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Psicologia em Revista
versão impressa ISSN 1677-1168
Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.22 no.2 Belo Horizonte maio/ago. 2016
https://doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9523.2016V22N2P516
ARTIGOS
DOI - 10.5752/P.1678-9523.2016V22N2P516
FORMAÇÃO EM PSICOLOGIA EM UMA UNIVERSIDADE PÚBLICA E SUAS REPERCUSSÕES NAS COMPETÊNCIAS DO TRABALHO EM POLÍTICAS PÚBLICAS
GRADUATION IN PSYCHOLOGY AT ONE PUBLIC UNIVERSITY AND ITS REPERCUSSIONS ON COMPETENCES OF THE WORK IN PUBLIC POLICIES
LA FORMACIÓN EN PSICOLOGÍA EN UNA UNIVERSIDAD PÚBLICA Y SUS REPERCUSIONES SOBRE LAS COMPETENCIAS DEL TRABAJO EN LAS POLÍTICAS PÚBLICAS
Mônica Soares da Fonseca Beato*; João Leite Ferreira Neto**
Resumo
O objetivo deste estudo foi investigar como se abordam as competências profissionais no campo de atuação em políticas públicas, durante a graduação em Psicologia. Parte-se da problematização acerca da noção de competência(s) e do correlato debate conceitual sobre formação reflexiva, nas quatro dimensões que o sustentam: epistemológica, ético-política, pedagógica e institucional. São trazidas as conclusões de uma pesquisa realizada pela estratégia do estudo de caso sobre um curso de universidade pública, conduzido por análise de documentos curriculares e também por entrevistas semidirigidas submetidas à análise de conteúdo. As entrevistas foram feitas com docentes, estudantes e egressos, na época, recém-formados e que se tornaram trabalhadores em políticas públicas. O curso ainda se apropria pouco das diretrizes para a graduação e do debate atual sobre formação do psicólogo diante das competências em políticas públicas. O currículo carece de mecanismos para se chegar ao perfil generalista, interdisciplinar e com inserção na rede. Serão, contudo, apontadas muitas condições favoráveis às mudanças.
Palavras-chave: Educação superior. Formação do psicólogo. Competência(s). Políticas públicas.
Abstract
The aim of this study was to investigate how to approach the professional competence(s) in the public policies field, during the graduation in Psychology. The article starts by questioning the notion of competence(s) and the related conceptual debate on reflective education. Four dimensions fuel this debate: the epistemological, the ethical-political, the pedagogical and the institutional one. The findings of the case study on a course at a public university are presented by means of the analysis of syllabus documents and interviews with teachers, students and graduates who have become workers in public policies. We concluded that the course still does not have a critical appropriation of the syllabus guidelines and the current debate on the psychologists’ training in face of competences in public policies. The syllabus lacks mechanisms to reach the generalist profile, the interdisciplinary and the insertion into the network. However, we also noticed many favorable conditions in relation to changes.
Keywords: Higher education. Graduation in Psychology. Competence(s). Public policies.
Resumen
El objetivo de este estudio ha sido investigar cómo se abordam las competencias profesionales en el campo de las políticas públicas, durante la formación en Psicología. Se parte del cuestionamiento acerca de la noción de competencia(s) y del correlativo debate conceptual sobre formación reflexiva en las cuatro dimensiones que lo sustentan: epistemológica, éticopolítica, pedagógica e institucional. Se traen los resultados del estudio de caso sobre un curso de la Universidad Pública que se llevó a cabo mediante el análisis de documentos curriculares y entrevistas con profesores, estudiantes y graduados que se han convertido en trabajadores en políticas públicas. El curso aún se apropia poco de las directrices para la graduación y del debate actual sobre formación delpsicólogo delante de las competencis en políticas públicas. El curriculo carece de mecanismos para alcanzar el perfil generalista, interdisciplinario y con inserción en la red. Sin embargo, serán mostradas muchas condiciones favorables a los cambios.
Palabras clave: Educación superior. Formación del psicólogo. Competencia(s). Políticas públicas.
1. INTRODUÇÃO
A graduação em Psicologia no Brasil vem produzindo reformulações de acordo com as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), aprovadas em 2004 (Brasil, 2004). Junto com as inovações propostas, diversos temas no campo das políticas públicas sociais são cada vez mais incorporados como conteúdos de ensino. Isso é fruto da mudança no perfil da profissão, hoje majoritariamente empregada, principalmente no setor público e não tanto como profissionais liberais, como ocorreu em nosso passado recente (Bastos & Gondim, 2010). Surgem disciplinas, campos de estágio, projetos de extensão e pesquisa, além de outras atividades, geralmente vinculadas a temas e setores específicos.
Os dilemas das instituições de ensino superior (IES) para oferecerem uma formação de qualidade remetem a diversos fatores, alguns internos e outros externos à própria história da Psicologia. Para citar alguns dos questionamentos:
a) manutenção da lógica conteudista e disciplinar no cotidiano das práticas de formação, perpetuando a organização por áreas clássicas;
b) reprodução do utilitarismo, o qual marca a história da Psicologia; distanciamento entre clínica e política;
c) prática concebida como aplicação de teorias;
d) visão a-histórica da subjetividade;
e) escassez de debate histórico e de temas ligados à realidade brasileira;
f ) sobrevalorização da sala de aula, com prejuízo para extensão e pesquisa, entre outros aspectos (Bernardes, 2012; Ferreira Neto, 2011; Macedo & Dimenstein, 2011).
A maioria das publicações disponíveis tende a se enquadrar como relatos de experiência. A leitura desses textos e a observação da realidade mostram que há docentes apostando na assimilação de princípios e diretrizes governamentais, como se fosse esse um caminho essencialmente virtuoso e politicamente correto para a formação. O tema é, assim, abraçado como algo pronto a ser seguido e não como construção histórica e política.
Concordando com Yamamoto e Oliveira (2014), outra crítica a ser feita é que a Psicologia tem se afetado menos pela problematização dos significados em jogo do que pelas vicissitudes desse novo cenário de trabalho. Há docentes, por outro lado, que optam por uma abordagem abstrata dos problemas, distante dos dilemas do mundo profissional, a fim de não caírem no equívoco de uma formação instrumental. Mas o quadro mais grave é a tendência em atribuir às políticas públicas um estatuto de conteúdo específico e localizado no curso. Essa situação parece gerar um lugar de especialidade para a formação relacionada ao tema, em vez de transversalidade.
A discussão colocada neste artigo se iniciou com a seguinte definição do problema: que profissionais os cursos podem formar, tendo em vista seus mecanismos de vinculação a temáticas em políticas públicas na área social? Tomamos com pressuposto que os cursos brasileiros guardam diferenças significativas entre si. A depender da identidade da IES, um curso pode formar mais analistas "de fora" ou mais recursos humanos para ocuparem cargos públicos; alguns produzem conhecimento de ponta em campos teóricos, e outros sistematizam o conhecimento construído pelos próprios trabalhadores sociais. É preciso reconhecer que existem, ainda, aqueles que abordam pouco o tema. A problematização acima foi conduzida tendo como objetivo investigar como a universidade pública aborda temáticas ligadas às competências em políticas públicas sociais durante a graduação.
2. REVISÃO TEÓRICA
Ao menos em seus projetos pedagógicos de cursos de graduação (PPC), a Psicologia brasileira adere ao que parece ser uma tendência mundial de formação profissional universitária: a formação por competências e habilidades. O que essa tendência traz de novo em termos de carga discursiva e o que deixa para trás? Quais são seus perigos? A visão mais difundida é a de que a competência é uma bagagem individual que cada trabalhador já carrega consigo, ao chegar a um posto de trabalho. A revisão sobre o tema nos permite afirmar que a noção é, na verdade, polissêmica na literatura. O tema das competências, quando levado à formação, reporta-se a um debate conceitual mais amplo, que é a formação para a prática reflexiva.
Schön (2000) é um dos autores que inauguram as teorizações acerca da figura do praticante reflexivo. Ele entende que a formação desse perfil requer uma série de mudanças: transformação do programa de disciplinas, dando mais tempo para processos dialógicos se desenvolverem; inclusão de docentes cuja legitimidade maior está na forma de ajudar estudantes a problematizarem situações da realidade; valorização da crítica aos métodos pelos quais determinados autores chegam às suas teorias; abertura da pesquisa para a reflexão na ação; além de mudança nos incentivos e planos de carreira para os docentes universitários. As considerações de Schön sobre a dimensão epistemológica da formação reflexiva o tornam muito lembrado na literatura atual. Ele propõe a desconstrução da hegemonia da racionalidade técnica, que é uma epistemologia objetivista da prática que está na base do surgimento da universidade moderna, a qual separa ciência pura, ciência aplicada e aplicação.
Um dos leitores mais atentos de Schön é Perrenoud (2002), autor que ganha muita notoriedade em diversos países, ao fazer um deslizamento semântico da formação do praticante reflexivo para a formação por competências. Ele está interessado em formar um profissional aberto à mobilização de recursos, de conhecimentos e de saberes pela adaptação diante de situações complexas, imprevisíveis, mutáveis e sempre singulares, visando a solucioná-las. Perrenoud também situa a questão epistemológica da racionalidade técnica no centro do debate sobre formação acadêmica, ao criticar com tenacidade quem pensa que a universidade com foco na pesquisa possa ser uma instituição adequada para a formação do profissional reflexivo. Falta a esta abandonar quatro ilusões sobre os saberes teóricos como fundadores de práticas profissionais: a ilusão cientificista, a ilusão disciplinar, a ilusão da objetividade e a ilusão metodológica (Perrenoud, 2002). Mas o acento maior das obras do autor está nas sugestões que oferece à dimensão pedagógica da formação reflexiva. Por exemplo, aprendizagem por situações-problemas; avaliação formativa a serviço da aprendizagem e não da seleção; enfoques transversais com base em cenários de prática e em objetos de formação transversais, etc. De acordo com a perspectiva construtivista que adota, Perrenoud entende que a construção do conhecimento é um processo interno de produção de sentido e não a interiorização de um significado externo. Por isso, na universidade, seria preciso dar às competências um direito de gerência sobre o currículo. Entretanto as afinidades de Perrenoud com a Escola Nova revelariam um parentesco problemático, pela aposta no projeto de desenvolvimento humano baseado em um sujeito que tem autonomia para pensar, reduzindo a formação à dimensão cognitiva. Vemos uma apropriação generalizada dessa tendência pelas reformas educacionais, incluindo o caso brasileiro pós-LDB, o que acaba por transformar o conceito em um termo e faz com que as teorizações sejam despidas dos tensionamentos que o autor enfrenta (Pimenta, 2010).
Perspectiva diferente é encontrada em Zarifian (2009), que vê como central a dimensão ético-política na formação reflexiva. Ele sugere que a graduação deve permitir aos estudantes perceberem os contornos da lógica da competência presente no campo de atuação, advinda das mutações recentes na organização do trabalho. O autor está mais interessado em pensar sobre as estratégias coletivas dos trabalhadores para contornar seus efeitos perversos do que em simplesmente se mostrar avesso a uma lógica na qual estamos necessariamente cada vez mais imersos. Afinal, a perpetuação da distância da academia não favorece o envolvimento crítico do futuro trabalhador. Considerar a competência na formação seria uma estratégia arriscada, utilitarista, se fosse fechada em si mesma, se reforçasse que o trabalhador tem que tomar iniciativa, ter responsabilidade, dar conta da imprevisibilidade, comunicar-se bem, etc.
Por fim, nesse recorte breve da revisão teórica, Zeichner (1998) traz contribuições originais ao debate, no que tange às dimensões institucional e ético-política da graduação. Reflexividade não se resume a um exercício cognitivo nem a procedimentos pedagógicos. Cabe indagar sobre o que os atores da formação estão refletindo e como é a interação com o campo. A pesquisa colaborativa e autorreflexiva, além do aprofundamento da concepção de justiça social, são questões-chave. Ele se refere a "questões de poder, privilégio, voz e status na pesquisa" (Zeichner, 1998, p. 207). Na cultura universitária, docentes e estudantes são pouco recompensados por se engajarem a fundo em projetos de extensão. O resultado disso é que se investe pouco nas comunidades locais como campos para que se possa superar a forte divisão entre pesquisador acadêmico e profissional-pesquisador.
Não é o caso de escolher um autor como referência para nossa análise, mas nos apropriar desse debate acerca da noção de competência(s) e do correlato debate conceitual sobre formação reflexiva, nas quatro dimensões que o sustentam: epistemológica, ético-política, pedagógica e institucional. Colocamo-nos diante da seguinte questão: como as experiências formativas, em um contexto de graduação em Psicologia, situam os estudantes diante das competências da prática profissional em interface com as políticas públicas? Há poucos estudos empíricos sobre formação do psicólogo, e a maior parte se concentra em análise de documentos sobre os conteúdos de ensino. Por considerarmos que o formato das atividades curriculares e os processos institucionais também são elementoschave para análise, adotamos como estratégia de pesquisa o estudo de dois casos, em dois cursos de graduação. Devido à limitação de espaço, abordaremos aqui apenas o caso de uma universidade pública da Região Sudeste.
3. MÉTODO
As vantagens do estudo de caso são muito superiores às suas limitações para acesso ao campo da formação graduada de psicólogos diante do problema colocado. Sua potencialidade é permitir aprofundar uma situação analisada, ao abranger a extensão do contexto e descrever suas várias nuances. A limitação estaria na impossibilidade de se abordar a amplitude da realidade dos cursos no Brasil. Mas pode servir de base para explanações mais amplas sobre o tema. Yin (2010) defende que tais explanações permitem generalizações analíticas, que são diferentes de generalizações estatísticas. De acordo com o mesmo autor, a multiplicação de estudos de caso em um único projeto é comum entre pesquisadores sociais por permitir contrastes. Para isso, é importante que as definições-chave de cada estudo não sejam idiossincráticas, orientação que foi seguida. Foram contemplados aspectos do currículo oficial e também do currículo em seu acontecer cotidiano, chamado de currículo real (Sacristán, 1998), buscando-se entender em quais níveis estão ocorrendo os fluxos de mudança e as possíveis resistências a esta.
O curso foi escolhido pelo interesse em focalizar uma universidade pública e pela relativa facilidade de deslocamento da pesquisadora, quesito relevante devido à densidade do contato com o campo nesse tipo de método. O trabalho de campo foi desenvolvido em 2013 e 2014, durante 15 meses, após negociação junto a seu Colegiado de Graduação e sua Câmara Departamental de Psicologia. A pesquisa foi aprovada pelos comitês de ética da referida universidade pública e também da PUC Minas, por ser esta a instituição a que pertencemos como pesquisadores. Os procedimentos adotados foram a análise de documentos e a realização de entrevistas semidirigidas.
Os documentos, no caso da universidade pública são: o texto de reforma curricular aprovado em 2007 (PPC), a versão curricular anterior, planos de ensino, atas de reuniões e relatórios de atividade. A análise de documentos exige uma compreensão do texto e para além deste, pelo entendimento do processo histórico e por dados provenientes de outras fontes (Cellard, 2010). Os elementos-chave para acesso aos dados foram: a) componentes do currículo; b) conteúdos de ensino que mencionam temas em políticas públicas, sem uso de palavras-chave para busca; e c) o processo institucional que dá vida ao currículo.
As entrevistas foram feitas com 6 docentes, 3 estudantes no fim de curso e 5 egressos formados no máximo dois anos antes de nosso contato. Entre os docentes, foram escolhidos aqueles mais vinculados à organização da graduação e também aqueles mais ligados ao campo das políticas públicas. Entre os estudantes, o convite foi feito àqueles que cursavam o último ano e tinham algum interesse por políticas públicas. Os egressos foram escolhidos por trabalharem em políticas públicas nos campos da Saúde, Assistência Social e Prevenção à Criminalidade. A entrevista individual semidirigida foi utilizada por ser uma técnica de diálogo não diretiva, orientada por um roteiro, tendo como fator crucial a qualidade da interação. As entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas literalmente, com inserção de sinais padronizados. Cada entrevista foi analisada individualmente, conforme as proposições da análise temática do conteúdo, com subsequente comparação entre aquelas de um mesmo grupo (docentes, estudantes ou egressos) e entre os três grupos. Foram eleitas categorias operacionais de análise a posteriori, isto é, que não se confundem com os tópicos dos roteiros de entrevistas, pois são construídas durante a própria análise do material (Franco, 2005).
4. RESULTADOS E DISCUSSÃO
4.1 Sentidos da pluralidade no currículo
A atual versão curricular do curso de Psicologia da instituição foi elaborada por uma comissão, após consultas a pequenos grupos de docentes e discentes, que geravam propostas curriculares diversas e contrastantes. Vendo-se em um impasse, a comissão optou por "apresentar uma proposta que agradasse e, ao mesmo tempo, desagradasse a todos" (Docente 2). Segundo os entrevistados que participaram do processo, a proposta teve como principal fator de influência o programa de pós-graduação do mesmo departamento, com suas três áreas de concentração. A primeira delas era nomeada Psicologia Social, inspirando a criação da ênfase em Processos Psicossociais. A segunda, Desenvolvimento Humano, suscitou a ênfase em Desenvolvimento Humano e Avaliação Psicológica. Correspondência não tão direta ocorria entre a área da Pós- Graduação em Estudos Psicanalíticos e a ênfase em Processos Clínicos. Já para as disciplinas do núcleo comum, fez-se uma divisão equitativa de carga horária entre três agrupamentos de abordagens teóricas (as próprias ênfases), principal parâmetro adotado para formar o generalista.
Apostou-se que assim ficaria mais fácil definir encargos didáticos e fortalecer as demandas do Departamento, por exemplo, nas contratações. Segundo os docentes, encargos didáticos geralmente são a grande questão disparadora de debate e de encaminhamentos sobre a graduação. Não seria diferente naquele momento. A afinidade com as linhas de pesquisa da pós-graduação também iria preparar bons alunos para o ingresso no mestrado, em um contexto de expressiva queixa dos docentes quanto à cobrança por produtividade em pesquisa. Cabe lembrar as considerações feitas por autores como Zeichner (1998) e Castro (2010), de que esse tem sido o principal critério que mede o status do docente universitário perante os pares. Para além dos argumentos acima, discutidos à época e essenciais para a aprovação do PPC, as ênfases acabaram por formalizar a existência de grupos, como consequência da forte divisão presente no departamento. Um entrevistado esclarece: "O curso aderiu tão facilmente às ênfases porque a separação é quase um alívio" (Docente 6).
Ao sugerir a criação das ênfases curriculares, o MEC intencionou permitir mais flexibilização curricular em cada IES. A Psicologia foi uma das poucas áreas a adotá-las, mas atualmente a proposição tem sido muito criticada. Acaba se tornando uma especialização precoce e não oficial, uma vez que o portador do diploma poderá atuar em qualquer campo. No curso aqui analisado, os números a seguir também ajudam a explicar o problema: segundo o Colegiado, em novembro de 2014, 74% dos estudantes de 8º, 9º e 10º períodos estavam matriculados na ênfase em Processos Clínicos, contra 14% em Processos Psicossociais e 12% em Processos de Desenvolvimento e Avaliação. Esses dados vão ao encontro daqueles apresentados por Macedo e Dimenstein (2011) e por Silva e Yamamoto (2013). Pode-se inferir que as ênfases tendem a se esvaziar quando delas é supostamente retirada a função de formar para o trabalho clínico. Repete-se o modelo anterior do curso, pois a maioria das optativas e dos estágios ligados à prática profissional continua nos últimos períodos e com temas em Psicologia clínica. A maior diferença agora é a obrigatoriedade da escolha de uma ênfase.
O PPC do curso dispõe de outra estratégia para abarcar o perfil generalista, que é a formação interdisciplinar. Ela aparece nas disciplinas obrigatórias do núcleo comum oferecidas por outros departamentos, com conteúdo de ciências humanas e sociais, bases neuroanatômicas, bases psicofisiológicas, bases metodológicas, bases filosóficas e princípios de Estatística. O PPC também propõe a interdisciplinaridade com os Seminários Interdisciplinares I, II e III, realizados nos três últimos semestres, como espaço de integração entre as três ênfases, com a recomendação de que haja discussão de temas com enfoques transversais. A variedade de experiências tem sido significativa, pois a ementa é aberta e com rodízio de docentes, resultando em algumas propostas não exatamente integrativas. Por fim, incorporou-se a formação complementar, exigência das Diretrizes para os cursos de graduação da referida universidade pública. A construção dessas diretrizes é influenciada pela discussão sobre transdisciplinaridade, como sendo uma condição possível de ser alcançada em situações concretas de pesquisa ou intervenção. Aos alunos é atribuída a possibilidade de escolha de seu percurso dentro da universidade. Podem ser disciplinas, atividades propostas pelo aluno sob a orientação de um professor, atividades como monitoria, iniciação à pesquisa, extensão, vivência profissional complementar, organização de eventos científicos, minicursos, grupos de estudo sob a supervisão de professor ou pesquisador associado e publicação de artigo. Contudo, desde o momento de implementação do novo currículo, as atividades complementares não ganharam uma relação necessária com a inter/ transdisciplinaridade.
O perfil generalista, no caso do psicólogo ou mesmo de outro profissional, não se resume ao aprendizado de um pouco de tudo. Refere-se a um ofício qualificado pela visão ampla do que ocorre na situação de trabalho, com respostas diferenciadas conforme a demanda, envolvendo a gestão do trabalho, a atuação em equipe e o compartilhamento de saberes. O conceito de perfil generalista nas profissões mais relacionadas à área da Saúde aparece nas diretrizes curriculares nacionais para as graduações, como forma de atender ao princípio constitucional da integralidade (Ceccim & Feuerwerker, 2004). A integralidade tem diversos sentidos (Mattos, 2011), sendo imprescindível destacar aqui o olhar não reducionista sobre os indivíduos (biologicista ou psicologizante, por exemplo) e o foco nas necessidades de saúde da população. Intervenções assistenciais devem ser combinadas com ações de prevenção e promoção da saúde, para indivíduos e para a comunidade, considerando-se os vários determinantes do processo saúdedoença.
No Brasil, o problema do perfil do psicólogo chega aos cursos de graduação como demanda para formarem generalistas. Estes geralmente respondem à demanda, criando uma série de arranjos que permitem chamar o currículo de plural. Apresentam-se profissionais à sociedade qualificados como generalistas, quando, muitas vezes, não o são. No caso da universidade aqui analisada, a transição no modelo de formação está em andamento, mas é dificultada por várias razões, entre elas, não existir até então um processo de acompanhamento do novo currículo. O curso se apropriou pela primeira vez, em 2007, de elementos propostos pelas duas diretrizes (do MEC e da universidade), sendo compreensível haver inconsistências. A instância formal dos cursos de graduação para aperfeiçoamento do currículo é o Núcleo Docente Estruturante (NDE), que estava inativo nos últimos anos e se reuniu em 2014 devido à necessidade da oferta da licenciatura pela graduação em Psicologia.
O caso também nos coloca em posição de afirmar que a clínica continua sendo o principal elemento que dá identidade ao psicólogo generalista, não apenas aos olhos da sociedade, mas para os próprios profissionais. Pensando no campo das políticas públicas, as críticas ao modelo clássico liberal privado de clínica podem levar à falsa pressuposição de que as habilidades para o trabalho clínico não sejam desejáveis. O desconforto dos atores do curso quanto a essa polarização já é significativo, o que pode romper com a perpetuação de uma forte defasagem da formação em relação ao que se passa no campo de trabalho. Sabemos que a inserção de psicólogos na Saúde Pública, por exemplo, deu-se eminentemente pela clínica, muitas vezes com sérias defasagens em relação aos ideários da Reforma Sanitária. Mas essa clínica tem sido repensada por certas estratégias que o próprio contexto de trabalho institucional oferece. A universidade parece estar acompanhando lentamente as inovações do campo de práticas. Na Psicologia, há forte defesa ideológica de territórios, isto é, de escolas rivais, com o propósito de se valorizar apenas uma. É grande o perigo de um currículo enformar no aluno um mapa em torno da pergunta: qual é o melhor conhecimento da Psicologia para trabalhar em espaços de políticas públicas? Podem-se perder de vista as inconsistências internas do que é considerado progressista, assim como os processos de renovação existentes em vertentes diversas (Ferreira Neto, 2011).
4.2 Entre teorias e competências da prática profissional
Os relatos de todos os entrevistados reportam a uma tendência geral dos docentes do curso a orientar os estudantes para que tenham cautela na aplicação de teorias e técnicas diante dos contextos de prática. Esse é um forte indício de que os atores ali presentes questionam a ilusão de que os saberes teóricos são fundadores das práticas (Perrenoud, 2002). Entretanto, como a mensagem de cautela ainda diz pouco, vamos especificar os enunciados das entrevistas. Alguns argumentam que muito do que se aprende no curso é mais facilmente aplicado a uma população de classe média, sendo por isso necessário fazer adaptações a públicos-alvo diferentes. Outros entrevistados remetem à complexidade das situações que se apresentam como demanda para análise e, ou, intervenção, exigindo mais do que um referencial teórico poderia indicar. Um terceiro enunciado muito forte vem com os relatos dos docentes de que o curso não se preocupa em formar para o mercado de trabalho.
Vale discutir essa última proposição, pontuando determinadas tendências subliminares. Em especial, a percepção de que a maioria dos egressos tenta se inserir no mestrado. A análise conjunta dos dados reforça a imagem de que, cotidianamente, o currículo da graduação acaba produzindo a expectativa pela continuidade na pós-graduação strictu sensu. Isso não significa que tantos estudantes tenham mesmo um perfil, ou um desejo, de seguirem a carreira acadêmica. Por que então fazer essa escolha? Segundo estudantes e egressos, eles se sentem mais preparados para o trabalho em pesquisa. Como diz uma egressa: "Era muito mais fácil eu ir pra um mestrado, por mais que não tinha experiência forte em pesquisa, assim, é muito mais fácil se pensar, né, nesse tipo de formação, é muito mais fácil pesquisar do que ir pra campo mesmo" (Egressa 1). Vejamos três comentários de estudantes: "Os professores da Clínica não conseguem dissociar Clínica da academia" (Estudante 1). "Todos trazem uma perspectiva de dar ênfase a aspectos da pesquisa" (Estudante 2). “Buscar na prática algo que dê uma maior explicação para a teoria” (Estudante 3). A percepção é a de que se dá um encaminhamento "academicista" às demandas que surgem em situação de estágio e extensão, priorizando-se a focalização de pontos da realidade que são úteis para ilustrar o pensamento de autores de referência. Entende-se também que o foco dos estudantes é canalizado para a escolha de uma vertente teórica, como se fosse essa sua grande missão no curso. Lado a lado, aparece muito forte nos relatos outro empecilho à prática profissional que faça uma boa articulação entre teorias e prática, que é o aprendizado fortemente estruturado pelo raciocínio dicotômico entre clínica e social. Por contraste, o contato com questões vividas pelo psicólogo "da prática" estaria sendo insuficiente para oferecer contrapontos potentes ao academicismo. Entre os entrevistados docentes, há posições distintas sobre as considerações acima. Os mais refratários argumentam que o curso reúne elementos essenciais para que a formação tenha elevado padrão acadêmico, alto rigor científico e ao mesmo tempo seja crítica, dadas algumas condições favoráveis. Isso estaria sendo confundido pelos alunos com formação de pesquisadores. Uma docente comenta: "É muito melhor ter uma formação com qualidade, com rigor científico e que seja crítica do que o oposto, muito focada nas competências demandadas pelo mercado, que tende a ser frágil nesses aspectos" (Docente 1). Outro docente vai além: "Você consegue atuar em qualquer campo de trabalho com uma formação como essa que é oferecida aqui" (Docente 2). Sem desconsiderar que as características citadas sejam mesmo proeminentes no curso, diversos mecanismos no currículo permitem aos estudantes se adaptarem melhor a alguns cenários de atuação, em detrimento de outros.
Passemos agora a alguns componentes do currículo que permitem analisar a relação teoria e prática de outras perspectivas. As competências básicas do núcleo comum na formação do psicólogo, dispostas pelo artigo 8º das DCN e também as habilidades, copiadas do artigo 9º (BRASIL, 2004), são transpostas sem modificações para o PPC. É preciso reconhecer, contudo, que o projeto não faz correspondência direta entre essa lista de competências e habilidades das DCN e as atividades curriculares propostas para os 1º a 7º períodos. Já para as ênfases, há três listas elaboradas pela própria comissão. Alguns itens são específicos para cada ênfase, outros se repetem nas três, entre eles: “Inserir-se, de forma responsável e instrumentalizada, nas políticas públicas e programas institucionais de promoção da saúde e bem-estar social, contribuindo para a efetiva implementação de seus objetivos e para a eficiência de seus resultados” (PPC do curso analisado, p. 15-17). A referência às políticas públicas está presente, mas não vinculada às estratégias e às atividades curriculares.
Há algumas razões para se acreditar na imaturidade da discussão sobre formação por competências na Psicologia brasileira. Uma delas é apontada por Seixas (2014), quando lembra que a adequação às DCN é um fator essencial nas avaliações pelas agências de controle. Os atores da formação não sabem até que ponto seria possível criar com base na ideia de formação por competências, perpetuando a fria repetição de uma lista apresentada nas DCN. Outra possível explicação para o apagamento da discussão surge quando tiramos o foco das questões internas à Psicologia. O currículo tende a ser visto no ensino superior como uma peça técnica, neutra e apolítica. Aliás, não poderíamos deixar de comentar que a palavra "político" foi retirada da terminologia do documento que orienta os cursos de graduação. O termo "projeto pedagógico de curso" substitui "projeto político-pedagógico". É preciso acrescentar que o meio acadêmico, especialmente nas Ciências Humanas e Sociais, mantém-se desconfiado em relação às reformas recentes para o ensino superior. Referimo-nos à cobrança por produtividade para as universidades e ao fato de muitos docentes sentirem na pele os critérios de flexibilização do funcionamento da universidade, quando esta é vista mais como organização do que como instituição (Chauí, 2003). Os docentes são levados a se reconciliar com as dimensões de individualização, privatização e especialização das políticas científicas a eles colocadas (Castro, 2010). Como desdobramento, há um rechaço em bloco das reformas para o ensino superior. Essa posição se desdobra em um apagamento da discussão sobre a formação por competências e habilidades, ou seja, no entendimento sobre como ela se distingue da formação assentada no currículo mínimo, nossa tradição anterior. As críticas marxistas à condição de política de subjetivação neoliberal, imputadas à formação por competências, podem estar dificultando possíveis avanços a partir das DCN. As reformas educacionais do ensino superior tendem a responder ao processo de inserção do Brasil na economia mundial, processo este entendido por autores na área da Educação como submissão a uma agenda neoliberal (Dale, 2004).
A evolução conceitual na definição de estágio, trazida pelas DCN, é o efeito positivo desse processo mais evidente para a Psicologia. Mas as mesmas DCN não chegam a enfrentar o centralismo verbalista das disciplinas, mantendose a tradição conteudista. Mais do que isso: as DCN não "problematizaram a contento qual a relação dessa forte tradição com as demais atividades práticas desenvolvidas nos cursos" (Cury & Ferreira Neto, 2014, p. 508). A reestruturação de 2007 do curso analisado incorpora essa mudança discursiva em relação aos estágios. Anuncia, já nas primeiras páginas, um novo modelo de formação, evitando o problema do indesejável acúmulo de saber teórico no início do curso e de práticas ao final. O início dos estágios é antecipado para o 3º e 4º períodos: os Estágios Básicos I e II. Pelas entrevistas, vimos que cada professor vinha conduzindo de uma forma, alguns inserindo alunos em campos de estágio para atendimento, outros apenas solicitando transcrições e aplicação de testes. A recente inserção nos projetos de extensão dos laboratórios se tornou a proposta mais aceita. Muitos docentes não queriam assumir a atividade, por não contar carga-horária, sendo necessário dividir entre todos. Quanto às disciplinas do núcleo comum, a maioria quase não faz ligação com campos de atuação. A exceção é a disciplina Psicologia no Brasil: história e campos de atuação. A última unidade do plano de ensino (versão 2013/1) visa a apresentar vários campos de atuação em políticas públicas, embora isso não apareça na ementa. Já em relação às ênfases, a análise documental permite observar que alguns professores oferecem disciplinas junto aos estágios (que ocorrem no 8º, 9º e 10º períodos), sobre um mesmo tópico. Entretanto, quando se analisa o currículo oficial como um todo, há uma tendência em organizar a grade dos fundamentos teóricos para a prática (não necessariamente vista como aplicação). Embora alguns estudantes encontrem nos estágios extracurriculares uma forma de suprir a carência de contato com cenários de prática durante o núcleo comum, os obstáculos são concretos: o curso passa a ser integral no novo currículo; há muito material para leitura obrigatória nas disciplinas; as atividades extracurriculares contam poucos créditos para a integralização do curso; e, segundo os alunos, os próprios professores não estariam estimulando essa busca.
O convênio e a interlocução com os campos de estágio e extensão são trabalhosos e geralmente ficam a cargo de cada docente. Mesmo com essas dificuldades, em 2014, havia vários docentes vinculados a 22 projetos de extensão ligados a políticas públicas, entre eles atividades do Pró-Saúde, Pet-Saúde e Ver- SUS. Em nossa avaliação, contudo, a participação do curso nesses programas não chega a ocasionar ainda uma reorientação no modelo de formação. Alguns dos projetos sequer incluíam estudantes da graduação, em 2014, o que é um dissenso. A partir desse mesmo ano, os três eixos de orientação do Pró-Saúde (Brasil, 2007) passaram a ganhar mais atenção dos diversos cursos envolvidos nessa universidade. Esses três eixos são: a orientação teórica em Saúde Pública; os cenários de prática no SUS (e em serviços da instituição conveniados a ele); além da orientação pedagógica valorizando a crítica aos serviços e adotando metodologias ativas de aprendizagem. O Pró-Saúde nessa universidade tem apoiado os grupos tutoriais Pet-Saúde, a oferta de disciplinas optativas multiprofissionais e ligadas aos grupos tutoriais, a ação dos Núcleos Docentes Estruturantes de cada curso, o estudo sobre os fluxos de referência e contrarreferência entre os serviços da universidade, a implantação de uma comissão de integração ensino-serviço, entre outras medidas. No caso da Psicologia, em 2014, alguns docentes já começavam a mobilizar o curso em torno da integração do SPA com a rede. A instância organizadora dos estágios, o SPA, tem uma gestão própria e independente dos atos gerados pela reestruturação curricular aprovada em 2007, tornando-a menos efetiva. É no próprio espaço do SPA que a maioria dos estágios das ênfases vem ocorrendo.
A extensão é um elemento do tripé ensino-pesquisa-extensão, imprescindível para a formação qualificada de estudantes de Psicologia diante de temáticas em políticas públicas. Ela pode gerar uma formação crítica construída na vivência. O Departamento de Psicologia tem destacado suas atividades extensionistas nos relatórios de avaliação institucional para a Comissão Permanente de Pessoal Docente (CPPD). Trata-se de um dado fundamental para nossa interpretação sobre as mudanças curriculares que começam a acontecer. A diretriz atualmente colocada pela administração da instituição é a do fortalecimento real do tripé ensino-pesquisa-extensão, sendo preciso fazer pesquisa de ponta, mas também ampliar significativamente as atividades de extensão na rede. A instituição recomenda a contratação de mais professores, em caso de ampliação das atividades de extensão, o que desperta a valorização destas pelo departamento.
4.3 A formação crítica referente ao trabalho com políticas públicas
A maioria dos relatos sobre formação crítica faz menção à Psicologia Social, campo considerado muito forte no curso. Experiências formativas em Psicologia Social que remetem a políticas públicas são descritas com os verbos criticar, questionar e posicionar. São conteúdos provocadores e contestadores em relação às várias formas de exclusão social. Contudo muitos entrevistados argumentam que as atividades de formação em Psicologia Social têm sido também carentes em termos de articulação com os contextos de atuação do psicólogo. Ao falar da crítica social construída na graduação, uma das egressas comenta que, entre seus colegas, sempre há a brincadeira de que "o mundo da [faculdade citada] é um mundo à parte, né. É um mundo que funciona assim, da forma dele. Não é um mundo que funciona da forma do mundo" (Egressa 4). Vamos problematizar em que medida está havendo essa distância.
De acordo com dados do censo socioeconômico dos alunos de graduação da universidade em questão, o estudante de Psicologia dessa instituição tem as seguintes características: é majoritariamente de classe média, cursou ensino médio diurno e não profissional, autodeclara-se de raça branca, é solteiro, tem em média 20 anos e ingressou na graduação pouco tempo depois de concluir o ensino médio. Nossos entrevistados explicam que, em sua maioria, os estudantes do curso não querem tanto se tornar empregados, quando podem ser autônomos. Eles também aceitam facilmente fazer reflexões que não são vinculadas à prática profissional. Já comentamos que o perfil dos docentes converge com essa tendência.
Embora o perfil de docentes e estudantes nos ofereça pistas para explicar tal distância, é preciso nos atentar a outros elementos. Uma egressa entrevistada conta que levou da graduação para o CRAS (Centro de Referência de Assistência Social) em que trabalha valores éticos conjugados com as discussões sobre desigualdades. Essa herança da graduação funciona para ela como balizadora diante do que é central na função dos CRAS: a busca pelo acesso aos direitos dos usuários, sem deixar de implicá-los na saída de sua situação de vulnerabilidade social. Uma de suas experiências mais marcantes foi o estágio em Psicologia Comunitária. A supervisora a envolvia em um processo de reflexividade quanto aos seus preconceitos e quanto às pretensões de verdade da ciência, ao analisar o contexto de uma escola em favela. Docentes das universidades públicas têm liberdade institucional para escolher lidar mais de perto com um público-alvo que desafia um determinado saber teórico. A egressa entrevistada cita passagens em que a professora faz essa opção e ainda se responsabiliza por trabalhar no detalhe a percepção dos estudantes, futuros psicólogos que são parte da sociedade e tendem a abusar de seu poder com o discurso da ciência. É preciso pontuar que a experiência dessa egressa é a única, entre os relatos, a chamar atenção para essa dimensão da crítica social como reflexividade do cientista sobre si mesmo. Isso pode remeter ao fato de que a maioria das atividades como a citada pela egressa não são obrigatórias e são concorridíssimas no curso em questão.
Seguimos o relato da egressa entrevistada. Somente quando ela foi estudar para o concurso da Prefeitura é que sua prática "ficou mais empoderada" (Egressa 3). Antes, não tinha conhecimento sobre estatutos, leis, a história da Política de Assistência Social no Brasil e outras questões que a localizam como alguém que pode intervir com base em instâncias institucionais e aparato jurídico. A passagem acima é representativa da fala de todos os egressos e estudantes entrevistados, pois eles apontam que foi pontual ou até inexistente, durante a graduação (ou seja, não apenas na Psicologia Social), o contato que tiveram com questões pertinentes à inserção de profissionais no ciclo das políticas públicas.
Estudantes no fim do curso e egressos quase não se recordam, em entrevista, de experiências relacionadas a políticas públicas conduzidas por docentes que não são identificados com Psicologia Social. As respostas remetem a relações indiretas, no sentido de que toda formação é válida, ou que a escuta clínica é fundamental em qualquer trabalho. A exceção é trazida por uma única entrevistada, a respeito de um projeto coordenado por uma professora da clínica psicanalítica sobre crianças e adolescentes que sofrem abuso sexual. Esses relatos não condizem com a análise documental, uma vez que encontramos disciplinas e estágios da ênfase em Processos Clínicos articulados a políticas públicas, além de docentes ligados ao Desenvolvimento e Avaliação Psicológica que trabalham com pesquisas sobre inclusão de pessoas com deficiência e políticas públicas na Educação. A ênfase em Processos Clínicos é, inclusive, a que tem mais disciplinas acerca de intervenções em Saúde (por exemplo: críticas à nosografia psiquiátrica de classificação estatística e às definições de normal e patológico; tema das DST/ HIV/aids; trabalho em equipe e as demandas no contexto hospitalar). Alguns entrevistados explicam, contudo, que as disciplinas e os estágios das ênfases em Processos Clínicos e Processos de Desenvolvimento e Avaliação não dão muito peso à articulação com políticas públicas. Pela análise documental das 28 turmas de estágios existentes entre o 1º semestre de 2013 e o 2º de 2014, existem muito mais referências a temas associados a políticas públicas nos estágios da ênfase em Processos Psicossociais. Apenas 3 dos 16 estágios da ênfase em Processos Clínicos fazem menção à saúde pública. Quanto à terceira ênfase, pelas fontes consultadas, não há ligação de estágios com políticas públicas. Logo, pela análise documental, as iniciativas de formação ligada a políticas públicas por docentes que não são da Psicologia Social existem, embora sejam optativas de ênfase e ofertadas pontualmente. Nas IES públicas, cada disciplina tem o seu titular. Quando ele não oferece uma determinada atividade optativa, dificilmente outro professor irá substituí-lo com o mesmo tema.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escolha metodológica desta pesquisa revela que apostamos menos no olhar sobre o que as normas conseguem definir e mais no que os atores da formação estão dispostos fazer a partir delas. De um lado, as IES não são simples aplicadoras de diretrizes. De outro, as DCN apresentam inconsistências que apenas lentamente serão superadas. Percebe-se pouca apropriação crítica das duas diretrizes curriculares para a graduação, as do MEC e as da própria instituição, assim como do debate atual sobre formação do psicólogo em relação às políticas públicas, presente em fóruns e na própria literatura.
A formação vinculada à análise crítica das competências profissionais em políticas públicas se articula pouco com o entendimento das contingências institucionais, incluindo o ciclo das políticas públicas e o aparato jurídico/ normativo. A reflexão do estudante sobre si mesmo, como membro de uma comunidade científica e portador de uma visão de mundo, é outra faceta da reflexividade que também aparece pouco nos relatos. Por fim, um fator que tende a ofuscar o olhar sobre a atuação profissional é o perfil profissional dos docentes e o perfil socioeconômico da maioria dos discentes. Tal viés poderia ser refreado por estratégias curriculares capazes de envolver mais ativamente os estudantes na ressignificação de suas experiências de vida, em formatos menos conteudistas.
A investigação das várias dimensões do currículo revela um apagamento da análise crítica sobre as competências como ordenadoras da formação, repetindo o que se passa na maior parte dos cursos brasileiros. Falta à maioria dos docentes desse curso o interesse em se aproximar das questões vividas no campo de atuação profissional. Mas as mudanças institucionais não ocorrem somente quando todos vislumbram um mesmo objetivo. Está ganhando força um grupo de docentes muito investidos na proposta de mudar o modelo. Mesmo que implicitamente, com a última reestruturação curricular, foram priorizados problemas de encargos didáticos, a ligação com a pós-graduação e a ênfase na pesquisa. Ainda que esses fatores sejam relevantes, sobretudo em uma IES pública, acabam por obscurecer a invenção de mecanismos para se chegar ao perfil generalista, interdisciplinar, com inserção na rede de políticas públicas.
Os dados mostram, por outro lado, um curso que já tem muitas condições capazes de potencializar processos de mudanças: a potente junção entre rigor científico, alto nível acadêmico e formação crítica, além de condições institucionais favoráveis, a exemplo da recente valorização do perfil docente extencionista.
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Texto recebido em 18 de janeiro de 2015 e aprovado para publicação em 28 de fevereiro de 2016.
* Doutora em Psicologia pela PUC Minas; mestra em Psicologia na área de concentração em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); especialista em Saúde Coletiva pela Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz; graduada em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Tem experiência como docente em cursos de Psicologia e também como psicóloga do SUS. Atualmente é consultora em três programas de políticas públicas sociais e oferece supervisão a trabalhadores nesse campo. Endereço: Rua Maria da Conceição Galli, 84 - Solar da Serra, São João del-Rei - MG, Brasil. CEP: 36302-612.E-mail: msoaresbeato@gmail.com.
**Doutor em Psicologia Clínica pela PUC São Paulo; professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da PUC Minas; bolsista de produtividade do CNPq. Endereço: Rua Planetoides, 271, ap. 102 - Santa Lúcia, Belo Horizonte-MG, Brasil. CEP: 30360-440.E-mail: jleite.bhe@terra.com.br.