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Psic: revista da Vetor Editora
versão impressa ISSN 1676-7314
Psic v.7 n.2 São Paulo dez. 2006
ARTIGOS
"Perigoso e violento": representações sociais de adolescentes em conflito com a lei em material jornalístico
Dangerous and violent: representations of juvenile law offenders on newspapers
"Peligroso y violento": representaciones sociales de adolescentes en conflicto con la ley en material periodístico
Daniel Henrique Pereira Espíndula I, 1; Alexandre Cardoso Aranzedo II, 2; Zeidi Araújo Trindade II, 3; Maria Cristina Smith Menandro II, 4; Milena Bertollo II, 5; Rafaela Kerckhoff Rölke II, 6
I Faculdade Brasileira
II Universidade Federal do Espírito Santo
RESUMO
Este trabalho buscou verificar as representações de adolescentes em conflito com a lei na imprensa escrita capixaba. Foram encontradas 325 matérias publicadas nos jornais A Gazeta e A Tribuna no período entre agosto de 2003 e setembro de 2004, que foram analisadas pelo software Alceste. Os significados encontrados foram organizados em cinco classes divididas em dois eixos: "Adolescentes e práticas delituosas" e "Sistema socioeducativo". O primeiro eixo trata do envolvimento com assassinatos e seqüestros, classe 1; tráfico de drogas, classe 4; contexto do delito, classe 5. No segundo eixo a classe 2 considera o Estatuto da Criança de do Adolescente (ECA) e a redução da maioridade penal e a classe 3 discorre sobre a problemática das instituições responsáveis pelas medidas socioeducativas. Apesar de o ECA ter completado 15 anos, observa-se que a representação desses adolescentes está ancorada aos significados subjacentes ao antigo Código de Menores, apontando a necessidade de aprofundar discussões sobre o assunto.
Palavras-chave: Adolescente em conflito com a lei, Imprensa, Representação social.
ABSTRACT
This work aimed to verify the representations of juvenile law offenders in the press written in the Espirito Santo, Brazil. At all, 325 published substances had been found. Software Alceste had used to analyze these data. The program pointed an organization of the ideas grouped in five categories, divided around two axes, "adolescent and delictual practical" and "socioeducational system". In the first axle, the practical make reference to the murders and kidnappings involvement, category 1; involvement with the traffic of drugs, category 4; context of the delict, category 5. The axle of the category 2 refes to ideas of the "ECA" and the reduction of the criminal majority, and the category 3 argues the problematic of the responsible institutions for the socioeducational measures. Despite of the Statute of the Child and the Adolescent having completed 15 years, it is observed that the representation of these adolescents is anchored in the old Code of Minors, pointing out greater quarrels around the subject.
Keywords: Juvenile law offender, The press, Social representation.
RESUMEN
Este trabajo ha buscado verificar las representaciones de adolescentes en conflicto con la ley en la prensa escrita de Espírito Santo, Braisl. Han sido encontradas 325 materias publicadas en los diarios A Gazeta y A Tribuna en el período de agosto del 2003 a septiembre del 2004, que han sido analizadas por el software Alceste. Los significados encontrados han sido organizados en cinco clases divididas en dos ejes: "Adolescentes y prácticas delictivas" y "Sistema socioeducativo". El primer eje trata del envolvimiento con asesinatos y secuestros, clase 1; tráfico de drogas, clase 4; contexto del delito, clase 5. En el segundo eje la clase 2 considera el Estatuto del Niño y del Adolescente (ECA) y la reducción de la mayoría de edad penal y la clase 3 trata sobre el problema de las instituciones responsables por las medidas socioeducativas. Pese al ECA haber completado 15 años, se ha observado que la representación de esos adolescentes está pautada en los significados subyacentes al antiguo Código de Menores, apuntando la necesidad de profundizar discusiones sobre el asunto.
Palabras clave: Adolescente en conflicto con la ley, Prensa, Representación social.
Introdução
A análise da imprensa escrita como fonte de produção de significados sobre diferentes objetos sociais tem despertado interesse de pesquisadores com diferentes pressupostos teóricos. Seguindo esse caminho, o objetivo deste trabalho é contribuir para a análise dos significados em torno da problemática dos adolescentes em conflito com a lei, construídos como saberes partilhados, por meio do estudo das representações sociais desse objeto social apresentadas pela imprensa escrita. A título de exemplo, alguns estudos produzidos até agora, como o de Njane e Minayo (2002), também procuraram analisar o papel da mídia como um "sistema de práticas sociais" com forte impacto na construção da realidade social.
Atualmente sabe-se que os diferentes meios de comunicação, como a mídia escrita e televisiva, são capazes de provocar mudanças essenciais, seja no campo das relações familiares, nas instituições ou "na reelaboração das duas categorias mais cruciais do pensamento humano: tempo e espaço" (Njane & Minayo, 2002, p. 287).
De modo geral, podemos dizer que o papel da mídia impressa se realiza em dois planos: um que procura narrar as notícias do dia, cumprindo sua função informativa, e outro, no qual se configura e expressa um sistema de valores, configurando o jornal como sujeito da enunciação. Nesse sentido, podemos afirmar que a mídia não cria preconceitos, julgamentos ou verdades, mas "absorve" o imaginário social, dando-lhe uma roupagem especial, tecnicamente sofisticada e específica, a fim de agradar aos mais diferentes estratos sociais e aos mais variados tipos de leitores.
Por outro lado, Menandro e Souza (1991, p. 55) salientam que:
é indispensável reconhecer que as notícias, como produto acabado, podem ter sido impregnadas de interesses pessoais dos jornalistas e redatores, que estão submetidos a empresas editoriais passíveis de pressões econômicas, políticas e religiosas, mas, não obstante, podemos seguramente afirmar que as notícias contêm verdades.
Para aqueles que pretendem utilizar fontes de material jornalístico, Menandro e Souza (1991) destacam que apesar do uso freqüente de notícias como fonte de dados para pesquisas, fica evidente que os textos jornalísticos não são redigidos com a preocupação de serem eficientes para esse fim, nem são organizados de forma a facilitar o acesso às informações.
Ainda assim, o farto material que a mídia tem divulgado nos últimos 20 anos, sobre a situação da infância e da adolescência no Brasil, indica a importância de estudos sobre o conteúdo apresentado focalizando a temática do "adolescente infrator", que tem tido destaque especial na mídia impressa e televisiva. Possivelmente isso se deve ao aumento da visibilidade dada ao envolvimento desse grupo em episódios de violência, o que leva às controvérsias sobre os avanços dos seus direitos tal como propõe o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
Estudos recentes (Assis, 1999; Cruz Netto et al., 1999) têm demonstrado que o crescimento dos números e das taxas de delitos se deu, no caso específico do Rio de Janeiro, sobretudo pela inserção de crianças e adolescentes no tráfico de drogas. No entanto, a imagem que mais se apresenta da "delinqüência juvenil" é representada pelos roubos, furtos, homicídios ou tentativas de homicídio.
Ainda em relação à imprensa brasileira, pode-se afirmar que existem duas tendências mais evidentes no que diz respeito à infração juvenil: uma trata da incapacidade do Estatuto para resolver o problema da criminalidade juvenil; a segunda busca ressaltar a complexidade da realidade da infância e da juventude no país, especialmente a questão das camadas mais pobres e miseráveis. Segundo Njane e Minayo (2002, p. 288), a primeira tendência possui muito mais força e apelo. "Essa postura não foge ao que foi já observado teoricamente, ou seja, a imprensa tende a repercutir as idéias dominantes da sociedade."
A contextualização da discussão sobre adolescentes em conflito com a lei e as formas como são vistos e noticiados pelos meios de comunicação requer situar o conceito de adolescência que será adotado. O termo adolescência deriva de adolescere, crescer até atingir a maturidade. Enquanto um estágio do desenvolvimento humano, a adolescência é vista como uma fase de transição entre a infância e a idade adulta. A Psicologia Clássica considerou esse estágio do desenvolvimento como um período de caráter universal bastante conturbado, marcado por crises existenciais, caracterizando-o até como "síndrome", pela qual todo jovem normal deveria passar.
Segundo Martins e Trindade (2003), os estudos da Antropologia Social foram os responsáveis por modificar essa concepção da adolescência, ao mostrar que esse período do desenvolvimento não é universal e nem necessariamente conturbado. Dessa forma, a adolescência passa a ser, então, entendida como "um período e um processo psicossociológico de transição entre a infância e a idade adulta e que depende das circunstâncias sociais e históricas para a formação do sujeito" (Martins & Trindade, 2003, p. 556).
Considerando essa nova concepção da adolescência, temos que o processo de adolescer extrapola os limites do determinismo puramente biológico e passa a ser derivado do processo de construção do sujeito, o próprio adolescente. Sendo assim, nessa fase o adolescente participa dinamicamente na construção da sua própria identidade, com seus valores, sua sexualidade e por meio de sua inserção em diversos grupos sociais. No entanto, apesar dos avanços conceituais, a visão patologizada da adolescência ainda perdura nos dias de hoje, seja em discursos científicos ou no senso comum, como mostra Ozella (2003).
Histórico e concepções da delinqüência juvenil no Brasil
Os atos tidos como violentos praticados por crianças e adolescentes no Brasil são descritos desde o século XIX (Oliveira & Assis, 1999). O Código Criminal do Império, de 1830, recomendava a internação de menores de 14 anos que cometessem atos tidos como indesejáveis pela sociedade em uma "casa de correção". Mas foi o Código de Menores de 1927 que veio concretizar uma legislação sobre crianças. Esse código consagrou o sistema de atendimento à criança atuando sobre os chamados efeitos da ausência, atribuindo ao Estado a tutela sobre o órfão, o abandonado e aqueles cujos pais fossem tidos como ausentes, tornando disponíveis seus direitos de pátrio poder.
A passagem do Código de 1927 para o de 1979 deu-se com o novo Código de Menores que estabelecia a figura do menor "em situação irregular", desde o abandonado até ao autor de ato infracional. Foi nesse período ainda que ocorreu a criação da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem) para substituir o Serviço de Atendimento ao Menor (SAM) no ano de 1964. As Funabems e Febems (Fundações Estaduais de Bem-Estar do Menor) incorporaram todas as estruturas do Serviço de Assistência ao Menor, incluindo aí tanto o atendimento aos carentes e abandonados quanto aos infratores. Todo o tipo de serviço prestado por essas instituições era diretamente dependente do governo federal. Segundo Oliveira e Assis (1999), os ideais da Funabem eram bastante ambiciosos e consistiam em: pesquisar métodos, testar soluções, estudar técnicas que conduzissem à elaboração científica dos princípios que guiariam as ações que visassem à reintegração do menor à sua família bem como à comunidade.
Entretanto, é importante ressaltar que as Febems e a Funabem foram criadas durante uma ampla reforma ocorrida no início da ditadura militar (1964) e que, nesse contexto, a política nacional de atendimento ao menor passou a ser tratada sob o âmbito da doutrina de segurança nacional. O menor volta, então, a ser figura de destaque e passa a ser efetivamente tratado como um problema de ordem estratégica, saindo da esfera de competência do Poder Judiciário e ficando sob a guarda do Poder Executivo. Nessa perspectiva, o Brasil adotou uma sistemática de internação de carentes e abandonados até os 18 anos e de tratamento dos infratores por meio da política dos muros retentores.
Somente em 13 de julho de 1990 foi promulgado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), passando-se a considerar a população infanto-juvenil como sujeito de direitos e merecedora de cuidados especiais e de proteção prioritária. O ECA considera os menores de 18 anos inimputáveis perante a lei e aboliu as penas aplicadas aos infratores, introduzindo o conceito de medidas socioeducativas que podem ser de advertência, reparação de danos, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, inserção em regime de semiliberdade ou, ainda, internação num estabelecimento educacional, além de outras medidas que objetivem o acompanhamento do adolescente na família, escola, comunidade, serviços de saúde, etc.
Os efeitos da política de atendimento preconizada pelo ECA têm sido motivo de constantes debates na imprensa escrita, tendo de um lado seus defensores e do outro representantes de alguns segmentos sociais que a acusam de dar proteção indevida a indivíduos considerados perigosos, ainda que adolescentes. Nesse quadro, é importante investigar os significados atribuídos ao adolescente em conflito com a lei e a Teoria das Representações Sociais pode trazer contribuições ao campo, motivo pelo qual a expomos a seguir.
O Estudo das Representações Sociais
Atualmente, o estudo das representações sociais constitui um vasto campo de pesquisa, englobando uma variedade de temas, visto que se relaciona a qualquer objeto social transmitido por meio da comunicação e que tenha relevância para o grupo, fazendo parte de suas práticas cotidianas (Sá, 1995). Uma definição bastante utilizada no meio científico para as representações sociais é a proposta por Jodelet (2001, p. 22): "Uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social." Sendo elaboradas no âmbito das relações sociais, a partir das trocas e práticas que ocorrem na esfera de um contexto histórico-cultural, as representações sociais fornecem os fundamentos para os julgamentos e as atitudes e, como um sistema de interpretação, são capazes de conduzir a nossa relação com o mundo e com os outros, orientando e organizando as condutas e as comunicações pessoais.
Segundo Abric (1994) a estrutura das representações é formada por dois conjuntos de elementos que têm características diferentes: um deles agrega significados que mantêm certa regularidade, são produtos históricos e resistentes às mudanças, sendo pouco afetados pela dinâmica do cotidiano; o outro é formado por elementos mais flexíveis e incorpora mais facilmente as alterações que ocorrem no contexto social mais imediato. Dessa forma, os significados que os grupos constroem sobre algum fato são composições simultâneas de elementos originados nas variações e nos enfrentamentos do cotidiano e de elementos estáveis, adquiridos por pertença cultural e histórica, produzindo a convivência de significados por vezes aparentemente antagônicos. Pode-se supor, então, que as notícias jornalísticas sobre adolescentes autores de atos infracionais podem contribuir tanto para elaboração de novos elementos de representação social sobre o adolescente em conflito com a lei como para reforçar significados e práticas já existentes em nosso meio.
Outra característica que as representações sociais podem apresentar é a capacidade de se articular às teorias científicas, aos conhecimentos elaborados pela ciência, universo reificado, recriando esse conhecimento no bojo das teorias populares, do conhecimento e das práticas do cotidiano e, por meio de um processo de ressignificação, criando o universo consensual. A ciência se transforma, então, em um conhecimento do senso comum considerado especializado, agindo como um veículo explicativo da realidade, que por meio de seus modelos teóricos define regras que acabam servindo como um mecanismo especificador e prescritor das ações humanas.
A análise de material veiculado pelos meios de comunicação, segundo Rodrigues (2000), permite o conhecimento sobre concepções tanto dos agentes que a produzem quanto daqueles que são o seu público-alvo. Pode-se considerar então que tomar como fontes de dados relatos formais produzidos pelos meios de comunicação é uma maneira de estudar a realidade social. Bauer, Gaskell e Allum (2002, p. 22) salientaram que estes relatos "reconstroem as maneiras pelas quais a realidade social é representada por um grupo social". Afirmaram ainda que um jornal "representa até certo ponto o mundo para um grupo de pessoas, caso contrário elas não o comprariam. Nesse contexto, o jornal se torna um indicador desta visão de mundo" (p. 22).
Método
O corpus para análise foi construído com base em matérias a respeito da temática do adolescente em conflito com a lei, publicadas em jornais de grande circulação no Espírito Santo: A Gazeta e A Tribuna. Foram realizadas consultas manuais a todos os jornais arquivados na Biblioteca Pública Estadual do Espírito Santo no período de agosto de 2003 a setembro de 2004. As matérias foram selecionadas considerando as seguintes expressões-chave: menor infrator, adolescente em conflito com a lei, Unis/Unip, homicídio jovem/adolescente, delinqüência jovem/adolescente, marginal jovem/adolescente e crime jovem/adolescente. Nesse levantamento catalogamos ao todo 325 matérias publicadas, distribuídas entre reportagens, cartas e artigos, conforme a tabela 1.
A maioria significativa das matérias publicadas nos jornais durante o período foi de reportagens de caráter informativo escritas por jornalistas, 295 ao todo, representando 91% do total da amostra. As outras 30 matérias incluíam cartas de leitores e artigos de especialistas comentando o assunto.
Em relação à tabela 2, referente à distribuição das reportagens entre os cadernos, temos que 83% das matérias publicadas, 271 ao todo, encontravam-se no caderno Polícia e Segurança, resultado já esperado considerando os critérios de seleção. Após a coleta, os dados foram tratados pela análise de conteúdo informatizada, do sistema de análise quantitativo de dados textuais - Analyse de Lexémes Coocurrent das les Ennoncés Simples d'un Texte (Aceste) - elaborado por Max Reinert (1990).
Esse programa "identifica co-ocorrências de palavras (ou radicais) em segmentos de texto, calcula o grau da associação entre tais palavras, realiza procedimentos de Classificação Hierárquica Descendente e organiza classes de palavras no corpus sob análise" (p. 32). O cálculo do qui-quadrado é utilizado para identificar as palavras mais características, bem como a força de associação de cada uma delas com as classes, que são contextos lexicais que traduzem diferentes formas e conteúdos de discurso sobre o objeto analisado (Menandro, Trindade & Almeida, 2005). Na análise realizada pelo programa é possível, então, associar o léxico (palavra), e o contexto (posição da palavra no contexto traduzindo sua mensagem).
Resultados
A análise do corpus efetuada pelo Alceste considerou relevante 82,76% do material, ultrapassando o critério de 70% que Kronberguer e Wagner (2002) definem como indicador de uma boa análise. O Alceste organizou as idéias preponderantes agrupando-as em cinco classes, que, por sua vez, estão dispostas em torno de dois eixos principais, conforme mostra o dendrograma a seguir:
O dendrograma apresenta, em ordem decrescente, as palavras mais representativas de cada uma das classes, cuja força interna de associação com cada classe foi evidenciada pelo cálculo do qui-quadrado. Além de ordenar o conteúdo do material coletado em classes, o programa calcula a correlação entre essas, que pode variar de 0 a 1. Nesse caso, verificamos que no primeiro eixo o índice de proximidade entre as classes 1 e 4 é de 0,70 e entre estas e a classe 5 é de 0,38. No segundo eixo o índice de proximidade entre as classes 2 e 3 é de 0,60. Esses indicadores evidenciam fortes e significativas relações, pois dois índices são superiores a 0,5, valor de referência para identificar relações de proximidade entre as classes (Menandro, 2004 p.103).
Conforme se pode observar, o primeiro grande eixo é formado pelas classes 1, 4 e 5, contemplando 62,6% do conteúdo analisado e está relacionado ao envolvimento de adolescentes em práticas delituosas. As práticas relatadas no contexto que foi denominado "Ação e contexto do delito" dizem respeito predominantemente a assassinatos e seqüestros, classe 1; ao envolvimento com o tráfico de drogas e atuação da polícia, classe 4; a crimes contra o patrimônio, classe 5.
O segundo agrupamento, constituído pelas classes 2 e 3, concentra 37,4% do conteúdo, referindo-se ao "Sistema socioeducativo". Enquanto na classe 2 predominam referências ao Estatuto da Criança e do Adolescente e à redução da maioridade penal, a classe 3 concentra idéias da problemática das instituições responsáveis pelo cumprimento das medidas socioeducativas de reclusão.
Na análise da classe 1, que apresenta a questão da participação dos adolescentes em assassinatos, vê-se que o envolvimento dos adolescentes em homicídios foi assunto bastante divulgado nos jornais pesquisados. Durante o período investigado foram cometidos alguns crimes que ganharam relevância nacional, como o caso do casal Liana e Felipe Café, em novembro de 2003, no estado de São Paulo; o do assassinato de um investigador da Polícia Civil no município de Vitória, ES em maio de 2004; e o de um professor carioca que estava passando as férias no balneário de Guarapari (litoral sul do Espírito Santo) em dezembro de 2003. Os recortes apresentados a seguir mostram a configuração textual e destacam as palavras selecionadas pelo software como as mais representativas da classe.
"O adolescente M.P.D., 15 anos, confessou ter participado do assassinato de três pessoas. O crime ocorreu no bairro flor e Piranema, em Cariacica, na madrugada do último domingo, ele foi detido na manhã de ontem, pela Polícia Civil, no bairro vale dos reis II, Cariacica."
"Depois de confessar a participação no triplo homicídio de flor de Piranema, em Cariacica, o adolescente, M.P.D., 15 anos, foi encaminhado pelo delegado Altair Ferreira da Silva, da divisão de homicídios e proteção a pessoa, DHPP."
Apesar da visibilidade dada aos assassinatos cometidos por adolescentes, o que pode levar à crença de que o crime de morte é a marca característica dos adolescentes infratores, não é isso que mostram os dados analisados, pois essa classe agrega 22,13% do conteúdo do corpus, enquanto a classe 5, que tem como tema crimes contra o patrimônio, agrega 32,41% do corpus, o que está de acordo com o que aponta Volpi (2002) quando alega que pesquisas demonstram que de todas as infrações cometidas pelos adolescentes a maioria (57,3%) é contra o patrimônio público e 19,1% contra a pessoa. Ainda assim, a forma como a mídia apresenta os crimes de morte praticados por adolescentes pode contribuir para reforçar a representação do adolescente em conflito com a lei como um criminoso incorrigível.
Como parte do mesmo eixo em discussão, a classe 4 trata do envolvimento com tráfico de drogas e atuação da polícia e está fortemente associada à classe 1, na qual predominam os assassinatos cometidos por adolescentes. Pode-se observar que os resultados obtidos também são compatíveis com os achados de Volpi (2002) e Assis (1999) que apontam a entrada dos adolescentes no crime por meio do tráfico de drogas. Alguns trechos selecionados pelo programa mostram bem essa questão.
"Na última segunda-feira, os policiais prenderam dois traficantes: Leonardo de Oliveira e um adolescente de 17 anos com 191 buchas de maconha e 26 papelotes de cocaína. De acordo com as pessoas que ligavam para a 2ª Companhia Rodoviária do 1º Batalhão de Vitória, da Polícia Militar, a dupla estaria impondo terror ao bairro ao andar armada e disputar pelo controle do tráfico de entorpecentes na comunidade."
"Com eles foi encontrada uma pistola 380. Além do adolescente, foram presos Anderson Jesus Borges, 23 anos, e Jonas Batista Martins, 21. Depois de receberem uma denúncia anônima que dizia que havia dois homens armados rodando pelo bairro, Policiais do 6º Batalhão, serra, fizeram uma caçada na região."
Aqui o adolescente autor de ato infracional é visto caracteristicamente como integrante de um grupo, que inclui a presença de adultos, e o relato jornalístico enfoca o fato de portarem armas e sua participação na venda e na distribuição da droga. Mostra ainda a atuação da polícia encaminhando o jovem ao centro de internamento provisório, a fim de aguardar a medida a ser adotada para seu caso. A Classe 5 também trata dos adolescentes e suas práticas delituosas, focalizando os crimes contra o patrimônio, descrevendo o contexto dos furtos e assaltos cometidos, conforme trechos a seguir:
Apesar das ameaças de morte, ninguém saiu ferido. Moto: funcionários da pizzaria disseram que poucos minutos antes de os menores invadirem o estabelecimento, um homem passou em uma moto de cor escura na porta do comércio.
O menor que estava armado pegou todo o dinheiro do caixa R$33,00 e tentou escapar correndo. O parceiro que dava cobertura tomou a bicicleta de um cliente e fugiu.
É interessante ressaltar ainda que, como parte do conteúdo presente nesta classe, estão falas de pessoas entrevistadas nas reportagens. A partir da leitura destas percebe-se a expressão de sentimentos de raiva, tristeza ou luto, por terem sofrido ou presenciado algum tipo de agressão, apresentando um discurso ativo em favor da justiça retaliadora e da punição mais severa para os adolescentes. Entretanto, é importante considerar que esse tipo de discurso pode ter sido potencializado pelas condições em que as pessoas foram ouvidas, ou seja, em momentos muito próximos da violência sofrida ou presenciada.
Por fim, o segundo grande eixo é formado pelas classes 2 e 3, nomeadas de "Sistema socioeducativo". Com uma correlação de 0,60, essas classes tratam de temas relativos à (in)eficácia do Estatuto da Criança e do Adolescente e às discussões em torno da maioridade penal (classe 2), e às instituições responsáveis pela medida de privação de liberdade (classe 3), abrangendo rebeliões, reformas nas unidades e superlotação no sistema. Portanto, uma é mais conceitual e outra de avaliação das instituições.
O tipo de conteúdo encontrado na classe 2, sobre a eficácia do Estatuto da Criança e do Adolescente e a redução da maioridade penal, é um tipo de discussão que ocorre, geralmente, logo após rebeliões ou crimes de maior violência praticados por adolescentes. Nas reportagens é comum também a presença de comentários de especialistas, que procuram explicar os fenômenos da criminalidade, da violência e da adolescência e suas inter-relações. Essas explicações geralmente exploram a "crise da adolescência", caracterizando-a como natural e universal no quadro de uma perspectiva patologizada da adolescência. Ressalta-se que a falta de limites é uma das explicações mais empregada, tanto por especialistas como por jornalistas, o que pressupõe que para reverter essa situação se faz necessário um maior controle desses jovens, que deveria ser exercido pela família e por outras instituições responsáveis pela socialização destes.
Seguem abaixo alguns exemplos de recortes que ilustram alguns desses pontos:
"As escolas também têm falhado. Há pais que podem ser responsabilizados porque só pensam em trabalhar e não cuidam direito dos filhos. Mas a maioria dialoga e orienta. Se apesar disso o filho se tornar um jovem violento o pai não pode ser penalizado."
"Maioridade penal aos 16 anos tem muitos pontos positivos. O bom é que isso trará maior temor aos adolescentes voltados para o crime. Também os bandidos terão maior dificuldades para levar os jovens a assumir a culpa pelos crimes, já que agora os maiores de 16 anos possam ser presos como maior de idade, caso esse projeto se torne lei no Brasil."
"Elas já tiveram melhora de 80% em um mês. A cadeia é pouco para esses moleques que ficam soltos roubando, matando e traficando. Não tem amor a nada e nem a ninguém. Precisam de penas mais duras. Pode-se votar, podem responder por seus atos. Deve sim, estão barbarizando."
"Estão aprontando muito porque sabem que ficarão impunes. Se a pena for maior, vão pensar antes de agir. Infelizmente, a impunidade está atraindo cada vez mais jovens que vão pro mundo do crime".
O conteúdo da classe 3 agrega a discussão em torno das instituições, apresentando relatos sobre rebeliões e sobre a internação de adolescentes detidos em flagrante ou por mandado judicial. Durante o período pesquisado, as rebeliões foram noticiadas de forma bastante recorrente. Alguns relatos extraídos das reportagens apresentam de forma mais clara como essa temática é tratada, sempre com uma crítica ao modelo de instituição que abriga os jovens, carente de infra-estrutura e que não cumpre os objetivos de ressocialização a que se propõe.
"Estamos fazendo levantamentos e recuperando a documentação, já que parte foi queimada, para avaliar a situação de cada interno, afirmou. Haddad disse que o prejuízo causado durante a rebelião ainda não foi calculado. Os engenheiros do Dertes (Departamento de Edificações, Rodovia e Transporte do Estado do Espírito Santo) estão fazendo uma avaliação na unidade, revelou."
" 'É um modelo que não funciona, só foi maquiado', analisa. 'Dificilmente estes adolescentes que estão hoje nas unidades terão algum futuro', acrescentou o secretário. O Governo do Estado retomou o Icaes no final de junho, após o período de seis meses de intervenção da justiça."
" 'Também pedimos a implantação de atividades pedagógicas, atendimento médico e a mudança do dia de visitas para o fim de semana'. O padre Xavier acrescentou: 'Além disso, faz-se necessária a imediata separação das duas unidades. Não e possível que os menores da Unip fiquem confinados no mesmo espaço físico que os da Unis.'"
Discussão
Merece consideração especial na análise os termos encontrados para designar o adolescente que se encontra em conflito com a lei. Apesar de, no momento da publicação das matérias, setembro de 2003 a agosto de 2004, o ECA já ter completado mais de 14 anos, os termos utilizados para o tratamento dos adolescentes são fundamentados em velhas concepções, ancoradas em torno de elementos do antigo Código de Menores quando o adolescente autor de ato infracional era visto como um problema de segurança nacional. Encontram-se, por exemplo, termos tais como: menor, infrator ou, ainda, adolescentes infratores. Nas palavras de Volpi (2002, p. 7):
Os meios de comunicação social, em geral, têm preferido usar formas estigmatizantes, referindo-se a eles como infratores, delinqüentes, pivetes e, mais recentemente, importando uma expressão dos EUA, uma revista semanal taxou-os de pequenos 'predadores'. A opinião pública em geral tem reproduzido estas expressões, acrescentando outras que a sua criatividade preconceituosa produz, como: bandidos, trombadinhas, menores infratores e outras.
Uma primeira leitura do material produzido pela imprensa pode dar a impressão de que, no Brasil, é excessivo o número de adolescentes envolvidos em crimes. Na contramão da ênfase dada pela imprensa escrita com relação ao grande número de delitos cometidos pelos adolescentes, encontramos em Silva e Gueresi (2003) um levantamento da situação do adolescente em conflito com a lei durante o ano de 2002 realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Durante aquele ano a população de adolescentes no Brasil era de 23,3 milhões, cerca de 15% da população brasileira; entretanto, o número de adolescentes privados de liberdade era apenas 9.555, ou seja, somente 2,88 para cada da 10 mil adolescentes. Entretanto, para contextualizar o material analisado nessa pesquisa, é preciso salientar que no estado do Espírito Santo a média de adolescentes internados é bem maior, chegando a 7,4 para cada grupo de 10 mil adolescentes existentes no estado. Essa taxa faz com que este estado esteja em segundo lugar no ranking elaborado pelo IPEA. Com relação aos delitos praticados, esse levantamento também revela que:
Não há uma predominância de delitos graves, pois os casos de homicídio, estupro, lesão corporal, tráfico de drogas e latrocínio não chegam a representar 30% dos atos infracionais cometidos pelos jovens internos. Os demais 70% correspondem a roubo, furtos e outros delitos não especificados. (Silva & Gueresi, 2003, p. 18-19).
Pode-se argumentar que a forma como esses adolescentes são representados pela imprensa é estigmatizante e perversa, presumindo que a prática do ato infracional é algo definitivo no destino desses adolescentes, associada à sua própria constituição como sujeito, sem laços afetivos e sociais que poderiam ser a base sobre a qual se produziriam sua transformação em um "homem de bem". Essas representações são construídas a partir do envolvimento dos adolescentes em ocorrências tais como assaltos, assassinatos e prática de furtos. Como conseqüência, há a defesa de práticas mais rígidas como medidas preventivas, tais como a redução da maioridade penal para 16 anos, além de um prazo maior de internação, com aplicação de medidas semelhantes às aplicadas aos adultos. Por servir como um canal de informações e conseqüentemente, formador de opiniões na sociedade, a imprensa escrita, ao divulgar e/ou defender tais idéias acaba por reforçar e justificar as representações e práticas discriminatórias com relação a esses adolescentes.
Em síntese, a partir dos nossos resultados fica evidente a grande freqüência com que são apresentados na imprensa episódios envolvendo adolescentes do sexo masculino em práticas delituosas violentas. Conforme nos mostram Soares, Athayde e Bill (2005), a análise de dados disponibilizados por fontes governamentais permite constatar que a violência não se restringe a qualquer classe social ou idade, mas que está relacionada principalmente ao sexo masculino. Em nossa análise evidenciamos ainda os seguintes elementos na representação social do adolescente em conflito com a lei: são perigosos porque roubam e matam; são vulneráveis à influência de criminosos adultos e por eles manipulados; são carentes de maior controle familiar e social; são maduros para decidir sobre atos delinqüentes.
Observa-se que à patologização da adolescência acrescenta-se a visão da perversidade do bandido. Quando o foco está nesses jovens, a condição de adolescente só é recuperada nos seus aspectos negativos, e a imaturidade e as ambigüidades apontadas para outros adolescentes até como indicadores de potencialidades são aqui tratadas como evidências do caráter de bandido sem possibilidade de remissão. Enquanto a adolescência, para os outros grupos, é considerada como fase de transição para o futuro, a estes de quem estamos falando o futuro é negado, permanecendo apenas uma perspectiva de contenção mascarada pelos projetos de ressocialização.
Referências
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Endereço para correspondência
Rua José Neves Cipreste, 1154/301 - Jardim da Penha
CEP: 29060-300 Vitória-ES
E-mail: despindula@hotmail.com
Recebido em: maio de 2006
Reformulado em: outubro de 2006
Aprovado em: novembro de 2006
Sobre os autores:
1 Daniel Henrique Pereira Espíndula é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
2 Alexandre Cardoso Aranzedo é mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
3 Zeidi Araújo Trindade é doutora, Docente do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
4 Maria Cristina Smith Menandro é doutora, Docente do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
5 Milena Bertollo é bolsista PIBIC/CNPq e aluna de graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).
6 Rafaela Kerckhoff Rölke é bolsista PIBIC/CNPq e aluna de graduação em Psicologia de Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).