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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.12 n.23 São Paulo dez. 2007

 

DOSSIÊ TERAPÊUTICA E ESTÍLOS DA CLÍNICA

 

O lugar do analista na extensão da psicanáliseà inclusão escolar1

 

The position of the analyst in the extent from psychoanalysis to school inclusion

 

El lugar del analista en la extensión del psicoanálisis a la inclusion escolar

 

 

Jeanne Marie de Leers Costa RibeiroI; *; Angélica Bastos**; II

I Escola Brasileira de Psicanálise
II
Programa em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O trabalho aborda a extensão da psicanálise sob a forma de interlocução entre as equipes das instituições de saúde mental e de ensino em torno da inclusão escolar. Trata-se de pesquisa realizada com crianças em tratamento no SAIIJ do Instituto Philippe Pinel com o objetivo de acompanhar casos de crianças autistas e psicóticas incluídas na rede regular de ensino público do Rio de Janeiro. A psicanalista se fez presente na condução de reuniões com profissionais do serviço clínico e equipe pedagógica das escolas. São apresentados dois casos acompanhados e discutidos os efeitos de segregação e criação de laços sociais.

Palavras-chave: Inclusão escolar, Psicanálise, Autismo, Psicose, Instituição.


ABSTRACT

This paper approaches the psychoanalysis extent under the interlocution form between the mental health and teaching institution groups concerning school inclusion. The research was performed with children under treatment at SAIIJ in Philippe Pinel Institute with the purpose of observing autistic and psychotic children included in the regular network of public schools in Rio de Janeiro. The psychoanalyst attended and conducted the meetings with the practical medical service professionals together with the pedagogy group of the schools. Two closely followed cases are presented and there is a discussion about the segregation effects and creation of social bonds.

Keywords: School inclusion, Psychoanalysis, Autism, Psychosis, Institution.


RESUMEN

El trabajo trata de la extensión del psicoanálisis sobre la forma de interlocución entre los equipos de instituciones de salud mental y de enseñanza respeto a la inclusión en la escuela. Es una investigación hecha con niños en tratamiento en el SAIJJ del Instituto Philippe Pinel con el objetivo de seguir (acompañar) los casos de niños autistas y psicóticos incluyídos en la red regular de enseñanza pública de Rio de Janeiro. La psicoanalista estuvo presente en la dirección de juntas con profesionales del servicio clínico y el equipo pedagógico de las escuelas. Son presentados dos casos seguidos (acompañados) y se discutieron los efectos de segregación y creación de lazos sociales.

Palabras clave: Inclusión en la escuela, Picoanálisis, Autismo, Psicosis, Institución.


 

 

Introdução

A escola, como qualquer instituição, repousa na instituição primordial que é a linguagem e no laço social dos discursos que dela derivam. O tratamento e a inclusão escolar de crianças autistas e psic óticas lidam com sujeitos para os quais a linguagem e os discursos falham em fazer instituição. Como promover a passagem, o trânsito, do serviço de saúde mental à escola sob a forma de um liame social? Como pode a instituição específica que é a escola, acolher, por meio dos profissionais que nela atuam, essas crianças? O presente artigo apresenta um trabalho que a psicanálise estende às equipes de instituições de ensino e de saúde mental através do acompanhamento de casos de autismo e psicose por uma analista.

Nossa pesquisa sobre a inclusão de crianças autistas e psicóticas na rede regular de ensino municipal e estadual do Rio de Janeiro2 acompanhou casos em tratamento no Serviço de Atenção Intensiva Infanto Juvenil, SAIIJ, do Instituto Municipal Philippe Pinel. Visou-se circunscrever e discutir os impasses encontrados e os efeitos produzidos nas crianças, em seus familiares, nos técnicos da instituição de saúde mental e nas professoras, a partir da inclusão da criança na escola.

Diante do que denominou “disposições constitucionais inatas muito diferentes”, Freud declarou “ser quase impossível que o mesmo método educativo pudesse ser uniformemente bom para todas as crianças” (Freud, 1933/1980b, p.167). Essa constatação reforça, no terreno da inclusão escolar, a necessidade de abordarmos cada caso segundo a particularidade do sujeito; abordagem que norteia a psicanálise e sua extensão às instituições de saúde e de ensino, quando o analista nelas se faz presente.

Nas três profissões impossíveis enumeradas por Freud (1925/ 1980a) (educar, governar e curar), é o exercício da práxis que traz o confronto com a impossibilidade. O discurso universitário que tende a prevalecer na educação – e guarda homologia com a burocracia (Lacan, 1992) – destaca-se por situar no lugar da alteridade o objeto, vale dizer, por fazer o saber agir sobre objetos: o estudante, a criança, o adolescente. A dimensão objetal do sujeito diz respeito às pulsões e à sua satisfação não temperada pelo prazer, isto é, o gozo. Trata-se, portanto, da impossibilidade de o saber vir a dominar no objeto o gozo que o habita. O discurso do analista distingue- se por situar no lugar da alteridade o sujeito com o qual trata. A extensão da psicanálise, ao se colocar no entrecruzamento e nas tensões com os discursos prevalentes nas instituições, tem por princ ípio dar vez à subjetivação.

Se toda criança é, face à pressão das pulsões, em certa medida ineducável, as autistas e psicóticas – por sua posição refratária a normas compartilháveis e pelo rechaço ao Outro – parecem radicalizar o impossível de educar. A impotência, o desânimo, a culpabilização dos pais ou a proliferação de regulamentos (levando a uma burocratização que toma a criança numa dimensão objetal) são reações recorrentes da escola frente a esse impossível de educar. Acreditamos que a impossibilidade, uma vez reconhecida no âmbito da própria ação educativa, propicia a emergência do sujeito.

“Toda formação humana tem, por essência, e não por acaso, de refrear o gozo” (Lacan, 2003, p. 362), vale dizer, não dominá-lo ou aboli-lo, mas dar-lhe um lugar no laço social. A inclusão escolar de crianças autistas e psicóticas não se exclui dessa tarefa, pretendese não sucumbir à segregação, mas investir na criação de laços.

 

Contexto histórico

Com a criação do NAICAP3 no final da década de 80, o Instituto Philippe Pinel iniciou o atendimento a crianças autistas e psicóticas. A proposta de trabalho do serviço era a de uma prática institucional orientada pela psicanálise. Partia da idéia de que os sintomas dessas crianças – descritos pela psiquiatria como sinais de deficiência – correspondiam a produções singulares de um sujeito que tenta se constituir. O NAICAP foi o primeiro serviço público na área da saúde mental no Brasil a acolher com fins de tratamento crianças autistas e psicóticas. Algum tempo ainda foi necessário para que a elas se destinasse um lugar na escola.

Em nosso país, a Secretaria de Educação Especial, através da Política Nacional de Educação Especial, propôs a criação de classes especiais para crianças de “condutas típicas”4, categoria que abrange os chamados autistas e psicóticos. A escolarização dessas crianças há pouco mais de dez anos é, portanto, um fato bastante recente na história da Educação Especial entre nós.

Ao longo desses anos, constatam-se grandes avanços na implementa ção de políticas públicas, promulgação de leis e decretos que garantem o direito de educação a todos os portadores de deficiências. Paradoxalmente, verificamos que essas mesmas leis que asseguram a escola para todos, sem distinção, podem tornar-se instrumentos de segregação, principalmente quando passam de um direito a uma imposição exigida pelos pais e ratificada pelos conselhos tutelares e outras instâncias jurídicas, independentemente do momento, da forma de entrada da criança na escola e, sobretudo, das particularidades de cada um.

A lógica da inclusão implica a idéia de que a exclusão incidiria sobre aqueles que se apresentam como desviantes da norma, como diferença, alteridade em relação ao mesmo, à homogeneidade. Nos campos da saúde mental e da clínica, assim como no da educação, a questão que se colocou, a partir de movimentos sociais reformadores, foi a de como incluir no corpo social os excluídos, como dar lugar aos ‘diferentes’.

No entanto, deparamo-nos na atualidade com formas distintas de segregação. Segundo Recalcati (2002), o princípio da segregação contemporânea não está centrado na exclusão da alteridade, mas na integração no Um que se multiplica sob a forma do mesmo. A segrega ção produz-se por um excesso de identificação e não por exclusão. Assim, na clínica contemporânea, proliferam diagnósticos que, como insígnias, agrupam sujeitos que partilham de forma anônima um traço de identifica ção: os dependentes químicos, os bulímicos, os compulsivos, etc. O sintoma, que particularizaria cada sujeito em oposição ao universal da civilização, passa a sustentar a homogeneidade imaginária.

No nosso entender, contra a segrega ção não basta garantir direitos de cidadania, como saúde e educação. A criança pode transpor os muros da escola e permanecer sem condi ções de convivência e inserção no laço social.

No âmbito de nossa pesquisa, encontramos a expressão “crianças de inclusão” de forma recorrente no discurso dos professores, pedagogos e equipes responsáveis pela educação especial, expressão que segrega pela homogeneização. A exclusão de que se trata, então, é a exclusão do sujeito e de sua particularidade irredutível.

O desafio que se desenha, para os profissionais da saúde mental e da educação especial, é o de sustentar uma prática com essas crianças na tensão do paradoxo entre o universal e o singular, entre o ideal ‘da escola para todos’ e a particularidade do caso a caso.

 

A participação do psicanalista

Diante desse quadro, a interlocu ção e o acompanhamento dos casos com os professores e a equipe de saúde mental são de fundamental importância, tanto para o tratamento, como para a escolarização dessas crianças. De acordo com Kupfer e Petri (2000, p. 117), “toda inclusão de crianças psicóticas e autistas precisa ser cuidadosa e acompanhada, podendo não ser recomendada em alguns momentos mais problemáticos da vida de uma criança.”. Quando e como a inserção da criança na escola pode ser terapêutica? Em que circunstâncias tal inserção pode – ao contrário – ter efeitos devastadores? Se, como nos diz Freud, educar é impossível, cumpre verificar como, em cada caso, a inserção na escola defrontou-se com essa impossibilidade e de que modo respondeu a ela.

O acompanhamento dos casos das crianças inseridas em escolas realizou- se por meio de reuniões para discussão desses casos com os membros da equipe do SAIIJ e de reuniões interinstitucionais entre os profissionais dessa instituição e da escola (professores e equipe pedagógica), contando com a presença de um psicanalista como êxtimo5. Esse lugar de extimidade não se instaura pelo fato de o psicanalista ser alguém que não integra nenhuma das duas equipes (saúde mental e educação). O analista visa manter um lugar vazio de saber, permitindo que nenhuma das equipes se coloque como detentora de todo o saber sobre o caso, o que tem dado lugar ao aparecimento da posição subjetiva e singular de cada criança, para além da força de segregação do diagnóstico, dos ideais pedagógicos e de excelência clínica das equipes.

Uma diretriz essencial ao trabalho consistiu em não atender à demanda de ‘orientações’ de um especialista em autismo, propiciando às equipes a invenção de soluções próprias e criativas face ao impossível de cada caso. A partir dessa direção, efeitos de surpresa têm surgido junto às crianças, às famílias, às professoras e à equipe do SAIIJ. A partir de fragmentos de dois casos acompanhados, passamos agora a discutir estes efeitos.

 

Acompanhamento de um primeiro caso: os impossíveis e a escolha

Com 11 anos de idade, A. encontra- se em atendimento no SAIIJ há quatro anos. Foi encaminhado com diagnóstico de transtorno global do desenvolvimento. A avaliação da escola apontava para grave atraso na aquisição da linguagem e na socializa ção. Apesar da fala ecolálica, desde o início estabeleceu contato com adultos e crianças.

A. tem o mesmo nome do pai, que é uma pessoa muito valorizada na comunidade em que mora, graças à sua posição na escola de samba da comunidade. A. gosta de vestir-se como ele e imitar tudo o que o pai faz. F., mãe do menino, disse nas entrevistas preliminares não saber como o marido conseguia mandar em tantos homens fora de casa, “porque em casa não manda em nada”. O pai queixou-se da mulher por sua atitude “superprotetora” com o filho, mas afirmou também não conseguir “contrariar” a criança. Aos seis anos de idade, A. ainda tomava mamadeira e dormia na cama com a mãe. F. disse chamar de “filho” tanto o marido quanto A.; como os dois têm também o mesmo nome, ela resolveu dar um apelido para o filho, para poder “diferenciá-los”.

No decorrer dos quatro anos de tratamento, A. descreveu um percurso interessante a partir do encontro com profissionais que se colocaram à disposição, como parceiros e notários de seu trabalho, para acompanhá-lo em suas construções. Inicialmente, A. apresentava-se muito agitado, colocando-se muitas vezes em situações de risco. Brincar com água apaziguava-o. Fazia misturas com água e argila, interessando-se a partir daí pela oficina de culinária. Suas misturas transformavam-se em bolos, que confeccionava com enorme satisfa ção e oferecia em seguida às crian ças e adultos da equipe. Produziu assim uma nova forma de relacionar- se com os outros e os objetos. Uma vez reconhecida e compartilhada, essa relação conduziu a um novo tipo de laço com o outro. O menino participa também da oficina de música, dança e toca pandeiro, dizendo “vou fazer um espetáculo.” Fala agora na primeira pessoa, indicando que tem uma nova inserção na linguagem e que conquistou alguma separação e subjetivação em relação aos ditos do outro, que antes se reproduziam como fala ecolálica. A. era uma das poucas crianças na instituição que estava incluído em turma regular de ensino, freqüentando a primeira série do ensino básico em uma escola estadual.

Após o agendamento da primeira reunião na escola freqüentada por A., a equipe do SAIJJ foi surpreendida pela revelação de que a criança, embora incluída numa turma regular, freqüentava também outra escola em turma especial. Ao tomar conhecimento de que haveria uma reunião com a equipe da escola, a mãe revelou à técnica de referência do SAIIJ o que até então guardava em segredo. Ela acreditava que o filho estava “se socializando” em uma escola, mas que na classe especial aprenderia mais rápido. Na reuni ão com professores e coordenadores da escola, a professora da classe regular pôde colocar seus impasses. Relatou sentir-se pressionada, de um lado, pelos pais e, de outro, pela coordenação da escola. Considerando-se solitária e sem uma formação especializada, acreditava que a professora da classe especial dispunha de melhores condições para alfabetizar o aluno, concordando com a mãe em manter a criança matriculada simultaneamente em duas escolas.

A partir das reuniões interinstitucionais, a professora da classe regular deu-se conta da importância do trabalho que vinha realizando com A, passando a valorizar o que ela chamava de “socialização” da criança. Outros professores foram convocados a falar e prestaram seus testemunhos a respeito das conquistas de A., que se mostrava cada vez mais comunicativo.

Para a professora, endereçar em reunião – tanto à coordenação da escola quanto aos profissionais do SAIIJ – o que até então era guardado em segredo, por ser fora da ‘norma’, teve o efeito de autorizá-la na invenção criativa que alcançou, preservando-se um ponto de impossível na educação desse caso. O impossível, aqui, não gerou impotência, resposta tão freqüente nas queixas das professoras diante da tarefa de educar crianças autistas e psicóticas. Ao contrário, manter uma brecha, lugar vazio para um resto ineducá- vel, possibilitou que essa criança encontrasse, naquele momento, sua própria maneira de estar na escola. A solução fora da ‘norma’ institucional baseada em ‘regras iguais para todos’ tornou possível para A. aprender onde era impossível socializar-se, e socializar-se onde era impossível aprender.

O que fora mantido em segredo, por ser fora da ‘norma’, no entanto, tornara-se público. No início do novo ano letivo, os pais de A. foram colocados frente à necessidade de escolher entre as duas escolas. Os dois discordavam, o que teve como efeito a entrada do pai em cena, que pela primeira vez sustentou diante de sua mulher uma posição a respeito de seu filho. A surpresa, desta vez, veio da própria decisão do menino nessa escolha, dizendo em uma sessão com a técnica de referência do SAIJJ e a mãe: “Instituto X acabou”. A mãe, que nunca havia dado voz ao menino, pôde reconhecer e acatar sua escolha como um signo da alteridade do sujeito. A decisão de A. foi um marco em seu percurso no tratamento e na escola. Confrontando-se agora com a impossibilidade de manterse nas duas escolas, teve que perder uma. Escolheu ficar na escola onde era possível aprender e precisou enfrentar as conseqüências de sua escolha. Está sendo preparado por uma nova professora para alfabetizar-se. A escola em que se socializava e que representava uma realização em termos de inclusão, foi preterida por não incluir para o menino a aquisição do saber. As exigências necessárias ao trabalho de alfabetização implicam, para qualquer criança, ceder algo do gozo. A. recusou-se, de início, a participar das atividades pedagógicas e agredia a professora, mas agora se interessa por livros e letras, escrevendo seu nome.

Onde há espaço para o imposs ível, há também abertura para o possível. Nesse momento, sustentar o impossível abriu para essa criança a via de uma escolha própria que, sendo aceita e reconhecida pelos pais e pelos professores, permitiu um novo tipo de laço com o outro.

 

Um segundo caso acompanhado: a particularidade do sujeito na inclusão escolar

O segundo caso ao qual estendemos a psicanálise sob a forma do acompanhamento é o de L., uma menina que já ingressou no serviço com diagnóstico de autismo. Aos três anos de idade não falava, furtava-se ao contato visual, manifestava isolamento e alguns gestos estereotipados. O tratamento, aliado à inclusão na escola, teve efeitos surpreendentes para L., que é atendida há dois anos no SAIIJ e já freqüentou o jardim de infância em turma regular da rede pública. Hoje em dia, fala, brinca com outras crianças e permanece em turma regular na escola.

Logo após o começo do tratamento no SAIIJ, a equipe da creche particular que a criança freqüentava indicou, em função das dificuldades observadas, uma escola especial para crianças portadoras de síndromes variadas. Para a equipe do SAIIJ, seu diagnóstico ainda se mantinha em suspenso e apostava-se em um progn óstico bem favorável em virtude de seu atendimento precoce e das melhoras rápidas que despontavam. Por essas razões, na discussão do caso com os técnicos do SAIIJ e professores da creche, foi proposto que L. continuasse nesta última. Os desdobramentos do caso apontaram os efeitos positivos dessa intervenção.

Quando iniciamos o acompanhamento de L., marcamos reunião com os profissionais da escola municipal que, nesse meio tempo, a menina passou a freqüentar. A professora surpreendeu-se com o fato de a criança estar em tratamento no Pinel; informação que os pais não tinham comunicado à escola. A professora indagou se seria preciso trat á-la de forma “especial”, posto que não considerava L. uma “criança de inclusão”. Do ponto de vista da professora, embora pouco comunicativa, a menina participava satisfatoriamente de todas as atividades, estava entrosada no grupo e freqüentava a Educação Infantil para crianças de sua faixa etária.

Na reunião interinstitucional, os professores mostraram os trabalhos e desenhos realizados por L., que correspondiam às expectativas para uma criança de sua idade. Observaram que em situações de maior excita ção, L. realizava um gesto com as mãos, entendido por eles como uma espécie de “tique nervoso”. O único comportamento da criança considerado “diferente” eram as repetidas saídas da sala de aula para ir ao banheiro. Interrogados sobre essa conduta, os pais informaram que o pediatra não detectara nenhuma disfunção orgânica que a justificasse. Tranqüilizados, os professores acolheram tanto o tique nervoso como as idas freqüentes ao banheiro como uma particularidade não domesticável do sujeito, um resto impossível de civilizar e dominar pelo saber. Assim, L. conseguiu encontrar uma forma particular de estar em grupo. Suas saídas para o banheiro pareciam garantir uma ausência em sua presença na turma, permitindo a separação necessária ao enlaçamento com o outro.

Atualmente L. está se alfabetizando em turma regular. Considerada tímida pela nova professora, permanece um pouco isolada no recreio, mas participa de todas as atividades em sala, sem manifestar dificuldade.

A manutenção do diagnóstico em aberto e a permanência na creche em alternativa à escola especial impediram a cristalização do diagnóstico de autismo que costuma silenciar o sujeito e segregar a criança sob a homogeneidade da categoria psicopatol ógica e do anonimato. L. adquiriu uma posição na linguagem compat ível com a tomada da palavra. Subsistiu uma parcela de gozo que a criança circunscreve em movimentos corporais e deslocamentos de ida e volta ao banheiro. Em meio a conting ências felizes, a sustentação por parte da analista de um lugar vazio de saber e de um espaço para o sintoma de L. propiciou a localização desse gozo e sua aceitação no laço social.

 

Conclusão

Na psicanálise em extensão, opera- se entre os discursos instituídos, a partir dos princípios da psicanálise em intensão ou pura, sem a qual não há extensão. Na prática que engajou, a psicanalista ocupou um lugar êxtimo: exterior, por não comparecer com mais uma especialidade de saber entre os discursos sobre a criança, conduzindo o acompanhamento o mais distante possível de uma apreensão objetivante e objetalizante do sujeito; interior, pelo compromisso de sua escuta com as falas e os atos capazes de autenticarem um lugar de alteridade para a criança e darem voz ao sujeito.

O psicanalista como êxtimo, concedendo um lugar operatório ao não saber, abre espaço para que o impossível de educar em cada caso não leve à impotência e ao desânimo dos professores, mas funcione como causa de desejo e de trabalho.

 

Referências

Freud, S. (1980a). Prefácio à Juventude desorientada de Aichorn. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, (J. Salomão trad., Vol. 19, pp 341-343). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1925)        [ Links ]

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Kupfer, M. C. e Petri, R. (2000) Por que ensinar a quem não aprende? Estilos da Clínica: Revista sobre a Infância com Problemas, 5 (9), 109-117.        [ Links ]

Lacan, J. (1992). O Seminário livro 17: O avesso da psicanálise, 1969-1970. (A. Roitman, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

________(2003). Alocução sobre as psicoses da criança. In J. Lacan, Outros Escritos. (pp.359-368). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.        [ Links ]

Recalcati, M. (2002). Une application de la psychanalyse à la clinique du groupe: l’homogène et l’aléatoire. Mental. Revue internationale de santé mentale et psychanalyse appliquée, (10), 99-110.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: jeannemarie@uol.com.br
E-mail: abastosg@terra.com.br

Recebido em outubro/2007
Aceito em dezembro/2007

 

 

NOTAS

1 O desenvolvimento do presente artigo retoma e atualiza dois casos clínicos apresentados no LEPSI em 2006
2 Esta pesquisa foi realizada com o apoio da FAPERJ
3 Em 2004, os dois serviços para atendimento à infância e à adolescência do Instituto Philippe Pinel (NAICAP e COIJ) integraram-se, constituindo um novo serviço, sob nova denominação: Serviço de Atenção Intensiva Infanto Juvenil (SAIIJ)
4 Condutas definidas como manifestações de comportamento típicas de portadores de síndromes e quadros psicológicos, neurológicos ou psiquiátricos que ocasionam atrasos no desenvolvimento e prejuízos no relacionamento social
5 êxtimo: neologismo criado por Lacan, para designar uma exterioridade interna
* Psicanalista, membro da Escola Brasileira de Psicanálise, mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
** Psicanalista, docente do Programa em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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