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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.24 no.3 São Paulo set./dez. 2019

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v24i3p510-512 

10.11606/issn.1981-1624.v24i3p510-512

RESENHA

 

Conhecimento e desejo de saber: de Piaget a Lacan

 

 

Fernanda ArantesI

IPsicanalista, doutoranda junto à Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, E-mail: fe.arantes@uol.com.br

 

 

Conhecimento e desejo de saber: de Piaget a Lacan Anacleto, J. M. B. São Paulo, SP: Instituto Langage, 2019, 208 p.

E conhecida a afirmação de Leandro de Lajonquière resultado de sua pesquisa de doutoramento, qual seja "o pensamento é constituído pela dupla conhecimento/saber, em cujo seio impera a indeterminação, articula-se no interior do campo da palavra e da linguagem sujeito à operação do recalcamento psíquico" (Lajonquière, 2013, p.11). Essa tese teve o mérito de recolocar a partir de coordenadas epistemológicas estruturalistas o clássico debate inteligência / afetividade que parasita toda psicologia do desenvolvimento.

No entanto, Julia Maria Borges Anacleto neste livro, resultado de sua tese de doutorado defendida na Universidade de São Paulo, não se limita a simplesmente retomar a tese de Lajonquière, mas a reforça-la de forma singular. Ela a utiliza, sim, como ponto inicial, mas a expande em novas direções, instaurando proposições que podem, sem temor de exagero, serem classificadas como inéditas. Partindo da mesma temática, sobre o limite epistemológico intrínseco à teoria piagetiana da inteligência que deixou a afetividade elidida do campo de pesquisa, Anacleto buscou situar-se num campo distinto, e permitiu-se encontrar e desdobrar raciocínios originais ao refazer o caminho lacaniano no retorno à Freud, para encontrar bases conceituais que considerassem o enunciado da criança como "efeito da dialética intersubjetiva da demanda e do desejo" (p.30).

Portanto, norteada pela pergunta "de que maneira a psicanálise possibilita formular o que está em causa na emergência de novidades epistêmicas no percurso de uma criança que ingressa no mundo dos conhecimentos compartilhados?" (p. 21), Anacleto deu continuidade ao desafio de sustentar a presença da psicanálise no campo da educação de modo contrário ao que a psicologia do desenvolvimento faz ao integrar a teoria psicanalítica como se fosse uma teoria da afetividade a fim complementar o paradigma piagetiano, bem como ao fomentar o discurso ilusório (psico)pedagógico.

No texto de apresentação do livro, o professor Lajonquière não apenas nos adianta as ideias centrais da obra como deixa claro, logo nas primeiras linhas, a enorme relevância de seu conteúdo, tanto por ter rompido com aquilo que denomina de "silêncio inercial", dominante desde a publicação do já clássico De Piaget a Freud (1992), quanto por portar um teor genuinamente singular acerca da problemática presente no discurso das teorias do desenvolvimento.

Já nas primeiras páginas da introdução, a autora deixa claro, de forma sutil, a pertinência da obra: o fato de ela reabrir a questão sobre as possibilidades da psicanálise operar e fertilizar o debate sobre o que está em causa na emergência das novidades epistêmicas. Reforça também que "essa recolocação da questão é fundamental porque, justamente, aquilo que separa a proposta de considerar nos processos de pensamento o que é da ordem do sujeito do desejo e essa outra proposta que incorpora a temática da afetividade dos estudos piagetianos" (p. 25).

Pautando-se nas articulações estabelecidas entre os estudos psicológicos da cognição e da afetividade que são norteados pela tentativa de elaborar justificativas totalizantes, — e que reafirmam o princípio da equilibração majorante da teoria piagetiana — sua proposta é de recorrer ao aparato psicanalítico, mais precisamente ao estruturalismo lacaniano, utilizando-o com o ferramenta para delimitar a linha tênue que separa psicologia e psicanálise, justamente para discutir a problemática da impossibilidade de totalização. Para fazer valer sua proposição, Anacleto afirma que, para Lacan, Freud já estava empenhado em oferecer uma ordem de determinação, ou seja, um lugar na estrutura, àquilo considerado como desviante, sem anulá- lo. "Isso implica sair da lógica da superação para uma ideia de uma estrutura que se sustenta sobre o conflito, sobre a tensão entre forças contrárias" (p. 27).

Em A incorporação da afetividade aos estudos piagetianos, o primeiro capítulo do livro, Anacleto apresenta as características principais de pesquisas específicas em psicologia que buscaram tecer articulações entre a inteligência e a afetividade, esta última à luz da teoria psicanalítica. No tópico da emergência de novidades epistêmicas, a autora traça uma rota que parte do sujeito epistemológico piagetiano, no qual o surgimento de novidades é entendido como a chave das reestruturações orientadas pela equilibração majorante, para chegar ao sujeito psicológico. Esse caminho é engendrado pelo fato de que Piaget concentra seus esforços na construção do conhecimento, ou seja, "daquilo que era central em seus estudos, a saber, a definição das categorias fundamentais do conhecimento, as quais possibilitariam a coerência do pensamento no sentido da adaptação à realidade" (p. 36). Nesse entendimento estrutural a respeito da construção do conhecimento, aquilo que se apresenta como um desvio ou como uma marca singular que escapa às regularidades precisou encontrar lugar na anexação da teoria psicanalítica ou da afetividade, na intenção de complementar o construtivismo epistemológico. Segundo Anacleto: "o afetivo assume a forma de uma nomeação possível para aquilo que particulariza a construção do conhecimento" (p. 39).

Esse primeiro panorama apresentado pela autora expõe que os estudos que buscaram integrar os aspectos cognitivos aos afetivos, acabam reiterando a anulação da diferença. Portanto, para tentar responder ao questionamento inicial, Anacleto afirma ser necessário tomar distância dessa perspetiva e para enveredar pela questão da causalidade.

É dessa maneira que se inicia o segundo capítulo do livro, intitulado A estrutura do significante e o efeito do sujeito, no qual a autora busca explorar o percurso cruzado por Lacan como, nas palavras de Nancy e Lacoue-Labarte, "ciência da letra", fundada sobre a relação entre a teoria da linguagem e a teoria do sujeito. Anacleto faz uma leitura minuciosa da teoria lacaniana focando especificamente na discussão entre estruturalismo e desenvolvimentismo. Ela destaca aquilo que Lacan demarcou como o "o divisor de águas entre a psicanálise e a psicologia: enquanto a realidade objetiva do sujeito, a experiência psicanalítica, sem a pretensão de alcançar essa dita realidade, correria menos o risco de se afastar da experiência da palavra e, portanto, do campo da linguagem, que é seu campo por excelência" (p. 65).

Anacleto abre o terceiro capítulo com uma pergunta que vai nos aproximando dos pontos centrais do livro sobre o que causa a emergência de novidades epistêmicas. Em busca de respostas para tal indagação, a autora faz uma exploração através do caminho teórico freudiano acerca das teorias sexuais infantis e dos determinantes da pulsão de saber, sobretudo o conceito da angústia de castração, considerado por ela como o ponto de virada para que se possa abandonar os princípios da psicologia do desenvolvimento. Para alcançar o entendimento sobre tal causalidade, ela trata de acompanhar os modos como Lacan retomou, de forma estrutural, os impasses freudianos "justamente como foco no lugar estrutural da angústia de castração, desemboca-se na formulação do objeto causa do desejo" (p.89).

Ao pontuar o resgate do caso Hans efetuado por Lacan, Anacleto o torna, com extrema perícia, um ponto fundamental da tomada de distância da perspetiva fatorialista e da aproximação da pulsão de saber como uma possível causalidade estrutural. Indo mais adiante, afirma que: "A experiência do inacessível ao desejo do Outro faz com que a criança se veja impossibilitada de ser a causa tornando essa uma questão que impulsiona ao saber" (p. 144). Entendendo, portanto, que a interrogação impulsiona o desejo de saber: "A impossibilidade de saber é, sim, causa do desejo de saber" (p. 150).

Assim, retomando o debate com a psicologia do desenvolvimento e a tentativa de incluir-se a afetividade, caminhamos para o quarto e último capítulo no qual, após ter atravessado o percurso psicanalítico, a autora visa ampliar o princípio de equilibração majorante, ou seja, retomar o conceito piagetiano apresentado no início e apontar para as operações que buscam anular a diferença. Um dos pontos que merece destaque é o fato de que as teorias do desenvolvimento entendem que as teorias sexuais infantis são tomadas como transitórias, passageiras ou restritas a uma fase do desenvolvimento. Esse entendimento desconsidera a diferença e, portanto, a causa. A autora parte da verificação empírica das respostas — ou melhor, dos enunciados — das crianças, extraídos de situações experimentais propostas por um adulto imbuído de expectativas teóricas, para chegar à noção de causalidade estrutural. Nesse sentido, afirma que: "a conceção lacaniana de estrutura significante nos possibilita ressignificar o lugar daquilo que no paradigma piagetiano toma a forma do princípio normativo da equilibração como operador da emergência de novidades epistêmicas" (p. 176).

É possível dizer que a entrada da psicanálise nesse debate vem explorar uma forma outra do entendimento da emergência das novidades epistêmicas, ao focar na insistência daquilo que é a diferença — entendido também como o sujeito — para extrair disso algo da ordem da linguagem, do inconsciente. Desse modo, entende-se que o desvio está atrelado não a uma desordem que precisaria ser reprogramada, e sim a uma "outra ordem de determinação, pois o significante possui leis que regulam sua articulação em cadeia" (p. 198).

Em suma, Julia Anacleto nos propõe boas leituras.

 

 

Recebido em novembro/2019 – Aceito em dezembro de 2019.

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