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Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.15 no.2 Rio de Janeiro dez. 2012

 

ARTIGOS

 

Visita de avós em unidade de terapia intensiva neonatal: compreendendo a dinâmica familiar1

 

Grandparents' visits in neonatal intensive care units: understanding family dynamics

 

 

Elisa Alvarenga Peixoto*; Natália Vodopives Pfeil Gomes Pereira**; Natalia Borges de Freitas Leite***; Maria de Fátima Junqueira-Marinho****

Instituto Fernandes Figueira, Fiocruz

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A visita dos avós aos bebês internados em Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN) tem sido apontada como um importante instrumento de fortalecimento da rede de apoio e inclusão do bebê na família. Objetivo: Investigar o papel da visita dos avós na compreensão da dinâmica familiar de bebê internado em UTIN. Metodologia: Estudo de Caso de dois recém-nascidos internados em uma UTIN, acompanhados pela equipe de psicologia através de atendimentos individuais com as mães e acompanhamento das avós maternas durante a Visita dos Avós. A coleta de dados se deu a partir dos prontuários clínicos da criança e do livro de registros da psicologia. Considerações finais: Considerando que o nascimento de um bebê traz uma nova configuração das relações intrafamiliares, as visitas dos avós acompanhadas pelo serviço de psicologia lançam luz sobre a dinâmica psíquica da família apontando para aspectos transgeracionais, de modo a orientar intervenções psicológicas.

Palavras-chave: Relações mãe-criança, Relações entre gerações, Unidades de Terapia Intensiva Neonatal, Comportamento de apego.


ABSTRACT

The visits of grandparents to babies admited in Neonatal Intensive Care Units (NICU) is an important instrument both for the network's support strengthening and for the baby's inclusion in the family. The goal of the present research is to investigate the role of the grandparents' visits in the dynamics of families with infants hospitalized in NICU. Two case studies of newborn infants admitted to a NICU who were accompanied by the psychology team through individual appointments with the mothers, and the accompaniment of maternal grandmothers during the Grandparents Visits. The data was collected from the child's clinical records and the psychology's crew records. Whereas a baby's birth brings a new configuration to intrafamilial relations, the grandparents's visits accompanied by psychological support shed light on the dynamic of the family's psyche, revealing transgenerational aspects, and thus guiding psychological interventions.

Keywords: Mother-child relation, intergenerational relations, Neonatal Intensive Care Units, Object Attachment.


 

 

Introdução

Em uma Unidade de Terapia Intensiva Neonatal (UTIN) temos a realidade de internações com recém-nascidos prematuros e/ou com alguma patologia, que necessitam de cuidados complexos, tendo a equipe de saúde a incumbência de acompanhar as famílias nessa situação delicada do início da vida. Os pais se vêem em uma situação de ansiedade com a chegada prematura do bebê ou de diagnósticos de malformações que muitas vezes já foram apontados nas consultas do atendimento pré-natal. No imaginário dos pais, desde antes da concepção e durante a gestação, habita um bebê pensado e imaginado, que traz toda uma representação do casal em relação a ele. Nesse bebê projetam as heranças e características físicas, comportamentais ou de temperamento da mãe ou do pai, de modo que enquanto o bebê é gestado biologicamente, ele também é pensado e formado como indivíduo e sujeito do desejo. A partir do momento que o bebê nasce, se torna real com todas suas idiossincrasias, trazendo aquilo que lhe é próprio da sua existência. Assim, o bebê imaginado da gestação pode se apresentar muitas vezes distante do bebê real, levando os pais a intensos sentimentos ambivalentes em relação a ele, isto é, amam, mas também rejeitam o filho (Lebovici, 1987).

A vivência da maternidade na UTIN se distancia da maternidade idealizada, pelas interferências do ambiente na relação mãe - bebê e pela necessidade de um cuidado complexo. Tais aspectos podem ser fator de distanciamento entre a mãe e o filho, gerando ansiedades e inseguranças.

Desta forma, a internação do bebê implica uma separação entre este e sua mãe, impondo que todos se submetam à rotina do hospital (incluindo ruídos, iluminação inadequada, pessoas estranhas), intervenções médicas e privação do convívio integral com os pais e família. O impacto causado pelas dificuldades que a internação da criança traz é sentido pelos pais e todo o núcleo familiar, solicitando um trabalho de apoio (Druon, 1999).

O nascimento de um filho é um momento marcante na vida do casal exigindo reestruturações e readaptações no seio familiar. Essa fase é o início da construção de uma nova relação onde acontecem transformações de papéis: a mulher, até então filha, se vê no papel de mãe e o homem sendo filho, no papel de pai. Essa nova configuração traz uma herança das referências das figuras materna e paterna como ponto de partida para esse novo lugar de pai e mãe. Winnicott nos fala de uma fase inicial onde a mãe é o bebê e o bebê é ela, pois, tendo ela sido um bebê, traz consigo as lembranças de alguém que cuidou dela, neste caso, a avó (Winnicott, 1988). Essa identificação com o bebê é um processo natural para a elaboração desse novo papel e extrai da própria vivência passada o material para viver a experiência presente de ser mãe.

De acordo com a teoria psicanalítica pode-se dizer que já durante a gravidez a mulher vivencia uma enorme sensação de completude. "A criança faz de sua mãe uma mulher plena, uma mulher preenchida (...) Neste estágio, a criança não é ainda mais do que parte do corpo de sua mãe" diz Serge André (1986, p.193). Portanto, é no momento em que começa a perceber os movimentos de seu bebê que, em geral, a mulher se sente efetivamente grávida e experimenta concretamente o impacto narcísico de estar gerando uma vida (Junqueira-Marinho & Marinho, 2008).

Nos casos em que alguma malformação é identificada no feto durante a gestação, a mulher, que se encontrava tomada pelo sentimento de plenitude, relacionando-se com um filho imaginário, defronta-se, subitamente, com um filho real e imperfeito. O próprio Serge André (1986, p.193) nos lembra de que, mesmo nos casos onde não há problemas com o feto, "é freqüente a manifestação de uma discordância, na mãe, entre o lugar e a função que a criança ocupava em sua fantasia, durante a gravidez, como criança imaginária, e aqueles que tende a assumir enquanto criança real". Nos casos de malformações, rompe-se bruscamente não só a fusão paradisíaca imaginada, mas também a ilusão da completude narcísica, e a mulher, arremessada no extremo oposto, é invadida por sentimentos auto-depreciativos e de baixa auto-estima, não só quanto à sua capacidade de ser mãe mas também quanto à sua feminilidade. Zalcberg (2003, p. 68) chama a atenção para o fato de que "uma mulher espera muitas vezes confortar sua feminilidade na maternidade. Ela pode até crer que o que lhe foi recusado como mulher poderia lhe ser compensado enquanto mãe". Por isso que, diante da malformação de seu feto, ela terá de se defrontar com a questão que acreditava resolvida (Junqueira-Marinho & Marinho, 2008).

Ora, diante de seu bebê recém nascido, uma mãe, em geral, é capaz de regredir a tal ponto que lhe seja possível identificar-se com seu bebê e, colocando-se no lugar dele, "adivinhar" imediatamente o que ele sente (Winnicott, 1988). O conceito de preocupação materna primária se refere a este estado de sensibilidade exacerbada por uma identificação da mãe com o desamparo do bebê, permitindo que ela seja capaz de se colocar no lugar dele. Esta fase, que parece patológica, apesar de saudável e natural, se inicia no final da gravidez e se prolonga até algumas semanas após o nascimento da criança. No texto "O ambiente saudável na infância", Winnicott (1990) explica que as mães sabem de forma extremamente sensível quais são os sentimentos de seu bebê, pois, temporariamente, elas se encontram em sintonia com eles, indo ao encontro do potencial do bebê, de acordo com a fase do desenvolvimento em que ele se encontra. Esta fase é influenciada pelas lembranças que a mãe tem do bebê que ela foi um dia e pelas recordações de quem cuidou dela, podendo levá-la a tornar-se mais ou menos segura em exercer a sua maternidade.

O cuidado médico ao bebê de UTIN pode interferir neste processo desenvolvendo na mãe uma preocupação médico primária onde ela pode apresentar uma dificuldade em se aproximar do filho e passa a observar prioritariamente os parâmetros, a evolução clínica da saúde do bebê e os cuidados realizados pela equipe (Agman, Druon & Frichet, 1999).

Winnicott (1988) descreve as mães como sendo especialistas em cuidar do seu filho, capacidade esta que deve ser valorizada pela equipe de saúde, rompendo com a hierarquia de um conhecimento dos especialistas superior ao da mãe. Ele avança mais, colocando que a interferência de outra pessoa nesta capacidade da mãe de cuidar do seu bebê pode dificultar a comunicação entre ambos, citando como exemplo o profissional de saúde. Para este autor, este deve interferir o menos possível nessa relação.

Isso remete imediatamente a uma internação em UTIN. A necessidade de um cuidado complexo ao bebê por meio da tecnologia, assim como de uma assistência da equipe de saúde, necessariamente implicadas na internação do bebê podem interferir nesse processo de torna-se mãe. Tal fato pode acabar por gerar inseguranças nos pais quanto a sua capacidade de cuidar do seu filho. Diante deste cenário, é papel da equipe de saúde reconhecer a mãe como a protagonista do cuidado do seu bebê, incluindo os pais e também os avós como parceiros neste trabalho.

A figura dos avós é vista neste contexto como parte do projeto de construção das figuras parentais, e sua entrada no núcleo familiar (tríade mãe-pai-bebê) pode trazer questões que muitas vezes ultrapassam a ordem manifesta das relações que ali se apresentam. Desde a gestação, o bebê é receptor dos desejos da mãe e também emissor de desejos, estabelecendo uma intercumplicidade relacional que vai dele à mãe, e da mãe a ele, se estendendo ao pai e a familiares próximos (Dolto, 1988). O que ocorra que perturbe essas relações simbólicas vai, de alguma forma, marcar a relação mãe-bebê. Desse modo, os avós encontram-se imbricados nessa trama psíquica desde antes o nascimento da criança.

Tendo em vista a pertinência dos avós na configuração das relações estabelecidas quando do nascimento da criança, a visita dos avós aos bebês internados em UTIN é uma prática que vem se dando em unidades de saúde, e tem se mostrado um importante instrumento de fortalecimento da rede de apoio e inclusão do bebê na família. Tanto que ela é uma prática recomendada pelo Ministério da Saúde no que se refere à humanização em UTIN (Brasil, 2011).

O atendimento psicológico durante a visita dos avós lança luz sobre a dinâmica familiar, possibilitando que a equipe tenha uma compreensão ampliada do lugar do recém-nascido na família e os rearranjos em decorrência do seu nascimento. Blackburn e Lowen (1986) em seus artigos "Impact of an infant`s premature birth on the grandparents and parents" e "Grandparents in NICUs" investigam os sentimentos e percepções de pais e avós em relação aos bebês prematuros internados em UTINs. Seus resultados indicam que ambos são tomados por sentimentos intensos nesse período de internação e que os avós podem dar um apoio significativo para os pais e netos. Dessa forma, os autores avaliam que cuidados específicos em relação a essa família se fazem necessários. O estudo mostra a importância de se fazer uma avaliação sistemática dos avós e das famílias para que se colham valiosas informações que vão evidenciar a dinâmica, os recursos e as possibilidades de suporte que os avós têm disponíveis.

Além do suporte e apoio para pais e netos, a visita dos avós traz à tona outro aparato psíquico que pode servir de instrumento para uma melhor compreensão e orientação dos atendimentos psicológicos a essas famílias: a transmissão psíquica geracional (Golse, 2003).

A transmissão psíquica geracional fala de costumes, atitudes, olhares e impressões sobre o bebê que são passados de geração em geração, de forma direta ou velada. Ao entrar em contato com algumas gerações de uma mesma família, como no caso da visita dos avós, é possível observar atitudes e impressões sobre o bebê que nem sempre são originalmente das mães, e sim de seus acenstrais. (Golse, 2003).

Sendo a visita dos avós um marco importante para além do apoio aos pais nesse momento familiar sensível, este trabalho tem como objetivo apresentar e discutir dois casos clínicos onde o olhar e a intervenção psicológica puderam intervir nas relações mãe, filha e neta de modo a promover mudanças na delimitação de papéis e, por conseguinte, na reestruturação e fortalecimento dos vínculos familiares.

 

Metodologia

O estudo foi desenvolvido sob a perspectiva do Estudo de Caso em pesquisa qualitativa. Este método consiste em um conjunto de técnicas que descrevem significados e remetem a uma visão interpretativa das observações, levando à descoberta das explicações subjacentes e aos modos de inter-relação. A palavra é a base da investigação qualitativa, sendo o foco a experiência, de modo que o estudo centra-se no fenômeno subjetivo (Guimarães, Martins & Guimarães, 2004).

Foram realizados dois estudos de caso de recém-nascidos do sexo feminino, hospitalizados em UTIN de uma unidade de saúde pública de referência em risco fetal. Um deles nascido com 38 semanas e 4010g, diagnosticado com uma hérnia diafragmática, ainda durante o pré-natal, internado durante quatro meses. O outro, um recém-nascido prematuro de 31 semanas, 1500g, internado por oito meses. Ambas as famílias foram acompanhadas pela equipe de psicologia através de atendimentos individuais com as mães e acompanhamento das avós maternas durante a Visita dos Avós. A coleta de dados se deu a partir dos prontuários clínicos da criança e do livro de registros da psicologia.

 

Relato dos Casos

Caso 1

Roberta, 22 anos, costureira, internou-se na enfermaria de gestantes no oitavo mês de gestação, em função de um diagnóstico fetal de hérnia diafragmática congênita, realizado durante o pré-natal. Hérnia diafragmática congênita é uma malformação do músculo diafragma, a qual permite que o conteúdo da cavidade abdominal passe para o tórax podendo tornar os pulmões hipoplásicos (pequenos). Isto pode levar à insuficiência respiratória e hipertensão pulmonar (Nelson, 1997). Maria nasceu a termo e logo em seguida passou por uma cirurgia para corrigir a hérnia diafragmática, tendo ficado internada durante cinco meses na UTIN. Roberta acompanhava a sua filha diariamente e a avó materna visitava a neta semanalmente nos horários de visita.

Nos primeiros atendimentos de Roberta percebemos que ela estava insegura e ansiosa, pois passava por um processo de separação do marido, ao mesmo tempo em que sua filha corria risco de vida. Durante meses Maria foi alimentada por sonda nasogástrica e foi submetida a diversas intervenções rotineiramente. Nos atendimentos de Roberta, esta relatava se sentir rejeitada pela filha, que não respondia aos estímulos de amamentação, reforçando seu sentimento de incapacidade de maternar. Além disso, tal fato fazia com que a mãe se sentisse ainda mais insegura, ansiosa e rejeitada. Maria, por não conseguir se alimentar por via oral, teve que ser submetida a uma gastrostomia.

Durante a visita de avós, percebemos que a avó materna, Eliane, tinha dificuldade em lidar com o choro de Maria, se retirando da UTIN assim que ela começava a chorar e retornando somente quando tinha certeza de que havia parado. Além disso, de acordo com o relato de Roberta, quando ligava para a mãe, a primeira pergunta que Eliane fazia era: "Maria está chorando?". Desse modo, a equipe de psicologia percebeu a influência deste comportamento em Roberta. A pergunta que nos acompanhou era: "O que é tão insuportável para esta avó no choro de Maria?" No atendimento à avó, ela desabafou: "Eu não aguento mais vê-la sofrer, ela já sofre muito. Não quero mais vê-la chorar" (sic).

Ao perguntar a Eliane como era a sua filha Roberta quando bebê, ela relatou que esta chorava muito, pois nasceu prematura e ficou por um longo período internada. Além disso, durante a primeira infância teve uma diarréia crônica e por conta disso não engordava, ficando desnutrida e internada por longos períodos. Ela disse: "Roberta não podia nem ver um jaleco branco que começava a chorar, aqueles tempos foram muito difíceis para mim" (sic).

Durante as visitas, Eliane não conseguia reconhecer Roberta no papel de mãe, tinha atitudes depreciativas em relação a ela, criticando-a na sua forma de cuidar de Maria.

A partir dos atendimentos com a avó, percebemos o quanto ela estava com dificuldade de diferenciar a sua própria vivência materna da experiência de sua filha, vendo tanto Maria como Roberta como bebês frágeis e doentes. Nesse sentido, ela não conseguia atuar como facilitadora na construção da relação mãe-filha. De fato, ao não atribuir à Roberta o lugar de mãe, Eliane contribuía para torná-la ainda mais insegura. Para Roberta, era necessário que sua própria mãe a legitimasse como mãe de Maria.

O atendimento psicológico favoreceu que Eliane descolasse a imagem do bebê doente de sua filha. Assim, ela pode perceber que a incapacidade como mãe que atribuía a Roberta era produto de sua própria fragilidade, justamente por reviver sua ferida narcísica como mãe. Também pode ver que uma de suas funções como avó era a de encorajar sua filha a viver a sua maternidade.

No que tange a Roberta, as intervenções psicológicas objetivaram tanto fortalecer sua capacidade de maternar, apontando para ela que a construção do vínculo é um processo, como ampliar o olhar materno para além da doença.

Caso 2

Tatiana, 14 anos, estudante, teve sua filha Marcela internada logo após o nascimento em função da prematuridade e de uma hipoplasia pulmonar. A hipoplasia pulmonar envolve uma diminuição do número de alvéolos e de gerações de vias aéreas, ocorrendo quase sempre secundariamente a outros distúrbios intra-uterinos que produzem danos ao desenvolvimento normal do pulmão (Nelson, 1997). Tendo nascido com 1500g, durante os 8 meses em que permaneceu internada, Marcela apresentou dificuldades respiratórias e recebeu alta com auxílio respiratório.

Nosso primeiro contato com Marcela e sua família foi através de sua avó, Paula. Ela observava a neta na incubadora quando foi abordada pela psicóloga da nossa equipe. Ao ser confundida com Tatiana, ela se apresentou como avó de Marcela. De acordo com esta, sua filha estava fazendo repouso para se recuperar do parto, que havia sido uma cesariana. Como Tatiana era menor de idade, em caso de sua ausência ou impossibilidade de comparecimento ao hospital, sua mãe, como responsável legal por ela, tinha o direito de visitar a neta. Paula estava de licença médica do trabalho, o que fazia com que tivesse disponibilidade para visitar a neta.

No dia do aniversário de 15 anos de Tatiana, Marcela precisou ser entubada novamente. Esse dia foi o nosso primeiro contato com Tatiana. Ela estava próxima à incubadora da sua filha, observando-a, enquanto Paula tomava a frente da situação clínica da neta. Quando perguntada sobre como se sentia em relação à piora de Marcela, Tatiana se esquivava das perguntas e deixava que sua mãe respondesse por ela. Tatiana demonstrava claramente uma dificuldade em se aproximar do bebê, deixando para Paula todos os cuidados. Perguntamos à avó quantos filhos ela tinha, foi então que esta respondeu que tinha duas, Tatiana e Marcela, que agora seria como se fosse sua filha também. Enfatizamos para ela que Marcela era sua neta, filha de Tatiana. Entretanto, com essa fala, Paula nos mostrou qual lugar Marcela ocupava em sua vida e na da sua família.

A partir dessa fala por parte da avó, da dificuldade observada na mãe de exercer esse papel efetivamente e do fato objetivo que Tatiana já se encontrava em condições físicas de acompanhar Marcela na UTIN, a equipe de psicologia optou por discutir com a família a necessidade da presença mais constante da mãe e da avó vir como avó, ou seja, nas visitas determinadas para tal. A partir dos atendimentos realizados com mãe e avó, foi explicado a Paula que, mesmo sendo a responsável legal por Marcela, suas visitas seriam restringidas ao horário semanal estipulado pela UTIN para Visita dos Avós, já que Tatiana, como mãe, tinha o direito de permanecer com a criança. A partir dessa delimitação de tempo de visita, vários aspectos importantes foram revelados e trabalhados na dinâmica familiar. Paula resistiu mostrando indignação em relação às limitações impostas. Porém, foi a partir desse momento que Tatiana ganhou espaço para assumir seu papel de mãe de Marcela. Através dos atendimentos psicológicos, mas também com o auxílio da equipe de saúde da unidade, ela se aproximou de sua filha e passou a se interessar, a cuidar e a entender os procedimentos pelos quais ela passava. Criou vínculos e foi acolhida pela equipe. A visita dos avós serviu então para delimitar o espaço dessa avó com comportamento invasivo e, de certa forma, dominador sobre a filha e a neta. Paula foi incluída verdadeiramente como avó de Marcela. A partir de então, a mãe de Paula, Fernanda, bisavó de Marcela passou a vir em todas as visitas junto com Paula. Tinhamos então três gerações frequentando a UTIN nos dias de Visita dos Avós. Cabe ressaltar que todas três foram mães adolescentes. Tatiana contou que Marcela era fruto de um relacionamento com um rapaz que ela "ficava" (sic). Ele não sabia da gravidez, assim como ela não queria revelar sua identidade. Também escondeu a gravidez de sua mãe até o dia em que se sentiu mal e precisou de cuidados médicos.

Ao longo dos atendimentos e das visitas das avós a Marcela, observamos que essa família era predominantemente feminina, os homens tinham papel secundário. A presença masculina servia apenas para reprodução, posto que, depois disso, não havia mais participação nenhuma masculina na vida dessas mulheres. Tatiana pretendia cuidar da sua filha sozinha assim como sua mãe e sua avó fizeram. Quando elas se referiam a alguma figura masculina era somente para depreciá-la ou criticá-la. A única figura masculina que apareceu durante todo o tempo de internação de Marcela foi Samuel, seu tataravô, pai de sua bisavó materna, Fernanda. Samuel era um senhor de idade, que se encontrava atrelado a essa família matriarcal. Sua opinião não era validada por nenhuma das mulheres de sua família.

 

Discussão Teórica

O amor dos pais aos filhos está relacionado a uma revivescência narcísica (Freud,1914/2004), um amor que, nesse sentido, volta-se muito mais para si mesmo do que para os filhos propriamente ditos. A impossibilidade de os filhos realizarem os objetivos parentais de natureza narcisista imprime consequências nas relações pais e filhos, pois a marca narcísica na parentalidade delimita o próprio sofrimento pela vivência primitiva da perda do objeto primário dos pais (Veludo & Viana, 2012).

No contexto de uma internação, como demonstra os relatos de caso acima, isto é, nos casos em que o bebê é frágil e demanda um cuidado complexo, há a possibilidade da revivescência de um narcisismo às avessas (Morici, 2008). Nestas situações o que ocorre é uma projeção por parte dos pais das suas falhas, possíveis problemas de saúde e associações entre o quadro de seus filhos com algum outro problema de saúde que tenham sofrido quando bebês ou crianças. Eles não vêem o filho em sua alteridade, mas como extensão do próprio corpo. Essa atitude difere do narcisismo em Freud (1914/2004), no qual os pais projetam em seus filhos desejos e projetos que eles próprios não realizaram, mas esperam que seus filhos realizem, tentando afastá-los de qualquer perigo.

Na visita dos avós, pudemos perceber que a internação prolongada de Maria provocou em Eliane, a avó, uma revivescência das suas falhas como mãe, um retorno ao narcisismo às avessas, projetando em sua filha o sentimento de impotência que vivenciou em sua própria maternidade. Observamos que, na história de Eliane e Roberta, a experiência da internação de um filho se repetiu, provocando revivescências de ansiedade e da fragilidade simbólica das crianças desta família, que traziam a ameaça do adoecimento a qualquer momento.

Ao pensarmos sobre a repetição de experiências na família, mãe e filho doentes, nos deparamos com os conceitos Transmissão Transgeracional e Transmissão Intergeracional, distinção que devemos a N. Abraham, M. Torok e S. Tisseron (Golse, 2003). Zornig (2009) explicou que a transmissão transgeracional é aquela que se realiza entre gerações que muitas vezes não chegam a ter contato direto com os bebês, como as avós, bisavós e bebês, sendo uma transmissão ligada em palavras, pelo efeito do discurso e contato não direto. A transmissão intergeracional ocorre pelo contato direto, sendo uma atuação mútua entre os pais e os filhos.

Podemos observar a transmissão psíquica intergeracional em ambos os casos. No caso de Roberta, há a repetição do lugar do "bebê doente", primeiramente ocupado por ela e, agora, ocupado por sua filha. Roberta com sua filha Maria, adoecida tal qual ela própria foi, teve que enfrentar sua sensação de fragilidade e o sentimento de rejeição, que só puderam ser processados a partir da fala de Eliane, sua própria mãe, sobre a sua vivência de bebê doente com diversas internações. As intervenções psicológicas realizadas com Roberta foram no sentido de diferencia-la de sua filha doente, de modo que pudesse não mais ser o bebê adoecido de sua mãe, mas sim uma mãe capaz de cuidar de sua filha.

Já no caso de Tatiana, repete-se a gravidez precoce, a ausência da figura masculina, além da tomada de responsabilidade das avós por essas netas. Tatiana (mãe do bebê) era vista pela avó Fernanda como filha, já que sua mãe a havia tido também adolescente. E agora, Paula repetia o padrão tentando colocar Marcela também no lugar de filha. Tatiana, sendo mãe tão precocemente de um bebê que necessitava de cuidados intensivos, precisou elaborar questões e se descolar do lugar que lhe fora previamente determinado em termos transgeracionais para ocupar seu lugar de mãe. Cabe ressaltar que a situação de internação, por toda a sua complexidade, por si mesma já rompia com o padrão de dependência que ela contava. Desse modo, houve a necessidade de uma reestruturação dos papéis familiares.

Entendemos que o nascimento de uma criança influencia a dinâmica familiar, podendo gerar crises e conflitos. Nas condições de internação do bebê, tais questões acabam sendo acentuadas, o que pode gerar influências no desenvolvimento do indivíduo e na relação da díade mãe/bebê. A teoria de Winnicott, nos lança luz sobre a importância que o ambiente facilitador tem no desenvolvimento infantil. Junqueira (1998) explica que este autor prioriza a questão da dependência do lactente em relação à figura materna, chegando a dizer que não pode haver um bebê sem sua mãe (ou substituto). Isto significa que um ser humano se constitui através do encontro com outro ser humano. O ego materno é necessário ao bebê para fortalecê-lo, de forma que lactente e cuidado materno chegam a formar uma só unidade. Temos então a importância do ambiente – um ambiente facilitador – no desenvolvimento do indivíduo, que nasce num estado total de dependência e desamparo necessitando de um ambiente favorável à sua sobrevivência (Junqueira, 1998).

Logo, percebemos que o ambiente hospitalar se distancia do ambiente que imaginamos adequado para que a díade mãe/bebê possa viver a relação com intimidade. Pelo contrário, a rotina do hospital impõe tanto à mãe como ao bebê diversas intrusões que podem prejudicar esta relação tais como: a incubadora, a iluminação da sala de UTIN, o ruído dos profissionais e dos aparelhos, o excesso de manipulações do bebê, alta rotatividade da equipe pelo regime de plantão, entre outras. Nessa perspectiva, compreendemos que a experiência da internação pode ser uma experiência traumática para o bebê.

Segundo Winnicott (1967/1994), o trauma seria "um impacto provindo do meio ambiente e da reação do indivíduo a ele, que ocorre anteriormente ao desenvolvimento, por esse indivíduo, de mecanismos que tornem a experiência predizível" (1967/1994, p. 155). O resultado dessa intrusão (impingement) apareceria numa distorção do desenvolvimento, em função da sensação do indivíduo, devido à experiência traumática, de ter a linha contínua de sua existência rompida pela sua própria reação automática à falha ambiental.

Em ambos os casos, a internação dos bebês pode ser compreendida como um trauma, tanto para os próprios quanto para suas mães. Isto porque, seguindo o conceito winnicottiano, os bebês encontravam-se em um estágio de sua vida onde ainda não tinham mecanismos psíquicos capazes de lhes tornar a experiência de internação, com todas as suas intrusões, predizível. No caso das mães, elas também pareciam não ter esses mecanismos, particularmente porque, inicialmente, não receberam de suas próprias mães o suporte necessário para tal. Foi preciso que as avós assumissem o lugar de mãe suficientemente boa em relação às suas filhas para que estas pudessem, através de um processo identificatório, se colocarem como tal perante seus bebês.

Além disso, a dificuldade que Roberta teve em amamentar poderia estar relacionada com as intrusões do ambiente vividas por mãe e filha durante a internação. Maria, por ser submetida a inúmeras intervenções (sondas, tubos, cirurgias...) na zona oral desde seu nascimento, pode ter associado as experiências orais a experiências desconfortáveis, repelindo qualquer estímulo oral. Roberta, por sua vez, se sentiu rejeitada e irritada com a situação, pois a alta hospitalar dependia da amamentação. Ao longo dos atendimentos, Roberta pode perceber as suas dificuldades e as da filha e o quanto a vivência da internação e o ambiente hospitalar interferiam nesse processo. No outro caso, Tatiana tendo que acompanhar a filha na UTIN sem a ajuda da mãe, precisou assumir seu lugar e lançar mão de recursos próprios para a construção da sua relação com a filha.

 

Considerações Finais

A "Visita dos Avós" se configura como um importante instrumento nas práticas de humanização, no que diz respeito à internação de recém-nascidos em Unidades de Terapia Intensiva Neonatais. Uma vez implantada como rotina nas unidades, ela não somente se apresenta como uma forma privilegiada de acolhimento à família do bebê, como também de inclusão deste no seio da família.

Sabendo-se o quanto as famílias são afetadas pela internação do recém-nascido, a inclusão dos avós na UTIN é também uma oportunidade para que equipe de saúde e família se aproximem, fortalecendo os vínculos de confiança. Essa aproximação entre ambiente hospitalar e familiar acaba por promover e facilitar o estabelecimento das relações em um contexto de muita ansiedade e sofrimento.

Outras duas questões merecem atenção na relevância da "Visita dos Avós" dentro das unidades neonatais: o fato de fortalecer a rede de apoio dos pais e o fato de que os avós são, de um modo geral, os principais cuidadores dos pais do bebê. Isto é, eles cuidam daqueles que cuidam. Como os pais, particularmente a mãe, se encontram em um momento de muita fragilidade, angústia e medo, a presença de seus próprios pais funciona como um importante suporte para que eles possam atravessar essa etapa.

Como já discutido, a mãe regride a sua própria condição quando bebê, tendo que lidar com a situação de ser mãe de um bebê, estando ela mesma regredida a esse estado. Assim, sua mãe (avó do recém-nascido) assume um papel fundamental, pois é quem pode cuidar da filha/bebê de modo que esta possa, sendo cuidada pela mãe mas também identificando-se com ela, cuidar de seu filho recém-nascido. Vale destacar que, todos esses conflitos comuns à maternidade, podem ser exarcerbados quando o nascimento é seguido de uma internação da criança em uma UTIN.

Outro aspecto a ser observado encontra-se no fato de que, considerando o nascimento de um bebê como algo que traz uma nova configuração para as relações intrafamiliares, a "Visita dos Avós" acompanhada pelo serviço de psicologia lança luz sobre a dinâmica psíquica da família apontando para aspectos transgeracionais. Essa compreensão mais ampla obtida através do encontro com os avós tanto pode orientar as intervenções psicológicas quanto favorecer o reposicionamento dos familiares frente aos papéis ocupados. Papéis esses que, com o nascimento do bebê, precisam sofrer novos arranjos. Desta forma, o trabalho do psicólogo pode contribuir na direção da prevenção e saúde na gênese da nova família.

Nesse sentido, a "Visita dos Avós" possibilita ao psicólogo identificar a dinâmica familiar, permitindo que o mesmo tenha uma visão ampliada da relação mãe-bebê com todas as interrelações envolvidas, de tal forma que possa traçar um plano de intervenção terapêutica. Isto reforça a importância da realização/implantação de visita dos avós nas UTINs.

 

Referências

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Endereço para correspondência
Nayara Cristina Cavalheiro
E-mail: s2arayans2@gmail.com

 

 

1O presente artigo é oriundo do Trabalho de Conclusão do Curso de Capacitação Profissional "O Trabalho do Psicólogo em Neonatologia", Instituto Fernandes Figueira / Fiocruz, concluído em outubro de 2012.
* Psicóloga, PUC/Rio; Curso de Aperfeiçomento em Psicologia Médica e Psicossomática, Instituto Fernandes Figueira / Fiocruz; Curso de Capacitação Profissional: O Trabalho do Psicólogo em Neonatologia, Instituto Fernandes Figueira / Fiocruz.
** Psicóloga, UFRJ; Residente Multidisciplinar em crianças e adolescentes cronicamente adoecidos, Instituto Fernandes Figueira / Fiocruz.
*** Psicóloga, UFF; Especialista em Psicologia Clínica com Crianças PUC/Rio; Curso de Capacitação Profissional: O Trabalho do Psicólogo em Neonatologia, Instituto Fernandes Figueira / Fiocruz; cursando Especialização em Psicologia da Saúde, PUC/Rio.
**** Psicóloga, PUC/Rio; Psicanalista CPRJ; Pesquisadora do Instituto Fernandes Figueira / Fiocruz; Mestre em Psicologia Clínica, PUC/Rio; Doutora em Saúde da Criança e da Mulher, Instituto Fernandes Figueira / Fiocruz.