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Revista da SBPH
versão impressa ISSN 1516-0858
Rev. SBPH vol.18 no.2 Rio de Janeiro dez. 2015
ARTIGOS
Síndrome do cromossomo X frágil: uma possível articulação entre psicanálise e genética médica?
Fragile X syndrome: a possible articulation between psychoanalysis and genetics medicine?
Andréa Sousa Varela1, I; Manoel Luce Madeira2, II; Maria Livia Tourinho Moretto3, III
IUniversité Paris-Diderot Sorbonne Paris-Cité
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul
IIIUniversidade de São Paulo
RESUMO
Pretendendo-se acessível tanto a psicólogos e psicanalistas, quanto a médicos, o artigo trabalha a articulação entre psicanálise e genética médica a partir da síndrome do cromossomo X frágil (SXF). Se ambos campos de saber partem de referências epistemológicas aparentemente conflitantes, pensamos aqui diálogos possíveis no que tange à pesquisa e ao tratamento. Partimos da noção da forclusão do sujeito operada por determinados estudos sobre o SXF, indicando, em seguida, como a noção psicanalítica de sujeito implica as trocas com o Outro. Nesse contexto, a epigenética surge como via de tessitura entre as disciplinas, ao pensar a influência do ambiente sobre os genes. Ao entendermos que as trocas com o Outro são componente primordial da noção de ambiente, pensamos possibilidades de inclusão do sujeito no discurso da genética médica, sugerindo, assim, suas articulações potenciais com a psicanálise.
Palavras-chave: síndrome do cromossomo X frágil; psicanálise; epigenética; sujeito; genética médica.
ABSTRACT
This article deals with the links between psychoanalysis and genetic medicine in regard to the fragile X syndrome (FXS), and it aims to be accessible to psychologists, psychoanalysts and doctors. If both fields are based on apparently conflictant epistemological references, we think here of possible dialogues with respect to research and treatment. We use the notion of subject's forclusion powered by certain studies on SFX, indicating, then, how the psychoanalytical notion of subject implies exchanges with the Other. In this context, epigenetics appears as a possibility of weaving between these disciplines, as it considers the influence of environment on genes. As we understand that exchanges with the Other are a primary component of environmental notion, we think of the possibilities for the inclusion of the subject in the genetic medicine's discourse, suggesting, so, its potential links with psychoanalysis.
Keywords: fragile X syndrome; psychoanalysis; epigenetics; subject; genetic medicine.
Uma articulação possível?
"Não se é melhor médico, por ser mau psicanalista; [...] e não se é mais instruído em psicanálise por ser ignorante em medicina", dirá Jacques Lacan na Introdução ao comentário de Jean Hyppolite, nos anos cinquenta, quando estabelecia as bases de seu ensino (1954/1998, p.372). Embora Lacan tenha se tornado um crítico manifesto dos caminhos trilhados pela medicina de seu tempo, essa simples indicação pode nos servir como adágio epistemológico, pois nutrir divergências entre psicanálise e medicina empobrece a terapêutica de ambas disciplinas. Na medicina, tal divergência apresenta-se, no mais das vezes, por uma construção do saber que alija a subjetividade do seu objeto de estudo e intervenção. A psicanálise nessas construções pode ser diretamente implicada, uma vez que a medicina se apropria de noções que historicamente compõem seu escopo de pesquisa – movimento que evidenciamos pelo estudo da Síndrome do Cromossomo X Frágil (SXF).
Por outro lado, a psicanálise também produz pesquisas que têm por único princípio a confrontação de práticas médicas. De fato, um determinado organicismo da medicina se situa de encontro à teoria psicanalítica – ressaltaremos aqui o conceito de sujeito, que é necessariamente atravessado pela linguagem e pelas trocas com o Outro. Porém, aqueles que simplesmente acusam o estabelecimento paradigmático de uma saúde totalitária (ver Gori & Del Volgo, 2005), podem incorrer em discurso que, por seu turno, afasta a clínica psicanalítica de qualquer articulação com a medicina. O desafio que propomos é o de indicar tessituras possíveis entre as práticas médicas e psicanalíticas pela via da Síndrome do X Frágil e da clínica infantil.
De fato, a relação histórica entre psicanálise e medicina é bastante conhecida. A psicanálise nasce no encontro entre Sigmund Freud e Jean-Martin Charcot, em 1885, no qual a clínica será "encarnada na e pela histérica" (Assoun, 1997). O corpo da histérica será, pois, estrangeiro às práticas médicas da época, marcando os limites da abordagem puramente anatômica. Em 1893, ano da morte de Charcot, Freud escreve em francês o artigo intitulado Quelques considérations pour une étude comparative des paralysies motrices organiques et hystériques, no qual trabalha a questão das paralisias de projeção, de representação e histérica. Freud afirma que as paralisias de projeção e representação podem ser explicadas somente pela anatomia, mas "que é evidentemente impossível que essa anatomia possa explicar os traços distintivos da paralisia histérica" (1893, p. 10). Freud cita o que Charcot denominava de "lesão puramente dinâmica", ou seja, "uma lesão que não encontra traço no cadáver" (1893, p. 10). Assim, a paralisia histérica seria fruto de lesão do corpo vivo: a frase freudiana "a histérica se comporta como se anatomia não existisse" (1893, p. 11), se tornará um dos jargões psicanalíticos mais repetidos. A conclusão do texto é que "o órgão paralisado está preso em uma associação subconsciente que é munida de grande valor afetivo" (1893, p.13).
A sequência da história nos mostra que o lugar da neurologia na obra de Freud é bastante claro e, ao mesmo tempo, singular. Em seu Projeto para uma psicologia científica (1895/1976), Freud se mostra embrenhado na articulação entre suas concepções neurológicas e a constituição de conceitos fundamentais para a psicanálise – o do recalcamento, sobretudo. Se Freud abandona sua empresa inicial, tal movimento não se dá por descrença teórica, mas por aporias epistemológicas e terapêuticas. Assim, ele escreve a Fliess, em 1898:
Estou longe de pensar que a psicologia flutua nos ares e que não tenha fundamentos orgânicos. Porém, mesmo estando convencido desses fundamentos, mas não os conhecendo nem em teoria, nem na prática terapêutica, me vejo obrigado a me comportar como se apenas os fatores psicológicos existissem (Freud, 1887-1902/2009, p. 235, tradução nossa4).
A neurologia instaura, assim, condição ímpar na obra de Freud, pois ao mesmo tempo que ele não se remete diretamente a ela, sua origem de neurologista parece intimamente implicada na invenção do aparelho psíquico, e, de forma mais ampla, na concepção freudiana de estrutura psíquica. Sabe-se que Freud não deixará de acreditar nas bases biológicas de organização do inconsciente; ele dirá, por exemplo, em Análise terminável e interminável, em 1937, que "para o psiquismo, o biológico tem o verdadeiro papel de pedra fundamental subjacente" (1937/2010, p. 35, tradução nossa5). No entanto, no que concerne as psicoses, Madeira (2015) mostra que a elisão da referência neurológica produz um corte epistemológico primordial operado por Freud na articulação dos sintomas psicóticos com sua causa estrutural e desencadeamento. Ou seja, antes de Freud, a crença em uma determinação puramente orgânica das psicoses, acarretava dificuldades insolúveis à teoria e, principalmente, à clínica: vale lembrar que o tratamento em Kraepelin e Bleuler, contemporâneos de Freud, é mera e essencialmente profilático.
Deste modo, a tentativa de articulação entre psicanálise e medicina constitui certo retorno a Freud. Não exatamente ao neurologista do Projeto que almejava coincidir com precisão sintomas psíquicos a localidades cerebrais, mas ao Freud que reconhece tanto os limites quanto as potencialidades de cada campo de saber. Retorno ao Freud que, em Metapsicologia, sustenta que entre os processos psíquicos e a neuroanatomia existe "um grande vazio que, por enquanto, não pode ser preenchido, e não constitui tarefa da psicologia preenchê-lo" (Freud, 1915/1976, p. 201).
Tal empreitada demanda formas específicas de articulação, e nós elegemos a clínica como lugar de encontro entre as disciplinas. Assim, partindo de dois casos de crianças portadoras da Síndrome do X frágil, escrevemos sobre efeitos da clínica psicanalítica quando esta é convocada a cruzar olhares com a genética médica (Madeira & Varela, no prelo). Desejamos agora distanciar olhares dos casos particulares e estabelecer uma discussão que visa evidenciar as potencialidades da articulação entre as pesquisas sobre a síndrome e a teoria psicanalítica. Com efeito, observamos que os estudos sobre o X frágil se inscrevem a partir de uma concepção da medicina que forclui o sujeito do seu objeto de estudo. Embora esse movimento forclusivo não possa ser generalizado a toda genética médica, tais construções prevalecem claramente nas pesquisas consultadas (ver Varela, 2013), edificando um saber médico que barra qualquer abertura à psicanálise. Esse fechamento não seria problemático se tais estudos não se utilizassem de categorias que concernem os campos de saber psi. Ou seja, quando a genética médica emprega dimensões diagnósticas – como as de autismo, neurose obsessiva, fobia – e identifica sintomas psíquicos, ela parece, paradoxalmente, aventar a possibilidade de interlocução com as disciplinas psi. Tal possibilidade de diálogo constitui, desta forma, o objeto desse artigo.
Apresentação da Síndrome do Cromossomo X Frágil
A partir da realização de pesquisa bibliográfica, Varela (2013) buscou estudar a Síndrome do cromossomo X frágil (SXF) que é apontada como a causa mais frequente da deficiência mental herdada. A partir dos anos oitenta, a SXF começou a ser associada ao autismo (ver Hagerman, 1989), sendo atualmente apontada como sua causa genética mais frequente (ver Wijetunge et al., 2013; Jacquemont et al., 2011; Cordeiro et al., 2011). Segundo Cornish, Levitas e Sudhalter (2007), a SXF afeta 1 a cada 4000 homens e em cada 8000 mulheres. A mutação genética pode ser transmitida tanto pela mãe portadora, quanto pelo pai. Deve-se considerar que a genitora pode transmitir o gene mutado aos seus filhos, independentemente do gênero, enquanto que o pai só transmitirá o cromossomo X geneticamente alterado para a filha. A SXF foi descoberta em 1969 por Herbert Lubs, que mostrou que uma pequena parte do gene FMR1 (fragile X mental retardation 1 gene), presente no cromossomo X, era instável (ver Hogenboom, 2011). A síndrome provoca a multiplicação excessiva do trinucleotídeo CGG (citosina, guanina, guanina) durante a meiose celular do óvulo.
Ainda segundo Cornish et al. (2007), a causa da síndrome estaria ligada à mutação do gene FMR1, que tem como função codificar a proteína FMRP (fragile X mental retardation protein) e transportar as repetições do trinucleotídeo CGG. Vale notar que o gene FMR1 se compõe de repetições do trinucleotídeo CGG. Segundo a literatura médica, humanos normais ("normal human") apresentam de 7 à 55 repetições do trinucleotídeo. O gene mutado causaria a expansão de 200 ou mais repetições do CGG. Os pesquisadores indicam que o aumento das repetições do CGG tem como efeito não um excesso de produção, mas o silenciamento da síntese da proteína FMRP (ver Cohen, Neri e Weksberg, 2002). A falta drástica da proteína FMRP seria, assim, a causa orgânica da SXF. Ela acarretaria reações moleculares que fragilizariam as conexões sinápticas. Nesse sentido, McLennan, Polussa e Tassone (2011) indicam que a proteína FMRP teria como função principal a regulação e transporte do RNA nas sinapses. Assim, sua falta ou inibição se traduziria em uma disfunção da plasticidade sináptica, resultando em diversos impedimentos cognitivos e problemas do comportamento.
Sintomatologia
A SXF nos interessa pois os sintomas a ela atrelados são bastante vastos. Talvez por isso, o exame para diagnóstico da síndrome seja um dos mais frequentemente aplicados a crianças apresentando diferentes quadros clínicos. Em artigo intitulado L'émergence de la parole chez l'enfant à la croisée de la médecine génétique et de la psychanalyse, ressaltamos a realização reincidente do exame em crianças cujas sintomatologias eram assaz diferentes (Madeira & Varela, no prelo). Isso implica, ademais, que, mesmo nos casos em que o diagnóstico não é confirmado, os efeitos do discurso médico sobre as crianças e suas famílias são evidentes. Vale ressaltar que não se trata do discurso do médico em si, mas da construção do saber médico. Assim, mesmo que o neuropediatra da pequena Flora, caso trabalhado no artigo, tenha indicado que o seu "mutismo" não era oriundo da síndrome, os pais da menina estabeleceram, contudo, entre síndrome e mutismo uma intrincada relação de causa e efeito.
Esses movimentos de atribuição de sintomas à síndrome parecem repetir a própria teorização sobre o X frágil – cujas possíveis consequências são facilmente encontradas em meio digital pelos pais. De fato, a literatura especializada indica que a SXF estaria na origem de uma pletora de sintomas ditos comportamentais. Além do retardo mental, encontramos como decorrentes da SXF sintomas como autismo, hiperatividade, transtornos de linguagem, ansiedade social, transtorno obsessivo compulsivo, agressividade, dificuldades de atenção e concentração (ver notadamente Dykens, Hodapp e Leckman, 1994; Hagerman & Hagerman, 2002; Garber, Visootsak e Warren, 2008). Tais sintomas são utilizados desprovidos de referências ao campo psi, de onde se originam. A grande maioria dos artigos não se refere nem mesmo aos manuais psiquiátricos. Ou seja, essas publicações situam como consequência do X frágil uma sintomatologia que seu campo de saber não abarca. É justamente nesse salto entre o mecanismo orgânico e as vastas (e díspares) consequências sintomáticas, que são arroladas sem qualquer embasamento teórico, que tal literatura médica nos parece tornar possível o diálogo com a psicanálise.
Deste modo, a fragilidade da construção do saber de outro campo teórico seria o mote não apenas de confrontação, mas de articulação. Nota-se que o mesmo estudo supracitado coordenado por Dykens (1994), indica que as pesquisas sobre o X frágil que relacionam frequentemente o autismo à síndrome, apresentam significativa margem de erro, justamente pela falta de critérios diferenciais do diagnóstico de autismo.
Tratamento
Segundo a bibliografia consultada, não existe cura genética para a síndrome do cromossomo X frágil. Ressaltamos que os autores privilegiam a sintomatologia da síndrome em relação às considerações possíveis sobre o tratamento. Dentre as raras propostas de tratamento encontradas, observa-se as contribuições de Garberet al. (2008) que recomendam o gerenciamento dos sintomas comportamentais, sugerindo para tal uma intervenção farmacológica. Nesse sentido, os medicamentos mais frequentemente indicados são os estimulantes, bem como os antipsicóticos atípicos, que têm sido receitados para casos onde observa-se comportamentos agressivos, autismo e autoagressão. Destaca-se que Cohen et al. (2002) apontam que tais problemas de comportamento podem ser resolvidos pela via farmacológica, mas sugerem igualmente, para adultos e adolescentes, diversas propostas ditas "educativas", como "socialização, esportes, terapia ocupacional e fonoaudiologia" (2002, p. 157). Ademais, outros estudos como o de Dykens et al., (1994), insistem sobre a pertinência terapêutica das teorias cognitivo-comportamentais (TCC). Por que não a psicanálise?
De fato, em relação à psicanálise, as terapias cognitivo-comportamentais apresentam afinidades onto e epistemológicas privilegiadas com determinados discursos médicos. Porém, tal aproximação não parece suficiente para explicar a ausência de referência à psicanálise, pois são raros os textos que mencionam a TCC como tratamentos possíveis. Aliás, Hagerman et al. (2009) afirmam evitar a recomendação da TCC, pois, segundo estes autores, não há comprovação suficiente da sua eficácia.
Acreditamos que a não inclusão da psicanálise nessas pesquisas se deva não somente à expansão da TCC, nem apenas à oposição da genética à psicanálise, mas também à oposição da psicanálise à genética. Se, por um lado, as ferramentas conceituais da psicanálise parecem incompatíveis com às da genética – e isso pode ser constatado nas pesquisas sobre a SXF –, observa-se que a evolução da genética médica, notadamente a partir da noção de epigenética, parece abrir brechas para possíveis articulações – brechas que a psicanálise hesita em apontar.
Síndrome do X Frágil: a Forclusão do Sujeito
Antes de aventar as possibilidades de interlocução entre os campos de saber, é preciso situar, a partir de uma abertura da psicanálise, o que, nas pesquisas supracitadas, faz obstáculo à interdisciplinaridade. A questão já foi avançada: quando a genética médica atrela diretamente um mecanismo orgânico ao autismo, por exemplo, ela opera uma passagem que forclui a dimensão do sujeito. Nota-se que não negamos as possíveis determinações biológicas do autismo, apenas acreditamos na possível co-incidência de fatores causais do transtorno. Estes podem ser, por assim dizer, orgânicos e/ou ambientais.
Tornemos mais preciso o que entendemos por forclusão do sujeito. O sujeito se constitui no encontro do bebê com o Outro, lugar da linguagem, encontro que estrutura o inconsciente. No processo de aquisição da linguagem, o bebê se aliena inicialmente aos significantes do Outro. A alienação implica a concepção de que "o sujeito recebeu a definição de ser nascido na, constituído por, e ordenado a um campo que lhe é exterior" (Lacan, 1964/1990, p. 204, comentário de Jacques-Alain Miller). Porém, nessa alienação, aparentemente passiva, o bebê é ativo, por permitir-se lançar aos encontros. É justamente esse movimento que parece obstaculizado no autismo, pela dificuldade do bebê em estabelecer trocas com o Outro.
A clínica psicanalítica com recém-nascidos mostra como essas trocas são palpáveis: pela imitação, pelos olhares, pelo balbucio, pelo corpo que se oferece à devoração jubilosa do cuidador. Uma via bastante convincente da pesquisa psicanalítica pensa as dificuldades da criança autista em estabelecer essas trocas como oriunda de fatores que precedem o encontro – notadamente, fatores biológicos –, juntamente com fatores que implicam o encontro em si – que a genética médica poderia distinguir como ambientais (Laznik, 1995/2014). Nesse sentido, os psicanalistas Alfredo Jerusalinsky e Marie-Christine Laznik (2011) sugerem diferentes origens do autismo: orgânicas, não-orgânicas, e, sobretudo, complicações (genéticas e/ou neurológicas) que se adicionam a dificuldades ambientais, como o acesso à dimensão simbólica.
Em suma, Lacan propõe que é a partir dos encontros, da constituição de uma dimensão abstrata da alteridade, que o sujeito se constitui. Dito de outra forma, o sujeito só pode tomar a palavra a partir da linguagem que lhe foi transmitida, linguagem na qual o bebê foi desde sempre imergido. É assim que Lacan poderá dizer que "o Outro é o campo desse vivo [chamado de subjetividade] onde o sujeito tem que aparecer" (Lacan, 1964/1990, p.193-194). No seminário da carta roubada, Lacan afirma que "o entre aspas pode então representar a estrutura do sujeito S do nosso esquema L, simbolizando o sujeito suposto completado pelo Es freudiano, o sujeito da sessão psicanalítica, por exemplo. [...] O fora-das-aspas representará o campo do Outro (A do esquema L)" (Lacan, 1955/1998, p.60). Ou seja, o sujeito seria o entre aspas, a palavra, o ato, a compreensão que emerge da estrutura da linguagem – o sujeito é o inconsciente funcionando.
O essencial aqui é frisar que, para a psicanálise, o sujeito é indissociável dessa relação com Outro. Toda estrutura psíquica – autismo, neurose obsessiva, fobia – e todo o sintoma – timidez, transtornos de linguagem, ansiedade – só pode ser pensado na tessitura que o sujeito estabelece com o Outro. Nota-se que escolhemos aqui sintomas e estruturas mencionados na literatura sobre a SXF. Pensar esses sintomas desarticulados daqueles que cercam o indivíduo é desprezar que, por exemplo, a timidez só existe em relação a alguém e/ou a alguma coisa. O mesmo vale para a fobia. É desprezar que a linguagem se transmite; e que seus ditos transtornos se referem também àqueles que se relacionam com a criança – o que vale igualmente para o tratamento desses transtornos. É negar, de maneira geral, que toda a estrutura psíquica é intrinsicamente tributária das trocas com o Outro, das modalidades de tessitura da alteridade.
Assim, a construção do saber evidenciada pela SXF inclui, de certa forma, uma referência ao sujeito, pois se serve de sintomas e categorias diagnósticas. Tal referência encontra-se, entretanto, desprovida do embasamento epistemológico e histórico que alicerça cada noção. Ou seja, ao mesmo tempo em que a dimensão do sujeito é direta ou indiretamente incluída nos estudos, ela é fundamentalmente excluída, figurando como uma noção esvaziada em seu significado. É nessa tensão entre exclusão-inclusão que podemos situar a forclusão do sujeito: ele é incluído fora.
Adaptamos, pois, em outro contexto, a noção de forclusão que Lacan inventa a partir da Verwerfung de Freud para pensar a estrutura das psicoses. Se a forclusão "trata-se de um processo primordial de exclusão de um dentro primitivo, que não é dentro do corpo, mas aquele de um primeiro corpo de significante" (Lacan, 1955-1956/2002, p.174), isso significa que o Nome-do-pai seria um significante (ou, como preferimos, uma tessitura significante) que é excluído da organização basal da estrutura. Excluído não da estrutura em si, mas de um tempo determinado da tessitura estrutural. Assim, embora uma referência ao Nome-do-pai possa se estabelecer nas psicoses, ela se dá fora da articulação fundamental que orienta a estrutura neurótica. A tessitura do Nome-do-pai é incluída, mas fora de determinadas funções e posições estruturais – logo, forcluída.
Em relação aos estudos da SXF, existe uma tendência a solidificar a forclusão do sujeito, barrando a articulação da síndrome com outros campos de saber. A partir de 2012, alguns estudos sobre o X frágil começaram a propor terapias à síndrome: o tratamento alvo, "targeted treatment" (Gürkan et Hagerman, 2012; Wijetunge et al., 2013; Berry-Kravis, 2014). Nesses experimentos, os pesquisadores introduzem moléculas na célula que ajudariam a regular a produção das proteínas cerebrais, outrora prejudicada pela ausência da FMRP – os resultados em humanos, entretanto, se mostraram insatisfatórios (ver Thurman, McDuffie, Hagerman & Abbeduto, 2014). A noção de autismo, notadamente, é outrossim empregada nesses estudos, buscando operar deste modo uma transformação conceitual – transformação que ignora a origem e a acepção do conceito do qual se apropria.
O avanço da terapia alvo nos parece benéfico à evolução da complexidade do tratamento. Apostamos, porém, que as intervenções moleculares, sem outros tratamentos, sejam insuficientes para abarcar tal complexidade. Elas seriam, assim como as terapias psicanalíticas, suplementares – não havendo um campo de saber que englobe toda a verdade sobre o paciente. A crença em um tratamento unívoco parece ser o derradeiro empecilho ao diálogo e à diversidade clínica. É justamente o reconhecimento da insuficiência (da falta) das formas de tratamento propostas por um campo de saber que torna necessário o apelo a outros campos. Encontramos, por fim, em outra vertente da genética médica, a epigenética, a possibilidade de aberturas a articulações entre genética e psicanálise.
Epigenética: novas aberturas
De acordo com a geneticista inglesa Edith Heard, a epigenética é atualmente definida como o "estudo de adaptações estruturais de regiões cromossômicas que permitem registrar, marcar ou perpetuar estados modificados da atividade gênica" (2013, p. 44). A epigenética seria campo de investigação novo e fecundo que traria ligações entre os genes e o ambiente. Este é definido por Heard como aquilo que é herdado e o que faria parte da evolução: "A epigenética cria a esperança de que somos muito mais do que a sequência de nossos genes" (2013, p. 55), afirma. Laura Herzing (2012), geneticista, indica que tal ocorrência de interações entre o ambiente e fatores genéticos era desconhecida no meio científico. Ela afirma que atualmente tem se tornado claro que o ambiente atua significativamente na modificação do fenótipo.
François Gonon (2011) destaca que o surgimento da noção de epigenética influenciou geneticistas antes interessados unicamente na primazia etiológica dos fatores genéticos; eles estariam aceitando a ação do ambiente como central no desenvolvimento de algumas patologias. O psiquiatra inglês Sonuga-Barke (2010) afirma que ao contrário da perspectiva inicial, as pesquisas têm apontado cada vez menos o fator genético como determinante ao surgimento de doenças. Ademais, haveria, segundo ele, uma tendência a ressaltar a complexidade e a heterogeneidade das causas dos transtornos mentais, e a forma como genes e ambiente trabalham juntos para moldar o desenvolvimento neurológico.
A epigenética trabalha na perspectiva das alterações da atividade dos genes que não são devidas às variações do DNA. O material genético programa a síntese de proteínas, no entanto, a intensidade da transcrição da informação gênica seria influenciada por numerosos fatores ambientais (Gonon, 2011). A expressão modificada do gene é transmitida sem que exista alteração na sequência do DNA. Heard (2013) afirma que a epigenética criaria uma intersecção entre genética, biologia do desenvolvimento, ecologia e evolução. A questão que hoje se coloca é saber como apenas determinados genes se expressam (e não todo conjunto de genes que a célula dispõe) e quais são os mecanismos que determinam tal expressão ou silenciamento dos genes.
A articulação entre psicanálise e epigenética partiria de uma aposta: pensar as trocas com o Outro, as relações sociais, como fator constitutivo do ambiente. Por essa via, a dimensão do sujeito ocuparia claramente função ativa na construção do saber. Ademais, esse pressuposto abriria a possibilidade de o tratamento psicanalítico ser articulado ao da genética médica. Se as trocas com o Outro, responsáveis, segundo a teoria psicanalítica, pela constituição do sujeito, puderem ser admitidas pela genética médica como elemento primordial do ambiente, estaria estabelecida uma condição fundamental a articulações possíveis. Adiciona-se, outrossim, a abertura da psicanálise às evidentes implicações que os fatores orgânicos exercem nos quadros clínicos dos pacientes. Surpreendentemente, as pesquisas em psicanálise que tecem essa articulação ainda são raras.
A tese de Jorge Forbes (2011) defende que a psicoterapia psicanalítica é um dispositivo de tratamento eficiente para pessoas afetadas por doenças degenerativas. Ele propôs atendimento psicanalítico a um grupo de pacientes durante um curto período e, após aplicação de escala de avaliação, indicou melhoras consideráveis em aspectos sociais e subjetivos. Se o estudo de Forbes nos parece apenas exploratório, ele pode, no entanto, evocar uma constatação que a psicanálise, curiosamente, resiste em evidenciar: embora o tratamento psicanalítico seja baseado na subjetividade, ele produz efeitos objetivos.
Ressalta-se que a noção de cura em psicanálise ainda parece tributária de uma referência ao dispositivo do consultório particular, em que o adulto neurótico trilha sua travessia. Ao nosso ver, ainda se apresenta como uma carência do campo psicanalítico o desdobramento dessa noção inicial de cura, no sentido de estabelecer articulações a diferentes configurações clínicas, notadamente, com crianças medicamente assistidas, com pacientes psicóticos, em hospitais, em instituições de atendimento multidisciplinar. A partir da clínica com pacientes psicóticos de diferentes idades, adultos, adolescentes e crianças, Madeira (2015) propõe efeitos palpáveis que seriam decorrentes da clínica psicanalítica, frequentemente em colaboração com outros profissionais. Dentre tais efeitos, destacamos apaziguamento da angústia, aquisição da linguagem, supressão da emergência de fenômenos psicóticos – como alucinações visuais, auditivas e olfativas –, estabelecimento de coerência discursiva e melhora no rendimento escolar. Apontar tais consequências nos parece mais consistente do que aplicar questionáveis escalas de avaliação.
Se as resistências à psicanálise podem ser alimentadas pelo fato de que seus efeitos não são mensuráveis, tais efeitos podem ser claramente demarcados, notadamente na clínica com crianças, terreno preferencial de trabalho com pacientes portadores da SXF. Nota-se, ademais, que, no seio da própria psicanálise, ainda são exíguos os trabalhos que situam efeitos clínicos palpáveis como fruto de sua prática. É, assim, a partir de aberturas que fragilizem resistências e reinventem as construções de saber, que uma articulação entre genética médica e psicanálise se tornará possível. Articulação cujo princípio repousa na aposta de que tal reinvenção do saber tornará mais consistentes tanto a pesquisa quanto o tratamento.
Referências
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1 Doutoranda em Pesquisas em Psicanálise na Université Paris-Diderot Sorbonne Paris-Cité, Bolsista CAPES n° 0447-14/5. Psicóloga da FADEM (Fundação de Atendimento de Deficiências Múltiplas). E-mail: asousavarela@gmail.com
2 Doutor em Psicanálise e psicopatologia pela Université Paris-Diderot Sorbonne Paris-Cité. Professor substituto da UFRGS. E-mail: mlucemadeira@gmail.com
3 Doutora em Psicologia Clínica e Docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. E-mail: liviamoretto@usp.br
4 Trecho traduzido: «Je suis loin de penser que le psychologique flotte dans les airs et n'a pas de fondements organiques. Néanmoins, tout en étant convaincu de ces fondements, mais ne sachant davantage ni en théorie, ni en thérapeutique, je me vois contraint de me comporter comme si je n'avais affaire qu'à des facteurs psychologiques ».
5 Trecho traduzido: « Pour le psychique, le biologique joue le véritable rôle du roc d'origine sous-jacent ».