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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.22 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2016

 


SEÇÃO ABERTA

 

Do corte científico à invenção de um sujeito inédito: sobre a inserção da psicanálise no campo da ciência

 

From scientific rupture to the invention of a unique subject: the insertion of psychoanalysis in the field of science

 

Del corte científico a la invención de un sujeto inédito: la inserción del psicoanálisis en el campo de la ciencia

 

 

Flávia Lana Garcia de Oliveira*;

 

 

O propósito axial das psicanalistas Tania Coelho dos Santos e Rosa Guedes Lopes de elucidar o tema do desejo do analista não se estabelece pela via convencional de um recenseamento bibliográfico, mas sim por meio de axiomas lacanianos que ligam a psicanálise à ciência moderna. Essa orientação se revela próspera por desmantelar o imaginário difundido na comunidade analítica no que se refere às relações entre psicanálise e ciência, retificando-as por um sólido embasamento epistemológico e pela transmissão dos fundamentos da psicanálise. O livro surpreende pela clareza e didática com que trata temas de considerável densidade conceitual. O reconhecimento de sua pertinência para o campo se refletiu em sua indicação para o Prêmio Jabuti 2014 para a categoria Psicologia e Psicanálise.

As autoras têm uma longa trajetória de pesquisa na área. Tania Coelho dos Santos tem pós-doutorado no Département de Psychanalyse da Université Paris VIII, é professora do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ e preside o Instituto Sephora de Ensino e Pesquisa e Orientação Lacaniana. Orientou a tese de doutorado de Rosa Guedes Lopes, atualmente pós-doutoranda da Universidade Veiga de Almeida. Esse livro é parcialmente baseado em sua tese de doutorado, defendida em 2007, a qual intitula-se O desejo do analista e o discurso da ciência.

O livro se alicerça na afirmativa proposta por Lacan que equaciona o sujeito da psicanálise ao sujeito da ciência para investigar as vicissitudes da mutação subjetiva decorrente do corte que o advento da ciência moderna incidiu sobre a visão de mundo religiosa. O eixo das proposições desenvolvidas se ancora na tese do historiador Koyré, de que a ciência moderna surge a partir da passagem da visão aristotélica medieval do mundo como cosmo fechado para um universo infinito e homogêneo. Se, na Idade Média, os corpos eram ordenados hierarquicamente segundo o que era considerado seu lugar natural pela referência divina, na Modernidade, com o primado da razão, da dúvida cartesiana e da dedução lógica, todo saber é potencialmente um saber em questão, evanescente, pontual, do qual nunca se pode obter a última palavra. A intuição, a ilusão e a revelação (nomes de algumas formas de obtenção ancoradas nessa tradição divina) dão lugar ao questionamento de todas as significações herdadas. Santos e Lopes sustentam uma homologia estrutural entre essa fenda que se abre na passagem do mundo antigo para o moderno e o recalque, que, para a psicanálise, instaura a divisão psíquica (Spaltung) constituinte do eu como modalidade de repúdio à castração. A razão científica teria o valor de resposta frente ao vazio de sentido com a decaída de Deus como referente da verdade ancestral. A autoridade arraigada nas palavras provenientes da voz de Deus submerge em seu poder de nomear o real, cedendo força à bandeira moderna que coroa os preceitos da liberdade diante de qualquer determinação, da autonomia dos sujeitos e da igualdade promotora da equiparação entre os objetos.

A ciência encontrar-se-ia implicada em exterioridade-interna com a psicanálise, uma vez que o discurso analítico recolhe e trata da dimensão libidinal que a ciência rechaça. Se a ciência ambiciona operar racionalmente sobre um real supostamente puro, desencarnado do corpo, as formações do inconsciente (sintomas, sonhos, atos falhos e lapsos) dão provas de que os sujeitos não são totalmente livres nem iguais, de que algo os singulariza. Dito de outro modo, ainda que universalizados pela intervenção paterna, os sujeitos sintomatizam o resto ineliminável das marcas do desejo da mãe em sua subjetividade.

Um segundo axioma de Lacan, de acordo com o qual a psicanálise opera reintroduzindo o Nome do Pai na consideração científica, é resgatado pelas autoras como uma chave de leitura que localiza o estatuto do inconsciente no lugar anteriormente ocupado pela religião. As autoras demonstram como, baseado no mito edípico, Freud devolve à ciência o sentido sexual pela via da diferença entre os sexos e da sucessão geracional. O conceito lacaniano do Nome do Pai é o modo como Lacan formaliza e redimensiona o complexo de Édipo freudiano sob a égide da abstração, elevando o mito à dignidade da estrutura, o que retira da psicanálise o excesso de imaginário, aproximando-a, assim, do gesto científico. Assim, o pai se torna um representante leigo da lei, sem o amparo do sagrado, um semblante separado do real. Sua nomeação tem como efeito a fundação de um laço que recalca a relação incestuosa, produzindo um sujeito separado do valor fálico que tem para sua mãe. Para a psicanálise, tal passo é decisivo para que o sujeito se torne capaz de pensar cientificamente. O recalque implica um ponto de basta na tendência do aparelho psíquico de realizar o desejo de forma alucinatória, permitindo ao sujeito uma maior abertura ao princípio da realidade.

O discurso analítico faz obstáculo ao apagamento subjetivo induzido pela ideologia moderna, correspondendo à formulação da noção do desejo do analista em sua mínima redução lógica possível. O lugar do analista como objeto a restitui ao sujeito um saber sobre a verdade que causa seu desejo em seu caráter de enredo e de fantasia. Após tais ponderações, o livro caminha para a seguinte problematização: o discurso analítico permaneceria sendo o avesso do discurso da ciência na época atual? O agravamento do discurso da ciência e sua aliança com o capitalismo converte o saber em objeto de consumo. O Outro, não mais imbuído do peso da tradição e desvencilhado da autoridade do mestre, não sexual, é pulverizado na pluralização dos saberes. Precarizam-se as identificações, num empuxo à caça ao mais de gozar. As autoras então nos convidam a pensar nos avatares da clínica contemporânea: que efeitos podem ter o processo analítico em tempos do saber como agente do discurso que organiza o laço social e de ascensão dos objetos a ao zênite da civilização?

A tese conclusiva, por sua vez, reacende o debate sobre o lugar da psicanálise na ciência, ao sinalizar que não é que a psicanálise não seja uma ciência, mas o próprio advento da psicanálise exige uma revisão radical de toda e qualquer epistemologia positivista da ciência. A psicanálise introduz algo inédito sobre o enraizamento do saber no inconsciente pulsional, sublinhando que o sujeito goza com o não sentido do real. Assim, Psicanálise: ciência e discurso indaga sobre que nova ideologia científica a psicanálise contribuiria para fundar.

 

Referências

Santos, T. C. dos & Lopes, R. G. (2013). Psicanálise: ciência e discurso. Rio de Janeiro: Cia. de Freud. Resenha de: Oliveira, F. L. G. de. Do corte científico à invenção de um sujeito inédito: sobre a inserção da psicanálise no campo da ciência.         [ Links ]

 

 

*Doutoranda em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestra em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, especialista em Psicologia Clínica Institucional – Modalidade Residência Hospitalar – pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), membro adjunto do Instituto Sephora de Pesquisa de Orientação Lacaniana (Isepol). Endereço: Rua Santos Titara, 17/201 - Méier, Rio de JaneiroRJ, Brasil. CEP: 20735-240. Telefone: (21) 99662-7796. E-mail: flavialanago@gmail.com.


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