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Boletim - Academia Paulista de Psicologia
versão impressa ISSN 1415-711X
Bol. - Acad. Paul. Psicol. vol.41 no.101 São Paulo jul./dez. 2021
III. MENÇÃO HONROSA
A terapia de sandplay com crianças com sintomas de transtorno opositivo desafiador e transtorno da conduta
Sandplay therapy with children with symptoms of Oppositional Defiant Disorder and Conduct Disorder
La terapia del sandplay con niños con síntomas de Trastorno de Oposición Desafiante y Trastorno de Conducta
Mariana Simão Taliba ChalfonI; Denise Gimenez RamosII
IPsicóloga, Doutora em Psicologia Clínica Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Membro do Instituto Brasileiro de Terapia de Sandplay, São Paulo, SP, Brasil. E-mail: maritaliba@me.com. ORCID 0000-0003-1351-4329
IIProfessora titular do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Núcleo de Estudos Avançados em Psicossomática, Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica. ORCID 0000-0002-1639-5102
RESUMO
O estudo visou avaliar a efetividade da terapia de sandplay no tratamento de crianças com sintomas de transtorno opositivo-desafiador e/ou transtorno de conduta. A intervenção consistiu de doze sessões semanais de terapia de sandplay. O Child Behavior Checklist 6-18 foi o instrumento utilizado para avaliar os sintomas antes e após a intervenção. Participaram 41 crianças de ambos os sexos divididas randomicamente em dois grupos. O grupo controle permaneceu em espera enquanto o grupo experimental 1 passava pela intervenção. Após três meses, os participantes do grupo controle que ainda atendiam aos critérios de inclusão formaram o grupo experimental 2. Os resultados obtidos foram analisados estatisticamente, de modo a comparar grupo controle e grupo experimental 1 bem como avaliar a evolução do grupo experimental total, que incluiu os grupos experimentais 1 e 2. Tais resultados indicam que a terapia de sandplay foi eficiente na redução dos sintomas dos transtornos em questão. Com a finalidade de apreender a dinâmica psíquica dos participantes foram analisadas 432 cenas produzidas durante a intervenção para identificar os temas mais mobilizados e observar sua evolução ao longo das doze sessões de terapia. Para alcançar uma compreensão mais ampla, algumas observações qualitativas são apresentadas.
Palavras-chave: psicoterapia da criança; sandplay; transtorno de conduta; transtorno opositivo-desafiador.
ABSTRACT
The study aimed at assessing the effectiveness of sandplay therapy in the treatment of children with symptoms of oppositional defiant disorder and/or conduct disorder. The intervention consisted of twelve weekly sessions of sandplay therapy. The Child Behavior Checklist 6-18 was used to assess symptoms before and after the intervention. Participants were 41 children of both genders, randomly divided into two groups. The control group remained on hold while the experimental group 1 underwent the intervention. After three months, control group participants who still met inclusion criteria formed the experimental group 2. Results were analyzed statistically, in order to compare control group and experimental group 1, as well as to evaluate the evolution of the total experimental group, which included experimental group 1 and 2. Results pointed to the effectivity of sandplay therapy in reducing symptoms of oppositional defiant disorder and conduct disorder. To identify the most frequent themes and their evolution over the therapy sessions, 432 scenes were analyzed. Aiming to understand the psychodynamics in a more comprehensive way, a few qualitative observations are presented.
Keywords: child psychotherapy; conduct disorder; oppositional defiant disorder; sandplay.
RESUMEN
El estudio tuvo como objetivo evaluar la efectividad de la terapia sandplay en el tratamiento de niños con síntomas de trastorno de oposición desafiante y/o trastorno de conducta. La intervención consistió en doce sesiones semanales de terapia de sandplay. El Child BehaviorChecklist 6-18 fue el instrumento utilizado para evaluar los síntomas antes y después de la intervención. Participaron 41 niños de ambos sexos, divididos aleatoriamente en dos grupos. El grupo control permaneció en espera mientras el grupo experimental 1 pasó por la intervención. Después de tres meses, los participantes del grupo control que aún cumplían con los criterios de inclusión formaron el grupo experimental 2. Los resultados obtenidos se analizaron estadísticamente, con el fin de comparar el grupo control y el grupo experimental 1, así como evaluar la evolución del grupo experimental total, que incluyó los grupos experimentales 1 y 2. Estos resultados indican que la terapia de sandplay fue eficiente para reducir los síntomas de los trastornos en cuestión. Con el fin de aprehender la dinámica psíquica de los participantes, se analizaron 432 escenas producidas durante la intervención para identificar los temas más movilizados y observar su evolución a lo largo de las doce sesiones de terapia. Para lograr una comprensión más amplia, se han realizado algunas observaciones cualitativas, presentadas en este estudio.
Palabras clave: psicoterapia infantil; sandplay; trastorno de conducta; trastorno de oposición desafiante.
Introdução
No ano de 2008, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) publicou as Diretrizes Assistenciais em Saúde Mental. O estudo estimou, com base em entrevistas com mais de duas mil mães, que cinco milhões de crianças teriam um transtorno mental importante a ponto de necessitar de tratamento ou intervenção específica, e mais de dois milhões de crianças apresentariam sintomas de irritabilidade e comportamento desafiador, o que coloca esse quadro em terceiro lugar dentre os transtornos mentais infantis mais comuns. O estudo enfatiza a importância de centrar esforços para tratar o Transtorno Opositivo-Desafiador (TOD) e/ou Transtorno de Conduta (TC) na infância, pois, segundo Kim-Cohen et al., 2003, apud ANS, 2008), ambos estão etiologicamente relacionados a transtornos diagnosticados na fase adulta. Em crianças, o TOD é caracterizado por um comportamento persistentemente negativista, hostil, desafiador, provocativo e destrutivo, fora do espectro normal de comportamento da faixa etária e do contexto sociocultural. O TC é considerado um agravamento do TOD, uma vez que abrange comportamentos de violação à lei e ao direito básico dos outros (DSM-5 e CID 10). O DSM-5 classifica esses transtornos como disruptivos do comportamento, dado que há dificuldade de controle dos impulsos e da conduta por parte das crianças. A prevalência de TOD varia entre 2 e 6% em crianças e adolescentes (Demmer, Hooley, Sheen, McGillivray, & Lum, 2016), e as comorbidades mais comuns são o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) (Coelho et al., 2014; Frick, & Nigg, 2012), o Transtorno Bipolar de Humor (Flores & Machuca, 2011; Palacios-Cruz et al., 2008). Viver em uma família disfuncional parece configurar risco para os transtornos em questão, principalmente quando os pais apresentam conflitos conjugais e/ou comportamentos antissociais (Bornovalova, Blazei, Malone, McGue, & Iacono, 2013), quando a mãe ou o pai apresentam transtornos mentais (Ezpeleta, de la Osa, Granero, & Trepat, 2014; Zavaleta-Ramirez et al., 2014) ou abusam de substâncias (Serra-Pinheiro, Schmitz, Mattos, & Souza, 2004). Maus tratos ou experiências estressantes (potencialmente traumáticas) também são fatores de risco (Cook et al., 2005; van den Heuvel, Koning, Nöthling, & Seedat, 2018), assim como a incontinência urinária (Niemczyk, Equit, Braun-Bither, Klein, & von Gontard, 2015). Quanto às consequências na vida futura, possíveis desdobramentos consistem no desenvolvimento de transtornos depressivos na fase adulta (Hipwell et al., 2011) e no aumento do risco de suicídio e de reincidência de comportamentos criminosos na adolescência (Aebi, Barra, Bessler, Walitza, & Plattner, 2015). Com base na compreensão de que a intervenção psicológica na infância desempenha um papel preventivo em relação a transtornos mentais em adolescentes e adultos, vários estudos buscaram avaliar a eficiência do emprego de técnicas psicoterapêuticas na redução dos sintomas de TOD e/ou TC na infância. A maioria das intervenções testadas foram estruturadas segundo os postulados da psicologia cognitivo-comportamental (TCC), que trabalha essencialmente com a reestruturação cognitiva e a modificação do comportamento (Apsche, Bass, & Siv, 2005; Costin, & Chambers, 2007; Lundahl, Risser, & Lovejoy, 2006; Marco, Garcia-Palacios, & Botella, 2013; McGrath et al., 2011; Niec, Barnett, Prewett, & Shanley Chatham, 2016; Rusby, Metzler, Sanders, & Crowley, 2015; Smith, Handler, & Nash, 2010). Os resultados dessas pesquisas indicaram diminuição significativa, ainda que em magnitudes distintas, dos sintomas dos transtornos. Com exceção do estudo de Prout et al. (2019), não foram encontrados estudos publicados em periódicos com a proposta de trabalhar os aspectos emocionais da criança de modo mais profundo. No entanto, diante dos fatores de risco dos transtornos em questão, que apontam problemas prévios de ordem emocional e as possíveis consequências futuras na adolescência e na vida adulta, levanta-se a hipótese de que seria benéfico realizar uma intervenção que, para além da modulação do comportamento, trabalhe os aspectos psicodinâmicos e emocionais da criança. Estudos de caso foram encontrados sobre intervenções com o emprego da terapia de sandplay (TS) com crianças com TOD e/ou TC (Green & Gibbs, 2010; McCarthy, 1998). A pesquisa de Matta (2015) foi pioneira no Brasil ao mensurar e tratar estatisticamente os efeitos da TS em crianças que passavam por acolhimento institucional, e os resultados obtidos indicaram a redução de sintomas de ordem internalizante e externalizante, o que reforça a hipótese de que as crianças com os sintomas de TOD e/ou TC também podem ser beneficiadas por esse tipo de intervenção. Sendo assim, a presente pesquisa teve o objetivo geral de verificar a eficiência da terapia de sandplay nos comportamentos internalizantes e externalizantes, avaliados pelo Child Behavior Checklist (CBCL/6-18), em crianças de seis a doze anos de idade, que apresentavam sintomas de TOD e/ou TC. Além do objetivo geral, teve os seguintes objetivos específicos: observar se a melhora se sustentou por três meses; e observar os temas retratados nas cenas da TS e sua evolução ao longo das doze cenas, para verificar se ocorreu aumento ou redução significativa na frequência desses conteúdos.
A terapia de sandplay
A TS é um método terapêutico por meio do qual se oferece para a criança a possibilidade de expressar emoções utilizando um tabuleiro com areia e uma coleção de miniaturas, que são utilizados para compor uma cena. Fundamentada na psicologia analítica e desenvolvida por Dora Kalff em 1956, a TS é um método lúdico tido como uma terapia não verbal, que se baseia no princípio de que, por meio da criação com as mãos, as dinâmicas inconscientes que mobilizam as emoções tornam-se visíveis e reconhecíveis (Ammann, 2002). Já Weinrib (1993) afirma que, na TS, o fantasiar simbólico livre e protegido estimula a imaginação e libera a energia neuroticamente fixada. A criança encontra um espaço livre e protegido no setting terapêutico para expressar seu mundo interno. O terapeuta, por sua vez, testemunha o conteúdo comunicado pela cena, sem interpretá-lo. Essa atmosfera de confiança e proteção possibilita que a criança comunique e expresse conflitos, preocupações e sentimentos dolorosos, projetando-os de modo lúdico. Desse modo, reconhece seus conflitos e, por meio do brincar, pode utilizar recursos e reorganizar conteúdos internos. Já a análise simbólica das cenas permite que o terapeuta compreenda os conflitos e defesas em jogo. Zoja (2011) postula que, uma vez que a criança consiga representar seus impulsos agressivos dentro de um espaço livre e protegido, o mesmo motivo tende a ser configurado de modo repetitivo, até que o impulso a que o motivo se refere alcance um novo nível de expressão. Fordham (2006) e McCarthy (1998) estudaram a agressividade infantil patológica, utilizando as premissas da psicologia analítica. Fordham ressalta a necessidade do brincar imaginativo nas intervenções terapêuticas, pois, desse modo, é possível transformar a violência física em atividade imaginativa, o que contribui para que a criança tenha maior controle sobre seus impulsos. Na mesma linha, McCarthy aponta a necessidade de métodos terapêuticos que favoreçam a projeção de conteúdos inconscientes, de maneira a possibilitar que estados psicológicos sejam transformados. A teoria junguiana concebe a psique de modo dinâmico, um sistema dialético em que há uma troca constante entre as instâncias opostas e/ou complementares do inconsciente e da consciência. O indivíduo se expressa na camada da consciência por meio do ego, e é essa instância psíquica que oferece ao indivíduo o senso de identidade. Embora o ego tenha a função de organizar a consciência, sofre influências da camada inconsciente. Desse modo, ações, emoções e pensamentos conscientes são influenciados pelo inconsciente. Em razão desse dinamismo, que é vital para o ser humano, é comum que emerjam conteúdos que não são compatíveis com a mente consciente. Tende a entrar em ação, então, o mecanismo de repressão que afasta tais conteúdos da consciência, levando a que experiências dolorosas ou desconfortos morais sejam evitados. Quando o ego passa por experiências para as quais não está de todo preparado, um processo semelhante ocorre, e a memória da experiência e os afetos que foram por ela despertados também são excluídos da consciência. Embora tais conteúdos permaneçam latentes, continuam atuantes no inconsciente, formando um conglomerado de emoções e ideias: o complexo. Dotado da energia empenhada pelo ego para reprimir tais conteúdos, o complexo atua de forma autônoma na psique, independentemente da vontade do ego. Há uma citação de Jung que facilita a compreensão desse conceito: "os complexos podem ter-nos" (Jung, 1934/1991a, par. 200). O complexo é, por assim dizer, ativado na psique por vivências similares àquela que possa ter-lhe dado origem. Independentemente da vontade do ego, uma forte emoção é despertada provocando um estado perturbado da consciência e uma situação de não liberdade, caracterizada por ações compulsivas e pensamentos obsessivos (Jung (1934/1991a). Ao ser assim constelado, o complexo determina comportamentos, pensamentos e emoções relacionados a situações passadas, o que leva a pessoa a comportar-se de modo descontextualizado ou mal adaptado, uma vez que a proporção da reação emocional apresentada não está adequada à situação corrente. Desse modo, o complexo pode ser visto como um aspecto parcial e dissociado da psique, incompatível com a atitude habitual do ego. Dado que a resposta emocional desproporcional pode indicar a atuação de um complexo na psique, conjectura-se que os sintomas de TOD e TC, por se constituírem reações emocionalmente inadequadas, sejam manifestações de um complexo. Steck e Steck (2016) ressaltam a sincronia entre os processos cerebrais e corporais, principalmente no que concerne às emoções, uma vez que várias respostas viscerais (aumento do batimento cardíaco, suor, tensão muscular por exemplo) acompanham a vivência subjetiva. Pode-se, portanto, pensar que toda manifestação emocional é psicossomática. Ramos (2006) discorre a respeito do fenômeno psicossomático a partir do postulado junguiano, considerando o complexo como um conceito fundamental para a compreensão dos processos de adoecimento. Aponta que, no indivíduo doente, as impressões cinestésicas estão apartadas de suas representações abstratas. Assim, um sintoma orgânico e/ou comportamental pode corresponder à expressão inconsciente de um complexo e se repetirá compulsivamente. Consequentemente, a autora concebe a doença como a expressão simbólica de conteúdos inconscientes e formula a hipótese de que a consciência dos conflitos relacionados ao complexo tende a propiciar a melhora do paciente de modo geral. Diante das noções acima exploradas, é possível considerar que, no TOD e/ou TC, o conjunto das manifestaçõ es de agressividade, oposição e birra, somadas às alterações fisiológicas sincrônicas às emoções vividas, corresponderiam à expressão de um complexo. Nesse caso, vale refletir a respeito da modalidade terapêutica que poderia contribuir para a compreensão dos conflitos até então inconscientes, que são inerentes ao sintoma/complexo. Na teoria junguiana, entende-se que são os processos de simbolização que promovem a integração de aspectos dissociados na psique. Jung (1920/1991b) afirma que o símbolo pode se formar partir de uma imagem já conhecida pela consciência e carrega significados que estão para além daquilo que é conhecido, sendo a melhor expressão de algo ainda desconhecido pelo ego, mas cuja existência é postulada. Assim, os conteúdos inconscientes tendem a se tornar conscientes por meio da linguagem figurativa das imagens, de modo que o símbolo sempre comunica algo a mais, ou seja, comunica à consciência um quantum de conteúdo que, até então, encontrava-se inconsciente. Na medida em que a TS se baseia no princípio de que, por meio da criação com as mãos, as dinâmicas inconscientes que mobilizam as emoções tornam-se visíveis e reconhecíveis (Ammann, 2002) e que o fantasiar simbólico estimula a expressão do mundo interno da criança (Weinrib,1993), pode-se supor que, na construção de cenas da TS, os conflitos inconscientes são expressos de modo simbólico, estabelecendo a comunicação entre consciência e inconsciente. Diante dessa perspectiva, é possível inferir que o comportamento disruptivo apresentado pelas crianças com sintomas de TOD e/ou TC deve-se à constelação de complexos. Considera-se que, na medida em que o conteúdo dos complexos passa a ser integrado à camada consciente, ainda que parcialmente, os episódios de comportamento disruptivo tendem a se enfraquecer, ocorrendo com menos frequência e menor intensidade emocional. Parte-se, assim, da premissa de que o conteúdo simbólico da cena da TS corresponde à temática dos complexos inconscientes e, portanto, será de grande valia observar e quantificar quais são os temas mais comuns, que, de acordo com o arcabouço teórico apresentado, correspondem às temáticas dos conflitos inconscientes.
Método
A presente pesquisa, que utilizou método misto, teve um caráter sequencial explanatório (Creswell, & Plano Clark, 2013). Valeu-se da análise estatística dos dados quantitativos para verificar os efeitos da TS nas crianças e quantificar os temas que surgiram no decorrer das cenas produzidas ao longo de doze sessões de terapia.
Participantes
A amostra foi composta por crianças (n=41) que frequentavam um Centro para Crianças e Adolescentes (CCA) na cidade de São Paulo, com idade média de 8,2 anos (DP=1,6), sendo 68,3% do gênero masculino. Em média, os participantes tinham 3,2 anos de escolaridade (DP=1,5) e QI=101,46 (DP=10,32), avaliado por meio da Escala Weschler Abreviada de Inteligência (WASI). Nenhum participante da amostra fazia uso de medicação psiquiátrica no início da pesquisa. Os critérios de inclusão foram: estar na faixa etária entre 6 e 11 anos e 11 meses; apresentar escore igual ou superior a 3 na escala Problemas de Conduta do Strengths and Difficulties Questionaire (SDQ); alcançar escores iguais ou superiores a 65 pontos na escala Problemas de Oposição Desafiante ou na escala Problemas de Conduta, apontados pela escala de resultados orientadas pelo DSM (DSM Oriented-Scale) fornecida pelo CBCL/6-18; e obter escore igual ou superior a 61 na Escala Externalizante do CBCL/6-18. A amostra foi formada por critério de intensidade, mensurado pela escala CBCL/6-18 no nível limítrofe ou clínico. Os critérios de exclusão foram a criança já estar em psicoterapia ou ter apresentado desempenho cognitivo abaixo da faixa da normalidade para a respectiva idade na escala WASI.
Instrumentos
Os instrumentos de avaliação utilizados foram: ficha de identificação para registro de informações sobre a criança e situação familiar; Escala Problemas de Conduta do SDQ Versão para pais (Fleitlich, Cortazar & Goodman, 2000); CBCL/6-18 (Achenbach & Rescorla, 2001), que avalia problemas de comportamento e competências de uma criança, via percepção dos pais, em três escores distintos: Internalizante (PI), Externalizante (PE) e Total de Problemas (TP). Esses escores são mensurados pelas Syndrome Score Scales (SSS): Ansiedade/Depressão (A/D), Depressão/Retraimento (D/R), Queixas Somáticas (QS), Problemas Sociais (PS), Problemas de Pensamento (PP), Comportamento Quebra de Regras (CQR), Comportamento Agressivo (CA). Os coeficientes de confiabilidade de correlação interclasse são maiores que 0,92 (p<0,0001). Também fornece resultados orientados pelo DSM (DSM Oriented-Scale), considerados por especialistas como muito consistentes com as categorias diagnósticas daquele manual (Barletta, 2011; Lacalle, Ezpeleta, & Domenech, 2012). Esses resultados são: Problemas Depressivos (PD), Problemas de Ansiedade (PA), Problemas Somáticos (OS), Déficit de Atenção (DA), Problemas de Oposição Desafiante (POD) e Problemas de Conduta (PC); WASI (Trentini, Yates, & Heck, 2009), um instrumento de avaliação breve das habilidades cognitivas.
Material técnico
Duas caixas com dimensões de 72X50X7,5 cm, com cor azul na parte interna e preenchidas com areia até a metade: uma das caixas com areia seca e a outra com areia molhada; uma coleção de miniaturas diversas, que representavam animais, figuras humanas, profissões, alimentos, casas, veículos, pontes, aparelhos tecnológicos e personagens; equipamento para registro da cena (máquina fotográfica).
Cuidados éticos
Este estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (CAEE 2.497.135). Dentre as medidas adotadas para garantir o atendimento às disposições éticas, obteve-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLC) da instituição, dos pais para avaliação e para intervenção, além do assentimento verbal das crianças.
Procedimentos
Após a diretoria do CCA ter assinado o TCLE (Instituição), foram enviadas 200 cartas convite por meio das agendas de todas as crianças que estavam na faixa etária correspondente aos critérios de inclusão da pesquisa. Desse modo, a demanda para atendimento psicológico foi da família e não da instituição. Famílias de 78 crianças manifestaram interesse em participar do estudo. Foram agendadas entrevistas individuais de avaliação com mãe, pai ou responsável pela criança, e o respectivo TCLE (Avaliação) foi enviado em envelope fechado por meio da agenda.
Triagem
A entrevista inicial de avaliação apresentou a seguinte sequência:
a) explicação dos procedimentos envolvidos e preenchimento da ficha de identificação, que continha perguntas referentes à configuração e conjuntura familiar da criança.
b) aplicação do SDQ e, caso o resultado correspondesse à pontuação de 3 a 10 (nível limítrofe ou clínico) na escala Problemas de Conduta, o instrumento CBCL/6-18 era aplicado (T0);
c) registro dos dados do CBCL/6-18 em fichas próprias do inventário e transferência desses resultados para a Achenbach System of Empirically Based Assessment, acessível em https:\\www.ase-ba-web.org, base de correção on-line que fornece os resultados eletronicamente.
Das 78 crianças, 14 não pontuaram no nível limítrofe ou clínico do SDQ. Das 64 crianças cujos responsáveis responderam ao CBCL/6-18, 22 não pontuaram em nível limítrofe ou clínico nas escalas dos critérios de inclusão. As 42 crianças que atendiam aos critérios de inclusão responderam ao WASI. Uma delas apresentou escore entre 70-79 e foi desligada da pesquisa. Foi enviado o TCLE (Intervenção), via agenda, para as famílias das 41 crianças que cumpriram todos os critérios e, na sequência, foi realizado sorteio para formar randomicamente o Grupo Experimental (GE1), com crianças que dariam início à intervenção, e o Grupo Controle (GC), com aquelas que aguardariam em fila de espera pelo período aproximado de três meses. Foi firmado o compromisso de que, caso as crianças do GC ainda apresentassem resultados conforme os critérios de inclusão ao final do período de espera, seriam encaminhadas para intervenção (GE2).
Intervenção
O processo de intervenção constou de doze sessões semanais e individuais de terapia de sandplay, realizadas nas dependências da instituição, com tempo aproximado de 40 minutos, inicialmente envolvendo as crianças do GE1. Os responsáveis pelas crianças do GE1 foram convocados para reavaliá-las por meio do CBCL/6-18, logo após o término do período de intervenção, em T1. Após três meses, foi realizado follow-up, com avaliação por meio do mesmo instrumento (T2). Em T1, os responsáveis pelos participantes do GC, foram novamente convocados para a reavaliação das crianças (CBCL/6-18), e aquelas que ainda apresentavam resultados dentro dos critérios de inclusão foram encaminhadas para a intervenção e, desse modo, formou-se o GE2 com 19 participantes. A mensuração obtida em T1 dos participantes do GC foi utilizada como medidas em T0' do GE2. Os participantes do GE2 iniciaram a TS e, ao final das doze sessões, os responsáveis responderam ao CBCL/6-18 no T1'. Após três meses, foi realizado follow up, com nova avaliação (T2'). Durante todo o processo, houve oito drop-outs. No GE1, ocorreram três entre T0 e T1 (dois por licença médica e um por desistência), e dois entre T1 e T2 (um por desligamento da instituição e outro por necessidade de viagem). No GE2, um entre T0' e T1' (por desistência) e, entre T1' e T2', dois (por desligamento da instituição). A Figura 1 demonstra como ocorreu o fluxo dos procedimentos da pesquisa.
Procedimentos de análise
A verificação da efetividade da TS ocorreu por meio de duas análises distintas. A Análise 1 comparou os resultados do GE1 com o do GC antes (T0) e depois (T1) da intervenção. A Análise 2 teve a finalidade de acompanhar a evolução das crianças que passaram pela TS: GE1 + GE2 = GE total, nos três tempos da pesquisa T0' (antes), T1' (depois), T2' (três meses após o término da intervenção). A Análise 3 se ocupou da análise do conteúdo das cenas produzidas pelas crianças. Para evitar possível viés por parte da pesquisadora, as cenas foram analisadas em duplas: a pesquisadora e uma colega, também terapeuta de sandplay e credenciada pelo Instituto Brasileiro de Terapia de Sandplay. A pesquisadora contou com o trabalho de três colegas distintas e, em todas as ocasiões, a pesquisadora esteve presente para explicar as nuances e os pormenores das sessões. Os dados relativos ao CBCL/6-18 (análises 1 e 2) foram computados utilizando o programa SPSS IBM versão 25. Foi adotado o nível de significância de 0,05. O teste de Shapiro-Wilk verificou a aderência das variáveis à distribuição normal para definir o método estatístico a ser utilizado: paramétrico ou não-paramétrico. A comparação dos dados descritivos dos grupos foi realizada por meio do teste t (variáveis numéricas) ou, no caso das variáveis categóricas, por meio do teste exato de Fisher (tabelas com contingência 2x2) ou do teste qui-quadrado (tabelas maiores que 2x2). A comparação das médias dos escores foi realizada por meio do teste t e do teste de Mann-Whitney, a depender da normalidade das variáveis. Em ambos os casos, foi calculado o tamanho do efeito, cuja interpretação se deu conforme proposto por Dancey e Reidy (2019) para o r de Pearson: pequeno (de 0,10 a 0,39); médio (de 0,40 a 0,69) e grande (de 0,70 a 0,99).
Para analisar os temas contidos nas cenas (análise 3) foram utilizados os critérios estabelecidos por Freedle (n.d.), Grubbs (2005), Mitchell (1994) e Ramos e Matta (2008), que desenvolveram categorizações que permitem a padronização de dados gerados por produções imagéticas e verbais de pacientes na TS. Os temas identificados são classificados como indicadores de sofrimento psíquico ou de desenvolvimento psíquico/cura, de modo que é possível observar a melhora ou não do paciente ao longo do processo psicoterapêutico. Diversos temas podem ser identificados em apenas uma cena. O método de análise de cenas de sandplay proposto por Ramos e Matta (2006) permite analisar quantitativa e qualitativamente o desenvolvimento do processo de sandplay, visando comparar dados de diversos pacientes e, assim, possibilita verificar se há um tema predominante em um grupo de pacientes que apresentam o mesmo transtorno ou os mesmos sintomas e, ainda, verificar a evolução no processo. Tendo sido realizada a categorização das cenas em temas, as autoras propõem que o conjunto total de cenas de cada paciente seja dividido em três fases: inicial, intermediária e final. Ramos e Matta (2006) também orientam que o número total de cenas do paciente deva ser o parâmetro para o estabelecimento do número de cenas que comporão cada fase. Todavia, em virtude da natureza breve da intervenção empregada neste estudo (doze sessões), optou-se por adaptar o método proposto pelas autoras, de modo a evidenciar com maior clareza as diferenças estatisticamente significativas, com seus respectivos efeitos, entre o início e o fim da intervenção. Desse modo, nesta pesquisa, a análise dos temas considerou apenas duas fases: fase inicial (sessões 1 a 6) e fase final (sessões 7 a 12). Os temas identificados foram quantificados na fase inicial e na fase final e, na sequência, aplicou-se um teste estatístico para verificar se apresentaram aumento ou redução de frequência em cada fase do processo. No presente estudo, foi realizada uma comparação estatística entre as duas fases abarcando os dez temas mais frequentes nas cenas. Para essa análise, foi utilizado o teste Wilconxon pareado e elaborados gráficos de linha de tendência para os temas que apresentaram diferenças estatísticas.
Resultados
Análise 1: GE1 x GC
Os dados que caracterizam GE1 (n = 21) e GC (n = 20) não apresentaram diferenças significativas considerando-se o pareamento das variáveis idade, gênero e anos de escolaridade. O mesmo ocorreu na comparação dos dados dos testes de triagem, com intervalo de confiança (IC) de 95%: SDQ com teste t Student com p-valor de 0,887 [ (GE1 = 4,86 DP* 1,236) (GC = 4,80 DP 1,322) ] e WASI com p-valor de 0,531 [(GE1 = 100,90 DP 10,639) (GC = 102,06 DP 10,226)]. Quanto aos resultados do CBCL/6-18 no momento T0 da pesquisa, o GE1 e o GC não diferem nas variáveis estudadas. A comparação dos resultados dos grupos em T1 (pós-intervenção) aponta a ocorrência de diferenças significativas na pontuação de domínios do CBCL/6-18 (p-valor<0,05), conforme consta na Tabela 1.
Análise 2: Evolução do GEt (GE1 + GE2)
O GEt foi composto pela soma dos participantes de GE1 e GE2 que concluíram todos os procedimentos da pesquisa: TS (doze sessões) e avaliação em T0', T1' e T2'. Devido aos drop-outs, 32 foi o número adotado para a análise comparativa, conforme critério estabelecido por Dancey e Reidy (2019). A distribuição das variáveis foi calculada com intervalo de confiança de 95%. A idade média do grupo foi de 8,2 anos, com predominância do gênero masculino, as meninas compondo aproximadamente um terço da amostra. A escolaridade média foi de 3,2 anos e o coeficiente médio de inteligência foi de 101,19, no coeficiente total (DP=9,86 IC= 97,63 -104,75). A pontuação média da escala Problemas de Conduta do SDQ foi de 5,03 (DP=1,204 IC=4,60-5,47).
Os participantes do GEt apresentavam em T0 os seguintes sintomas nos níveis limítrofe ou clínico: POD: 78,2%; PA: 62,5%; PC: 34,4%; PS: 21,9%; DA: 21,9% e PD: 12,5%. Desse modo, a amostra apresenta, majoritariamente, sintomas de oposição desafiante associados a sintomas de ansiedade. Nas Tabelas 2 e 3 é possível observar a evolução dos resultados do GEt.
A comparação entre os resultados do GEt, em T0' e T1', aponta diferenças significativas em todos os domínios do CBCL/6-18, com médias dos escores no T1' mais baixas que no T0'. O tamanho do efeito foi moderado em sete domínios DA, PS, PD, PA, PP, QS, D/R) e forte em dez domínios PI, PE, TP, A/D, PS, CQR, CA, PA, POD e PC , como é possível observar na Tabela 3. Com a finalidade de identificar se os resultados se sustentaram até três meses após o término da intervenção, as médias foram comparadas entre T1' e T2'. Os resultados apontaram diferenças significativas, com médias maiores em T2' nos domínios PI, PE, TP, QS, CA e POD, o que indica que a melhora não se sustentou em termos dos sintomas dos domínios mencionados. Nos domínios A/D, D/R, P/S, PP, PA, CQR, PD, PA, PS, DA e PC, os resultados se mantiveram com tamanho de efeito fraco (Tabela 3). A comparação dos resultados do GEt entre T0' e T2' (Tabelas 2 e 3) teve a finalidade de identificar se ocorreu regressão dos sintomas ao nível basal. Dezesseis domínios do CBCL/6-18 apresentaram diferenças significativas, com médias menores no T2' do que no T0', o que aponta que não ocorreu a regressão dos sintomas. O efeito foi moderado ou forte, nos seguintes domínios: PI, PE, TP, A/D, D/R, QS, PS, PP, PA, CQR, CA, PD, PA, DA, POD e PC. O domínio PS apresentou média inferior em T2 quando comparada à de T0, mas o cálculo matemático não apontou a diferença como significativa.
A comparação entre os resultados do GEt, em T0' e T1', aponta diferenças significativas em todos os domínios do CBCL/6-18, com médias dos escores no T1' mais baixas que no T0'. O tamanho do efeito foi moderado em sete domínios DA, PS, PD, PA, PP, QS, D/R) e forte em dez domínios PI, PE, TP, A/D, PS, CQR, CA, PA, POD e PC , como é possível observar na Tabela 3. Com a finalidade de identificar se os resultados se sustentaram até três meses após o término da intervenção, as médias foram comparadas entre T1' e T2'. Os resultados apontaram diferenças significativas, com médias maiores em T2' nos domínios PI, PE, TP, QS, CA e POD, o que indica que a melhora não se sustentou em termos dos sintomas dos domínios mencionados. Nos domínios A/D, D/R, P/S, PP, PA, CQR, PD, PA, PS, DA e PC, os resultados se mantiveram com tamanho de efeito fraco (Tabela 3). A comparação dos resultados do GEt entre T0' e T2' (Tabelas 2 e 3) teve a finalidade de identificar se ocorreu regressão dos sintomas ao nível basal. Dezesseis domínios do CBCL/6-18 apresentaram diferenças significativas, com médias menores no T2' do que no T0', o que aponta que não ocorreu a regressão dos sintomas. O efeito foi moderado ou forte, nos seguintes domínios: PI, PE, TP, A/D, D/R, QS, PS, PP, PA, CQR, CA, PD, PA, DA, POD e PC. O domínio PS apresentou média inferior em T2 quando comparada à de T0, mas o cálculo matemático não apontou a diferença como significativa.
Análise 3: Temas mais frequentes nas cenas da TS
Foram identificados 37 temas, por meio da análise de cada uma das 432 cenas construídas pelas 36 crianças que participaram das doze sessões de TS previstas no método deste trabalho. Os temas categorizados nas cenas produzidas pelos participantes da amostra estão listados a seguir. Aqueles que estão sublinhados foram os dez mais frequentes, apresentando ocorrência total igual ou superior a 60 nas 432 cenas produzidas: conflito, ameaça, ferida, cuidado, nutrição, energia em movimento, morte, proteção, defesa, tesouro/gratificação, caos, destruição, raiva, desamparo, negligência, cisão, confinamento, congestionamento, dificuldade, compartimentalização, celebração, construção, conexão, integração, centralização, caminho, elementos religiosos, transformação, nascimento, restauração/conserto, escondido/ secreto, treinamento, vigilância, lúdico, vazio, comando, competição. Dentre esses, os temas vigilância, lúdico, restauração/conserto, comando e treinamento emergiram como novas possibilidades de padronização. Dos dez temas mais frequentes, quatro deles (conflito, ameaça, ferida e cuidado) apresentaram diferenças estatisticamente significativas, quanto ao número de ocorrências, entre a fase inicial (sessões 1 a 6) e a fase final (sessões 7 a 12), como demonstra a Tabela 4. A Figura 2 ilustra a evolução desses temas ao longo das doze sessões da TS.
Discussão
A comparação dos resultados do CBCL/6-18 entre o GE e o GC, antes e depois da TS (Tabela 1), assim como a observação das médias obtidas pelo GE total em T0', T1' e T2' (Tabelas 2 e 3) apontam a redução significativa das médias em grande parte dos domínios mensurados e, desse modo, é possível afirmar que a TS foi uma intervenção eficiente para reduzir esses sintomas nas crianças da amostra. Note-se, na Análise 1, que, nos quatro domínios específicos do CBCL/6-18 que são centrais ao TOD e/ou TC (CQR, CA, POD e PC), o GE1 apresentou melhora significativa: um deles com força de efeito fraca, dois com força de efeito moderada e um com força de efeito forte. De outro lado, a Análise 2 aponta que não ocorreu regressão dos sintomas ao nível basal nesses domínios, todos eles com força de efeito forte. Ambas as análises denotam que é possível atribuir à TS a redução dos sintomas de modo robusto. No presente estudo, entende-se que o conteúdo das cenas da TS expressou os conflitos das crianças e que os temas mais mobilizados correspondem a complexos e, portanto, à problemática emocional vivida pelos participantes da pesquisa. Desse modo, a Análise 3 permite inferir que as temáticas relativas a conflito, ameaça, ferida, cuidado, nutrição, energia em movimento, morte, proteção, defesa, tesouro/gratificação foram as mais mobilizadas nos processos de TS das crianças da amostra e se relacionam tanto a indicadores de sofrimento quanto a indícios de desenvolvimento/cura. A Figura 2 aponta a tendência decrescente dos temas conflito, ameaça e ferida que, por sua vez, são indicadores de sofrimento psíquico (Friedman & Mitchell, 1994; Ramos & Matta, 2008) e a tendência crescente do tema cuidado, que indica a possibilidade de melhora psicológica (Ramos & Matta, 2008).
Desse modo, pode-se supor que a dinâmica do antagonismo (conflito), a emoção do medo (ameaça), o sentimento de dor (ferida), a perda/transformação (morte) e o estado de alerta constante, que se configuraram diante da possibilidade de ataques intrusivos (defesa), são compreendidos como as expressões principais dos complexos das crianças da amostra. De outra parte, as dinâmicas de zelar (cuidado), oferecer alimento (nutrição), alteração/modificação (energia em movimento), garantir integridade em situações de risco potencial (proteção) e contar com um recurso valioso (tesouro/gratificação) constituíram os temas que expressaram os processos de promoção do desenvolvimento e/ou cura. É possível inferir que os resultados das Análises 1 e 2, somados aos da Análise 3, denotam a transformação e reorganização psicológica dos participantes da pesquisa. Como postula Zoja (2011), os padrões de um impulso agressivo tendem a estar presentes em imagens repetitivas em um processo de TS, até que esse motivo alcance outro padrão de expressão. Assim, é possível supor que a modificação dos padrões de imagem denote a transformação da expressão do impulso agressivo. A partir dessa premissa, é possível aventar a hipótese de que as transformações dos temas quantificados na Análise 3 foram também observadas por meio das representações simbólicas da relação entre animais e seres humanos e do estilo de exercício de autoridade. Inicialmente, nas narrativas das cenas da TS, o instinto animal parecia se sobrepor à razão e, na medida em que o processo transcorreu, foi possível notar uma inversão. Pode-se considerar, portanto, que a representação da relação entre humanos e animais veio a funcionar como uma espécie de termômetro que indicava a modulação dos impulsos na psique das crianças. De outra parte, a mudança de padrão na representação do estilo do exercício da autoridade, que inicialmente ocorria de modo agressivo até alcançar uma expressão mais adequada por meio do estabelecimento de limites, regras e instruções, pareceu denotar a ocorrência de certa modificação nos complexos relativos às questões de autoridade. Vale frisar que os fatores de risco para que as crianças desenvolvam TOD e/ou TC apontam problemas prévios de ordem emocional. Foi relatado que 28,8% da amostra apresentava incontinência urinária no início da pesquisa. Esse sintoma corrobora os achados da literatura e, de certo modo, pode ser compreendido como uma evidência do aspecto psicossomático intrínseco aos sintomas dos transtornos estudados.
Uma vez que o componente de descontrole emocional acompanha os sintomas centrais, nota-se que algumas crianças também manifestam a dificuldade de controle esfincteriano, como um paralelo fisiológico da dificuldade de contenção dos impulsos. Mais da metade dos participantes da amostra, 68,8%, vivenciou uma situação estressante durante sua infância. Uma vez que essas crianças não contavam com uma estrutura psíquica suficiente para lidar com tamanha carga emocional devido a um ego que ainda estava em desenvolvimento, é possível pensar que tal situação tenha propiciado a formação de um complexo autônomo na psique. A memória de tal evento foi reprimida pela criança e, por sua vez, pode ser ativada por meio de gatilhos ambientais, constelando respostas fisiológicas e reações desproporcionais, que ocorrem de modo autônomo, independentemente da vontade do ego.
Também foram identificados problemas circunscritos à dinâmica familiar. O levantamento realizado aponta que a maior parte das crianças da amostra (68,6%) vive em lares nos quais a figura do pai é ausente. A falta do pai no cotidiano dessas crianças não é sinônimo de ausência do exercício da função paterna, uma vez que a mãe e as instituições que a criança frequenta podem instaurar regras e estabelecer interditos e limites. No entanto, diante de uma realidade socioeconômica precária, em meio às dificuldades inerentes a uma grande metrópole, muito provavelmente essas mães se sentem sobrecarregadas dado que, além de não contarem com o apoio do pai para a criação dos filhos, muitas vezes não recebem apoio financeiro e são responsáveis pela obtenção de recursos monetários e pela manutenção da rotina da família. A sobrecarga e o estresse vivido por essas mães podem ser compreendidos como um campo fértil para o manejo parental inadequado, na medida em que a tensão e o cansaço decorrentes geram impaciência e irritabilidade. Essa situação pode levar ao comprometimento do exercício da função materna35 por parte da cuidadora principal e à configuração de um complexo paterno negativo na criança, devido à ausência de uma figura masculina protetora e capaz de estabelecer limites e estimular o ganho de autonomia com firmeza e afeto. Diante desse panorama, é possível pensar que o emprego de uma intervenção individual e lúdica, que permite abordar questões perturbadoras e difíceis de modo simbólico, parece ter sido altamente benéfica, uma vez que as crianças puderam expressar e ressignificar emoções que são facilmente censuráveis nos contextos familiar e social. É possível supor, ainda, que o fantasiar e brincar em ambiente livre e protegido tenha possibilitado que a criança reorganizasse, de modo simbólico, os conflitos inconscientes que estão no cerne de seus complexos, uma vez que a cena retrata a dinâmica de seu mundo interno (Ammann,2002; Weinrib, 1993).
Conclusão
Para efeito deste estudo, compreende-se os sintomas de TOD e/ou TC como desdobramentos de um complexo (Jung, 1934/1991a) que, quando ativado, coloca a criança em um estado perturbado que a leva a agir independentemente de sua vontade, a experimentar pensamentos obsessivos e/ou intrusivos e a apresentar comportamentos compulsivos e/ou impulsivos. Ao observarmos o efeito da TS nas crianças da pesquisa, pode-se supor que ocorreu uma espécie de enfraquecimento de complexos, isto é, a representação lúdica e dinâmica dos conflitos inconscientes por meio dos símbolos contidos nas cenas da TS teria levado à reorganização e ressignificação dos conflitos inconscientes intrínsecos ao complexo, permitindo que fosse liberada a energia que estava neuroticamente fixada (Weinrib, 1993). Desse modo, foi retirada parte da energia psíquica que servia à repressão de conteúdos conflitivos, enfraquecendo o potencial de autonomia do complexo. Como consequência, os sintomas de TOD e/ou TC vieram a diminuir. Torna-se, portanto, factível inferir que, após a TS, a psique das crianças estava menos suscetível à atuação dos complexos, uma vez que foi possível confrontar, reconhecer e ressignificar os conflitos inconscientes que lhes causavam sofrimento. Desse modo os comportamentos impulsivos, agressivos e mal adaptados passaram a ocorrer com menos frequência.
Diante da premissa de que o conteúdo inconsciente conflituoso é simbolizado nas cenas da TS, é possível inferir que os complexos envolviam questões relativas ao antagonismo (conflito), medo (ameaça), dor (ferida), perdas (morte) e estados de alerta decorrentes de ataques intrusivos (defesa). A evolução observada na frequência dos temas, ao longo da intervenção terapêutica, corresponderia às transformações do complexo e dos seus correspondentes fisiológicos que subjazem as emoções vividas (Steck & Steck, 2016). As dinâmicas relativas a conflito, ameaça e ferida foram amenizadas, na medida em que a dinâmica do cuidado foi reforçada na psique das crianças. Embora a presente pesquisa demonstre a eficiência da TS para tratar crianças com sintomas de TOD e/ou TC, os resultados não são passíveis de generalização, uma vez que a amostra foi circunscrita aos frequentadores de apenas uma instituição e, portanto, componentes socioculturais específicos podem ter exercido influência sobre os resultados. Desse modo, sugere-se que novas pesquisas sejam desenvolvidas de modo a contemplar crianças que apresentam condições de vida mais heterogêneas.
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Endereço para correspondência:
R. Monte Alegre, 984
Perdizes, São Paulo - SP
05014-901
Brasil
E-mail: denisegr@pucsp.br
35 Expressão comumente utilizada no campo da psicologia para designar o exercício da maternagem, que consiste em cuidar, acolher, nutrir e proteger uma criança pequena. A necessidade de maternagem não é circunscrita apenas ao primeiro ano de vida, e seu exercício estende-se pela primeira infância. Autores que se dedicaram à observação de bebês na relação com seus cuidadores principais como Winnicott (1896-1971) e Fordham (1905-1995) apontam que o cuidado da mãe ou cuidador principal, em conjunto com o investimento emocional por parte do adulto, deve representar uma referência constante e segura para que o desenvolvimento da criança transcorra em condições adequadas.