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Revista da SBPH
versão impressa ISSN 1516-0858
Rev. SBPH vol.23 no.2 São Paulo jul./dez. 2020
Psicanálise e hospital: considerações sobre a clínica no âmbito da internação hospitalar
Psychoanalysis and hospital: considerations about the clinical support during hospitalization
Maira Dominato RossiI; Paulo Viana VidalII
IUniversidade Federal Fluminense (UFF) - Niterói/RJ - dominato.maira@gmail.com
IIUniversidade Federal Fluminense (UFF) - Niterói/RJ - paulovidal@id.uff.br
RESUMO
O presente artigo propõe articular o lugar da clínica psicanalítica dentro da internação hospitalar a partir da argumentação apresentada por Lacan (1966/2001) sobre o lugar da psicanálise na medicina. Recuperando a discussão psicanalítica sobre ciência, saber, verdade e sujeito, se propõe a pensar a subversão do sujeito, na qual Lacan (1960/1998) apoia sua crítica à ciência e, assim, investigar, à luz dos conceitos lacanianos de real, simbólico e imaginário, a posição do psicanalista e sua prática dentro do campo da internação hospitalar.
Palavras-chave: psicanálise; hospital; sujeito; ciência.
ABSTRACT
This paper proposes to articulate the place of the psychoanalytical clinic within the hospitalization based on the argument presented by Lacan (1966/2001) about the place of psychoanalysis within medicine. Recovering the discussion about science, knowledge, truth and subject, as presented by the psychoanalytic theory, our proposal was to think about how the subversion of the subject, in which Lacan (1960/1998) supports his critique of science occurs and, thus, to investigate the concepts of real, symbolic and imaginary as they emerge and can be articulated by the psychoanalytical practice in the hospitalization.
Keywords: psychoanalysis; hospital; subject; science.
A psicanálise, no cotidiano da prática clínica traz seus desafios à teoria. Lacan (1966/1998), advertido dessas dificuldades, pontuou que o analista deve buscar alcançar os desafios colocados pela subjetividade de sua época de forma que a psicanálise não venha a perder seu lugar subversivo em relação à cultura. Assim, levando em conta o contexto histórico e discursivo da psicanálise e suas imbricações com a instituição hospitalar, a pesquisa buscou problematizar o encontro entre a clínica psicanalítica e o contexto nosocomial da internação de pacientes, valendo-se do seguinte questionamento: "O que é possível a um psicanalista dentro de uma internação hospitalar?".
Para tanto, foi importante, em um primeiro momento, resgatar a definição freudiana de que a psicanálise seria "uma disciplina singular em que se combinam (...) pesquisa e (…) tratamento" (Freud, 1911/2010, p. 269). Pois essa definição permite recuperar uma dimensão intrínseca à prática psicanalítica que, por vezes, fica alienada da clínica, a dimensão da pesquisa sistemática e criteriosa com a qual Freud desenvolveu sua teoria. Retomar essa característica da clínica psicanalítica possibilita lidar com o desafio que a complexidade que compõe o campo hospitalar da internação de pacientes apresenta à dimensão teórica e acadêmica.
Assim, partindo do que Freud autoriza, foi possível levantar, no mínimo, duas formulações que servirão de esteio à problematização que este artigo propõe fazer. Desta forma, desenhou-se a seguinte intenção: pensar o lugar da psicanálise e da medicina entre as ciências, retomando Descartes e a formulação do cogito cartesiano, como o momento fundante, na interpretação psicanalítica, do sujeito da ciência. Então, apoiados nessa leitura, pensar como ocorre a subversão desse sujeito proposta pela psicanálise lacaniana, e, a partir desse giro epistemológico, investigar como esse conceito se articula com a prática psicanalítica dentro do campo da internação hospitalar.
Psicanálise e Medicina entre as Ciências
Instituindo a psicanálise como sendo, ao mesmo tempo, um método terapêutico e uma prática de pesquisa, Freud indica que colocar-se como psicanalista é colocar-se como um pesquisador para além do clínico e, doravante, a partir dos elementos colhidos e confrontados na clínica, ser capaz de desenvolver a teoria psicanalítica de forma criteriosa e "contribuir para seu desenvolvimento" (Freud, 1913/2010, p. 269).
Deste modo, decorre dessa abordagem o entendimento essencial de que toda a pesquisa em psicanálise é, fundamentalmente, pesquisa clínica e, por isso, lida com o acesso ao sujeito do inconsciente, sobrepondo o que seria o objeto de pesquisa psicanalítico e a direção do tratamento. Ou seja, em psicanálise essas duas dimensões podem coincidir.
De uma forma bem diversa, o hospital geral, campo privilegiado onde a medicina exerce sua prática, é o lugar onde uma visão sistematizada e classificatória da medicina a coloca, ao menos em pretensão, ao lado das ciências clássicas, aquelas que se reivindicam ciências da natureza respaldadas em sua objetividade científica, aquelas que preconizam a imparcialidade do pesquisador e a neutralidade do objeto.
Neste local, a investigação das doenças não cede ao encontro com o doente, ao contrário, a objetificação do olhar médico torna a totalidade do doente quase uma ficção. Porém, é preciso destacar que o enfoque da clínica médica, assim idealizado, sofre, neste lugar, um importante deslocamento em seu escopo: seria possível à medicina prescindir da dimensão humana em prol da objetividade da pesquisa diagnóstica? Seria possível à clínica médica objetificar o paciente ao ponto de elidir o que nele o torna humano?
No encontro com o doente internado é possível perceber que a tendência da dimensão humana é fazer furo na objetividade pretendida pela medicina enquanto "ciência". Assim, o lugar e a função de uma clínica médica clássica, que preconizava uma visão mais integral e conjuntural das condições de vida e das condições gerais da história do adoecimento do paciente, acabam perdendo valor diante do cientificismo do discurso médico contemporâneo. Cientificismo que vem ilustrado pela "festa" dos aparatos tecnológicos sobre os quais a clínica médica, hoje, se apoia: "Festa em que o corpo irradiava ainda há pouco por ser inteiramente fotografado, radiografado, calibrado, diagramado e capaz de ser condicionado" (Lacan, 1966/2001).
Esse atravessamento "científico" que a clínica médica sofre, tanto no hospital quanto fora dele, acaba por fazê-la retornar de forma deslocada em um outro lugar dentro do próprio discurso médico. A clínica retorna como um íntimo desconhecido, como o Estranho Freudiano da prática médica. Onde o médico tenta elidir o paciente enquanto outro das identificações para objetificar sua pesquisa diagnóstica, ele acaba por se deparar com sua dimensão de sujeito, fundando aí, um enorme e eterno mal-entendido da clínica médica. Frases como "Não me fale de você, me fale dos sintomas" que ocorrem de forma corriqueira em consultas ambulatoriais no hospital, ilustram esse fenômeno de forma explícita. Pois, evidenciam o lapso: que escapa ao médico a percepção de que para o doente não há distinção.
O conceito do Estranho-familiar (Unheimlich), em Freud (1919/2010), refere-se à condição inconsciente que, sendo mais constitutiva da personalidade psíquica, aparece fora do recalcado como algo irreconhecível. De um modo análogo, a clínica médica clássica, aquela que nasce do interesse geral na vida do doente e que buscava tanto a origem das afecções como sua possível resolução dentro do modo de vida e das vicissitudes de cada um, é hoje figura desconhecida da prática médica corriqueira. A medicina cientificista atual, baseada em protocolos cada vez mais rigorosos, tende a exilar do minucioso exame médico a escuta clínica que incluiria a história do paciente como um todo, para focar somente no que este pode articular de seu adoecimento da forma mais objetiva possível. Isto gera, entre médicos e pacientes, um grande número de frustrações e aborrecimentos. Pois, o que a experiência hospitalar indica é que, o que o paciente busca no encontro com o médico, remete este a um lugar do qual ele, enquanto médico, não consegue responder, justamente pelo fato de que a demanda do paciente oculta seu desejo.
Pois é um dos pilares da teoria psicanalítica o trabalho invariável sobre o deslocamento que existe entre demanda e desejo. Desde a origem de sua teoria sobre a sexualidade infantil, Freud aponta essa divergência. O desejo, em psicanálise é o desejo inconsciente. É o que está colocado para o sujeito desde antes de seu adoecimento e o que o estrutura em sua singularidade. É a partir disso que Lacan (1966/2001) irá pontuar que a demanda tem função de ocultar o desejo ou de revelá-lo em outro lugar: "não é necessário ser psicanalista, nem mesmo médico, para saber que, no momento em que qualquer um: seja macho ou fêmea, pede-nos, demanda alguma coisa, isto não é absolutamente idêntico e mesmo por vezes é diametralmente oposto àquilo que ele deseja" (p. 10).
Lacan (1966/1998), convoca a questão sobre a cientificidade da psicanálise para indicar que sua origem e sua posição funcional são instituídos a partir da correlação que ela guarda com sua derivação da ciência moderna. Deste modo, ainda que proveniente da cientificidade de seu tempo, a psicanálise, da forma como Lacan propõe, figura como uma não integrante desse rol das ciências "ideais" das quais a física dita o modelo e com as quais a medicina tenta fazer parceria. Mas, ocupa, entretanto, uma posição deslocada, uma posição que, provocada pelo que se constitui a partir do Cogito cartesiano, exige o estabelecimento de algo que lide com o que se estabelece como o resto dessa operação: o sujeito.
Como em um cálculo matemático, Lacan (1966/1998) sugere que o sujeito do penso logo sou, é o resto da objetividade racional perseguida por Descartes. O sujeito do Cogito sobra da operação lógica que o funda, ele é aquele que pensa o mundo sem ser pensado pelo mesmo, aquele que observa sem ser observado, aquele que experimenta sem poder ser experimentado. E seria exatamente essa a característica do fundamento da ciência que teria permitido à psicanálise surgir e se estabelecer como um discurso, uma prática. Pois ela viria, justamente, pensar e atuar sobre o que a ciência ocluiu. Ou seja, diante dessa propriedade idiossincrática de se fundar no encalço científico, a psicanálise levanta uma questão importante à cientificidade de seu tempo: Como operar com o sujeito?
O lugar da psicanálise, quando seguimos essa direção que Lacan (1966/1998) introduz, se estabelece como um lugar estrutural onde o analista instaura um modo inteiramente peculiar de se relacionar com o sujeito. Algo que se define por um discurso original: o discurso analítico. A subversão do sujeito que a psicanálise opera em razão da ciência é o ponto de ruptura que permite a um analista sustentar sua prática. Essa subversão, colocada por Freud a partir de Lacan (1960/1998), situa o ser em uma outra perspectiva diante do que este pode produzir de saber sobre si. Resumindo: o sujeito do inconsciente não é outro senão o sujeito da operação cartesiana do cogito. Porém, uma vez que o saber científico supõe o sujeito, mas não opera sobre ele, não o coloca na cena científica e sim o elide, o conta fora; esse sujeito, então, excluído da ciência, passa a ser o sujeito incluído da psicanálise pela subversão que esta opera ao incluí-lo no campo de sua experiência.
A matéria ou o material sobre o qual Freud se debruçou e sobre o qual sistematizou sua prática pertence àquilo que há de mais vivo no ser humano: o pulsional. E que, em Lacan (1966/1998), será da ordem de um gozo que, invariavelmente, escapará pelas entrelinhas de uma existência para retornar sob os auspícios de uma verdade. Retorna do real, conceito que vem nomear essa experiência humana de encontro com algo que escapa à materialização e à simbolização. Pois, tentar apreender esse ser vivo unicamente no registro do fisiológico é tentar tornar neutro justamente isso que, no homem, o faz diferente de todo e qualquer outro objeto da ciência: seus atravessamentos de vida, sua existência.
Pensando sobre as formas discursivas atuais é possível achar em Foucault (1980/2011) uma ideia corroborativa para a tese lacaniana. Foucault, estudando o Nascimento da Clínica, vai situar na construção do pensamento moderno uma mudança estrutural no modo de se fazer clínica médica. Será, exatamente, a partir da influência do pensamento cartesiano, dentre outros, que ele localizará a passagem de uma clínica médica "de valores demasiado imprecisos" para uma clínica mais "racional", "positiva" e "iluminista", e vai apontar, ainda, que mesmo antes das grandes descobertas do século XIX a clínica médica já passaria a contar com um discurso embasado pelo que hoje percebe-se como rigor científico: "A clínica é, ao mesmo tempo, um novo recorte das coisas e o princípio de sua articulação em uma linguagem na qual temos o hábito de reconhecer a linguagem de uma 'ciência positiva'" (Foucault, 1980/2011, s/p.). Neste livro ele se propõe a investigar a construção de uma prática médica na qual a medicina secular se apoiará na tentativa de extrair da "espessura do discurso as condições de sua história" (Foucault, 1980/2011, s/p.).
Importa demarcar aqui que na teoria foucaultiana prática e discurso se equivalem. Dessa forma, enquanto discurso, diferente da medicina, a psicanálise não só se funda, mas, vai se pôr a trabalho, exatamente, onde o corpo e o sujeito excedem o que é organismo e indivíduo doente. Consequentemente, uma questão importante resulta para a psicanálise dessa dissensão: o que vem demandar o paciente ao médico?
A subversão do sujeito e o mal-entendido do corpo
É relevante pensar que diante dessa articulação entre saber, verdade e sujeito, "responder que o doente lhes demanda a cura não é responder absolutamente nada", nos alerta Lacan (1966/2001, p.10). É preciso não esquecer que, na dimensão do corpo há algo que não é absorvível pelo saber, algo que, nessa relação nosográfica posta pela medicina, escapa, fica de fora.
Ao teorizar sobre o corpo, em sua obra, Lacan (1949/1998) postula que em determinada fase do desenvolvimento infantil é possível para uma criança construir essa acepção imaginária de que seu corpo constitui um todo, nessa fase ocorreria algo como a antecipação de uma gestalt, onde as identificações se dariam a partir dos efeitos da imagem especular do bebê refletida no olhar da mãe (ou o que o valha). Assim, em psicanálise, falar em corpo unificado, todo unido em suas partes, é identificar uma construção imaginária, ficcional. Um corpo total, não fragmentado é o resultado de uma operação subjetiva que permite ao ser se compor como unitário: idêntico a si mesmo.
Falar de uma operação imaginária sobre o corpo é, ao mesmo tempo, dizer que este está inserido na linguagem. Quer dizer, o que faz de um corpo um corpo humano é a linguagem. A identidade do eu com seu corpo é, então, imaginária e especular, e isso coloca o corpo unificado como um constructo teórico. Assim, o que garante ao ser que o corpo que se tem é uma unidade indivisível em suas partes é da ordem de uma ficção. E é impressionante observar como os estados psicóticos nos dão notícias disso. Como existem experiências de corpo que não passam pela vivência de uma unificação ou mesmo de uma identidade, experiências de corpos que são fragmentados e fragmentáveis em suas partes e que se tornam um objeto estranho para o ser que dele depende para existir.
O homem, para a psicanálise, não é outro senão esse ser falante que precisa se haver com seu organismo nos moldes do que Freud (1915/2010) definiu como pulsional. A pulsão, na teoria freudiana, concerne ao corpo, ela é uma exigência de trabalho imposta "ao anímico" que, tendo como origem o próprio corpo, visa a descarga da tensão que a ele inflige ou, em outras palavras, sua satisfação. O corpo é, ao mesmo tempo, fonte e destino pulsional, "Como ela não ataca de fora, mas do interior do corpo, nenhuma fuga é eficaz contra ela" (Freud 1915/2019). Em última instância, como nos ensina Freud, a pulsão é essa carga libidinal inconsciente para a qual não existe recalque. Permanece sempre em sua dimensão corporal. Lacan (1972-73/2008) para engendrar a economia libidinal do corpo ao sujeito do inconsciente com todo o peso do pulsional que essa operação deve supor cunhou a expressão: "corpo falante" e, mais adiante em sua teoria, passou a se referir ao que a princípio se inscrevia como o sujeito do inconsciente como falasser (Lacan, 1975-76/2007). Fala-a-ser (parlêtre): ser que é atravessado pela linguagem e possui um corpo - pulsional - sobre o qual se apoiar.
Elucidar o lugar do sujeito na psicanálise como uma irrupção de fala que se instaura na ruptura entre saber e verdade revelando a dimensão inconsciente e sua estrutura, expõe a questão do corpo como mal-entendido. "O corpo só aparece no real como mal-entendido" (Lacan, 1980/2016, p.10-11). Essa é a frase que Lacan usa para dizer que o corpo nasce mergulhado na linguagem, "nadando" nela e por isso marcado por um mal-entendido que lhe é originário, indissociável. Dessa forma, seguindo essa diretriz, é possível perceber que o corpo e o inconsciente figuram do mesmo lado. O corpo é tanto imaginário quanto inconsciente e os infortúnios que sofre se colocam, exatamente, porque não há outra dimensão traumática senão esta, de aparecer no real como um mal-entendido.
E disso o espaço hospitalar e a medicina nos dão plenas notícias. O espaço hospitalar é o lugar onde o corpo vivo se faz objeto inanimado, objeto de saber e objeto comercializável, sem, no entanto, deixar de ser um corpo que goza. Sem deixar de ser, para quem o tem, essa inscrição de uma dimensão real. Pensar a partir do vetor "O corpo só aparece no real como mal-entendido" é considerar efetivamente que a relação que travamos com esse corpo passa pelo fato de que lidamos com ele na dimensão de um móvel, de uma posse. Um corpo é algo que se tem, que se possui, e de que se goza. E esse é o ponto de irrupção do real em Lacan.
"Surgir no real" diz respeito à percepção que nos acomete vez por outra de que existimos enquanto corpo tanto quanto enquanto ser. O corpo, organismo, quando hígido, segundo a linguagem médica, passa despercebido ao ser. A maior parte do tempo o ser não está consciente de sua corporeidade, de sua existência material. Se deparar com a dimensão desse corpo organismo que estava velada pelo seu bom funcionamento, ou pela homeostase cotidiana é, de certa forma, encontrarmos sua existência concreta, ou, como prefere a teoria psicanalítica, imaginária. Afinal, quando é que se tem notícias do corpo? Não seria, justamente, quando este dói ou goza?
Canguilhem (1996) pontua, de forma iconográfica, a errônea ideia de que saúde plena seria a assunção de "silêncio dos órgãos" (pg.67). Corpo saudável, sob esse ponto de vista, seria aquele que não dá notícias de sua existência. Por mais que em medicina há muito já se saiba o quanto essa acepção de saúde é falaciosa: há um sem número de doenças que se desenvolvem em silêncio. Entretanto, é importante marcar essa característica peculiar da existência corporal: um corpo, só dá notícias da sua materialidade, da sua extensão, quando se manifesta fora do esperado. Quando faz o que não estava previsto, quando dói, quando se excita, quando sente prazer. Em outras palavras, quando "surge no real".
Para Lacan, real é o nome que se dá à percepção de que a linguagem não nomeia tudo "a linguagem está ligada a alguma coisa que no real faz furo" (Lacan,1975-76/2007). Há algo sempre inominável, fora da possibilidade da linguagem, algo que toda vez que há a tentativa de nomeação ou de elaboração de uma explicação ou conceito, permanece de fora. Real também pode ser o sem sentido, o desconhecido.
Quando um corpo dói ou goza, ele invariavelmente nos atinge com sua existência de organismo vivo e, sendo assim, onde há dor há gozo, vai concluir Lacan (1966/2001). A dimensão velada do organismo, ou seja, aquilo que é matéria de um corpo vivo, goza de sua existência. O corpo, desse modo, será um acontecimento no enlaçamento que ocorre entre imaginário, real e simbólico. Um acontecimento que é em tudo diferente da apreensão de funções isoláveis do organismo com a qual a medicina, em sua via principal, trabalha.
A experiência de ter um corpo como uma unidade imaginária na qual se localizam as satisfações pulsionais é uma experiência de gozo. Ao contrário das mais bem-intencionadas concepções médicas, o corpo não é algo cuja a homeostase busca um estado de vida equilibrada e saudável, ao invés, é constituído por uma tensão constante que revela que algo neste corpo é nefasto, obscuro, e tenderia, como afirma o próprio Freud (1920/2010, p. 205), a um "retorno ao inorgânico". Logo, é possível perceber que há uma divergência, uma falta, um espaço de percepção, entre o organismo biológico do qual somos compostos e o corpo que se tem. Lacan (1966/2001) vai nomear esse desencontro de "falha epistemo-somática".
Falar em gozo pela teoria lacaniana é pontuar que, apoiado na teoria pulsional freudiana, há uma dimensão incurável que atravessa a via do corpo. Quando Freud formula a pergunta: de onde vem um sintoma?, ele aponta para o fato de que essa é uma questão que pode vir a nunca encontrar resposta material, pois a formação dos sintomas pode estar de tal maneira imbricada com as formações do inconsciente que não existiria a possibilidade de serem reveladas de fato. Mas estariam, entretanto, ligadas à realidade psíquica, que, para Freud, "é decisiva" (Freud, 1917/2010, p. 490).
Diante da proposta de pensar a via do corpo como uma manifestação inconsciente é preciso fazer a analogia de que, também, aí há um impossível, a irrealizável junção entre saber e verdade. Não haveria saber proposto pela medicina capaz de dar conta da verdade que um corpo produz. Ou, como se costuma pensar dentro da teoria lacaniana, não há saber produzido que possa recobrir o real. Até porque, o real é o que extrapola todas as definições linguísticas. Quando se diz que a palavra é a morte da coisa, indica-se, conclusivamente, que a coisa jaz imutável sob uma palavra que a definiu. Melhor dizendo: "a linguagem come o real" (Lacan, 1975-76/2007). O que fica patente no pensamento lacaniano é que existe sempre um a mais, algo, que escapa à produção linguística e esse algo é sempre da ordem do que a teoria nomeou de real. Assim sendo, seria possível dizer que quando se fala em produção de saber, também se fala em produção de real. "É o saber que circunscreve o real, tanto possível, como impossível" (Lacan, 1970/2003, p. 406).
O pobre na festa
Retornando, então, à "falha epistemo-somática", pode-se dizer que esse é o nome dado por Lacan ao lugar em que surge, exatamente, algo do ser que irá, sempre, escapar ao discurso médico. Algo que Lacan aventa chamar de "pobre na festa" (Lacan, 1966/2001, p. 11). Ou seja, há algo que o corpo vai propor à medicina com base na velha dicotomia cartesiana que o exilou do pensamento, que, entretanto, não será possível de ser apreendido pelo escrutínio médico-científico. É algo da ordem disso que "só aparece no real como mal-entendido" (Lacan, 1980/2016, p. 10), e que já figurava como tal, de um jeito ou de outro, até para Descartes.
Na internação de um grande hospital é a esse "pobre na festa" que o psicanalista pode e vai se dirigir. Onde o médico, diante da estruturação cada vez mais segmentária do saber com o qual lida, e diante da "festa" dos aparatos tecnológicos de ampliação do olhar sobre o corpo, perde-se do sujeito e encontra-se, aí, paralisado, na maioria das vezes, pelo limite mesmo que o discurso médico lhe impôs. Neste lugar, a presença do psicanalista pode surgir como um retorno da medicina sobre o ser do sujeito, posto que é impossível escapar à sobredeterminação que o espaço hospitalar impõe.
A princípio, o psicanalista estará alienado ao lugar de Outro do discurso médico. O campo do Outro é definido como tesouro dos significantes, campo do inconsciente estruturado como linguagem, é o lugar permeado pelos valores do saber e da linguagem que diz respeito a tudo que é do sujeito. Campo onde "se localizam os excessos da linguagem dos quais o sujeito porta uma marca" (Lacan, 1966/2001, p.12). A marca de ser um corpo falante, imaginário, simbólico e real. Aí, nesse lugar, que longe de ser o de uma pura oposição de saber ou de prática, mas que surge como resto da ordem estabelecida, ou seja, que surge onde a prática médica encontra seu limite atual: em como operar uma escuta clínica do sujeito do inconsciente. Aí encontra-se o espaço franqueado ao psicanalista, como pontua Lacan, essa é a posição que Freud inventou como resposta subversiva da posição do médico à ascensão da ciência (Lacan, 1966/2001, p. 12). Eis a posição que o psicanalista pode, então, ocupar: a de quem escuta a demanda do paciente advertido de que ela recobre toda a dimensão inconsciente do desejo. Assim, surge a possibilidade de permitir que venha a operar, nesse encontro, o que é específico do sujeito: sua relação com o inconsciente.
Desse modo, é possível compreender que, por trás da sistematização da medicina como prática, há algo de uma perda constante na dimensão humana que se impõe na contramão do desejo. Ou seja, algo do corpo está em ruptura com a ideia de um organismo harmonioso concebido para a vida, assim como, está em ruptura com a ideia de corpo objetificável pelo saber. Em termos lacanianos, esse corpo é afetado pelo gozo que sua existência encerra. E, diante disso, o médico se vê frente a exigência de buscar um modo de se colocar com relação ao incurável do gozo humano de uma forma que o habilite a fazer o seu trabalho. Isso, de forma geral, significa erigir defesas se distanciando da dimensão do sujeito na relação especular. Esse é o apelo que a ciência enseja, suprimir o sujeito e transformá-lo em objeto permite a possibilidade do trabalho do médico sobre esse outro presente no campo das identificações.
Entender um pouco melhor essa dimensão do corpo que convoca o gozo de sua existência, permite compreender o apelo que Lacan (1966/2001) faz aos médicos ao marcar a oposição que existe entre demanda e desejo, apresentando a dimensão inconsciente do gozo contida no corpo. Lacan (1966/2001) vai afirmar, então, que para tentar responder à demanda de saber que surge no encontro com o paciente, é preciso ocupar a posição do psicanalista, uma posição que tem como norte o desejo inconsciente e não a demanda apresentada.
Doravante, importará ao analista a resposta do sujeito a cada momento particular, a forma com a qual trata o real que está em jogo para si mesmo. Logo, a práxis orientada pela psicanálise encerra uma função: a de viabilizar o acesso ao inconsciente e de recolher o que emerge deste encontro para (re)situar o sujeito. Porém, como se viu aqui, a forma como a medicina é estruturada hoje, tanto em termos de transmissão do conhecimento quanto no âmbito da prática, faz com que seja cada vez mais difícil para o médico responder de um lugar qualquer que não o da objetificação científica.
Porém, justamente por elidir da sua práxis essa relação que o ser falante desenvolve com seu organismo é que resta em aberto esse espaço para uma clínica orientada pela psicanálise dentro do hospital. Ou seja, a forma pela qual a medicina instituiu sua práxis é exatamente o que possibilita à psicanálise sua ocupação.
A presença do analista e suas intervenções provocaram um efeito que não é produzido pela decifração ou explicação que advém de um saber previamente instaurado e sedimentado, como é o da ordem médica. Uma vez que, a posição sustentada pelo analista será aquela que se nega a recuar diante do endereçamento singular que cada um faz a partir da sua posição inconsciente, sua posição de sujeito. Essa recusa se nomeia como desejo do analista.
O desejo do analista será, então, marcado pela aposta na dimensão do gozo inerente ao sujeito falante e à sua extensão corpórea. Superfície de mortificação que é, também, a dimensão que envolve a forma de designação desse corpo. Pois, quando a linguagem confere um corpo ao sujeito ela não designa, necessariamente, se este é um corpo vivo ou morto. A linguagem não confere ao corpo vida, ao contrário, como aponta Lacan (1970/2003), a linguagem o mortifica ao mesmo tempo que o incorpora. A questão que se forma entre o ser e o ter um corpo, essa relação que o ser falante desenvolve com seu organismo, é marcada de tal forma pela incidência do significante neste corpo que sua constituição como uma totalidade é não só uma construção simbólica e imaginária, como é formatada por um mal-entendido fundado exatamente por esse encontro.
Quanto ao corpo, é secundário que ele esteja morto ou vivo. (...). O corpo, a levá-lo à sério, é, para começar, aquilo que pode portar a marca adequada para situá-lo numa sequência de significantes. A partir dessa marca, ele é suporte da relação, não eventual, mas necessária, pois subtrair-se dela continua a ser sustentá-la (Lacan, 1970/2003. p.406/407)
Logo, pode-se dizer que o desejo do analista permite sustentar o mal-estar promovido pelo encontro do paciente com sua doença, mal-estar esse que precede o estado insalubre, mas é originário do encontro do ser com a linguagem na dimensão do corpo. Há algo que o gozo encerra e que não tem cura. Isso está posto para o sujeito da fala, ainda que ele não saiba.
Sustentar o mal-estar dentro da internação de um hospital é o avesso da medicina. E é, paradoxalmente, o que cabe à psicanálise. Pois há esse espaço aberto entre o que é da ordem do ser e o que se inscreve na dimensão do ter um corpo. Posto que a linguagem funda, tanto na ordem simbólica quanto na imaginária, essa particular relação do homem com o seu corpo: tem-se um corpo. Não obstante, há uma outra dimensão que extrapola a linguagem, que sobra, que é um resto de tudo que o saber médico-científico tenta agrupar e sistematizar. Esse resto está presente como a ausência de tudo o que é dito e feito; como a ausência das escolhas aparentes; como o incurável do gozo, o incurável do sintoma. Aquilo que se apresenta como "impossível, para que, a partir disso, confirme-se ser real" (Lacan, 1970/2003, p.423).
O real, na teoria psicanalítica, é, também, o lugar onde o avesso da linguagem se instaura como presença. Como aponta Lacan (1972-73/2008) é aquilo que "não pára de não se escrever", aquilo que marca o impossível estrutural da linguagem, que denuncia o fato de que há uma dimensão da verdade que não pode ser toda dita, posto que não cabe dentro dos limites das palavras. "A fala não pode apreender a si própria, nem apreender o movimento de acesso à verdade como uma verdade objetiva. Pode apenas exprimi-la - e isso de forma mítica" (Lacan 1952/2008, p.13) Nesse sentido, o simbólico caminha em direção ao real, pois permite a criação de um laço deste com o imaginário na produção da verdade.
O que a análise aponta na relação desses três registros instrumentalizados por Lacan (Real, Simbólico e Imaginário) é que existe saber que não se sabe no jogo dos significantes da fala. O sintoma, orgânico ou não, nesse jogo, se colocará como o representante de um modo de irrupção de verdade para o sujeito, pois ele retém uma espécie de saber que o sujeito se recusa a (re)conhecer. Desse modo, a clínica psicanalítica em sua imbricação com o campo do real envolve saber, verdade e gozo como elementos fundamentais da falta-a-ser que constitui o sujeito falante. O sintoma, de acordo com a leitura lacaniana da psicanálise, longe de ser uma designação da forma de uma doença, ganha estatuto de modo de gozo, e ganha, assim, a função de sustentar o modo de gozar particular ao sujeito. E, assim definido, faz parte do que caracteriza o real, ele sinaliza da mesma forma que, para além da singularidade, existe uma dimensão de incurável com a qual o sujeito tem que se haver na vida.
Considerações finais
Não recuar diante do desalojamento promovido pelas intervenções institucionais é promover a produção de algo da ordem de um dizer que viabilize um outro tratamento para o encontro entre sujeito e gozo. A clínica no hospital exige do psicanalista um manejo sempre atento e delicado de sua posição. No entanto, esse lugar e essa posição não existem num a priori, mas são construídos a cada encontro com cada paciente, de forma singular.
Lidar com esse resto da operação do saber será o objeto principal da clínica psicanalítica, na instituição ou fora dela. Se colocar como função, f(x), é permitir operar como Outro que porta uma oferta vazia ao sujeito: ele pode advir quando a um corpo for dado a oportunidade de falar ou de se inscrever, fundando, assim, uma relação entre dois conjuntos.
Essa é a aposta que instaura a possibilidade do analista acontecer dentro da instituição. Funcionando ora como objeto que permite ao sujeito suportar o desamparo, tal qual o objeto transicional winnicotiano; ora como um objeto que permita a tramitação do gozo pelos espaços vazios, tal como um objeto ilimitado. O analista é aquele que se posiciona frente ao paradoxo da existência de forma a recolher um certo resto que escapa ou não cabe na via principal das ações e expectativas de cada um com relação a si mesmo. E encarna, assim, ele mesmo esse "objeto ilimitado".
Mas, não só, de forma análoga, o analista pode ser aquele que se ocupa de coisas ilimitadas ou, ainda, aquele que não tem um só sentido para as coisas, mas vários. Operar como função a partir do desejo que se estabelece com base na ética de uma posição frente ao inconsciente, é poder, então, encarnar uma multifuncionalidade que venha servir, como pontuou Lacan (1966/2001), para "abrir aquilo que está além de uma cifra".
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Maira Dominato Rossi - Mestre em Psicologia e Doutoranda pelo programa de pós-graduação (PPGP) da UFF.
Paulo Viana Vidal - Doutor em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pós-doutor pela UFRJ, professor-associado do Departamento de Psicologia e do PPGP da UFF.