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Natureza humana
versão impressa ISSN 1517-2430
Nat. hum. vol.23 no.2 São Paulo jul./dez. 2021
ARTIGOS
Transgressão, resistência, subjetividade e arte em Foucault
Trangression, resistence, subjectivity and art in Foucault
Luiz Guilherme Nunes CicotteI; Renan PaviniII
IPsicólogo formado pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Atualmente é mestrando no Programa de Pós Graduação em Filosofia pela mesma universidade
IIRenan Pavini é Doutor em Filosofia pela PUCPR e, atualmente, é professor no departamento de filosofia da UEL
RESUMO
A temática da arte atravessa o pensamento de Michel Foucault em pelo menos dois momentos. Na década de 1960, em que Foucault é influenciado por autores como Blanchot, Bataille e Mallarmé e o problema da arte é posto como uma alternativa crítica aos saberes e a subjetividade é colocada em questão através das noções de transgressão, de limite e do ser da linguagem. Na década de 1980, em que o filósofo compreende a arte moderna como resistência, pois a partir de seu estilo de vida Outro, aquilo que Foucault chamou de vida artista, traz uma existência escandalosa e a marca da coragem da verdade, numa revivescência do cinismo antigo. Partindo dessa distinção, o presente artigo busca pensar como a arte, em cada um desses períodos, encontra-se colocada de maneira diversa no pensamento de Foucault, principalmente a partir da problemática da subjetividade.
Palavras-chave: Foucault; Transgressão; Resistência; Arte; Subjetividade.
ABSTRACT
The theme of art crosses Michel Foucault's thought in at least two moments. In the 1960s, when Foucault was influenced by authors such as Blanchot, Bataille, and Mallarmé and the problem of art was posed as a critical alternative to knowledge and subjectivity was put into question through the notions of transgression, limit, and the being of language. In the 1980s, when the philosopher understands modern art as resistance, because of his Other lifestyle, what Foucault called artist life, brings a scandalous existence and the mark of the courage of truth, in a "revival" of ancient cynicism. Based on this distinction, the present article seeks to think how art, in each of these periods, is placed in a different way in Foucault's thought, mainly from the subjectivity issue.
Keywords: Foucault; Transgression; Resistence; Art; Subjectivity
1. Introdução
A arte, embora não seja objeto de análise do pensamento foucaultiano, atravessa-o. Este atravessar não ocorre de maneira regular. Na década de 1960, a arte e, mais especificamente, a literatura, aparece como linguagem que se desdobra sobre si mesma e, ao mesmo tempo, impõe o desaparecimento do sujeito. Neste momento, as questões relacionadas ao espaço literário giram em torno da linguagem, fazendo eco às problemáticas colocadas desde Mallarmé, embora teorizadas mais profundamente por autores como Blanchot, Bataille e Barthes, em que o autor sai de cena para o aparecimento do ser da linguagem.
Já na década de 1980, a arte moderna é pensada dentro da temática da estilística da existência e, como tal, ela aparece como uma retomada, na modernidade, de alguns aspectos do estilo de vida cínico e, consequentemente, compreendida como um espaço de resistência. Nota-se, neste momento, que a subjetividade se torna ponto central de reflexão, sendo a própria constituição do sujeito que se desenvolve a partir do dizer e do agir escandaloso e polêmico.
Partindo desses dois períodos em que a arte faz-se presente no pensamento de Michel Foucault, nosso artigo busca refletir as implicações da relação entre arte e subjetividade. Para isso, em um primeiro momento, iremos trabalhar como a relação entre o limite e a transgressão da linguagem deixa um espaço vazio em que a subjetividade se encontra ausente. Em um segundo momento, traremos a aproximação, feita por Foucault, entre o modo de vida cínico e vida artista, para compreender como a arte moderna, aproximando-se do cinismo antigo, torna-se vida politizada. Por fim, em nosso terceiro momento, trabalharemos a irredutibilidade da arte apresentada na década de 60 à abordada no último Foucault, através da temática da subjetividade. Com isso, pretendemos demonstrar que a maneira que a arte aparece, mesmo que marginal, nesses dois momentos do pensamento foucaultiano, é irredutível um ao outro. Isto é, Foucault altera seu entendimento sobre a localização, a importância e a utilização da arte dentro da modernidade, principalmente a partir da noção de subjetividade.
2. A arte em Foucault na década de 1960
Na década de 1960, é marcante no pensamento de Foucault sua oposição às filosofias modernas em que o sujeito é não somente o fundamento da verdade, mas a fonte universal de significação. Suas análises arqueológicas visam se afastar desses postulados e mostrar como os discursos de verdade e o próprio sujeito são produzidos, ordenados e constituídos a partir de determinados saberes. Assim sendo, por mais que não seja objeto central das análises foucaultianas, é inegável a importância da presença da literatura neste período. Em razão disso, a literatura é tomada como experiência transgressora e, como tal, é compreendida não na dimensão do sujeito originário de toda significação, mas na dimensão da linguagem. Em consequência, podemos afirmar que essas experiências transgressoras não estão ligadas a algo que é privado, individual a um sujeito que escreve e caracterizado em um certo domínio subjetivo consciente.
Isso nos leva à seguinte pergunta: o que é transgressão? Em Préface a la transgression, texto em homenagem a Bataille, publicado em 1963, Foucault caracteriza-a em sua relação ao limite:
A transgressão é um gesto que concerne ao limite; é aí, nessa fina espessura da linha, que se manifesta a luz de sua passagem, mas talvez também sua trajetória na totalidade, sua própria origem. A linha que ela cruza poderia também ser todo o seu espaço. O jogo dos limites e da transgressão parece ser regido por uma obstinação simples: a transgressão transpõe e não cessa de recomeçar a transpor uma linha que, atrás dela, imediatamente se fecha de novo em um movimento da tênue memória, recuando então novamente para o horizonte do intransponível. Mas esse jogo vai além de colocar em ação tais elementos; ele os situa em uma incerteza, em certezas logo invertidas nas quais o pensamento rapidamente se embaraça por querer aprendê-las (Foucault, 2001a, pp. 264-265).
A transgressão, assim entendida, é esse gesto relativo ao limite, que no movimento de transgredi-lo, imediatamente, impõe um novo limite. Não há um limite que não possa ser ultrapassado, assim como não há uma transgressão fora dos limites. Essa experiência transgressora, segundo Sardinha (2010), é a própria tarefa da filosofia. Ela deveria acolher e levar mais longe essa experiência moderna dos limites e sua própria ultrapassagem. Tanto a crítica inaugurada por Kant sobre os domínios legítimos da razão, como a sexualidade sadiana compreendida como a profanação em um mundo em que o sagrado não tem mais sentido positivo, deixa-nos uma "experiência essencial a nossa cultura [...] uma experiência de finitude do ser, do limite e da transgressão" (Foucault, 2001a, p. 269). Ou, como comenta Sardinha (2010), "nem o limite, nem a transgressão são definitivos, ambos são provisórios. Nenhum possui sentido em si mesmo, mas apenas em função ao outro" (p. 181).
Aqui, faz-se importante destacar uma outra característica da transgressão, contrária à maneira como Foucault irá colocar o problema da arte em seus últimos textos. Distanciando-se da ideia de um escritor engajado, a transgressão literária não deve ser compreendida em termos políticos partidários.
É importante ressaltar que o caráter subversivo ou transgressor que Foucault, nos anos sessenta, acredita encontrar na literatura, não está associado a uma escrita engajada, comprometida diretamente com uma causa revolucionária. O 'ato de escrever' (l'acte d'écriere) como uma força de contestação nada tem a ver com a posição política daquele que escreve. Tal possibilidade seria visível, por exemplo, em Blanchot, cuja postura conservadora de extrema direita nada teria diminuído da força transgressora de sua escrita. Em suma, é a escrita que mantém, em si mesma, a função subversiva (Alves, 2013, p. 14-15).
Além do afastamento da questão política, tal passagem ilustra um ponto interessante da transgressão. Nela, aparentemente, o sujeito não é o elemento mais importante, ou melhor, o sujeito não é sequer uma questão, e sim a própria escrita. A obra é tomada em si mesma e o autor ganha sua função apenas em relação à linguagem. Isto é, o autor nada mais é do que um conjunto de linguagens aproximadas, como Foucault escreve em Qu'est-ce qu'un auteur?, e não um sujeito físico cuja subjetividade faz-se presente na obra (como o gênio romântico). O problema do ser da linguagem, que coloca em questão a própria linguagem, eleva-se no centro da reflexão sobre o pensamento transgressivo, sendo entendido como aquele que transita, que caminha perigosamente nos limites da linguagem (Alves, 2013).
Mas, afinal de contas, que ser da linguagem é esse? Não é, em absoluto, um ser fixo, estável, como se fosse uma essência invariável que a literatura teria sido capaz de aprisionar. Esse ser da linguagem precisa ser pensado como um espaço vazio que não será preenchido e objetivado, sempre no vir-a-ser, sempre em devir. Há, aqui, um traço importante a se ressaltar: Foucault abandona uma ligação direta entre subjetividade e escrita em benefício de uma experiência autônoma da linguagem.
É, em grande medida, por causa dessa característica que a escrita literária radical pode ser considerada um lugar privilegiado de emergência do ser da linguagem. Nela, a linguagem apareceria em si mesma, justamente em função dessa experiência na qual o sujeito retira-se, deixando de ser a consciência fundadora que se vale da linguagem como um simples meio de representação e de expressão de sua interioridade (Alves, 2013, p. 17).
Nesse sentido, podemos afirmar que a arte - tomada como correlata de literatura - é o lugar par excellence da experiência transgressora em que uma ética do sujeito se encontra ausente. Nessa perspectiva, não é o sujeito que transgride, uma vez que ele não cessa de desaparecer: ele esfacela-se no ato da escrita e, por essa razão, a linguagem da sua consciência não entra em jogo. Nesse esfacelar-se através da linguagem, Foucault afasta-se de duas tradições que colocavam o sujeito como o criador da obra: o romantismo alemão, em que o gênio era o grande fundador da obra de arte através de um dom (seja natural ou divino), e das análises psicopatológicas, que encontravam na obra um material inesgotável para diagnosticar como doente aquele que a escreveu. O ser da linguagem é esse ser que, ao transgredir os limites da própria linguagem, expande o espaço ao qual pertence. A linguagem, desdobrando-se sobre si mesma, torna-se ser que transgride e que ultrapassa os limites, que, imediatamente, impõe uma nova barreira que irá ultrapassar. Abre-se, então, na literatura, esse espaço sempre Outro dentro da linguagem.
3. Arte e resistência no último Foucault
Como vimos, se na década de 60 Foucault compreende a arte dentro do campo da linguagem, do espaço literário - como escreve Blanchot -, em seus últimos escritos, a referência à arte ocorre no domínio da vida, de uma ética ou uma estética da existência. Isso porque a arte não se restringe mais ao plano exclusivo da linguagem e a transgressão operada não é a transgressão linguística. Ou, mais especificamente, a forma como Foucault trabalhou as obras de autores como Roussel, Bataille ou Artaud, levou-o a considerar que elas mais apagavam e supliciavam o sujeito ao invés de formá-lo e protegê-lo (Sardinha, 2010). Assim, na década de 60, o campo da linguagem artística se relaciona ao empreendimento anunciado por Foucault na famigerada temática da morte do homem, como encontramos ao final de Les mots et les choses.
Todavia, em seu último curso pronunciado, Le courage de la vérité, Foucault encontra na experiência artística moderna - ao lado do ascetismo cristão praticado por algumas ordens religiosas ao longo da Idade Média e na figura do revolucionário político dos séculos XVIII e XIX (correntes anarquistas, militantes de esquerda etc.) - uma relação com o cinismo antigo e, em razão disso, causará uma transformação da maneira como a arte é entendida dentro de seu pensamento. No presente curso, Foucault opera o deslocamento das problemáticas ligadas às tecnologias de poder que coagem e normatizam o indivíduo ao empregar sobre ele uma verdade e uma identidade (problemáticas muito presentes nos anos 70), para uma preocupação de como o indivíduo, mesmo diante de determinados discursos ou práticas, constitui-se e é constituído a partir do dire-vrai. Isto é, o filósofo se volta, neste momento, ao estudo das formas aletúrgicas, opondo-as às estruturas epistemológicas que determinam a verdade sobre o indivíduo presentes em seus trabalhos das décadas anteriores.
Certamente, a problemática da parrêsia não aparece pela primeira vez em Le corage de la vérité. Foucault já havia trabalhado essa noção em seus dois últimos cursos, L´herméneutique du sujet, de 1982, e Le gouvernement de soi et des autres, de 1982-19831. Todavia, mesmo que possamos ver no curso de 1982-1983 a parrêsia como um problema político, é em 1984 que se encontra, citando Chaves, "em primeiro plano o papel da parrêsia no interior das relações entre sujeito e verdade" (Chaves, 2013, p. 21) fazendo coexistir sua dimensão filosófica e política.
Podemos dizer que o objetivo de Foucault, ao retornar à cultura greco-latina, não é para fazer uma exegese desses textos clássicos, muito menos se restringe a uma visão historicista. Mas, como é próprio de sua metodologia, esse retorno ao passado tem por objeto, justamente, pensar sua atualidade. Neste sentido, esse retorno visa estabelecer um diálogo (suas continuidades e deslocamentos) entre passado e presente, bem como inserir as problemáticas que ele encontra na antiguidade dentro das inquietações de seu próprio pensamento, como, por exemplo, no caso da parrêsia, para realocá-las nas relações de poder ou nas relações entre sujeito e verdade, como já apontamos.
Esta metodologia é necessária para compreendermos a ligação entre a parrêsia, o cinismo e a arte moderna, da qual Foucault se dedica na segunda hora da aula de 29 de fevereiro de 1984. Não à toa, podemos ver que a temática da parrêsia ganha toda sua importância, neste último curso, a partir de dois diálogos de Platão: Laques e Alcebíades. A estratégia de Foucault, ao opor esses dois diálogos de juventude do filósofo ateniense, é mostrar que eles deram origem a legados filosóficos bem distintos: em Alcebíades, podemos inseri-lo dentro do corpus mais conhecido do pensamento platônico, segundo o qual a verdadeira-vida encontra-se no mundo das ideias, isto é, o indivíduo deve contemplar sua alma para, então, ter acesso às verdades inteligíveis do outro mundo; em Laques, observa-se uma relação entre logos, verdade e bíos como fundamental para a condução da própria vida, uma vez que a relação que Sócrates estabelece entre a maneira de viver e o discurso é a condição fundamental para ser reconhecido como aquele que diz a verdade.
Entretanto, se temos que considerar, como nos lembra Candiotto (2019, p. 186), que "esses dois desdobramentos do corpus socrático, considerados por Foucault como os fundadores da prática filosófica ocidental, não são totalmente estranho entre si", ainda assim, a parrêsia se localizará no interior das relações entre sujeito e verdade, através dessa distinção inaugural encontrada em Alcebíades e Laques, entre uma metafísica da alma e uma estilística da existência, respectivamente.
Para nosso propósito, vamos mostrar os desdobramentos dessa estilística da existência na vida cínica para, posteriormente, compreender como Foucault a localiza na arte moderna.
Segundo Foucault, os cínicos foram aqueles que elevaram ao máximo a relação entre dizer a verdade e uma estilística da existência, ficando conhecidos, pela história da filosofia, como marginais, doutrina menor, pois traziam a marca do escândalo. Em razão disso, o cinismo, para Foucault, ocupa um lugar muito especial na história das formas da coragem da verdade: manifesta-se na forma de insolência política. Para diferenciar os cínicos de outros filósofos antigos, Foucault irá contrapô-los à figura do filósofo-legislador, como Sólon, e do filósofo-pedagogo, como Platão. Em sua conferência La philosophie analytique de la politique, de 1978, Foucault compreende que o filósofo no Ocidente sempre exerceu a função crítica próxima a de antidéspota. No caso de Sólon, ele próprio deve definir "o sistema de leis segundo os quais, em uma cidade, o poder deve se exercer sem perigo"; no caso do filósofo-pedagogo, "deve-se tornar conselheiro do príncipe, ensinando-lhe essa sabedoria, essa virtude, essa verdade que serão capazes, quando ele vir a governar, de lhe impedir de abusar do poder"; e, por fim, os cínicos, que renunciam a esses dois papéis e que "qualquer que seja o abuso que o poder pode exercer sobre ele e sobre os outros, ele, o filósofo, em sua prática e em seu pensamento filosófico, permanecerá, em relação ao poder, independente, ele rirá do poder" (Foucault, 2001a, p. 537).
Os cínicos são aqueles que não deixaram uma reflexão crítica e sistemática (como os epicuristas, os céticos ou os estoicos), que não se colocaram, como Sólon ou Platão, na posição de legisladores ou pedagogos, e que enfrentaram o poder não de forma discursiva, mas rindo; escândalo e riso se tornam, a partir dos cínicos, essa instância de resistência aos abusos do poder. Em suma, os cínicos são aqueles que debocharam, como nos aponta Chaves, "das próprias leis erigidas para regular o exercício do poder, assim como da capacidade do discurso filosófico em ensinar alguma virtude, alguma sabedoria ao príncipe. Eles respondem ao poder com seu corpo que se dobra na gargalhada de escárnio" (Chaves, 2013, p. 38).
Não nos cabe, neste momento, reconstruir todos os aspectos de como Foucault compreende o cinismo antigo, mas entender como a arte moderna acaba por manifestar aspectos particularmente importantes presentes nesta vida cínica.
Na segunda hora de sua aula de 29 de fevereiro de 1984, Foucault distancia-se das literaturas alemãs do século XX, que sugerem o cinismo moderno como uma manifestação da individualidade2, e, ao mesmo tempo, renova a leitura sobre o cinismo antigo, ao compreendê-lo na relação entre formas de existências e manifestação da verdade, para localizar, em seu âmago, a forma de existência como escândalo vivo da verdade. Por este ângulo, Foucault irá pensar a arte moderna como um acontecimento raro e singularmente importante, que estabelece o vínculo entre as formas de vida e a verdade, numa revivificação do cinismo antigo. Este vínculo é caracterizado de duas maneiras coexistentes: primeiro, no final do século XVIII, com o aparecimento da vida artista e, segundo, com a compreensão de que a arte (seja ela música, literatura ou pintura) estabelece com o real uma relação que não é mais da ornamentação ou da μίμησις, mas do desnudamento e da redução ao elementar da existência pela agressiva rejeição das normas instituídas.
Como acontecimento moderno, a vida artista é o testemunho de que a arte é sua verdade a partir de duas caracterizações principais: a arte é capaz de dar à existência uma forma que rompa com as demais formas de vida, o que acaba por forjar uma vida verdadeira, marginal; a vida faz-se garantia da própria obra de arte ou, mais especificamente, arte e vida tornam-se indistintas.
Em suma, a arte moderna relaciona-se com o cinismo no momento em que a indissociável relação entre vida e obra é dada na ruptura escandalosa com a existência e, concomitantemente, pelo estilo de vida outro às vidas ordinárias. Por isso, segundo Foucault, antiplatônica, pois ela não se remete ao real pela mera aparência, e sim pela recusa, agressão e polêmica; e antiaristotélica, já que, por ser marginal, ela distancia-se dos cânones estéticos e valores normativos da arte, como os determinados pela Poética de Aristóteles. É a isso que Foucault chama de anticultural, esse rompimento e rejeição de toda a forma e conteúdo instituído para engendrar uma nova forma de vida.
4. A subjetividade em questão
Como já mencionamos, o pensamento foucaultiano da década de 60, no que diz respeito aos aspectos literários, é fortemente marcado sob a influência de autores como Bataille. Lembremos que foi, justamente, o autor de La littérature et le mal que escreveu que a literatura, por ser inorgânica, "é irresponsável", já que "nada se apoia nela. Ela pode tudo" (Bataille, 1979, p. 182). A literatura, tomada em seu espaço literário, encontra-se afastada das problemáticas éticas presentes no último Foucault, e o ser que aí encontramos é o ser da linguagem.
Entretanto, a problemática da subjetividade não se limita à escrita literária. Não podemos esquecer que o apagamento do sujeito do discurso alinha-se à tradição da morte do autor e à maneira como Foucault opera seu pensamento no nível arqueológico. Em Réponse à une question, de 1968, Foucault (2001a, p. 714) afirma que a arqueologia é a história "não do ponto de vista dos indivíduos que falam", mas da perspectiva das "coisas ditas". Essa mesma posição encontra-se, explicitamente, em L'archéologie du savoir (1969), em que Foucault trabalha a oposição entre as filosofias do sujeito e a pesquisa arqueológica. As primeiras estão revestidas do tema histórico-transcendental, cujo movimento passa da exterioridade "em direção ao núcleo essencial da interioridade" (Foucault, 1969, p. 159). Nestas filosofias do sujeito, busca-se sempre uma subjetividade fundadora como origem, como sentido de todo e qualquer objeto histórico. Por sua vez, na arqueologia, os objetos são tomados como efeitos de regularidades discursivas. Com isso, o filósofo quer dizer que nenhum objeto "preexiste a si mesmo", uma vez que "ele só existe sob as condições positivas de um feixe complexo de relações" (Foucault, 1969, p. 61). Ou, em outras palavras, para que algo se torne objeto para o saber, é necessário que haja uma relação histórica que o determine. A pesquisa arqueológica mostra, também, que o sujeito é condicionado pela regularidade das formações discursivas.
É nesse contexto que se desenvolve a unidade discursiva do autor, conhecido, comumente, como aquele que escreve uma obra. A problemática instaura-se, uma vez que Foucault (1969, p. 34) entende o livro como um "nó em rede", isto é, "está tomado num interno sistema de remissões a outros livros, outros textos, outras frases", impondo-se uma dificuldade quando interrogado sobre sua unidade: esta, sempre relativa e variável, já que o livro se constrói a partir de um complexo campo de discursos. Por sua vez, a obra traz uma problemática maior, já que, tradicionalmente, uma obra é a soma de textos que podem ser denotados pelo signo de um nome próprio. Mas esta unidade abre-se para uma série de dificuldades: a obra de um autor é tudo o que ele escreveu ou disse (seus rascunhos, anotações, rasuras, correções, cartas, projetos, conversas relatadas por amigos) ou limita-se aos seus textos publicados? A dificuldade de se estabelecer os limites da obra é tão problemática quanto a individualidade do autor3.
Destarte, para Foucault, desde Mallarmé, por mais que se fale do desaparecimento do autor, este ainda está submetido a um bloqueio transcendental e, por isso, é necessário libertar-se das noções de expressão (do pensamento, da experiência, da imaginação, da inconsciência do autor e de suas determinações históricas) e localizar o espaço deixado vago por esse desaparecimento, fazer aparecer as funções livres dessa desaparição com toda a profundidade que a morte de Deus e do homem significam.
Por isso, o nome do autor não é um nome próprio ordinário, que se remete a um indivíduo empírico cuja individualidade é preciso captar ou decifrar a partir do texto, mas uma função que
está ligada ao um sistema jurídico e institucional que encerra, determina, articula o universo dos discursos; ela não se exerce uniformemente e do mesmo modo sobre todos os discursos, em todas as épocas e em todas as formas de civilização; não é definida pela atribuição espontânea de um discurso ao seu produtor, mas por uma série de operações específicas e complexas; não reconduz puramente e simplesmente a um indivíduo real, ela pode dar lugar simultaneamente a vários egos, a várias posições-sujeitos que classes diferentes de indivíduos podem vir a ocupar (Foucault, 2001a, p. 831-832).
Nota-se, a partir desta citação, que o autor empírico pouco importa, mas sim o discurso que é enunciado por meio dele. A materialidade do discurso (da qual a obra e o livro constituem instrumentos e ferramentas) sobrepõe-se àquele que fala e a subjetividade desaparece com o advento da linguagem.
Em uma perspectiva completamente distante, vemos que a estilística da existência carrega, na própria obra que é vida, a subjetividade. Só pode-se haver obra porque a vida faz-se arte. Por isso, em entrevista a Dreyfus e Rabinow, realizada em 1983, Foucault se diz surpreso ao constatar que na sociedade atual se encontra distante de uma arte de viver.
O que me surpreende é que, em nossa sociedade, a arte esteja apenas relacionada aos objetos, e não aos indivíduos ou à vida; e, também, que a arte seja um domínio especializado, o domínio dos experts que são os artistas. Mas a vida de todo indivíduo não é uma obra de arte? Por que um quadro ou uma casa são objetos de arte, mas não nossa vida? (Foucault, 2001b, p. 1436).
A maneira como Foucault caracteriza aqui a obra de arte - pelo menos entre os gregos e em sua ausência atual - é na dimensão da vida, da inseparável relação entre a vida que é, ela própria, obra. Nesse sentido, podemos dizer que a vida artista é essa retomada da vida que é obra. Certamente, a vida artista não é exclusiva de uma estilística da existência, no entanto, é ela que traz na modernidade, para Foucault, sua face mais intensa, polêmica, excêntrica e subversiva - uma retomada do estilo de vida cínico.
Por isso, uma estilística da existência como uma resposta teórico-prática de dar, a si mesmo, uma forma de sua própria vida, ainda permanece marginal e, simultaneamente, política. Marginal, pois a sociedade moderna foi constituída a partir da disciplina, da normalização, da coerção etc., que implica, por parte do sujeito, um exercício intenso para conseguir dar à vida a plasticidade evocada por Foucault nos cínicos; política, pois o ato de dar a si mesmo uma forma de vida outra do que aquela imposta aos indivíduos já é marca de luta e resistência.
Guilherme Castela Branco (2017, p. 116), refletindo sobre a estilística da existência, escreve que "toda luta pela autonomia consiste num processo iniciado na subjetividade, mas que não termina na esfera subjetiva [...] pois a resistência iniciada na subjetividade prolonga-se no mundo social", para, enfim, complementar:
A recusa das formas de subjetividade que nos foram impostas converte-se, assim, numa questão política de real densidade: temos que procurar elaborar formas de vida livres e autônomas dentro de sistemas sócio-políticos que trabalham incessantemente para submeter as pessoas a práticas divisórias, disciplinares, individualizantes, normalizadoras, com o auxílio de técnicas e de conhecimentos científicos, e com o apoio de um conjunto de técnicas de controle. A estética da existência não poderia ser um modo de vida marcado pela arte e numa vocação subjetiva e individual, como se fosse resultado de um talento e genialidade do qual o artista é portador iluminado, como se a arte fosse vocação pessoal de certos indivíduos raros e especiais (Castelo Branco, 2017, p. 117).
Castelo Branco tem razão quando afirma que a estética da existência não poderia ser um modo de vida exclusivo marcado por essa figura individual do artista genial, raro em sua existência e iluminado em sua atividade. Mesmo assim, temos que levar a existência do artista - tal como ele se configurou durante o século XIX - como uma das grandes formas de resistência e, devido a sua radicalidade, não compreender a obra, ou o logos que ela expressa, como distante da vida, mas a vida, em sua imanência, como obra.
Em vista disso, podemos acrescentar as seguintes palavras de Foucault (2009, p. 174): "E se não é simplesmente na arte, é na arte, sobretudo, que se concentram, no mundo moderno, em nosso próprio mundo, as formas mais intensas de um dizer verdadeiro que tem a coragem de assumir o risco de se ferir". Se não é exclusividade da arte o estilo de vida cínico, é pela vida artista que encontramos a característica do dizer verdadeiro como coragem de assumir o risco de vida, tendo a forte marca da subjetividade sempre em movimento, sempre por se fazer.
Referências
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1 Sobre a diferença na utilização da parrêsia nestes dois cursos, Jean Terrel (2010, p. 1979) escreve que no curso de 1982, o franco falar "é um elemento essencial da técnica da direção [de consciência]"; enquanto em 1983, ela se apresenta como "coragem da verdade", "de aceitar, por aquele que fala, os efeitos retroativos do franco falar sobre si mesmo".
2 Aqui se deve levar em consideração as obras de Tillich, Der Mut zum Sein, de Heinrich, Parmenides und Jona e de Gehlen, Moral und Hypermoral. Faz-se exceção à obra de Slorterdjik, Kritik der zynischen Vernunft, da qual Foucault não havia lido, embora soubesse de sua existência.
3 Foucault (2001a, p. 822) mostra essa dificuldade quando se questiona, por exemplo, a pretensão de se publicar as obras de Nietzsche e, ao mesmo tempo, traçar os limites do que se pretende publicar: "É preciso publicar tudo, certamente, mas o que quer dizer esse 'tudo'? Tudo que o próprio Nietzsche publicou, é claro. Os rascunhos de sua obra? Evidentemente. Os projetos de aforismos? Sim. Igualmente as rasuras, as notas sob a caderneta? Sim. Mas quando, no interior de uma caderneta repleta de aforismos, encontra-se uma referência, a indicação de um encontro ou de um endereço, uma nota de lavanderia: obra, ou não obra? Mas, por que não? E isso infinitamente".