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Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. v.7 n.2 São Paulo dez. 2005

 

ESTUDO DE CASO

 

Esperança e tendência anti-social na clínica

 

Hope and anti-social tendency in a clinical setting

 

 

Edna Pereira Vilete

Psicanalista. Membro efetivo da Sociedade de Psicanálise do Rio de Janeiro. Fundadora e membro do Espaço Winnicott, Estudos em Psicanálise e Cultura, Rio de Janeiro.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A autora descreve o atendimento de uma jovem acompanhada de seus pais, Mostra o transtorno e a perturbação que seus atos provocam na família e, em especial, o risco que acompanha a esperança de uma melhora em sua conduta e em maior proximidade afetiva,

Palavras-chaves: Tendência anti-social; Privação; Desistência; Esperança,


Abstract

The author describes the therapy of a girl with antisocial tendency and her parents, She shows the perturbation that antisocial acts cause on the family and, specially, the risk of hope feelings when there is an improvement and affectional proximity,

Keywords: Antisocial tendency; Deprivation; Giving up; Hope,


 

 

A mãe de Mariana me telefonou, por indicação da analista, pedindo que atendesse sua família, Recebo inicialmente o casal, ela uma pessoa miúda, de aparência frágil; ele formal, muito sério, de expressão fechada, espera que a mulher tome a iniciativa para falar de suas dificuldades, Não sabem mais o que fazer com a filha, jovem de 22 anos que tem lhes dado preocupações, Mariana está no seu segundo curso universitário, Estudara Direito durante dois semestres, mas fora reprovada em várias matérias e decidira trocar de faculdade, fazendo, agora, o curso de Comunicação, A história, porém, se repete e ela está prestes a ser reprovada nesse primeiro ano, Os pais sabem da sua situação escolar por terem pedido uma entrevista com a coordenação, mas Mariana, ao contrário, lhes diz estar tendo bom rendimento, em uma atitude semelhante a que tivera durante a reprovação anterior, Ela mente, esclarecem os pais, nessa situação e em várias outras do cotidiano _ pega o carro escondido, tira dinheiro da bolsa da mãe, usa, sem permissão, os objetos pessoais de todos na casa e com freqüência os danifica, Sai com os amigos e chega tarde em casa, por vezes alcoolizada, Seu quarto vive em absoluta desordem: "mas não é a bagunça de um quarto de adolescente, não" esclarece a mãe "é qualquer coisa que nem consigo descrever, Só para resumir, outro dia encontrei um prato com restos de comida de uma semana dentro de uma gaveta", É também imprevisível dividir com ela qualquer responsabilidade, como lhe pedir que busque o irmão menor no colégio; apesar de aparentemente concordar, acaba por deixar o menino esperando por ela, tendo que recorrer a uma carona ou pedir socorro aos pais.

Algumas contradições no comportamento de Mariana chamam, porém, a atenção, Embora muitas vezes saia sem dizer aonde vai ou dar qualquer satisfação aos pais, quando viaja com grupo de amigos ou para a casa dos avós em outro estado, telefona várias vezes ao dia, como que mostrando a falta que sente deles e de sua casa.

Logo fica evidente o medo que acompanha o pai ao ver o comportamento de Mariana, pois se refere ao seu único irmão, que fora um adolescente problemático e "não deu em nada na vida", Hoje, um homem de quase cinqüenta anos, continua sem trabalhar, explorando a mãe, exigindo-lhe dinheiro e tornando-se violento quando não atendido.

Mariana inicialmente se recusa a vir à terapia de família, Vivera uma experiência dramática em uma tentativa anterior, quando o pai aproveitou a primeira entrevista para censurar sua conduta, fazendo-o de maneira tão agressiva e com tanto menosprezo que Mariana interrompeu a consulta, deixou a sala chorando e o tratamento sequer pode começar.

Assim, sinto prudente iniciar ouvindo os pais, dando-lhes a oportunidade para falar de suas preocupações e preparando o terreno para a chegada de Mariana, Tomo, então, conhecimento de seus primeiros meses de vida, prejudicados com uma depressão materna e com as separações freqüentes por que passava, quando, desde os dez meses, era deixada por dias e dias na casa dos avós maternos em uma cidade próxima, "Achávamos", informa-me o pai, "que deveríamos educá-la para ser independente".

Finalmente convidamos Mariana para se juntar a nós e ela parece concordar, Como faz análise no mesmo prédio em que tenho consultório, marcamos uma hora compatível, em que ela sairia da sessão e desceria para a nossa consulta, Esperamos em vão por três sessões seguidas, Mariana não aparecia, Procurei escutar meus sentimentos nessa situação inusitada e percebi em mim, inicialmente, uma expectativa ansiosa e depois, com a continuação da espera, um desalento que me dizia ser inútil insistir, Após duas sessões de ausência decido telefonar para a sua analista, pessoa de quem sou amiga, para saber mais de Mariana, Durante a conversa ouço uma frase que me prendeu a atenção: "Ela falta muito, já pensei até em desistir, propor-lhe para interromper o tratamento se é o que quer, mas só penso isso quando ela está longe, Quando ela vem percebo o quanto está ligada a mim e as sessões são sempre muito proveitosas".

Em nossa terceira sessão de espera o pai se mostra cada vez mais irritado, Conta-me, então, que nas últimas semanas as coisas estavam melhores, Mariana estava mais comunicativa e cooperadora, carinhosa até, mas ele já estava cansado do fato de que depois de um período bom ela sempre aprontava algum problema, A mãe concorda dizendo que é assim mesmo que ela age, Digo-lhes que é possível que Mariana esteja testando a preocupação deles por ela, que talvez seja essa a maneira que tem de confirmar que é importante para eles, "Não quero arriscar minha saúde mental nessas histórias da Mariana, Para mim chega, Ela que tenha a vida que escolher, E não vejo sentido em continuar insistindo em estarmos aqui se ela não se interessa e não aparece", responde o pai em um tom duro, frio e cortante, Vejo a mãe de olhos arregalados, assustados, percebo o domínio que esse homem exerce na família e temo a ameaça de que nosso trabalho esteja em rumo de fracasso, Por tudo isso, em uma medida heróica, respondo-lhe depois de um silêncio pesado: "Bem, só posso lhe dizer que se fosse minha filha eu não desistiria dela," Provavelmente, sentindo-se apoiada, a mãe prontamente acrescenta: "Eu não vou nunca desistir da minha filha", Vou adiante percebendo uma brecha na resistência do pai: "Por enquanto Mariana tem esperanças, ela ainda é bastante garota, nada de muito grave ainda aconteceu, mas daqui a alguns anos talvez ela tenha desistido e vocês podem então perder a sua filha que, eu entendo, é o que vocês mais temem", Ficamos em silêncio, o ambiente continua tenso e, talvez por isso a mãe proponha: "E se déssemos só um susto nela, um gelo, sei lá,,," "Mas vocês não acham que Mariana já passou por esse susto, como bebê, quando provavelmente esperava por vocês que não chegavam, do mesmo jeito como ela faz agora conosco, por exemplo"? Ao falar, eu tinha consciência do impacto que tais palavras poderiam ter sobre os pais de Mariana, a culpa que a relação de causa e efeito - privação na infância e sua conduta turbulenta de agora - poderia provocar, Entretanto, eu sentia que era necessário convocar e reforçar a responsabilidade dos pais na ajuda que Mariana precisava receber, pois lembrava-me da recomendação de Winnicott de que, na conduta anti-social, o tratamento psicanalítico deveria ser acompanhado de assistência ao ambiente, já que o paciente com seu comportamento, por determinação inconsciente e também consciente, compele alguém a se encarregar de cuidar dele, É o que acontecia com Mariana quando, inúmeras vezes, batia com o carro e recorria ao pai porque estava sem os documentos necessários, ou quando esperava a iniciativa e ajuda da mãe para limpar e arrumar o seu quarto ou mesmo cuidar de sua higiene pessoal, ou em situações mais graves e arriscadas, como quando, de maneira inocente ou inconseqüente, aceitou trazer uma encomenda de um amigo, ao voltar de uma viagem ao exterior, e depois constatou tratar-se de um pacote de maconha, Os pais se afligiam por tudo isso e é fácil ter empatia por seus sentimentos de preocupação e de exasperação, pois no comportamento repetido de Mariana encontramos o que Winnicott denomina de "o valor de incômodo dos sintomas" como característica sempre presente na expressão da tendência anti-social, Ao cuidar de uma criança, esclarece Winnicott, a mãe está constantemente lidando com o valor de incômodo do seu bebê, que se manifesta, por exemplo, quando o bebê urina no seu colo enquanto está sendo amamentado, ou quando a desperta várias vezes à noite ou em tantos outros detalhes de cuidado do cotidiano, Entretanto, acrescenta Winnicott, qualquer exagero no valor do incômodo de um bebê já pode significar um certo grau de privação e sinais de uma tendência anti-social, Assim, desde a incontinência urinária, ao roubo, às mentiras, à vadiagem e à conduta desordenada e caótica, em todos esses sintomas, embora cada um com seu significado e valor específico, existe o elemento importante que é o transtorno, a perturbação que causa ao ambiente.

Ao final da sessão um tanto dramática vivida com os pais e acima descrita, faço-lhes uma proposta para tentar lidar com o impasse que a ausência de Mariana estava provocando, Sabendo da dependência dela à mãe, sugiro que vá buscá-la à saída de sua análise e venha com ela à nossa sessão, Assim é feito e, finalmente, conheço Mariana que me parece uma adolescente de quinze anos, com seu corpo gorducho e expressão infantil, Embora se esparrame na cadeira, como que muito à vontade, percebo seu rosto tenso e assustado, Para iniciar nossa conversa falo-lhe da preocupação dos pais a seu respeito e esses enveredam pelo tema dos estudos dizendo-lhe que sabem de sua verdadeira situação na faculdade, da grande probabilidade que tem de ficar reprovada este semestre, O pai tenta anima-la mostrando que, se fosse às aulas e estudasse, ainda teria tempo de reverter esse processo, Descreve, porém, uma cena onde Mariana teria sido vista sentada em seu carro, sozinha, de frente para o mar, durante seu horário de aulas, como que dando tempo para retornar à casa, Aborrecido, diz que não sabe por que promete uma coisa que não tem intenção de cumprir, enganando os pais, Vejo o olhar aflito de Mariana e procuro ir a seu socorro, sugerindo que talvez não houvesse intenção de Mariana em enganar ninguém e que, ao fazer sua promessa, ela tivesse todo o propósito de cumpri-la, mas que mais adiante podia se ver sem ânimo para levar adiante sua intenção, Mariana, pela primeira vez olha direto para mim e pressinto que se sentira entendida, o que pode ter sido decisivo para que passasse a comparecer regularmente às nossas sessões, Mas, mais ainda, naquele momento, através da sua imagem solitária e desanimada em frente ao mar, pude entender os sentimentos depressivos que estavam subjacentes à sua conduta desordenada, Afastada nos últimos cinco anos de sua cidade natal em virtude de uma transferência de trabalho do pai, Mariana se ressentia da distância dos avós, da separação da família e, com insistência pedia que voltassem, É possível que essa mudança tenha revivido as separações sofridas na infância com a perda de sua estabilidade ambiental, Fato é que os pais localizam os problemas de Mariana a partir da mudança para o Rio de Janeiro.

Com a continuação dos nossos encontros ficou mais evidente o ciclo pelo qual Mariana repetidamente passava _ após um "bom período" em que tudo transcorria em harmonia, Mariana se mostrava inicialmente retraída (e, pudemos ver, melancólica), após o qual surgiam novos episódios de furtos, mentiras e confusões de toda ordem, Esse ciclo pode ser entendido pela origem e a organização da tendência anti-social na visão de Winnicott, pois ele afirma que, nessa condição, teria havido não uma simples carência, mas um verdadeiro desapossamento, ou seja, a perda de algo bom que foi positivo na experiência da criança até uma certa data, e que lhe foi tirado, Após o retraimento depressivo, a conduta anti-social de Mariana seria, na compreensão de Winnicott, um sinal de sua esperança renovada, a busca do suprimento ambiental que teria perdido, Para tanto, porém, o ambiente precisaria ser testado repetidamente em sua capacidade de suportar a agressão, em impedir ou reparar a destruição e em tolerar o incômodo que tudo isso acarretava, Afinal, Mariana, como qualquer outra criança e adolescente anti-social, reivindicava de seu ambiente, a paciência infinita e a devoção que, quando bebê, teria tido direito a receber, Entretanto, quando tais idéias foram apresentadas na sessão acima descrita, o pai reagiu com veemência, sentindo e declarando que sua saúde mental corria riscos, pondo em palavras o que talvez todos nós que estávamos envolvidos com Mariana sentíamos e que nos impelia a pensar em desistir, Assim, acompanhando Mariana e os pais, pude experimentar os riscos que cercam a esperança e me recordei, então, do perigo que corre a mãe preocupada e devotada a, um bebê pois, nesse estado, afirma Winnicott, se o bebê morre, a mãe pode adoecer, Como analogia, existe um caráter de urgência no lidar com a tendência anti-social; entretanto, constantemente vemos, adverte Winnicott, o momento de esperança ser desperdiçado, ou desaparecer, por causa de intolerância ou de falha de quem cuida em ir ao encontro do momento de esperança e corresponder a ele, Tal falha provavelmente ocorreria porque corresponder ao momento de esperança representa, como vimos, arriscar a própria saúde mental, pois a pessoa estará, também, sujeita aos sentimentos de desespero, o mesmo desespero que o paciente anti-social, afinal, um dia, precisará reviver, Certamente ele só o fará se o ambiente aceitar o teste, passando por tudo aquilo que ele teme passar, Além desse ponto _ o da esperança e do desespero - existe a delinqüência, como defesa anti-social organizada, sobrecarregada de ganhos secundários e pondo a criança ou o adolescente já inacessível ao gesto de ajuda, Por toda essa gravidade e premência, Winnicott recomenda que o terapeuta se envolva com a demanda inconsciente que o paciente faz de que alguém dele se encarregue, suportando esse impacto na situação analítica e, mais ainda, que ajude também os pais nessa mesma tarefa, Para tanto é preciso conseguir compreensão sobre suas próprias dificuldades e, assim, quando conseguimos ajudar os pais a ajudarem seus filhos, na verdade estamos ajudando-os a respeito de si mesmos.

Que dificuldade maior impedia o pai de ajudar Mariana? Homem que se fez por si mesmo, órfão de pai ainda menino, trabalhou duro para chegar à posição profissional de destaque que hoje possui, Orgulhoso do que conquistou, acostumado ao mando, reagia ao que, para ele, era uma condição humilhante e submetida ante o que considerava os caprichos da filha, quando Mariana conseguia, por suas dificuldades, ter todos da família a seu serviço, Era essa a sua interpretação para as tentativas que Mariana fazia, buscando recuperar a experiência de onipotência de um bebê bem atendido e da qual se viu, prematuramente, despojada, ao ser afastada da mãe na infância, Essa experiência de onipotência foi, um dia, tão somente, uma realidade psíquica favorecida e mantida pelo bom ambiente, a ilusão que preservou o bebê de viver sua real condição de vulnerabilidade e extrema dependência,, Rompida prematuramente, porém, pode se transformar em um comportamento imperioso na criança _ como nas birras infantis - e é dos primeiros sinais reveladores de privação, e da conseqüente tendência anti-social que, com freqüência, nesse momento inicial passa despercebida, Mais adiante, porém, o sentimento de onipotência assim gerado, irá se expressar em manifestações e atitudes de poder, e que vão desde o desafio e arrogância até os atos extremos de violência e crueldade com que um delinqüente criminoso pode aterrorizar a sua vítima, É esse um aspecto delicado, merecedor de importância na prevenção e tratamento da tendência anti-social, pois o ambiente, assim desafiado, ao estabelecer os limites necessários, pode responder com prepotência semelhante, em atos de humilhação, sem respeito à dignidade humana, o que só serve para alimentar de lenha essa fogueira.

Winnicott é um autor esperançoso, Constrói uma teoria da doença mental que decorreria de uma interrupção ou perturbação no desenvolvimento, trazendo consigo, porém, sempre, a concepção de uma dinâmica no sentido da cura, Ele vê, assim, os sintomas como uma busca de novas e melhores condições para que o bloqueio ao desenvolvimento seja afastado, quando, então, o crescimento poderá ocorrer pelo impulso à integração que existe no indivíduo, Ele é um autor esperançoso, mas não é romântico e, em nenhuma outra área quanto a da conduta anti-social, seu agudo senso da realidade crua da vida se expressa melhor, Por isso, ele admite que, embora a moldura necessitada por um indivíduo tenha, como ponto de partida, os braços e o corpo da mãe, nos desvios de aqui falamos talvez só possa ser encontrada nas leis do país e nas barras de uma prisão.

Eu, Mariana e seus pais, encontramo-nos por uns poucos meses, quando o trabalho foi interrompido com a mudança da família para a sua cidade de origem e para a alegria de todos, Mariana seguiu na frente porque iria prestar um novo vestibular, agora mais condizente com suas verdadeiras aspirações e combinamos que o tratamento continuaria com profissionais que lhes indiquei, Algumas melhoras foram conseguidas, mas talvez a mais significativa se resumisse na declaração do pai em nossa última sessão: "Sei que há muitas coisas ainda de que precisaríamos falar, mas estou mais tranqüilo e mais animado porque hoje eu sei que o que acontece com ela não é sem-vergonhice".

 

Referências

Winnicott, Donald W, 1984a: Privação e delinqüência, São Paulo, Martins Fontes.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
E-mail: edvilete@uol.com.br

Recebido em 15 de setembro de 2005.
Aprovado em 3 de dezembro de 2005.