participante revelou estar a serviço de uma dupla função: impedir o aniquilamento total do Eu e, concomitantemente, comunicar as falhas nos cuidados ambientais. Além disso, o Psicodiagnóstico favoreceu experiências mutativas relevantes no caso apresentado, configurando-se de grande valia como proposta preventiva e terapêutica junto aos adolescentes que sofrem.

Palavras-chave: adolescente; comportamento autodestrutivo; psicologia do adolescente.


ABSTRACT

The World Health Organization categorizes self-injurious behavior in adolescence as a public health problem. In Brazil, research is still incipient, especially investigations dedicated to the study of psychic dynamics and means of intervention with this population. This study aimed to describe the possible contributions of Comprehensive and Interventional Psychodiagnosis performed with a self-harm pre-adolescent, presenting a psychoanalytic psychodynamic analysis of her personality based on Winnicottian contributions. A single case study was carried out in which the psychodiagnostic process is described in two stages: first application and follow-up. The data obtained evidence that self-injurious behavior by the participant revealed to be in the service of a double function: to prevent the total annihilation of the Self and, concomitantly, to communicate the failures in environmental care. In addition, Psychodiagnosis favored relevant mutant experiences in the case presented, being of great value as a preventive and therapeutic proposal for adolescents in distress.

Keywords: adolescent; self-injurious behavior; adolescent psychology.


RESUMEN

La Organización Mundial de la Salud clasifica el comportamiento de autolesión en la adolescencia como un problema de salud pública. En Brasil, la investigación aún es incipiente, especialmente las dedicadas al estudio de la dinámica psíquica y los medios de intervención con esta población. Por lo tanto, este estudio tuvo como objetivo describir las posibles contribuciones del Psicodiagnóstico Integral realizado con una preadolescente con comportamiento de autolesión, presentando un análisis psicodinámico psicoanalítico de su personalidad, basado en las contribuciones winnicotianas. Se realizó un estudio de caso único en el que el proceso psicodiagnóstico es descrito en dos etapas: primera aplicación y fase de seguimiento. Los datos obtenidos permitieron concebir que el comportamiento de autolesión llevado a cabo por la participante reveló estar al servicio de una doble función: evitar la aniquilación total del Ser y al mismo tiempo, comunicar las fallas en el cuidado ambiental. Además, el Psicodiagnóstico favoreció experiencias de cambio relevantes en el caso presentado, siendo de gran valor como una propuesta preventiva y terapéutica para adolescentes en dificultades emocionales.

Palabras clave: adolescente; conducta autodestructiva; psicologíadel adolescente.


 

 

1. Introdução

O comportamento autolesivo sem intenção suicida na adolescência

O comportamento autolesivo sem intenção suicida, ou do inglês Non Suicidal Self-Injury (NSSI), consiste em lesões corporais deliberadamente infligidas pelo sujeito sobre si, causadas sem intenção de morte declarada. Trata-se de conduta socialmente não aceita, realizada, na maior parte das vezes, de forma solitária, capaz de causar ferimentos e/ou danos psíquicos de grau e intensidade variados. Tal definição descarta ações acidentais e indiretas, tentativas de suicídio, rituais culturais e/ou religiosos e/ou uso de adereços com fins estéticos (Brown, & Plener, 2017).

A autolesão sem intenção suicida é, atualmente, categorizada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como um problema de saúde pública (Kruzan, & Whitlock, 2019). Tal comportamento aumenta as chances do indivíduo se engajar em um padrão de comportamentos negativos para si que podem culminar em tentativas de suicídio ou suicídio consumado (Guerreiro, & Sampaio, 2013). Particularmente presente na adolescência, dados epidemiológicos apontam para sua alta prevalência e variabilidade estatística (Cipriano, Cella, & Cotrufo, 2017). Ao longo da vida, em amostras comunitárias, as taxas referem-se a 5,5 a 17% da população e nas amostras clínicas a estimativa é de 50% (Plener et al., 2016). No tocante à nacionalidade desses jovens, Monto, McRee e Deryck (2018) apontam que numa amostra comunitária de adolescentes americanos 17,5% referem a conduta e Plener et al. (2018) mencionam a média de 25 a 35% entre os adolescentes alemães. Dentre os brasileiros, os dados ainda são incipientes, porém, observa-se aumento exponencial da conduta no país (Simioni et al., 2018; Chaves, Tardivo, Pinto Júnior, & Rosa, 2019; Tardivo et al., 2019a). Muitos são os fatores de risco para a conduta autolesiva. Aspectos demográficos, sociais, relacionais, psicopatológicos, neurobiológicos, entre outros, são destacados pela literatura (Buelens et al., 2020; Chaves et al., 2019; Tardivo, Rosa, Ferreira, Chaves, & Pinto Júnior, 2019b; Chaves, 2018). Do mesmo modo, várias são as razões para a efetivação do comportamento autolesivo. Tardivo et al. (2019a) observaram, na população adolescente investigada, a presença de autoimagem negativa, sentimento de culpa, preocupações sexuais, dificuldade em lidar com pensamentos negativos e de controle dos impulsos. Adicionalmente, Tardivo et al. (2019b) identificaram a correspondência da conduta com a sensação de alívio de um estado emocional angustiante, dado corroborado por Rasmussen, Hawton, Philpott-Morgan e O'Connor (2016).

Drieu, Proia-Lelouey e Zanello (2011) compreendem o fenômeno na adolescência como uma dificuldade de apropriação subjetiva, associado ao rompante pubertário e à consequente fragilização dos laços intersubjetivos. No entanto, os autores salientam sua dimensão ambígua, sugerindo ser também um meio de definição das fronteiras entre o Eu e o Outro e, portanto, de fortalecimento de tais laços. De modo similar, Rolim, Ferreira e Carneiro (2016) estabelecem associações entre o comportamento e o processo de diferenciação do Outro. Dessa forma, verifica-se o aumento significativo de pesquisas destinadas à análise das diferentes interfaces do comportamento autolesivo sem intenção suicida na adolescência em nível mundial. No entanto, Plener et al. (2016) sinalizam a carência de estudos dedicados à avaliação de intervenções específicas e cientificamente validadas sobre o tema, embora evidenciando a eficácia dos tratamentos psicoterápicos. Assim sendo, este trabalho busca contribuir para o campo por meio da apresentação de uma proposta de cuidado psicológico embasada no Psicodiagnóstico Compreensivo e Interventivo.

O Psicodiagnóstico Compreensivo e Interventivo

O Psicodiagnóstico é um processo sistematizado que pressupõe o exame da problemática apresentada pelo sujeito, assim como de suas faculdades psíquicas em termos de seu dinamismo, potencialidades e fraquezas, com o intuito de abalizar a intervenção mais adequada (Cunha, 2000). Nesse contexto, o propósito clínico e psicodinâmico de tal tarefa é posto em evidência, sendo valorizada a compreensão mais aprofundada do indivíduo articulada à luz de pressupostos teóricos específicos, técnicas e instrumentos padronizados (Ocampo, Arzeno, & Picollo, 2003). O Psicodiagnóstico Compreensivo e Interventivo possui similaridade com o método criado e intitulado por D. W. Winnicott de Consultas Terapêuticas (1965/1994). Tal modelo diz respeito à valorização das primeiras entrevistas que, de acordo com o autor, conservam singular potencialidade terapêutica, possibilitando até mesmo a realização de um pequeno tratamento psicanalítico.

As Consultas Terapêuticas se fundamentam na compreensão e no atendimento das necessidades do si mesmo, Self (Winnicott, 1965/1994). Para Winnicott (1896-1971/1990), o sofrimento e o adoecimento humano referem-se a entraves ocorridos nos estágios iniciais do desenvolvimento que impedem o amadurecimento do indivíduo, culminando na perda da capacidade de sentir-se vivo e real.

Dias (2003) aponta que as falhas no início do desenvolvimento são registradas na memória e transportadas pelo indivíduo ao longo da vida, e aquelas relacionadas à ameaça de colapso têm mais chances de serem reavivadas na adolescência em razão da intensidade de suas transformações. Menciona ainda que, dada a ação da tendência à integração, o sujeito utilizará todas as suas forças para não sucumbir à desintegração psicossomática, fazendo uso, se necessário, de seu aparato defensivo.

Dessa forma, na clínica, a conduta do paciente retrata a organização defensiva por ele edificada e, consequentemente, o nível da falha ambiental primitiva experimentada (Dias, 2003). Cabe, então, ao analista a identificação do estágio do amadurecimento do paciente, o contexto social e o manejo da transferência em consenso com suas principais necessidades e ritmo, tendo em vista a preservação do Self e a promoção de um espaço potencial, continente seguro para a apreensão do gesto espontâneo e do desenvolvimento pessoal (Winnicott, 1965/1994).

O espaço potencial se refere ao vínculo entre a mãe e o bebê, que se fundamenta sobre um campo de atividade criativa em meio ao qual há a interposição da subjetividade e a realidade externa (Winnicott, 1965/1994). Para Winnicott (1945/1982), o espaço potencial depende da experiência que leva à confiança, já que sua origem se alicerça nas primeiras relações estabelecidas com a figura de referência - a mãe ou substituta - no estágio de Dependência absoluta. A Dependência absoluta compõe os estágios do amadurecimento propostos por Winnicott (1965/ 1994), sendo sucedida pelas etapas denominadas de Dependência relativa e Rumo à independência. Tal etapa ocorre nos primeiros meses de vida e se relaciona ao exercício das tarefas de holding, handling e apresentação dos objetos, simultaneamente desempenhadas pela mãe. O holding favorece a integração no tempo e no espaço. O handling auxilia o alojamento da psique no corpo. Já a apresentação dos objetos contribui para a paulatina organização da vida compartilhada e a noção de satisfação pessoal (Winnicott, 1945/1982). Sendo os cuidados suficientemente bons nessa etapa, o bebê, vivenciará o que Winnicott (1965/1994) denominou de experiência de ilusão de onipotência e caminhará em direção à saúde, por meio da integração psicossomática. No entanto, caso o ambiente não se adapte às suas necessidades, o bebê sentirá as falhas como invasões das quais terá que se defender, isto é, reagir (Winnicott, 1945/1982).

A dependência relativa, momento que a criança passa a reconhecer sua dependência e a desiludir-se, propiciará o trânsito para a separação da unidade mãe-bebê (Winnicott, 1896-1971/1990). Na saúde, a capacidade de se preocupar com o outro – o estágio do concernimento – estimulará o exercício da empatia (Winnicott, 1896-1971/1990), porém, na doença poderá despertar, conforme cita Násio (1995, p. 194), as "'doenças da pulsão agressiva', dentre as quais encontramos a tendência anti social, a hipocondria, a paranóia, a psicose maníaco-depressiva e a formas de depressão". Por sua vez, o estágio Rumo à independência diz respeito à evolução da criança em direção à autonomia (Winnicott, 1945/1982).

Tendo em vista o Psicodiagnóstico Compreensivo e Interventivo, os possíveis benefícios e sua efetividade em outros contextos de atuação (Tardivo, 2007; Arenales-Loli, Abrão, Parré, & Tardivo, 2013; Salles, & Tardivo, 2017), o presente artigo teve como objetivo apresentar o recorte de um estudo de caso único34 em que foi empregada essa proposta. Assim, descreve-se o Psicodiagnóstico realizado com uma pré-adolescente que se autolesiona e não possui diagnóstico psiquiátrico, sendo apresentada a análise psicodinâmica psicanalítica da personalidade da jovem. Ademais, este estudo apresenta as possíveis contribuições do Psicodiagnóstico Compreensivo e Interventivo para a compreensão e tratamento da adolescente atendida.

 

Método

Foi realizado um estudo de caso único com follow-up de seis meses entre a primeira e a segunda etapa do estudo (Serralta, & Elziric, 2011), em que se trabalhou a partir do processo Psicodiagnóstico Compreensivo e Interventivo (Tardivo, 2007) com base no método clínico-qualitativo psicanalítico (Turato, 2000). O estudo foi aprovado pelo Comitê de ética35 da instituição responsável.

Em uma escola pública do estado de São Paulo foi identificada uma pré-adolescente que se autolesionava e esta foi atendida por um dos autores desse artigo. A fim de atender os aspectos éticos, sua participação contou com a autorização do responsável devidamente registrada no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e da adolescente no Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE).

O processo Psicodiagnóstico Compreensivo e Interventivo contemplou duas etapas: a primeira aplicação, com sete atendimentos, e, a fase de follow-up, com três atendimentos (Quadro 1). Em ambos os momentos, foram realizadas entrevistas semidirigidas que oportunizam ao entrevistador apreender e agir a partir dos acontecimentos obtidos no aqui-e-agora e possibilitam ao entrevistado a expressão de seu mundo interno (Bleger, 1964/1993). Tais entrevistas objetivaram compreender as motivações que levaram a participante a se autolesionar, além de conhecer aspectos de seu contexto social e familiar.

 

 

Foram empregadas técnicas projetivas, as quais são adequadas pela natureza das mesmas, baseadas na associação livre e fundamentadas na teoria psicanalítica (Trinca, 1984). Foi usado o Teste de Apercepção Infantil - Figuras Humanas (CAT-H)36 por se tratar de um meio de expressão destinado à avaliação dos conflitos relacionados às principais fases do desenvolvimento psicossexual, eliciando aspectos relevantes da personalidade do sujeito. O teste é composto por 10 cartões, com cenas de personagens humanos, e se destina a sujeitos na faixa etária de 7 a 12 anos e 11 meses de idade. A aplicação consiste na apresentação de um cartão por vez e na solicitação da criação de uma história (Miguel, Tardivo, Moraes, & Tosi, 2016). Bellak e Hurvich (2005) recomendam o uso do CAT-H com crianças mais velhas.

Foi também utilizado o Questionário Desiderativo (QD), técnica projetiva ampliada por Jaime Bernsteim com base na proposta original de Pigem e Córdoba em 1946 (Nijamkin, & Braude, 2000). O QD possibilita a análise dos recursos egóicos e características da personalidade do sujeito, além de mobilizar a capacidade de simbolização. Consiste em seis perguntas, três positivas e três negativas que colocam o participante diante da possibilidade simbólica de morrer, com o convite à novas identificações a partir de escolhas ou rejeições que se referem aos reinos animal, vegetal e inanimado (Pinto Júnior, Rosa, Chaves, & Tardivo, 2018). A interpretação dos dados seguiu as recomendações apresentadas por Pinto Júnior e Tardivo (2018).

Foram ainda empregados o Inventário de Depressão Infantil (CDI) (Baptista, & Golfeto, 2000) e o Inventário de Ansiedade de Beck (BAI) (Cunha, 2001). O CDI visa o rastreamento de sintomas depressivos em indivíduos de sete a 17 anos. Adaptado para a amostra brasileira, possui 27 itens e as respostas obedecem a uma escala do tipo Likert de 0 a 2 pontos cujo total pode variar de 0 a 54 pontos, sendo que o sujeito que obtiver resultado igual ou superior a 17 deve ser avaliado com atenção, pois há indicativo de um provável estado depressivo.

O BAI tem como propósito medir a intensidade de sintomas de ansiedade. Seu reconhecimento é mundial e a tradução e validação brasileira foi realizada por Cunha (2001). A escala de autorrelato possui 21 itens e o examinando deve assinalar o nível de gravidade de seu sintoma numa escala Likert de 0 a 4 pontos. O resultado final é a soma dos itens individuais e pode variar de 0 a 63. O manual recomenda que o nível de ansiedade seja classificado a partir da pontuação obtida em mínimo (0-7), leve (8-15), moderado (16-25) ou grave (26-63).

No que diz respeito à análise, os dados do caso foram examinados separadamente, em cada fase, primeira etapa e de follow-up, e, posteriormente, em conjunto, com a comparação entre as duas fases. As entrevistas foram analisadas por meio da livre inspeção do material à luz das observações oferecidas pelos manuais dos instrumentos projetivos e objetivos, sendo os dados fundamentados a partir da abordagem psicanalítica winnicottiana.

 

Resultados

Inicia-se a apresentação do caso pelos dados gerais. Na sequência, são expostos fragmentos das entrevistas realizadas com a mãe e a adolescente, bem como os instrumentos utilizados tanto na primeira etapa quanto na fase de follow-up.

Dados gerais:

Ana37 tem 11 anos de idade. Estudante do 6º ano do ensino fundamental de uma escola pública, não possui em seu histórico antecedentes psiquiátricos ou de busca por atendimento psicológico. Reside com sua mãe e irmão gêmeo numa cidade periférica do estado de São Paulo. O nível socioeconômico da família é médio-baixo.

Seus pais estão separados há três anos. Conceição, a mãe, trabalha como professora e o pai, Roberto, na área de segurança patrimonial. O pai constituiu nova família e desde então o contato com os filhos tornou-se esporádico. Na época do estudo, o pai respondia a processo judicial para regularização da pensão em atraso e a mãe trabalhava em três empregos para cumprir com as obrigações financeiras da família. O pai foi convidado, mas não aceitou participar do processo Psicodiagnóstico.

Primeira etapa

Primeiras entrevistas

A primeira sessão é realizada com a mãe para coleta de informações sobre a paciente e a queixa. Conceição busca atendimento psicológico para Ana após ser informada pela diretoria escolar do comportamento autolesivo. Ana, na tentativa de justificar o ato para a mãe, refere a ausência do pai. A esse respeito, Conceição discorda, sugerindo que a filha tenha se lesionado por influência dos amigos, relatando que com o início da pré-adolescência, Ana mudou consideravelmente, tornando-se distante da família, com comportamentos de omissão e mentira, apresentando dificuldades escolares e no relacionamento com os pares.

A segunda sessão é realizada com Ana, que se mostra, a princípio, resistente, afirmando não saber o motivo do atendimento. Com o decorrer do atendimento, relata sobre as dificuldades enfrentadas no convívio com os pares e na escola. Menciona sobre as brigas com sua mãe e o sentimento de culpa por dar "trabalho" (sic) para Conceição, que já está sobrecarregada com o trabalho.

Sobre a autolesão, Ana descreve: "Eu estava me sentindo muito triste... tentei escrever no meu diário por uns dias, mas não deu certo... daí... eu fiz [...] Não foi para aliviar a dor, mas porque não via outra alternativa" (sic). E emenda: "Paguei pelo que fiz. Percebi que mudei bastante e fui para o lado certo, agora já está tudo resolvido" (sic). Ana se lesionou uma vez com a lâmina do apontador, realizando vários cortes em ambos os braços, porém, preocupando-se com o lugar e profundidade destes, pois não tinha a intenção de morrer. Menciona ter interrompido o comportamento após seu colega de classe ter sido internado no hospital por autolesão grave.

Aplicação e análise dos instrumentos projetivos e objetivos: CAT-H, QD, CDI e BAI

A terceira sessão contempla a aplicação do CAT-H. A participante concluiu a tarefa em 17 minutos, elaborando um enredo único para as 10 pranchas do teste, fato considerado raro.

A análise geral do material produzido aponta a predominância de histórias com conteúdo empobrecido e, em certos momentos, confusas, com personagens indiscriminados, sendo necessário o uso do inquérito para esclarecer a temática. Todas as histórias giram em torno do núcleo familiar, com as figuras parentais assumindo o lugar de ordem e provimento, ditando as leis, sendo os desfechos predominantemente negativos. As histórias produzidas para as pranchas 2, 4 e 9, e parte do inquérito, exemplificam tais considerações (Quadro 2).

 

 

Como é possível observar na lâmina 2, o herói mostra-se submisso aos pais, porém, frente aos amigos adota postura independente, transgredindo as leis. Na lâmina 4, a figura materna é simbolizada como forte e resoluta e a paterna como passiva, mas ambas projetadas como inacessíveis. Na lâmina 9, todos os adultos são descritos como distantes e frios.

Na quarta sessão é realizada a aplicação do QD. O tempo utilizado é de nove minutos (Quadro 3).

 

 

No QD, observa-se o predomínio de respostas simbólicas, ao passo que as racionalizações sinalizam um limiar tênue entre a dimensão lógico-formal. Quanto à perspectiva vincular da resposta, prevalecem as de viés narcisista. A sequência de reinos mostra-se desvitalizada, com necessidade premente de ejeção de elementos relacionados à dor e ao sofrimento por meio do uso de mecanismos de cisão e dissociação, a fim de manter distante da consciência sentimentos desagradáveis.

Na quinta sessão são aplicados o CDI e o BAI. No CDI, Ana atinge 26 pontos, índice que indica a presença de sintomas depressivos em nível grave. No BAI, alcança 16 pontos, demonstrando a presença de sintomas ansiosos em nível moderado.

Compreensão clínica da primeira etapa do Psicodiagnóstico Compreensivo e Interventivo

Com base nos dados obtidos, concebe-se que Ana vivencia de forma intensa sentimento de menos valia e desamparo, com forte medo do abandono suscitado pela ideia de culpa. Infere-se que tal compreensão decorre dos eventos que contribuíram para o maior afastamento dos pais, especialmente, da mãe, e foram potencializados pelas pressões da vida diária e modificações próprias da adolescência.

Os resultados do CAT-H indicam prejuízos nos conceitos de autoimagem e relações objetais, concepção negativa do ambiente, incremento de ansiedades, superego rígido e frágil integração de ego. Os dados do QD demonstram funcionamento psíquico operante no nível mais concreto. Evidencia-se também depressão no humor e elevação da ansiedade

Entrevista devolutiva

Na sexta sessão é realizada a entrevista devolutiva com a participante, a qual visa auxiliá-la no reconhecimento dos seus sentimentos e dinâmica pessoal. Para tanto, foram escolhidas algumas produções elaboradas para o CAT-H para mediar a sessão. Ao final desta, Ana aponta o desejo de fortalecer a relação com a mãe e reflete sobre as alternativas possíveis, encontrando no diálogo um meio de aproximação.

A sétima sessão é realizada com Conceição com o objetivo de favorecer sua compreensão sobre a filha e a queixa. A mãe se mostra preocupada e atenta, sinalizando o interesse em se aproximar da filha.

Fase de follow-up

Primeiras entrevistas

A primeira sessão de follow-up é realizada com a participante e sua mãe, seis meses após a finalização da primeira etapa do estudo. Esta etapa contou com entrevistas e a reaplicação de todos os instrumentos objetivos e projetivos. Durante a entrevista, Ana mostra-se à vontade. Verbaliza sobre a ausência do pai e suas preocupações quanto à saúde de seus avôs e bisavó. Aponta o medo da morte destes parentes e as possíveis reverberações no núcleo familiar, referindo: "Estou bem, não pensei mais em me cortar. Me sento triste com o que está acontecendo, mas não pensei nessa possibilidade" (sic). Quando questionada, justifica: "Ah, eu sinto que não me ajudou... tava me deixando mais distante da minha família... parece que eu tava muito diferente do que sou agora, eu era muito triste... (...) agora, ainda que esteja triste com essas coisas do meu pai não ir me ver e a situação do meu avô... tenho esperança de que as coisas vão melhorar" (sic). Na sequência é realizada a sessão com a mãe, da qual Ana optou por participar. Conceição comenta que a filha se encontra bem, embora triste com a situação da ausência do pai e adoecimento dos familiares. Também informa ter se desligado de um de seus empregos, referindo mais tempo para acompanhar os filhos.

Aplicação e análise do CAT-H, QD, CDI e BAI

Ainda na primeira sessão os instrumentos foram reaplicados, iniciando-se pelo CAT-H. O teste foi realizado em 10 minutos e, como na aplicação anterior, Ana persevera na produção de um único enredo para todas as pranchas do teste. No entanto, nessa etapa do estudo, observa-se histórias elaboradas e internamente coerentes, com personagens mais bem discriminados e enredo centrado no contexto escolar e no contato com amigos. Os desfechos são predominantemente positivos e as figuras parentais permanecem ocupando o lugar da lei, porém, com a significativa diferença entre a atuação da figura materna e a paterna durante todas as histórias, sendo a primeira ativa e afetuosa e a última pouco participativa. O herói da trama mostra-se autônomo, adequado às situações e preocupado com o autocuidado, trazendo à tona o tema do "medo de se machucar" (lâmina 2) (Quadro 4).

 

 

O QD foi aplicado na sequência. O tempo de execução foi de, aproximadamente, seis minutos (Quadro 5).

 

 

Nessa etapa, houve necessidade de indução na maior parte das perguntas. As respostas ao questionário foram vivenciadas em nível simbólico, sendo os símbolos consistentes. Houve equilíbrio entre as respostas que incluem o outro e as de viés narcisista. A sequência de reinos se mostrou vitalizada e típica para a população adolescente. Nas consignas negativas, mecanismos de cisão e dissociação foram utilizados a fim de evitar o contato com emoções incômodas (Quadro 5).

Quanto ao CDI e o BAI, no CDI, Ana obteve 6 pontos, e no BAI, 7 pontos. Assim, em os ambos testes, Ana pontuou abaixo das notas de corte de cada escala, indicando ausência de sintomas depressivos e mínimos aspectos ansiosos.

Compreensão clínica da fase de follow-up do Psicodiagnóstico Compreensivo e Interventivo

Os dados obtidos na fase de follow-up demonstram que a saúde dos avós e a relação estabelecida com o pai são os principais elementos que afetam a participante. De modo que na tentativa de evitar os conteúdos ansiogênicos despertados e adaptar-se ao ambiente, observa-se, por meio do CAT-H, o incremento do uso dos mecanismos de defesa repressão e negação. O QD ratifica tal dado, demonstrando a necessidade de eliminar o desconforto causado pelas consignas negativas por meio de mecanismos dissociativos.

Apesar disso, Ana vivencia, nessa etapa, sentimento de confiança no ambiente. Nota-se que a paciente se esforça para não recorrer à autolesão como saída, buscando alternativas para lidar com a intensidade de suas emoções. O CAT-H apresenta evolução qualitativamente significativa nas dimensões da autoimagem, relações objetais, concepção do ambiente, superego e integração de ego. Os baixos índices do CDI e BAI corroboram esses achados.

Entrevistas devolutivas

A segunda sessão objetiva realizar a devolutiva com Ana. No entanto, esta é impedida em virtude do agravamento de saúde de sua bisavó. A paciente se encontra sensibilizada, referindo sentimento de tristeza e desconfiança, afirmando "Não estou conseguindo confiar em mais ninguém" (sic). Relata ter pensado no comportamento autolesivo e em não desejar preocupar sua mãe novamente. Assim, essa entrevista visa auxiliar a paciente na reflexão de suas emoções e resgate dos motivos que a levaram a se autolesionar, visando ao reconhecimento de seu sofrimento na época e à busca de saídas possíveis na atualidade. A sessão é finalizada com a decisão de Ana falar com sua mãe sobre o que estava sentindo.

A terceira sessão é realizada com Ana e sua mãe separadamente. Com Ana, por meio das produções do CAT-H, o diálogo visa ao fortalecimento da autonomia e confiança no ambiente. Com Conceição objetiva salientar a importância do amparo à Ana para criação de novas alternativas para lidar com as emoções. O Quadro 6 apresenta a síntese da análise dos resultados obtidos em ambas as etapas do estudo.

 

 

Discussão

A análise do caso nas diferentes etapas – primeira aplicação e fase de follow-up–, propicia reflexões teóricas sobre o comportamento autolesivo, tão comum na adolescência atual, e o processo Psicodiagnóstico Compreensivo e Interventivo com follow-up. O estudo permitiu a compreensão do fenômeno e, consequentemente, a proposição de medidas interventivas, como observado também em outros estudos.

Tendo em vista o caso investigado e a teoria do amadurecimento proposta por Winnicott (Winnicott, 1896-1971/1990), é possível inter-relacionar os dados obtidos, o processo de constituição e integração do Eu e a função da confiabilidade no ambiente. Compreende-se que Ana reedita na adolescência os conflitos vivenciados em etapas iniciais de seu desenvolvimento que, somados ao rompante fisiológico e à vulnerabilidade dos vínculos intersubjetivos (Drieu, Proia-Lelouey, & Zanello, 2011), colaboram para a eclosão de perturbações psíquicas primitivas, que sugerem a vivência de desintegração (Winnicott, 1945/1982).

Alguns elementos presentes no setting terapêutico sustentam essa concepção. Na primeira etapa desse estudo, Ana, no contato terapêutico inicial, apresenta sentimento de desconfiança, sondando o ambiente e, assim, evitando a verbalização dos motivos que levaram à busca de auxílio psicológico para si, por exemplo, quando verbaliza de modo evasivo: "[...] está tudo resolvido [...] fui para o lado certo" (sic). Evidentemente, tal posicionamento pode ser pensado em termos de resistência, mecanismo de defesa que compõe parte natural de todo e qualquer processo analítico ou diagnóstico cuja finalidade é a de proteger o psiquismo de forças inquietantes que podem ameaçar a homeostase interna (Freud, 1914/1996). Entretanto, numa leitura mais atenta da experiência vivenciada entre Ana e a psicóloga, compete considerar que também na segunda entrevista da fase de follow-up Ana menciona sobre o ressurgimento do sentimento de desconfiança do ambiente, provocado pelas muitas circunstâncias vivenciadas por ela no momento, fazendo-a até mesmo recobrar-se da angústia derivada dos conflitos concomitantes à época em que se autolesionou. Resgatando as concepções de Winnicott (1945/1982), a volatilidade do binômio confiança-desconfiança descrita pela participante pode ser considerada como indicativo da somatória de entraves durante o amadurecimento.

Tendo em vista que a instalação do Self no desenvolvimento humano está ligada a dois aspectos essenciais – o potencial herdado e os cuidados ambientais suficientes para sua promoção (Winnicott, 1896-1971/1990) –, é possível refletir que a autolesão perpetrada por Ana denota prejuízos relativos ao holding internalizado e àquele experimentado na atualidade, fato que pode ser exemplificado pelas histórias confusas e com personagens indistintos produzidas por Ana para o CAT-H na primeira etapa do estudo.

Quanto as justificativas para o comportamento autolesivo, vale relembrar que, quando questionada pela mãe, Ana aponta o afastamento paterno como o principal motivador do ato, porém, por meio do processo Psicodiagnóstico, é possível observar que também outros elementos contribuíram para tal manifestação. Pode-se mencionar, em especial, a dificuldade de Ana lidar com emoções negativas, o afastamento materno, além das novas demandas decorrentes do desenvolvimento pubertário e potencializadas pelas pressões da vida social e escolar. Tal vivência culminou na tentativa não bem-sucedida de escrita no seu diário, gerando a constatação de falta de alternativas (Chaves, 2018).

Assim, concebe-se que Ana experiência o excesso que desencadeia o encontro com o vazio cuja angústia é arrebatadora, fazendo-a lançar mão da reação como saída ao nada (Winnicott, 1896-1971/1990). Analisando-se tal conduta, é possível reconhecer que Ana se movimenta no sentido de encontrar escoamento para o conflito emergente, porém, dada a imaturidade do psiquismo e a ausência de provisão ambiental nesse período do desenvolvimento, o sistema defensivo é ativado no intento de proteger a si mesmo da ameaça de desintegração (Winnicott, 1896-1971/1990).

Observa-se que a participante, diante da iminência de colapso, aponta para prejuízos no campo criativo (Winnicott, 1896-1971/1990), de modo que os cortes feitos em si mesma sugerem a atualização da angústia original com a finalidade de engendrar um trabalho de ligação em que o excesso pode ser elaborado e, enfim, representado. Tal ligação pode ser pensada com base no conceito de alojamento da psique no corpo, ou personalização, em que o handling é a principal tarefa.

Retomando a noção proposta por Winnicott (1896-1971/1990) sobre a mente como resultado da integração psicossomática, paralelamente, ao excesso experenciado por Ana ante as demandas ambientais que culminaram na autolesão, observa-se a eclosão de uma sobrecarga mental que pode ter levado a um curto-circuito interno, resultando do curto, o corte.

Com base em tal conjectura, compreende-se que a participante evita a todo custo a vivência de desintegração, recorrendo à cisão como uma maneira de lidar com o conflito. Ao se pensar no caso, faz sentido considerar a leitura winnicottiana realizada por Emmerich (2017) sobre a conduta autolesiva e a ideia da enfermidade psicossomática como positivo de um negativo. Isto é, Ana, frente às dissociações em jogo, adota o corte como saída para a integração, embora se distancie desta, ocorrendo a insistência da psique na interação com a soma, resultando numa tentativa desesperada de "ligar ou religar o corpo à psique" (Emmerich, 2017, p. 51).

Tendo em vista tais hipóteses, a autolesão expressa entraves no processo de integração psicossomática, sinalizando o declínio na comunicação com o ambiente, e por conseguinte, o incremento da ansiedade persecutória e da culpa, cuja agressividade primitiva retorna para si (Winnicott, 1896-1971/1990). O QD complementa tais compreensões. Observa-se, em ambas as fases do estudo, a presença de dissociações refletidas em suas respostas ao QD a fim de evitar as angústias desagradáveis relativas à dor. Tal dado foi reforçado na primeira etapa, com o predomínio de racionalizações inadequadas e sequência de reinos desvitalizada, evidenciando a presença de ego frágil (Nijamkin, & Braude, 2000). Nesse sentido, pode-se pensar em termos da predominância da cisão, como elemento fundamental do desencadeamento dos distúrbios psicossomáticos, conforme descrito por Winnicott (1966/1989). Isto é, a pessoa sacrifica uma parte de si para o bem de todo o Self. No caso de Ana, observa-se que ela provoca ferimentos em partes do corpo a fim de proteger-se de um aniquilamento total, tentando manter o vínculo entre corpo e psique, chamando a atenção por uma estabilidade ambiental, a fim de colocar em marcha novamente seu processo de amadurecimento emocional (Winnicott, 1896-1971/1990). Assim, as primeiras entrevistas sinalizam dificuldades relativas à passagem da dependência absoluta para a relativa, anunciando presença de conflitos no exercício da tarefa de integração psicossomática, em que a pele passa a ser a fronteira limite entre o Eu e o outro.

Levando em consideração a fase de follow-up, e, partindo do objeto de estudo, nota-se que o tema do comportamento autolesivo se fez presente novamente, no entanto, não mais pela via da impulsividade, mas pelo receio de sua repetição. A temática permeou as histórias elaboradas para as pranchas iniciais do CAT-H em que o autocuidado é estimado, com afirmação do desejo de não se machucar. Tais elementos permitem observar que frente ao afastamento paterno e a situação de adoecimento dos avós, Ana, na tentativa de evitar o confronto com a dor, concreta ou subjetiva, incrementa o uso de mecanismos de defesa, mas dessa vez do tipo adaptativos, repressão e negação, que têm como objetivo manter afastado da consciência alguma ideia penosa ou recusá-la (Freud, 1914/1996).

Ainda na fase de follow-up, na segunda sessão, dado o sentimento de desconfiança que ressurge, observa-se que Ana, embora consiga reconhecer a experiência de autolesão como algo que não faz mais sentido, concomitantemente, esforça-se, frente à instabilidade do ambiente, para rechaçar a angústia suscitada pelo registro interno da experiência autolesiva, apontando para as marcas deixadas por esta em seu psiquismo. No entanto, com o transcorrer do psicodiagnóstico, Ana supera tal sentimento, trazendo em sua fala, na terceira sessão, a noção de confiança (Winnicott,1945/1982). Outro aspecto que também retrata o desenvolvimento da noção de confiança se refere à inclusão, nas histórias do CAT-H da fase de follow-up, de personagens na qualidade de amigos. Adicionalmente, no QD também se observa a predominância de respostas que incluem o outro como sinais de mudança na postura de Ana, a qual demonstra reconhecer o meio externo, preocupando-se. Tal posicionamento pode ser compreendido como um registro da conquista do estágio de dependência relativa proposto por Winnicott, por meio do qual a paciente demonstra tênue diferenciação do ambiente, expressa, também nas histórias mais organizadas do CAT-H dessa fase. Ana parece reviver a integração da motilidade e do erotismo à agressividade como parte de si mesma, trazendo à baila indícios da conquista do concernimento (Winnicott, 1896-1971/1990). Assim, verifica-se que as alterações ambientais e subjetivas, especialmente, a maior proximidade com a mãe, contribuíram de modo ímpar para o restabelecimento da confiança no ambiente em Ana. Além disso, nota-se que nessa etapa do estudo, as figuras parentais passam a ser vistas de modo menos idealizado. Os resultados do CDI e do BAI ratificam os achados, apresentando scores significativamente menores.

Tais dados demonstram o retorno da confiabilidade e da esperança no ambiente, dado que pode ser compreendido como sinalizador da retomada do processo de amadurecimento pessoal da paciente. Pode-se pensar que Ana dá sinais de marcha em direção ao estágio denominado por Winnicott (1945/1982) de Rumo à independência, com a evolução favorável da integração de aspectos dissociados, favorecendo o contato da jovem com a realidade, o desenvolvimento de autonomia e responsabilização por si.

Em síntese, a análise do caso revela que Ana se mostra mais integrada na fase de follow-up. Na primeira etapa do estudo, frente à dificuldade de integração de si mesma, intensifica o uso de mecanismos de defesa na tentativa de não sucumbir à desintegração (Winnicott, 1896-1971/1990), e, na fase de follow-up, reforça as defesas na diligência de afastar de si os conteúdos nocivos. Além disso, o sentido da conduta autolesiva investigada nesse estudo guarda relações com a teoria winnicottiana no que diz respeito ao distúrbio psicossomático, o qual prevê que "concedendo-se tempo e circunstâncias favoráveis, o paciente tenderá a recobrar-se dessa dissociação. As forças integradoras nele tendem a fazer o paciente abandonar a defesa" (Winnicott, 1966/1989, p. 84).

 

Considerações finais

O estudo de caso único apresentado atingiu os objetivos propostos, acrescentando conhecimento ao atual estado da arte no que diz respeito à compreensão do comportamento autolesivo perpetrado na adolescência por uma pré-adolescente, sem diagnóstico psiquiátrico, matriculada numa escola pública de São Paulo. Tomando-se por base os dados obtidos e os aportes winnicottianos, pôde-se conceber que Ana alcançou, ao longo de seu desenvolvimento, elementos relativos aos estágios do amadurecimento, reatualizados na adolescência, dada as dificuldades vivenciadas com as figuras parentais de referência e no convívio com os pares. Foi possível realizar interpretações compatíveis com o alcance das tarefas necessárias para compor o processo de amadurecimento emocional. Notou-se que tal trânsito foi facilitado pela capacidade do ambiente em se adaptar às necessidades da participante, fato que contribuiu ativamente para a restauração do sentimento de confiança e de esperança. Dessa forma, o comportamento autolesivo, nesse estudo, revelou uma dupla função: impedir o aniquilamento total do Eu e, concomitantemente, comunicar ao ambiente as falhas nos cuidados parentais, na tentativa de resgatar algo ofertado, mas percebido como perdido. No que tange ao processo Psicodiagnóstico Compreensivo e Interventivo, as diferentes etapas realizadas nesse estudo oportunizaram um espaço terapêutico favorecido pelo emprego das tarefas de holding, com base no qual foi possível o compartilhamento, bem como a elaboração de conteúdos psíquicos por parte de Ana. A mãe também pôde compreender melhor a filha e suas manifestações.

O emprego da reavaliação de follow-up enriqueceu os achados iniciais, possibilitando uma perspectiva mais integrada dos fatos e das condições intrapsíquicas da participante. Além disso, o uso de mais de uma técnica projetiva e instrumento objetivo, contribuiu para dar mais segurança à interpretação e apreensão do sentido da demanda apresentada, bem como entendimento da personalidade da participante. Tais resultados sugerem a efetividade do Psicodiagnóstico Compreensivo e Interventivo no campo da atividade clínica destinada ao público adolescente que se autolesiona.

Todavia, dado o recorte adotado, convém mencionar as limitações apresentadas por esse estudo. Pode-se apontar os limites próprios do método utilizado, de modo que as possíveis contribuições e reflexões propostas até o momento circunscrevem-se ao estudo em questão, não podendo ser generalizadas para outros casos, evidenciando-se a necessidade de estudos futuros.

Por fim, esse trabalho se configura como ponto de partida. A associação de um importante procedimento, o Psicodiagnóstico Compreensivo e Interventivo com follow-up, no âmbito das manifestações de sofrimento adolescente e o comportamento autolesivo, possibilitaram compreender a dinâmica intrapsíquica, apreender dados da relação familiar e também intervir junto à pré-adolescente em sofrimento.

 

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Endereço para correspondência:
Gislaine Chaves
Av. Mello Moraes, 172. Bloco F
Cidade Universitária
São Paulo – SP
CEP 05508-030
E-mail: gislaine.ch@usp.br

Leila Salomão de La Plata Cury Tardivo
Av. Mello Moraes, 1721. Bloco F
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São Paulo – SP
CEP 05508-030
E-mail: tardivo@usp.br

Helena Rinaldi Rosa
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Antônio Augusto Pinto Júnior
Block N
Rua Prof. Marcos Waldemar de Freitas Reis
Gragoatá, Niterói - RJ
24210-201
E-mail: antonioaugusto@vm.uff.br

Recebido: 20.10.20
Corrigido: 27.01.21
Aprovado: 24.02.21

 

 

34 Os dados apresentados neste artigo, bem como o caso clínico, fazem parte da dissertação de mestrado de Gislaine Chaves (2018), intitulada de "Adolescência e autolesão: psicodiagnóstico como proposta de compreensão e intervenção a partir de um caso clínico", suportada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq. Processo 133883/2017-5).
35 A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos do Instituto responsável, conforme Parecer Consubstanciado 2.333.003.
36 O CAT-H é semelhante ao mais conhecido CAT-A. O CAT-H contempla as mesmas cenas que o CAT-A, no entanto, com personagens humanos, suprindo, portanto, a lacuna existente entre o CAT-A e o TAT (Bellak, & Hurvich, 2005).
37 Os nomes da participante e dos responsáveis são fictícios a fim de preservar o sigilo de suas identidades.

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