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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) v.12 n.19 Belo Horizonte jun. 2006

 

SEÇÃO ABERTA

 

Resumo de tese

 

A estética do sopro em Clarice Lispector: um certo destino do feminino

 

The aesthetics of the breath in Clarice Lispector: a certain fate of the feminine

 

 

Cristina Marcos1

Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

 

 

O propósito desta pesquisa foi interrogar o feminino a partir da escrita de uma mulher. A questão se colocou do seguinte modo: o que a escrita dessa mulher pode nos ensinar sobre o feminino? É a partir do que se chamou de uma estética do sopro, do que aparece no texto como murmúrio, intervalo, silêncio, que um saber sobre o feminino se inscreve.

A leitura da obra, baseada nessa questão, conduziu à revisão do conceito de sublimação, além de se poder pensar o texto como lugar privilegiado de inscrição de um gozo, pela voz. A obra permitiu, assim, falar de objeto, pois, na escrita de Clarice Lispector, o que está em jogo, mais do que uma narrativa, é uma sonoridade que aponta para o objeto. Claro, a letra é o suporte dessa escrita, mas pareceu que o singular dessa escrita, que nela se repete, é menos uma depuração da letra, até a sua materialidade, do que uma pulsação, uma respiração do texto. Orientou-se por uma indicação da própria Clarice - a de que o sentido não vem pelas palavras, mas pela respiração.

Por que o recurso à literatura, para falar do feminino, ou por que a obra de Clarice Lispector interessaria à psicanálise? Muitas são as respostas. Seguiu-se aí uma orientação de Lacan, encontrada num texto em homenagem a Merleau-Ponty. A arte, segundo Lacan, nos dá a ver o que, de outro modo, não se veria, mantendo o que há de inapreensível no objeto. Saímos assim da metáfora do psicanalista como decifrador da arte, para pensar a arte como aquilo que coloca questões ao psicanalista, arte decifradora ou causadora do analista/sujeito. A arte nos ensina modos de subjetivação em jogo na clínica. Assim, interessou menos a caracterização de uma escrita como feminina do que a maneira como a escrita de Clarice Lispector permite pensar certos modos femininos de subjetivação.

A escrita de Clarice, assinalando um além da palavra, um impossível a dizer, seria passível de nos ensinar sobre o feminino, entendido como aquilo que, da mulher, não se recobre pelo falo. Quais seriam as manifestações dessa parte da mulher? Graças a uma dicção particular, à estética do sopro, através da qual Clarice busca falar de um impossível além da linguagem, sua escrita pode nos fornecer elementos para pensar o feminino em sua relação com a criação, com o real e com o gozo.

Dois eixos maiores orientaram a tese. O primeiro privilegiou as relações entre a criação e o feminino, propondo-se a pensar o espaço literário como um lugar de inscrição do feminino. O segundo concerne ao que se chamou de uma estética do sopro. O texto de Clarice busca certa musicalidade das palavras, uma respiração ofegante ou mesmo um gozo da linguagem, mais do que uma construção fantasmática. Em sua obra, encena-se o drama de uma subjetividade, que não teria outro lugar de existência além do texto, e que, tão logo inscrita, se eclipsa.

Na primeira parte da tese, buscou-se investigar sua vocação de escritora e sua relação com o feminino. Para tanto, procedeu-se a uma análise do conceito de sublimação e das teses freudianas e lacanianas sobre o feminino. Na segunda parte, perguntou-se sobre o que seria uma arte feminina. Um exame do conceito de sublimação, à luz da concepção clariciana da criação, e da noção de désoeuvrement, de Maurice Blanchot, permitiu formular algumas hipóteses acerca das relações entre o feminino e a criação. A possibilidade de o espaço literário constituir-se como lugar privilegiado de inscrição do gozo foi então discutida. Na terceira parte, propôs-se pensar a escrita como modo de inscrição do gozo feminino e como suporte do não-todo. Para concluir, foi assinalada a relação entre a sublimação, tal como definida por Lacan, no Seminário sobre a ética, e o gozo feminino. Fazer a travessia da sublimação à criação, de uma concepção da arte como refúgio à arte como possibilidade de inscrição de um gozo, permitiu não somente situar, de um outro modo, as relações entre a criação e o feminino, mas também lançar um novo olhar sobre as relações entre a psicanálise e a literatura.

Para Starobinski, a psicanálise renova as relações entre a vida e a obra. A vida não se reduz a uma biografia constituída de fatos e anedotas. Ela é a história da relação do sujeito com o mundo e com os outros, «é a história dos estados sucessivos do desejo». Cada obra ocupa uma função para seu autor. A psicanálise incita a pergunta sobre a questão que domina a obra. Entretanto, o sentido não está em uma pré-história da obra ou atrás das palavras do texto, mas no texto mesmo, em sua superfície..

 

 

1Psicóloga, Psicanalista, Mestre em Literatura Brasileira, Fale/UFMG; diploma de D.E. A. em Psicanálise, na Universidade de Paris 8; doutora em Psicanálise e Psicopatologia Fundamental, Universidade de Paris VII, orientador: Patrick Guyomard; professora da PUC Minas; e-mail: cristinamarcos@terra.com.br

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