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Natureza humana
versão impressa ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.23 no.2 São Paulo jul./dez. 2021
ARTIGOS
Biopolítica neoliberal: além do laissez faire
Neoliberal biopolitics: beyond laissez faire
Borxa Colmenero Ferreiro
Doutor em Direito pela Universidade da Corunha (Galiza, Estado espanhol) e Doutor em Teoria Política pela Universidade de Santiago de Compostela (Galiza, Estado espanhol), é investigador no grupo ECRIM (Criminologia, Psicologia jurídica e Justiça penal no século XXI) da Universidade da Corunha, bem como do grupo (Dês)Leitura: Filosofia, Ciência e Arte da Universidade Estadual de Londrina (Brasil), docente nas áreas de direito crítico e pensamento político em 17, Instituto de Estudos Críticos (México) e, atualmente, é também professor colaborador de Estudos de Direito e Ciência Política da Universitat Oberta de Cataluña (Catalunha, Estado espanhol)
RESUMO
A principal característica do projeto neoliberal, não a encontramos, como sustenta com grande rotundidade boa parte da literatura especializada, numa particular política econômica baseada fundamentalmente na liberdade de mercado. Pelo contrário, se abordarmos a realidade desde a mirada foucaultiana, o verdadeiramente transcendental no neoliberalismo é, antes, a sua realização como razão normativa. É o que afirmava Foucault ao sugerir que, em síntese, o projeto neoliberal é resultado da crise do intervencionismo posterior à Segunda Guerra Mundial. Isto significa que o neoliberalismo se manifesta mais na produção de uma determinada forma de vida do que na sua eventual destruição. Desse modo, semeia nos sujeitos valores, práticas, cálculos e avaliações específicas da economia a cada uma das esferas vitais.
Palavras-chave: neoliberalismo, disciplina, razão econômica, subjetividade.
ABSTRACT
The main characteristic of the neoliberal project is not the particular economic policy based fundamentally on the freedom of the market, as strongly suggested by an important part of the specialized literature. On the contrary, if we approach reality from Foucault's point of view, the truly transcendental in neoliberalism is rather its realization as "normative reason". This affirmed Foucault when suggesting that, in summary, the neoliberal project is the result of interventionist crisis after the Second World War. This means that Neoliberalism manifests itself rather in the production of certain life forms than in its eventual destruction. Thereby it spreads specifically economic values, practices, calculations and evaluations to each aspect of life itself.
Keywords: neoliberalism, discipline, economic reason, subjectivity.
1. Introdução à noção de neoliberalismo
Se subscrevermos a tese proposta por autores como Von Mises (1998, pp. 49-50), Hayek (1995, pp. 39-58), Friedman (2012, pp. 1-204) ou Becker (1993, pp. 23-25), o neoliberalismo teria a sua matriz no domínio total e inflexível do mercado como forma de organizar qualquer relação de troca.1 O mercado seria, deste modo, o mecanismo idôneo para a autorregulamentação da sociedade e, à sua vez, o instrumento mais apropriado para a satisfação das necessidades sociais. E o Estado, outrora dispositivo normalizador por excelência, apareceria, à contra, numa realidade social complexa e cambiante como a atual, como sendo o principal obstáculo para a liberdade individual e a concorrência entre os indivíduos na procura da sua própria realização.
Seguindo esta leitura canônica, a arquitetura estatal e disciplinar teria que ser profundamente reformada e dirigida a devolver aos sujeitos a responsabilidade como protagonistas sociais. A intervenção sobre o conjunto da sociedade deveria, então, ser reduzida para a mínima expressão. De um lado transferindo-se as políticas públicas para o mercado privado, como resultado da sua ineficácia e ineficiência, e do outro rompendo-se a rigidez mercantil e maximizando-se a flexibilidade laboral, com o fim de ativar o cidadão como sujeito de progresso econômico e dinamismo social.
Numa perspetiva crítica desta narrativa, Anderson (2003, pp. 11-14), Harvey (2007, pp. 16-37) e Toussiant (2010, pp. 21-23), entre outros autores, identificam o neoliberalismo, antes de mais, com um novo projeto de acumulação e estruturação social, além de uma nova forma de interpretação das relações sociais sob a lógica do mercado. Para estes autores, o neoliberalismo é uma ideologia voltada especialmente para a reorganização política da sociedade através da implementação de um conjunto de políticas de libertação do mercado do controle estatal. Com efeito, o compromisso social do passado deveria ser relegado, no melhor dos casos, a um simples instrumento a serviço da economia livre de restrições. E o fim último do processo de deslocalização, desindustrialização e mudança tecnológica impulsionada pelas políticas econômicas neoliberais seria, portanto, nada mais e nada menos que a transformação da relação capital-trabalho instaurada durante o modelo welfarista.2
Nas palavras de Harvey, o neoliberalismo é, pois, o projeto político da classe capitalista, destinado a restabelecer a hegemonia perdida desde a Segunda Guerra Mundial (2007, p. 38). Na opinião do teórico social britânico, o retrocesso do Estado, a desregulamentação do mercado, a fragmentação social e a promoção do individualismo, mais do que criar um hábitat necessário para o crescimento econômico, libertando a sociedade civil da gaiola de ferro como afirmavam os Chicago Boys, busca em primeiro termo a reorganização do poder do capital para recuperar a primazia social perdida.
Continuando com a análise de Harvey (2007, pp. 7-8), a mudança verificada desde a década de 70, tanto na ação governamental como no pensamento político e econômico, teria provocado o mais vasto processo de destruição criativa (2007, pp. 47-72). Um processo que não foi dirigido exclusivamente para a limitação do controle estatal e dos poderes institucionais, senão que colocou no seu foco, principalmente, a transformação da divisão fordista do trabalho e das relações sociais que dela derivaram e, portanto, a mutação das formas de vida. É inaugurada, assim, uma época caracterizada por colocar em causa a intervenção keynesiana do Estado, representada principalmente pela política assistencial, mas, sobretudo, pelo questionamento da relação entre o Estado e os indivíduos. O resultado, bem conhecido hoje em dia, é a cronificação do desmantelamento da proteção social, a privatização das empresas públicas, a reversão da política fiscal e a flexibilização do mercado laboral, para destacar os principais efeitos destas medidas, etiquetadas a todo momento e por qualquer governo como urgentes e extraordinárias.
No entanto, o neoliberalismo, como trataremos de expor neste texto, vai resultar num fenômeno mais complexo e mais profundo do que a mera restituição ou renovação das políticas liberais como, de algum modo, nos adverte Harvey (2007, p. 17).3 Reduzir, portanto, o neoliberalismo a uma política centrada na desregulamentação da economia, livre comércio e redução do gasto público, poderia ser, em nossa opinião, insuficiente para compreender a integridade da sua natureza, limitada, numa análise mais ortodoxa, a uma atualização da teoria liberal.
Em outras palavras, a penetração do econômico no corpo social, e a sua expansão, não encontram explicação completa, como apontam Laval e Dardot (2013, p. 12), na descrição do neoliberalismo como concreta política econômica ou projeto político determinado. Mas, também não devemos pensar o futuro neoliberal como um modelo único e coeso. Ao contrário, aquilo que observamos com Peck (2010, pp. 172-269) é um projeto multidimensional, com construções políticas em confronto, avanços, retrocessos e tradições específicas em cada geografia.
2. Do laissez faire à racionalidade econômica
Para Brown (2015, pp. 34-35), a singularidade do neoliberalismo, não devemos procurá-la na estrutura econômica do Estado, nem no livre mercado. A particularidade do capitalismo contemporâneo encontra-se no modo de governar a vida através de uma razão normativa, que semeia nos sujeitos valores, práticas, cálculos e avaliações específicas da economia a cada uma das suas esferas vitais. O neoliberalismo é, em suma, uma política da vida, uma biopolítica, que produz subjetividades e que não se detém nas relações da produção ou no modelo de acumulação do capital. Sua verdadeira vocação é a projeção de novas formas de existência e relacionamento social (Laval e Dardot, 2013, pp. 13-14), em contraste com a tese de raiz materialista que o percebe como um projeto selvagem e explorador de pessoas, costumes, instituições e direitos com o único objetivo de criar um exército de trabalhadores.4
A partir dessa abordagem, o neoliberalismo seria um modo de governo mais interessado na produção de certas formas de vida do que na sua destruição (Foucault, 2012, p. 79), a partir de uma original relação entre o Estado, a economia e a vida (Brown, 2015, pp. 96-97). Isto é, não estamos assistindo a um retorno do capital e de seus meios e práticas de exploração readaptados ao presente, mas a uma superação do modo de governo do capitalismo fordista. A governança neoliberal, interpretada por Foucault (2006, p. 136) como governamentalidade, opera em outra dimensão, penetrando no corpo social como nunca na história e impulsionando seus ritmos, seus movimentos e seus tempos.5 O neoliberalismo não se realiza apenas com a conquista do poder institucional na esfera política ou com o controle dos grandes mercados internacionais na esfera econômica, senão que precisa produzir formas de vida em termos subjetivos. Seguindo Laval e Dardot (2013, p. 14), aquilo que produz o neoliberalismo são, portanto, formas de existência ajustadas aos critérios e parâmetros mercantis, tal como admite Foucault ao sublinhar que o governo neoliberal:
[...] deve intervir sobre a sociedade mesma em sua trama e em sua espessura. No fundo - e é aqui que sua intervenção vai permitir alcançar seu objetivo, a saber, a constituição de um regulamentador de mercado geral sobre a sociedade -, tem que intervir sobre essa sociedade para que os mecanismos competitivos, a cada instante e em cada ponto da espessura social possam cumprir o papel de reguladores. Será, portanto, um governo não econômico, como o que sonharam os fisiocratas, quer dizer, um governo que não tem mais do que reconhecer e observar as leis econômicas, não é um governo econômico, é um governo da sociedade (Foucault, 2012, p. 156).
Para Foucault (2006, pp. 398-399), os sujeitos serão afetados em todos os planos vitais pelos princípios da concorrência econômica e da disputa permanente por todos e cada um dos espaços da sociedade, sejam ou não os lugares próprios da produção em seu sentido materialista. Com certeza esta sugestiva interpretação do projeto neoliberal proposta pelo pensamento foucaultiano vai abrir uma linha de análise substancialmente distinta à realizada pela denominada corrente economicista, que o teria caracterizado como uma espécie de projeto renovado do liberalismo.6 No entanto, a partir desta perspectiva, a aposta neoliberal extravasa a política econômica concreta do liberalismo porquanto sua substância é a transformação do modo que se percebe o governo das populações. Sobre esta mudança constitui-se uma densa intervenção social cujo objetivo final é a regulamentação da vida: a organização, o controle e o gerenciamento do corpo social sob os parâmetros da economia de mercado. Este pressuposto infere, então, fixarmos a primeira grande crítica ao modelo economicista neoliberal, isto é, pormos em causa o caráter espontâneo do mercado, e redimensionarmos a crítica ao intervencionismo como um meio para acompanhar a expansão e o progresso do capital. Isto, pois o capitalismo não responde, em absoluto, a um processo natural de desenvolvimento econômico, senão que ele só é possível através da execução de um autêntico programa de regulamentação social (Laval e Dardot, 2013, p. 78).
Em outras palavras, a ordem econômica enquadra-se em um processo mais amplo, que também é social e político, na medida que a economia por si só não gera como consequência natural as formas de relação social e política precisas para a expansão e reprodução do modelo neoliberal. Como adverte Dean (1999, pp. 156-158), o próprio projeto neoliberal é quem impulsiona, de tal sorte, sua específica racionalidade regulamentadora da vida social conforme os critérios da lex mercatoria. E isto situa o indivíduo no centro de todas as suas intervenções, programando ações políticas e sociais concretas e específicas com o propósito de conformar, parafraseando Boltanski e Chiapello (2002, pp. 609-647), um novo espírito do capitalismo.7 Um espírito capaz de ultrapassar os velhos valores e princípios do liberalismo clássico, marcados pelo pensamento econômico de um mercado que nem é espontâneo, nem está determinado por leis naturais.
O novo espírito do capitalismo permite, então, ensaiar novos valores adaptados à sociedade-empresa, submergindo os sujeitos a parâmetros de desenvolvimento pessoal e gerenciamento da vida e empreendimento e administração de riscos (Laval e Dardot, 2013, pp. 139-140). Não estamos diante de uma imposição vertical dos poderes públicos, nem diante de um poder exterior que obrigue um comportamento certo de vida. Sua dinâmica é distinta e opera, seguindo Deleuze (2008, pp. 222-223), em direção oposta: não de fora para dentro, mas de dentro para fora. Isto é, uma dinâmica de autoconstrução subjetiva não-impositiva em que o sujeito neoliberal não (sobre)vive na sociedade de mercado de uma maneira natural, mas, principalmente, aprendida. Estamos, em síntese, ante um indivíduo que é ativo, dinâmico e vivo, em oposição ao sujeito disciplinado e dócil do capitalismo fordista. Através da incorporação de normas, valores e práticas constitui-se, então, como um sujeito funcional, num processo de formação que é, em concordância com a tese foucaultiana, realmente um processo de autoformação (Foucault, 2008, pp. 224-225).
Nesta sequência, o neoliberalismo rompe substancialmente com a visão de um modelo econômico otimizado do liberalismo clássico centrado na liberalização e desregulamentação do mercado como forma de salvação do capitalismo contemporâneo. Isto acarreta, antes de mais, um forte questionamento da doutrina política clássica liberal - segundo a qual qualquer intervenção é um obstáculo para o progresso da sociedade - em duas direções complementares. Por um lado, a caracterização do Estado como um ente depredador e da ação da administração pública como freio para a movimentação social realizada pelo liberalismo, serão postas em causa pela própria prática no decurso do agir neoliberal. Por outro, a identificação das políticas públicas como ineficazes e ineficientes, derivada do seu caráter burocrático e monopolístico, terá a mesma sorte, como a seguir exporemos.
De um jeito quase oposto ao sinalado, os modos de atuação social do governo neoliberal sobre a vida das populações têm implicado, sem dúvida, um processo mais amplo, mais denso e mais profundo do que o advertido pela teoria liberal. Além das transformações técnicas do sistema político e econômico do Estado, o que provocou a governança neoliberal é uma mudança radical na maneira como o poder opera, conforme Foucault (2007), sobre as populações, o território e segurança. Como aponta Brown, o projeto neoliberal ultrapassa qualquer reducionismo a uma política econômica concreta, já que é, antes de mais, uma racionalidade de gerenciamento e administração da vida (Brown, 2015, p. 61). Ou seja, é uma específica arte de governar que se articula através de um plano de profunda intervenção social, destinado a recodificar os discursos, normas e práticas sobre as que se instalou o liberalismo. Mas, sobretudo, é um programa de reconfiguração das bases do Estado e de expansão das relações econômicas para espaços não-econômicos. Para tanto, não é possível afirmar que exista um continuum entre liberalismo e neoliberalismo, porquanto o segundo não procura como o primeiro, seguindo a Harvey (2007, pp. 73-90), a retirada do intervencionismo sobre a sociedade. E sendo inegáveis os importantes elementos de continuidade entre ambos os projetos (Laval e Dardot, 2013, p. 23), o neoliberalismo é muito mais do que a simples recomposição do modelo liberal tratando de voltar às raízes para recuperar seu espírito de livre comércio, propriedade privada e livre circulação.
Na linha proposta por Foucault (2012, p. 158), o neoliberalismo é uma tentativa de reconstruir a sociedade a partir da razão econômica. Um novo paradigma de governo a se articular sobre uma nova forma de relacionamento regida pela concorrência individual, maximização dos benefícios e risco, como princípios de organização da vida. De forma que o modelo liberal tradicional, economicista, baseado no desenvolvimento natural do mercado, é substituído por um modelo social de intervenção e condução. Como advertem Laval e Dardot (2013, p. 25), a vida é governada, então, por práticas, normas e dispositivos que constituem uma autêntica racionalidade totalizadora cujo objetivo é, seguindo Rose (2007, pp. 113-152), reorganizar o social, desenvolvendo novas formas de vida submetidas a um biopoder multiforme, híbrido e inclusive contraditório.
[...] um poderia sugerir que dentro dessas estratégias de governo que tenho chamado liberais avançadas, se descobre a emergência de um novo método de conceptualizar e atuar sobre as relações entre o governo de vida econômica e o autogoverno do indivíduo: a economia já não tem de ser governada em nome do social, nem tem de ser a economia a justificativa do governo social em outra série de setores. O social e o econômico veem-se agora como antagônicos e o esquema anterior deve ser fragmentado de modo a transformar as obrigações morais e psicológicas da cidadania econômica em direção a um autoprogresso ativo. Simultaneamente, o governo de uma faixa inteira de aparelhos previamente sociais deve ser reestruturado de acordo com uma imagem particular do econômico: o mercado. O governo econômico tem de ser dessocializado em nome da maximização do componente empreendedor de cada indivíduo (Rose, 2007, p. 129).
Em síntese, assistimos uma ordem governamental e uma produção de sujeitos sob uma específica razão normativa que permite diversos conteúdos no tempo e no espaço operando sob uma racionalidade global e ubíqua (Brown, p. 19, pp. 58-59).
3. Governo econômica da vida
A partir desta hipótese, o pensamento foucaultiano rompe com a visão mais convencional do neoliberalismo para abordá-lo como uma forma de gerenciamento pública e privada que administra tanto governantes quanto governados. Um modo de governo, segundo a tese foucaultiana, entendido mais como atividade governamental que como instituição, que não adere necessariamente a uma determinada forma estatal, senão que se centra na eficácia jurídico-política das suas normas, práticas e discursos para a ação individual (Laval e Dardot, 2013, p. 15). Para o governo neoliberal, o elemento axial encontra-se na capacidade de penetração e expansão da razão econômica pelo tecido social, superando os espaços e lugares historicamente adstritos à produção econômica. Com isso, invade o conjunto dos processos vitais que se geram na sociedade para lhes imprimir uma racionalidade centrada na concorrência, espírito empresarial e criação (Deleuze, 2008, p. 223).
O neoliberalismo transmuta cada contorno da vida, cada conduta e cada rotina do indivíduo, tanto por si só como no seu relacionamento com os outros, tendo como critério universal os parâmetros econômicos (Brown, 2015, pp. 40-41). Esta reconstrução, como advertimos, afeta o sujeito, mas também o Estado, que tem no modelo gerencial-empresarial seu guia de ação institucional. Para observar a influência econômica na esfera estatal, não basta apontarmos os processos de privatização ou a internalização dos princípios econômicos nas políticas públicas. Sendo relevantes tais aspectos, quiçá o mais destacado é a reordenação do setor público como peça fundamental para a introdução da lógica da concorrência na sociedade (Laval e Dardot, 2013, p.17, p. 25). É, então, desde o próprio Estado, e não à margem dele, que se implementou a intervenção da racionalidade econômica no corpo social (Jessop, 2017, p. 99, p. 323), cujo objetivo é cifrar os sujeitos como agentes econômicos a interagir na sociedade-empresa. Esta é a principal exclusividade da razão neoliberal, a sua capacidade para abandonar locais e instituições predeterminadas pela sociedade fordista e prototípica do Estado de bem-estar, nos quais, para Foucault, os indivíduos se tornavam úteis e eram fortemente domesticados (1979, p. 15). Por essa razão, o programa neoliberal aposta decididamente em abandonar o hábitat welfarista como espaço-tempo de controle econômico-político para se abrir aos mais variados planos da vida humana, difundindo-se por todo o corpo social e redirigindo seus objetivos para o interior dos indivíduos.
Face à concepção do Estado hobbesiano, onipotente e soberano, que ordena a vida pública com autoridade e coerção, opõe-se outra percepção, baseada na administração gerencial dos múltiplos e diferentes atores, tanto públicos como privados, a operar na sociedade.9 Não entanto, esta forma de gerencialismo estatal, longe de ser entendida como uma administração economicista do público, apresenta-se para Lemke (2006, p. 14) como um governo da vida que se expressa em práticas, hábitos e rotinas concretas.9 Isto é, parafraseando Brown (2015, p. 161), o modo de governo neoliberal, mais do que uma forma de gerenciamento estatal, é antes sua condição de possibilidade, campo desde o qual se forjam as técnicas de gerenciamento da vida interpretadas exclusivamente em termos econômicos. É nessa triangulação especial de sujeitos, economia e Estado que a racionalidade neoliberal estabelece uma inovação transcendental. Em outras palavras, o neoliberalismo introduz como particularidade, com respeito ao modelo liberal, a relação original entre uma nova institucionalidade e um novo sujeito, atravessada pelos princípios econômicos.
Na opinião de Laval e Dardot (2013, p. 143), é por meio desta condução social que é possível constituir uma autêntica política da condição humana. Ou seja, uma política produtiva de vida genuína em representação de um sujeito neoliberal, cristalizada em discursos, práticas e rotinas. Distanciando-se do modelo disciplinar, como sugere Deleuze (2008), esta governança da vida articula-se como um processo de autoformação individual, que já não se leva a cabo em solitário nas instituições prototípicas da disciplina onde os indivíduos eram normalizados - e se for o caso, corrigidos - como seres úteis para as necessidades específicas do capitalismo fordista (Foucault, 1990, pp. 32-37). É, pois, é com o progressivo declive do modelo social fabril e das suas disciplinas (Hardt e Negri, 2002, pp. 37-41; pp. 185-193) que emerge a formação de um novo habitat para a subjetivização: o mercado. Mas um mercado que também vai além dos limites dos espaços de troca de bens e serviços descritos pelo liberalismo clássico para se imbricar e circular pelo corpo social. O mercado passa a ser definido, portanto, como um espaço-tempo de formação, melhoria e capacitação constante do sujeito-empresa, única forma social válida, porquanto nele as relações sociais passam a ser substituídas por relações propriamente mercantis, estendendo a lógica comercial a todas as esferas da vida e fazendo da relação mercantil o patrão da relação social (Colmenero, 2018, pp. 70-74). Como de forma sugestiva o descreve Feher (2009, pp.21-41), o sujeito neoliberal é um ser que deve procurar incessantemente sobressair-se entre a multidão, ser identificado como mais atraente dentre os seus competidores. Ele deve maximizar seu valor de mercado, direcionando todos os seus esforços vitais para gerar a maior confiança possível na sociedade apresentando-se como um ótimo investimento. Para este autor, o sujeito contemporâneo é um Eu-S.A. que se recodifica como gerenciador de sua própria vida economizada.
Em síntese, o mercado transforma-se no veículo que transporta o espírito mercantil: a concorrência, a rivalidade e o risco são a essência vital para a manutenção da economia neoliberal (Laval e Dardot, 2013, p. 143). Mas o mercado também é o lugar onde o indivíduo aprende a gerir a sua vida, onde incorpora hábitos e comportamentos funcionais e produz e reproduz imagens da percepção da realidade como ator protagonista da sociedade. Neste sentido, ilustra-nos Bauman (2007, pp. 47-49) ao abordar o processo de individualização do sujeito no mercado e, especificamente, na conformação das identidades vitais, que, em última análise, servem para subsumir o indivíduo no mercado. A tese do autor polonês se centra principalmente na substituição do rol consumo pela produção como nota característica da sociedade contemporânea - face à leitura foucaultiana aqui proposta e centrada na expansão dos processos de produção para todas os espaços vitais; não resulta problemático concordar com Bauman (1991/2005) na crítica às possibilidades que o mercado oferece aos sujeitos para a conformação de sua genuína identidade no leque das identidades comercializadas pelo mercado:
Um pode aprender a se expressar como uma mulher moderna, libertada e fora dela, ou como ama de chaves, sensata, responsável e disposta, ou como uma nova geração milionária, implacável e assertiva, ou como um tipo jovial e amigável, já seja como um homem de campo aberto, em boa forma física, ou como uma criatura romântica, sonhadora e amorosa, ou como uma mistura de todas ou algumas destas identidades [...]. As identidades comercializadas pelo marketing chegam a seu fim com a etiqueta de aprovação social já aderida antecipadamente.
Portanto, evita-se a incerteza com respeito à viabilidade de uma identidade construída pelo próprio sujeito e a agonia de procurar confirmação (Bauman, 2005, p. 274).
O mercado é, então, o quadro geral da vida para a autoconstrução da identidade enquanto espaço de codificação do processo político, pois é nele que são incorporadas as técnicas, as estratégias e as práticas que regem as relações sociais (Bauman, 2008, pp. 154-155). Em suma, o mercado é o lugar onde o indivíduo prega-se sobre si mesmo através da empresarialização da vida.
4. Em jeito de conclusão
À luz do exposto neste artigo, podemos concluir que a razão neoliberal não se limita a desregulamentar e privatizar a esfera pública do Estado para entregá-la ao mercado. Além disso, o que o projeto neoliberal implica, verdadeiramente, é a produção de formas de vida sob os princípios econômicos. Em primeiro lugar, o cálculo de mercado invade todo o espaço social e qualquer forma de relacionamento dos indivíduos consigo mesmo e com os demais; e isto acontece tanto na vertente pública como na privada, transformando ambas as esferas até as fazer indistinguíveis como lugares de produção de valor. Em segundo lugar, os indivíduos não só devem perseguir seus interesses pessoais maximizando seus ganhos, senão que têm de se ativar, melhorando a sua posição social, formando-se constantemente e tentando aumentar seu capital vital. Em terceiro lugar, e como efeito do anterior, assistimos a um processo de formação e melhoria constante dos sujeitos, no qual a valoração vital se dá só em termos de rentabilidade, empregabilidade e investimento, mas nunca como uma mera expansão do conhecimento, habilidades culturais ou intelectuais. Em definitivo, estabelece-se um autêntico governo econômico da vida, que é o quadro geral da condução, direção e administração dos sujeitos.
Nesta sequência, o fenômeno neoliberal constrói-se desde parâmetros substancialmente distintos aos propostos pelo liberalismo e, especialmente, face à percepção do mercado como sendo uma ordem natural a operar sob o laissez faire. Aquilo que concluímos, à contra, é um profundo projeto de intervenção social que se realiza através de um modo de governo mais amplo: um governo social. E esta é a verdadeira condição de possibilidade para a produção de uma biopolítica neoliberal que se desenvolve através de sujeitos racionais, ativos e prudentes que assumem o protagonismo das interações sociais e econômicas. Qualquer eventualidade ou contingência deve ser resolvida por cada indivíduo, como mais um agente econômico a interagir na sociedade-empresa, respondendo pelas suas próprias ações sem a necessidade de mediação estatal. Longe de responder a uma ordem espontânea ou a uma lei natural, a forma de vida neoliberal surge como resultado das intervenções racionalizadas, dos discursos, práticas e dispositivos que configuram os elementos co-constituintes da própria governabilidade, sem necessidade de um agente externo que oprima e reprima a vida mesma.
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1 Cabe destacar, entre outros, aos autores citados por quanto constituem o corpus central do pensamento econômico neoliberal. A caracterização realizada por Von Mises, Hayek, Friedman ou Becker, assim sendo, servem-nos de base teórica para nos aproximar à intensa reordenação da relação entre o Estado e a economia, ao colocar a liberdade do indivíduo como o verdadeiro princípio reitor da política contemporânea. Porém, sob esta tese não se vai desenvolver, em absoluto, uma doutrina política e econômica homogênea ou uniforme, nem a sua irrupção vai trazer com ela o desaparecimento de outras tendências preexistentes ou renovadas como o (neo)conservadorismo ou o (neo)keynesianismo.
2 Tais análises, em suma, podemos afirmar que, primeiro, salientam caráter materialista e de classe do processo político neoliberal, vid., por todas, Anderson (2003), Harvey (2007), Toussiant (2010).
3 Importa notar que para o autor britânico as políticas keynesianas lançadas a partir da Segunda Guerra Mundial foram definidas pelos teóricos neoliberais como uma espécie de liberalismo apressado, que não poderia desenvolver-se com normalidade num meio regulamentar que restringisse as atividades empresariais e corporativas. Por isso, o objetivo final do projeto neoliberal seria emancipar o capital destas restrições (Harvey, 2007, pp. 201-225).
4 Cabe assinalar, nesta análise, como referências mais sugestivas, Kurz (2009, pp. 52-53) ou Jappe (2016, 113-135), em seu objetivo de reinterpretar o devir do capitalismo contemporâneo desde a renovação da episteme marxista.
5 A proposta de Foucault (2006, p. 137), oferece uma leitura confrontada com a visão maquiaveliana do poder. Entende o governar como aquelas técnicas desenvolvidas desde o século XVIII com a finalidade de gerir, administrar a multiplicar o poder. Não se trata, portanto, de conservar o principado, o território ou as riquezas, mas governar os indivíduos, as populações conduzindo sua própria vida.
6 Laval e Dardot (2013, pp. 82-90) descrevem a importância na conformação do modo de governo neoliberal dos diversos debates e posições no marco do denominado Coloquio Walter Lippmann que se originou a fins dos anos trinta na Europa. Este antecedente de renovadores e continuadores do liberalismo marcam as linhas básicas do programa de intervenção neoliberal para o desenvolvimento do atual neoliberalismo.
7 Resulta de especial interesse a análise realizada por Boltanski e Chiapello (2002) sobre as etapas do espírito do capitalismo como quadro teórico das mutações sofridas na estrutura social a acompanhar as transformações propriamente econômicas neoliberais.
8 Nesta linha, podemos destacar, como parte deste processo, a irrupção, principalmente no mundo anglo-saxão, da New Public Management, que supõe um salto qualitativo na relação da administração pública e do setor estatal com a cidadania. Para Clarke e Newman (1997, p. 8-16) a reordenação do Estado através da incorporação dos saberes manageriais é um pilar fundamental para entender o assentamento do projeto neoliberal, porquanto, só a partir destes, seguindo a proposta de Osborne e Gaebler (1995, pp. 52-54, pp. 89-90), os cidadãos podem se ativar, responsabilizar e relacionar com o público.
9 Para Lemke (2006), acertadamente, a crise do keynesianismo e o desmantelamento das formas de intervenção incorporadas no Estado de Bem-Estar não causaram tanto uma perda da capacidade do Estado para governar como uma reestruturação das tecnologias governamentais que se expressam através de práticas e técnicas de gerenciamento e controle de indivíduos.