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Psicologia em Revista
versão impressa ISSN 1677-1168
Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.19 no.2 Belo Horizonte 2013
https://doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9563.2013v19n2p177
ARTIGOS
DOI - 10.5752/P.1678-9563.2013v19n2p177
A função subversiva da verdade e a psicanálise
The subversive function of truth and psychoanalysis
La función subversiva de la verdad y el psicoanálisis
Oswaldo França Neto*
Resumo
Este texto problematiza o lugar deslocalizado da psicanálise, por meio da discussão do seu deslocamento em relação a alguns dos campos de saber dos quais ela fez uso (ou seja, identificando-se ao mesmo tempo em que se distinguindo). Inicialmente, foi se deslocando da lógica da consciência, apresentando-se como um não lugar, que a psicanálise nasceu. Outros campos elencados aqui, com os quais a psicanálise atravessou suas discussões, subvertendo-os por meio de uma deslocalização, foram a linguagem, o estruturalismo e a topologia. O termo-chave, usado como fio condutor, foi a questão da verdade, na forma pouco apreensível com que ela se apresenta para a psicanálise. É discutido como a psicanálise abordou a verdade, como ponto de impossibilidade, nesses campos com os quais ela buscou se situar.
Palavras-chave: Verdade. Estruturalismo. Matemática. Topologia. Contemporaneidade.
Abstract
This text analyzes the displaced position of psychoanalysis by way of discussing its displacement compared to some of the fields of knowledge used by it (i.e., concomitantly identifying and differentiating itself ). Initially, it was by detaching itself from the logic of consciousness, presenting itself in a non-position way, that psychoanalysis was born. Other fields listed here, with which psychoanalysis crossed its path, subverting them by means of displacement, were the language, the structuralism and topology. The keyword, used as the guiding line, was the matter of truth, in the not quite apprehensible manner by which it presents itself to psychoanalysis. It is discussed how the psychoanalysis addressed the truth, as a point of impossibility, in those fields where it tried to position itself within.
Keywords: Truth. Structuralism. Mathematics. Topology. Contemporaneousness.
Resumen
Este texto problematiza el lugar desubicado del psicoanálisis, por medio de la discusión de su dislocamiento en relación a algunos de los campos del saber que ha utilizado (es decir, identificándose al mismo tiempo que se distingue). Inicialmente, el psicoanálisis nació dislocándose de la lógica de la consciencia, presentándose como un no lugar. Otros campos relacionados aquí, con los cuales el psicoanálisis ha cruzado sus discusiones subvirtiéndolos por medio de una desubicación, han sido el lenguaje, el estructuralismo y la topología. El término clave, utilizado como hilo conductor, es la cuestión de la verdad, en la forma poco aprehensible con que se presenta al psicoanálisis. Es discutido cómo el psicoanálisis abordó la verdad, como punto de imposibilidad, en esos campos con los que buscó situarse.
Palabras clave: Verdad. Estructuralismo. Matemática. Topología. Contemporaneidad.
A psicanálise é filha recente da civilização. Tem pouco mais de cem anos. Apesar de jovem, seus termos e conceitos já estão inscritos não apenas nos círculos acadêmicos e especializados, mas na própria cultura popular. Quem nunca ouviu falar no Mito de Édipo, no inconsciente, nas histéricas de Freud? Ela, nesse curto período, já se enrijeceu e renasceu algumas vezes, assim como sua morte, volta e meia, é prenunciada. A facilidade com que se difunde é similar à sua dificuldade em institucionalizar-se. A academia a aceita com reticências, e todas as tentativas de se formar agremiações de psicanalistas são famosas por suas crises e rupturas. Ou seja, não apenas seu discurso se apresenta marcado por uma faceta meio inapreensível como sua localização na sociedade não deixa também de atestar algo de uma impossibilidade. A verdade da psicanálise, apesar de se dar no território, é sempre deslocalizada, provocando um distúrbio no funcionamento da localização.
A verdade e a psicanálise
Historicamente, a verdade é profícua em solicitar aporias. Se ela, por definição, é eterna e imutável, como conciliá-la com a existência, que é localizada e irremediavelmente contingente? Não é para menos que a verdade tenha se tornado provavelmente o principal problema da Filosofia. A psicanálise, poderíamos dizer, com sua singularidade, representa uma das formas possíveis de se abordar essa questão.
Freud, em seu encontro com Charcot, ficou siderado pelas histéricas e seu descompromisso com a razão e o saber científico. Porém, no lugar de menosprezá-las ou identificá-las aos considerados dementes e insanos, Freud manteve a crença de que, com elas, também se poderia falar em uma causa verdadeira, na qual encontraríamos o motivo de todas as suas manifestações conversivas. Se esta não estava no pensamento sensato da razão, e não mergulhava na irracionalidade corporal, alguma coisa, entre o corpo e a consciência, teria de ser postulada. Freud, inicialmente, pareceu resvalar para a solução mais simples, propondo a existência de um terceiro lugar, o inconsciente, que, por compartilhar da mesma lógica da consciência, poderia, por meio da interpretação, ser incluído nesta. Foi nessa perspectiva que ele propôs a ocorrência de fato, nessas pacientes, de um trauma de origem sexual perpetrado por um adulto durante a infância, causa de todos os males futuros. Mas por mais que buscasse esse terceiro lugar, mesmo com a ajuda da hipnose, Freud não o encontrava. Ele acabou então por desacreditar nessa concepção simplista de explicação para os desvarios das histéricas. A verdade do inconsciente não poderia limitar-se à simples postulação de um outro lugar psíquico, distinto da consciência e do corpo. Ela seria antes um não lugar, algo que, apesar de não poder ser considerado como estranho ao psíquico, também não deixava de trazer suas marcas corporais. Um entredois, em situação de exceção, partícipe tanto da razão quanto da desrazão, tanto da consciência quanto do corpo.
Georges Canguilhem, ao tentar definir o que seria a Psicologia, propôs nomear essa forma freudiana de se apreender a verdade como "ciência do sentido íntimo" (Canguilhem, 1973, p. 114). Ele aproxima sua gênese com um filósofo e psicólogo romântico chamado Maine de Biran, que nasceu e morreu na França cerca de um século antes de Freud. Até então, os objetos, sejam psíquicos ou físicos, obedeceriam às mesmas regras de funcionamento, apesar de pertencerem a dois campos excludentes. Maine de Biran teria resgatado um terceiro elemento, que ele achou por bem chamar de "corpo", reintroduzindo-o de forma a subverter os outros dois: "é necessário à alma ser encarnada e, portanto, não há Psicologia sem Biologia" (Canguilhem, 1973, p. 115). A relação entre o físico e o psíquico é revista, e aí, com Freud, revê-se também o significado a se dar ao termo inconsciente. Se, seguindo Descartes, identificássemos o psiquismo com a consciência, o inconsciente seria exclusivamente de ordem física. Porém, se partirmos do princípio de que algo do psíquico pode ser inconsciente, a Psicologia não se pode reduzir à ciência da consciência. Existe algo no psíquico que, apesar de encarnado, não se reduz ao físico, e que, apesar de psíquico, não pode ser apreendido pela consciência. É algo que não é nem externo nem interno, mas íntimo; ou talvez possamos dizer "uma (ex)timidade". Existe algo no psíquico que não se enquadra na concepção clássica de objeto, e que, portanto, escapa à qualquer possibilidade de apreensão.
Caímos novamente no impasse que toda a Filosofia em sua história tentou resolver. A verdade (do inconsciente, no caso da psicanálise), como um não lugar, uma localização deslocalizada. Uma situação de dupla exclusão, na qual a segunda exclusão, em vez de negar a primeira, faz existir uma inclusão excluída (uma ex-sistência, nos termos de Lacan).
A linguagem e o estruturalismo
Lacan, que, diferentemente de Freud, iniciou seu percurso pela psicose e não pela histeria preferiu, na década de 1950, buscar, junto aos trabalhos de Lévi-Strauss, a verdade que nos define. O estruturalismo, na segunda metade do século XX, mostrava-se uma contraposição elegante e profícua à concepção evolucionista e historicista da ciência. Com ele, nós podíamos desengatar-nos da história, este deslocamento metonímico infindável sem ponto de capiton, para pensarmos em rupturas, cortes, escansões. Freud, por outros caminhos, fez coisa similar ao propor que a verdade do inconsciente estaria não no discurso linear de seus pacientes, mas naquilo que aparece como corte no sentido (sintomas, sonhos, atos falhos, chistes). Lévi-Strauss nos permitiu pensar em estruturas qualitativamente distintas, inscritas com base em acontecimentos que poderiam eventualmente não ocorrer, e que seriam reconhecidos como tal somente no a posteriori, como algo mítico. Desse acontecimento primordial, nós temos apenas um traço, marca de sua existência evanescente.
Mas se Lévi-Strauss nos proporcionava uma forma de escaparmos do evolucionismo, ele nos limitava em suas estruturas pré-determinadas. Ele abria para a possibilidade de uma contingência disjunta do universal, para, logo a seguir, universalizar e restringir essas mesmas possibilidades contingentes. Mesmo que agora nos sentíssemos autorizados a pluralizar o campo das manifestações, esse campo persistia limitado em uma classificação, ainda que múltipla. O leque de possibilidades se ampliava, mas continuava estabelecido como uma organização transcendente, quase que fazendo desaparecer, para alguns estudiosos de Lévi-Strauss, o sujeito, termo fundamental para a psicanálise, "em favor de estruturas anônimas e inconscientes, que falam em seu lugar" (Coelho, 2011). Não é por menos que sua teoria tenha propiciado desdobramentos na França, onde o sujeito tinha sido relegado ao segundo plano:
Natural que, escolhendo como foco das investigações um fenômeno sem autor determinado - mitos, relações de parentesco e a linguagem não foram "criados" por nenhum indivíduo - e sociedades em geral sem registros do próprio passado histórico, o estruturalismo de Lévi-Strauss determinou, na França dos anos 1960, a voga (logo posta em prática por Foucault e Barthes) da "morte do autor", da "morte do homem", da "morte do sujeito", da "morte de Marx" e do fim do primado da investigação histórica nas ciências humanas (Coelho, 2011).
Freud também baseou sua teoria em dois mitos fundamentais: o Mito do Édipo e o da Horda Primeva. Ele também se dizia um trabalhador da ciência, para quem as fórmulas, por se proporem universais, devem sempre ser formuladas na terceira pessoa do plural. A abordagem, assim, da civilização, pelo viés estruturalista, não deixava de ter consonâncias e de ser profícua para a psicanálise, mas faltava um elemento fundamental. Vemos, então, de um Lacan dos anos 50, teórico do simbólico e seus avatares, a questão do real paulatinamente ganhando relevância, e com ela a posição do impossível na gênese da subjetividade. Para Célio Garcia (Garcia, 2002), nessa transformação, poderíamos sintetizá-la como sendo a troca de um sinal. Inicialmente teríamos a escrita formal oblíqua ( / ) ou horizontal ( – ) como sinal de uma relação binária, com seus números fracionários e metaforizações, podendo ou não haver restos. Como exemplos clássicos, poderíamos citar as fórmulas:
Onde o elemento de cima seria resultado de um ultrapassamento, sendo a barra signo da interdição do que teria ficado embaixo. Para Garcia, dispensando o binarismo (proposição típica de Lévi-Strauss, que operava por meio de oposições simples, como natureza/cultura, terra/água, criança/adulto, etc.), Lacan se desloca para o movimento, onde o sinal mais adequado seria outro:
Pois bem, precisamos de um sinal que signifique "em movimento", não somente vetor comportando uma origem e uma extremidade distintas, ou seja, uma direção e um sentido, não somente implicação lógica, mas correspondência entre duas estruturas. Esse sinal pode ser a flecha, assim grafada . Utilizaremos esse sinal para pensar a chamada segunda clínica no ensino de Jacques Lacan, já que ela aponta precisamente para a maneira de pensar a Psicanálise e dirigir a cura ao se dispensar o binarismo (Garcia, 2002, p. 308).
A verdade e a topologia
No livro O ser e o evento, Alain Badiou tem como objetivo primeiro defender a tese de que o discurso ontológico por excelência seria o das matemáticas, e não o da filosofia (Badiou, 1996, p. 21). Apenas elas se dariam os meios de uma descrição rigorosa das formas do ser ou, mais precisamente, do ser-enquanto-ser. Para Badiou, o campo da matemática mais adequado para teorizar sobre o ser seria a teoria dos conjuntos, que trabalha com a multiplicidade pura. No que se refere à lógica, para o filósofo francês, o que a diferenciaria das matemáticas seria o fato de serem sem objeto: a "sutura ao ser (vazio)" é o "ponto em que as matemáticas se desvinculam da lógica pura" (Badiou, 1996, p. 14). Ou seja, enquanto as matemáticas teriam como objeto o ser (mesmo que este, por definição, só se apresente como inapresentável), a lógica pura seria anobjetal.
As matemáticas, no plural, são uma ciência difícil de ser cernida. No livro considerado como continuação de O ser e o evento, e que recebeu o título Logiques des mondes (Badiou, 2006), Badiou se coloca a trabalhar com a teoria de categorias. Tal como a teoria dos conjuntos, segundo Peter Hallward em texto inédito, ela se apresenta como uma exposição da ontologia (das matemáticas) no seu todo, mas de um ângulo completamente diferente. Ambas oferecem abordagens opostas para todas as questões do pensamento do ser (atos de pensamento, formas de imanência, identidade e diferença, enquadre lógico, racionalidade admissível, relação entre experiência e existência, infinidade, unidade e pluralidade de universos, etc.). A teoria dos conjuntos é rigorosamente unívoca, fundada na unicidade do vazio e no conjunto vazio; na teoria de categorias, mesmo o vazio é equívoco (em certas categorias muitos elementos sem objeto são, contudo, distintos de zero). A identidade de um conjunto é extensional (ou combinatória), enquanto a identidade de uma categoria é intensional (ou conceitual). Se o primeiro volume de O ser e o evento foi escrito sob a condição da teoria dos conjuntos, aquele considerado como sendo o segundo volume, Logique des mondes, foi escrito sob a condição de ambas as teorias, adequadamente integradas a fim de assegurar prioridade ontológica à teoria dos conjuntos.
Enquanto a teoria dos conjuntos articula o ser-enquanto-ser, a teoria de categorias é ciência do aparecer, ciência que significa que toda verdade do ser é irremediavelmente verdade local. Ela nos dá a conformação de um mundo qualquer, ou o modo com que este contingencialmente passa a existir, com base em suas relações intrínsecas, ou movimentos. Por manusear basicamente relações, e não propriamente objetos (no sentido ontológico do termo, ou seja, como portadores de um interior determinável), as concepções de resto, falta ou excesso não fariam muito sentido no campo das categorias. Elas são apresentadas geometricamente, como diagramas; nesses diagramas, encontramos objetos e setas que unem um objeto (fonte) a outro (alvo). Os diagramas são ditos estruturados, consistentes, ou que comutam (por oposição a indefinidos ou arbitrários). Enquanto, na teoria dos conjuntos, encontraríamos em funcionamento a lógica clássica (obediente aos princípios aristotélicos da não contradição e do terceiro excluído), a lógica natural da teoria de categorias é intuicionista (temos sempre que mostrar ou dizer como construímos um objeto para poder dizer que ele existe).
O tipo de categoria que especificamente interessou a Badiou foi o chamado "topos", que são categorias que permitem construções usadas na matemática ordinária, sendo dotadas de propriedades do tipo teoria dos conjuntos. Chama-se "topos" uma categoria na qual existam colimites para todo diagrama finito. Para Leibniz, o "topos" da topologia (ramo da matemática que trabalha com transformações contínuas, em que o aspecto quantitativo é completamente afastado, sendo puramente qualitativo) se chama analysis situ (análise do lugar). Está, assim, na teoria de categorias, a formalização que permite manejar as transformações topológicas (Lavendhomme, 2001, p. 25).
Lacan, por sua vez, fez extenso uso da topologia. Por meio desta, ele soube mostrar a maleabilidade das estruturas e sua capacidade plástica em transformar-se sem que uma produção eventual de restos colocasse obstáculos. No espaço bem comportado das relações localizadas de objetos topológicos, o universal compreenderia os elementos que têm as mesmas propriedades (ou predicados), e o particular seria uma parte da classe total. Nessa lógica tradicional, que é aquela que convém ao binarismo, a dicotomia se dá entre o universal e o particular: "se a faz parte de A, então A é o universo, e a é o particular, a instanciação" (Garcia, 2002, p. 313).
Poderíamos pensar que, no campo finito (em termos ontológicos) das transformações e movimentos topológicos, nós nos veríamos mais no registro da norma do que propriamente no da lei. Os julgamentos de valores, a partir de agora definidos no território, tornam-se marcados pela plasticidade das relações envolvidas. Não temos mais um único mundo, mas diversos mundos, ou universos, que coexistem entre si, compartilhando elementos e relações que passam a funcionar como objetos para outras relações. Os mecanismos reguladores tornam-se contínuos, propondo-se a qualificar, medir, avaliar, hierarquizar, no lugar de impor nítida separação entre certo e errado por meio de leis que se acreditavam inarredáveis. Observa-se, aqui, uma dessacralização da lei, trazendo a regulação para o território. Faltava, porém, situarmos o sujeito e sua verdade. Era necessário encontrar meios de localizá-los, precavendo-nos, porém, contra a tentação, sempre presente, de resgate da antiga concepção de lei e sua transcendência.
As estruturas topológicas trabalhadas por Lacan, da mesma forma com que mostravam o movimento local onde um dentro e um fora se continuavam, indicavam nessas passagens pontos de inflexão, nos quais, apesar de passíveis de serem formalizadas, a demonstração espacial era impossível. Pontos que representavam um distúrbio da localização, em que uma existência local ganhava o caráter de universal. E eram exatamente esses pontos as dobradiças fundamentais onde o dentro se continuava em fora, e vice-versa. Poderíamos introduzir aqui a singularidade, terceiro termo que, em posição êxtima, exclui-se da bem comportada oposição Todo x parte, subvertendo sua lógica de funcionamento: "o singular é o Um disjunto do Universal, ele não faz parte do conjunto. O singular é o Um único, Um da não relação" (Garcia, 2002, p. 313).
No território, onde os objetos passam a existir a partir de sua posição de proximidade em relação a outros objetos, o sujeito e sua verdade são signo de um distúrbio no funcionamento da localização, um ponto de inflexão localmente situado, onde a organização espacial de um mundo qualquer se coloca em questão. Um corpo subjetivado, apesar de se apresentar como mais um dentre todos os objetos de um mundo, diferencia-se destes por ser composto por uma proliferação potencialmente infinita e não previsível de relações, que se incorporariam como processo a partir de um acontecimento tão decisivo quanto fugaz, que teria como característica principal o fato de revolucionar a ordem das classificações estabelecidas, fazendo existir com intensidade máxima uma verdade até então inexistente naquele mundo bem comportado (Badiou, 2006). A verdade é o ponto impossível onde o local se apresenta como universal, onde o dentro se transforma em fora, esvaecendo-se os limites de ambos. Ela é aquilo que, na localização, deslocaliza-se, possibilitando, no futuro do pretérito, a hipotética inscrição da infinitude de um mundo finito. Em termos clínicos, se podemos predicar um sintoma, estabelecendo-o como particularidade, somente sua apreensão como enigma, como aquilo que escapa à lógica das classificações, permite a introdução do analisante como funcionando no registro do sujeito.
In fine...
Alain Badiou propõe a ultrapassagem do binarismo, ou do que ele entendeu como sendo a dualidade contemporânea ocidental, por ele estabelecida entre corpos e linguagem, pela existência de um terceiro termo, que não significasse, porém, apenas mais um lugar. Esse termo seria a verdade, que existiria como exceção em estado de inclusão, comum aos outros dois, "onde o Três suplementaria a realidade do Dois".1 A frase proposta por Badiou que definiria essa situação, em francês, é "il n'y a que des corps et des langages, sinon qu'il y a des vérités" (Badiou, 2006, p. 12), que poderíamos, talvez, traduzir por "existem somente corpos e linguagens, a não ser que haja verdades". Não se trata, para ele, "nem de uma adição (as verdades como suplementos simples dos corpos e das linguagens), nem de uma síntese (as verdades como autorrevelação de corpos apreendidos por linguagens). As verdades existem como exceções ao que há".2 Ou seja, o mundo não se reduziria ao que efetivamente existe, mas teríamos também, como um suplemento, as verdades, que seriam o nome daquilo que viria como incisão no contínuo do que existe. Ela seria signo de um distúrbio no funcionamento topológico (ou de localização) do clássico par de opostos.
Em consonância com essa proposta, poderíamos dizer que a psicanálise nasceu de um deslocamento, de uma subversão do mundo da consciência e do saber instituído. Esse início, mais do que um mero ponto de partida, fala algo de sua essência, ou, talvez, de sua não essência. Sua apresentação, sempre que ela se convoca, é signo de um disfuncionamento, ou de uma localização deslocalizada em relação às classificações estabelecidas. A verdade, na forma com que é operacionalizada pela psicanálise, apresenta-se, no território, como o lugar onde dentro e fora, juntos em uma singular apresentação, estabelecem, fugaz e contingencialmente, a existência impossível de um universal localizado.
Nada melhor para situar a contemporaneidade da psicanálise do que a definição, oferecida por Agamben, do que significa ser contemporâneo:
Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo (Agamben, 2009, p. 58-59).
Referências
Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo. Chapecó: Argos. [ Links ]
Badiou, A. (1996). O ser e o evento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. [ Links ]
Badiou, A. (2006). Logiques des mondes. Paris: Seuil. [ Links ]
Canguilhem, G. (1973, julho/dezembro). O que é a Psicologia? Tempo Brasileiro, 30-31, 104-123. [ Links ]
Cariello, R. (2005, 21 de agosto). O espelho do Ocidente. Folha de São Paulo, caderno Mais. Recuperado em 21 de agosto de 2005, de http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs2108200506.htm. [ Links ]
Coelho, M. (2011, 27 de novembro). Viagens de Lévi-Strauss: as paixões e as objeções de um antropólogo. Folha de São Paulo, caderno Ilustríssima. Recuperado em 27 de novembro de 2011, de http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrissima/index-20111127.shtml. [ Links ]
Garcia, C. (2002). Lacan e companhia. In V. Safatle (org.) Um limite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanálise (pp. 331-366). São Paulo: Unesp. [ Links ]
Lavendhomme, R. (2001). Lieux du sujet: psychanalyse et mathématique. Paris: Seuil. [ Links ]
*Professor doutor do Programa de Pós-graduação Stricto Sensu do Departamento de Psicologia da UFMG, psicanalista. Endereço: Rua Monte Sião, 19, ap. 201 - bairro Serra, Belo Horizonte-MG. CEP 30240-050. E-mail:oswaldofranca@yahoo.com. Telefones: (31) 3282-0174 e 8826-0174.
1 "[...] oú le Trois supplémente la réalité du Deux" (Badiou, 2006, p. 12).
2 "[...] il ne s'agit ni d'une addition (les vérités comme suppléments simples des corps et des langages), ni d'une synthèse (les vérités comme auto-révélation des corps saisis par les langages). Les vérités existent comme exceptions à ce qu'il y a" (Badiou, 2006, p. 12).