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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.23 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2017

https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2017v23n1p42-65 


ARTIGOS

 

 

INTERVENÇÃO COM ADOLESCENTES À LUZ DA PSICOPEDAGOGIA ÉTICO-CONSTRUTIVISTA

 

INTERVENTION WITH ADOLESCENTS IN THE LIGHT OF ETHICAL CONSTRUCTIVIST PSYCHOPEDAGOGY

 

INTERVENCIÓN CON ADOLESCENTES A LA LUZ DE LA PSICOPEDAGOGÍA ÉTICO-CONSTRUCTIVISTA

 

 

Nelson Pedro-Silva*; Camilla Mendes Prado**; Camila Rippi Moreno***

 

 


Resumo

São notórias as queixas de professores brasileiros relacionadas aos comportamentos dos alunos. Diante disso, realizou-se intervenção cujo objetivo foi discutir, em grupo, temas de interesse de jovens e possibilitar um espaço de escuta psicopedagógica. Ela foi realizada em uma escola pública de ensino médio, com 30 estudantes de ambos os sexos, nível socioeconômico D e idade entre 15 e 17 anos. Foram abordados os temas ética, sexualidade, universidade, família e bullying. Os resultados evidenciaram: 1) os participantes passaram a refletir sobre o modelo familiar idealizado e o efetivamente vivido; 2) teceram críticas aos docentes por causa do desinteresse de tais profissionais pelo processo educativo; 3) passaram a desejar o ingresso na universidade; 4) elucidaram assuntos atinentes à sexualidade; e 5) deixaram de considerar o bullying um conjunto de brincadeiras inocentes. Concluiu-se, assim, que a Psicopedagogia ético-construtivista possibilita aos escolares a reflexão acerca de assuntos relacionados à própria vida.

Palavras-chave: Adolescentes. Ensino médio. Psicologia ética. Psicologia escolar. Psicopedagogia ético-construtivista.


Abstract

Complaints by Brazilian teachers related to student behavior are notorious. Given this, we have conducted an intervention aimed at discussing, as a group, issues of interest to young people and provide a psych-pedagogic listening space. It took place in a public (high) secondary school, with 30 students of both sexes, aged 15 to 17 years, of a D socioeconomic level. The issues ethics, sexuality, university, family, and bullying were addressed. Results evidenced that: (i) participants began to reflect on the idealized family model and the one actually experienced; (ii) criticized teachers for their lack of interest in the educational process; (iii) the desire to attend college; (iv)elucidated matters of sexuality; (v) they no longer consider bullying a set of innocent jokes. It was concluded, therefore, that Ethical Constructivist Psycho-pedagogy enables students to reflect on issues related to their own life and life itself.

Keywords: Instructional control. Reading. Verbal behavior.


Resumen

Son notorias las quejas de profesores brasileños relacionadas con el comportamiento de los alumnos. Ante eso, se realizó una intervención con el objetivo de discutir, en grupo, temas de interés de jóvenes y posibilitar un espacio de escucha psicopedagógica. Ella fue realizada en una escuela pública de Secundaria, con 30 estudiantes de ambos sexos, nivel socioeconómico D y edad entre 15 y 17 años. Fueran abordados los temas ética, sexualidad, drogas, universidad, familia y bullying. Los resultados pusieron de manifiesto que: 1) los participantes pasaron a reflexionar sobre el modelo familiar idealizado y el efectivamente vivido; 2) hicieron críticas a los maestros debido a la falta de interés de estos profesionales en el proceso educativo; 3) pasaron a desear el ingreso en la universidad; 4) aclararon asuntos referentes a la sexualidad; y 5) dejaron de considerar el bullying un conjunto de bromas inocentes. Se concluye, así, que la Psicopedagogía Ético-Constructivista posibilita a los escolares la reflexión acerca de asuntos relacionados con la propia vida.

Palabras clave: Adolescentes. Enseñanza secundaria. Psicología ética. Psicología escolar. Psicopedagogía ético-constructivista.


 

 

1. INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVAS

É notório o aumento das queixas de docentes brasileiros de todos os níveis de educação, sobretudo do ensino médio, relacionadas às condutas atuais dos alunos (indisciplina, violência e desinteresse pelo aprendizado escolar). O bullying, por exemplo (assunto cada vez mais debatido e veiculado pela mídia), tem levado, muitas vezes, a consequências trágicas.

Somam-se a isso os dados disponibilizados por instituições e pesquisadores que se dedicam ao estudo da escolarização no Brasil, como Abramovay (2006). Estes evidenciaram ser péssima a atmosfera moral das escolas públicas por mais de 50% dos professores, chegando a impedir ou prejudicar a ocorrência do processo de ensino-aprendizagem. Além disso, tal fenômeno tem levado à produção de diversos tipos de sofrimento psíquico (exaustão emocional, "despersonalização", histeria, sentimento de incapacidade profissional e emocional, atitudes negativas em relação aos educandos e seus familiares e de insensibilidade afetiva para com os problemas dessas pessoas). Para tais pesquisadores, essas dificuldades têm se configurado como os principais motivos para afastamentos, licenças por problemas de saúde, readaptações e aposentadorias precoces.

Como se elas não bastassem, um estudo coordenado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV, 2008), na primeira década do século XXI, apontou que 1 em cada 5 jovens entre 15 e 17 anos apresentava falta de interesse pelos estudos formais, a ponto de abandoná-los. Vê-se que esse desinteresse e a evasão escolar dele decorrente não tinham como causa principal a busca por trabalho ou a gravidez indesejada.

Certamente, há outras causas e explicações para tais problemas comportamentais. Entre muitos fatores, destacam-se a valorização de uma sociedade centrada nas demandas dos jovens e calcada em uma "certa fluidez" (Bauman, 1997, 1999; Bruckner, 1997; La Taille, 1998a, 1998b); a situação política e econômica do País, fortalecedora do sentimento de desamparo social e da noção de que se deve empregar a violência como único meio de resolução dos conflitos intra e interpessoais e de promoção da justiça (Costa, 1989, 1996, 1999); o fato de os alunos não verem mais a escola como "templo do saber", mas “do prazer” (Bruckner, 1997; La Taille, 1996); a desvalorização do conhecimento (La Taille, 2006); o excesso de proteção dos pais (Marano, 2005); a ausência do sentimento de vergonha por apresentar condutas incivilizadas (La Taille, 1996); a dificuldade dos docentes para lidar com as políticas educacionais implantadas nas últimas décadas; e a valorização excessiva do cuidado ao corpo, cuja consequência mais trágica tem sido a produção de quadros mórbidos como a vigorexia, o overtraining, a anorexia e a bulimia (Calligaris, 2008, 2010).

Para pesquisadores da área da Psicologia moral e ética, como La Taille (2009), a prioridade, hoje, tem sido dada a formas de glória, como beleza, força física, status social e financeiro, condutas que são alimentadas pela "cultura do tédio".

É verossímil afirmar que vivemos em uma cultura do tédio […] em um mundo de comunicações superficiais, passageiras, intempestivas. […] vivemos no mundo do divertimento e somos, a cada momento, chamados a esquecer o tempo. […] vivemos em uma sociedade tão dilacerada por inúmeros mundos virtuais que a própria realidade acaba por se inclinar perante imagens. […] vivemos momentos de volta de diversas formas de misticismo. […] vivemos momentos de perigosa volta de interpretações fundamentalistas da religião e da política (La Taille, 2009, pp. 75-76).

Há também ensaios realizados pela psicanálise "extramuros" que têm se dedicado à análise das condutas dos jovens na atualidade, como os de Costa (1988), Outeiral (2001) e Calligaris (2004; 2008). Em linhas gerais, tais produções sublinham que o mundo atual, ao apontar a impotência e a impossibilidade desse modelo social instituído, ativa mecanismos narcisistas de proteção do eu e leva as pessoas a desconsiderarem valores societários e a mostrarem-se descrentes quanto ao poder da lei na resolução de conflitos e negociação de interesses coletivos. Tem-se a impressão de que tudo está reduzido à lógica neoliberal, para a qual ter riqueza parece ser a única virtude.

Não se está, com isso, desconsiderando que tal movimento é produto de uma política sistemática de produção de corpos dóceis aos interesses do capital. Nesse sentido, a escola (assim como outras instituições) funciona como "aparelho ideológico de Estado", como apontou, por exemplo, Althusser (1970). Entretanto, diferentemente de outras épocas, ela tem servido aos interesses da classe social dominante justamente operando e incorporando o discurso da ineficiência do saber formal, não cumprindo a promessa de que quem ingressa em seu interior terá status social e econômico, não servindo como instrumento de desalienação e tampouco auxiliando no processo de construção do interesse pela cultura popular e erudita como bens em si mesmos. Igualmente, não se está deixando de atentar para o fato de que, em sociedades democráticas, as agências de socialização (apesar da pouca margem) têm condições de construir uma "contra-hegemonia" (Gramsci, 1981). Todavia (em vez disso), a escola, a razão e a ciência têm sido desqualificadas em nome de um relativismo extremado e concebidas como meios de aprisionamento da vida (Rouanet, 1987).

Quanto aos estudos mais próximos sobre o trabalho desenvolvido, ao verificar as bases eletrônicas Scielo e Dedalus (USP), os autores encontraram pesquisas que analisaram os efeitos da discussão de dilemas morais hipotéticos em grupo, do emprego de assembleias e de situações de conflito (Biaggio, 1997; Dias, 1999; Santos, Prestes, & Freitas, 2014; Shimizu, 2007). Basicamente, eles observaram que tais metodologias contribuem para o desenvolvimento ético. Todavia não foi verificada a sua influência sobre conteúdos diretamente vividos pelos educandos, como o bullying.

Feitas essas considerações, em resumo, este estudo justificou-se pelos seguintes motivos:

a) a percepção do aumento de condutas de indisciplina e de violência nas escolas;
b) o desinteresse dos alunos pela construção do saber formal e a desqualificação deste; e
c) o não desenvolvimento dos temas transversais (Brasil, 1998) por uma parcela considerável dos docentes que lecionam no ensino médio e a existência de pouca literatura científica sobre o assunto.

2. OBJETIVOS

Diante desse quadro, em 2011, os autores deste escrito iniciaram um trabalho de intervenção psicopedagógica cujos propósitos, entre outros, foram:

a) discutir com os jovens, tendo como perspectiva a Psicologia moral e ética (Piaget, 1932; La Taille, 2006), temas relacionados ao interesse deles (adolescência, família, gravidez, drogas, indisciplina, sexualidade e violência);
b) oferecer um espaço de escuta aos educandos, com a finalidade de que eles aprendessem a lidar com as próprias dificuldades; e
c) auxiliá-los a se desenvolver eticamente.

3. MÉTODO

Os autores realizaram o referido trabalho em uma escola pública de ensino médio localizada na periferia de uma cidade da Região Oeste do Estado de São Paulo. Na ocasião, essa instituição era frequentada por jovens provenientes das classes D e E (Associação Brasileira de Empresa de Pesquisa [ABEP], 2012),1 de ambos os sexos e com idade entre 15 e 18 anos. Tratava-se de uma escola julgada violenta pela população e carente de recursos materiais e humanos, além de oferecedora de um ensino de péssima qualidade. Segundo dados de 2010 da Secretaria do Estado da Educação de São Paulo, das 3.551 escolas pesquisadas, a referida unidade ocupava a posição 1.699, com nota de 1,76 (a média julgada boa era de 15,3). Para se dar uma ideia da sua situação, durante o primeiro contato, cujo objetivo era o de apresentar os executores da citada intervenção2 aos membros da direção da escola, as aulas tinham sido suspensas porque alguns educandos haviam explodido um artefato no banheiro masculino da instituição.

3.1 Sujeitos

Foram informantes 30 jovens regularmente matriculados nos 1º, 2º e 3º anos do ensino médio (14, 8 e 8, respectivamente), sendo 10 do sexo masculino e 20 do feminino, de nível socioeconômico da classe D, com idade entre 15 e 17 anos.

Tais sujeitos foram escolhidos mediante um sorteio realizado em sala de aula, depois de explicitados os objetivos da intervenção e eles terem manifestado intenção de participar desta. Na oportunidade, dos 90 interessados, foram sorteados 24. Em virtude de desistência, desligamento por duas faltas consecutivas e desrespeito às regras dos grupos (por exemplo, a “quebra” do sigilo sobre as discussões feitas nos ateliês), outros seis alunos foram chamados das listas de espera.

3.2 Instrumento

Os ateliês se basearam em um modelo de intervenção construído pelos autores desde 2005, intitulado Psicopedagogia ético-construtivista (Pedro-Silva, 2012). Em linhas gerais, esse modelo fundamenta-se essencialmente nas ideias e pesquisas feitas sobre o desenvolvimento ético e moral por Piaget (1932), La Taille (2006) e Macedo (1992).

Tal modelo de Psicopedagogia concebe que o desenvolvimento não se dá apenas de maneira quantitativa, mas também qualitativa, mediante a construção de conhecimentos pelo sujeito, desde que este interaja com os meios físico e social. Para isso, além da maturação orgânica, é essencial a experiência com os objetos físicos, o processo de equilibração, as relações interpessoais e a escolarização (Piaget, 1964).

Para que a citada intervenção ocorra, é fundamental o estabelecimento de uma relação (Piaget, 1932, La Taille, 1992). Os autores amparam-se nessa premissa porque Piaget (1926,1932) demonstrou que a condição primeira para que o sujeito construa ou reconstrua conhecimentos relaciona-se a seu desejo (afetividade). Para tal, este precisa reconhecer o interlocutor como figura de autoridade, isto é, digna de poder, de prestígio e de ser amada (La Taille, 1999). Afinal, o sujeito não ama qualquer pessoa, mas somente quem ele considera merecedor desse sentimento.

Por sua vez, quanto aos requisitos para ser merecedor de amor, o primeiro é estar à disposição para a possibilidade de amar e ser amado. Estabelecida uma relação, o educando procurará obedecer ao psicopedagogo para não correr o risco de perder o amor deste.

Outro requisito é o estabelecimento de um contrato de trabalho. Entre as funções deste estão:

a) contribuir para o desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral ao obrigar os sujeitos a decidirem o que deve ser feito e como deve ser feito;
b) combater o personalismo por retirar do profissional a ideia de que ele é o soberano, uma vez que o poder é transferido para o contrato (de cuja elaboração todos participaram);
c) no tocante ao desenvolvimento ético, auxiliar no estabelecimento do respeito mútuo, da generosidade e da justiça.

Cabe informar, contudo, que nem todas as cláusulas do contrato são negociáveis. No presente caso, algumas delas eram concebidas como requisitos necessários à intervenção, como a de não fazer uso da violência ou de qualquer outra ação que atentasse contra a dignidade humana.

Em resumo: o contrato possibilita a compreensão de que a vida societária, para existir, deve se pautar por regras de convívio, como a de que não se podem dirigir impropérios nem bater e, ou, matar o professor e os colegas (mesmo quando se sente ódio por eles). Nesses casos, a referida Psicopedagogia preconiza a reflexão sobre as razões para tais interditos.

Como método de trabalho, utiliza-se o explicativo, apontado por pesquisas como um dos meios mais eficientes para o desenvolvimento global do aluno, como propõe os "Parâmetros Curriculares Nacionais" (Brasil, 1998). Todavia este não substitui a própria ação, mas a complementa, pois permite a sua compreensão. Segundo Piaget (1974/1978, p. 176),

Fazer é compreender em ação uma situação dada em grau suficiente para atingir os fins propostos, e compreender é conseguir dominar em pensamento as mesmas situações até poder resolver os problemas por elas levantados, em relação ao como e ao porquê das ligações constatadas e, por outro lado, utilizadas na ação.

Sua eficiência reside, então, na constatação do motivo de ser dos limites e de determinadas interpretações cristalizadas. Nesse sentido, esse método difere do autoritário, que se ampara no emprego do castigo físico. Igualmente, afasta-se do afetivo, cujo cerne é a ameaça da retirada do amor. Em outros termos, ao oferecer justificativas quando uma ordem ou uma repreensão é dada, o método explicativo busca fazer cessar determinado comportamento ou superar certa maneira de pensar ou até discursos fossilizados e, por conseguinte, tomados como sinônimos da verdade.

Em geral, as explicações pedidas são devolvidas para os próprios sujeitos, na forma de questionamentos, e se baseiam nas consequências do ato praticado. Nesse sentido, as respostas não são dadas, mas o educando é estimulado a construí-las. Por exemplo: o que determinado jovem pode provocar ao dirigir impropérios e, ou, bater em um colega?

Especificamente quanto às punições, elas são construídas coletivamente e somente são consideradas e aplicadas aquelas que tenham como princípio o desenvolvimento do infrator. Trata-se das "sanções por reciprocidade" (Piaget, 1932). Estas, diferentemente das “expiatórias”, obrigam o sujeito a pensar sobre a infração cometida, isto é, ele é obrigado a deslocar-se mentalmente e colocar-se no lugar dos outros. Ao fazer isso, desenvolve a reciprocidade, regula o ciúme e o egoísmo e entende que é vital respeitar o outro, ou seja, agir como se o amasse (Macedo, 1992; La Taille, 1998b).

Esse modelo possibilita, ainda, a explicitação dos sentimentos envolvidos nas questões morais, como a tristeza e o sofrimento sentido pelo psicopedagogo quando o aluno transgride alguma cláusula do contrato. Compreende-se que essa é a pior punição: o sujeito sentir que decaiu perante o olhar do outro, concebido como autoridade (Piaget, 1932; La Taille, 2002).

Do ponto de vista prático, o processo de construção e reconstrução de conhecimento ocorre da seguinte forma: a) o psicopedagogo deve ser colocado, pelo aluno, no lugar de sujeito suposto saber e o educando, no lugar daquele que nada sabe. Isso é necessário porque o aluno somente escutará aquilo que suas estruturas de assimilação possibilitarem em determinado momento (Piaget, 1983; Macedo, 1992; Castorina, 1988). Nesse sentido, é o educando que sabe o que quer e como escutará o psicopedagogo. O profissional, por sua vez, é o outro, aquele que nada sabe. Cabe dizer que esse saber também é desconhecido para o aluno, ou seja, nem ele sabe que sabe. Assim, deve-se estabelecer um diálogo permanente em que tanto o psicopedagogo quanto os educandos sejam sujeitos e objetos de construção e reconstrução de conhecimentos. Vê-se que todo esse processo somente é possível se o respeito estiver presente.

Outro aspecto é que a inteligência deve estar convencida e o "coração", sensibilizado de que determinada forma de agir é a mais adequada. Somente assim o psicopedagogo comoverá e convencerá os alunos de que agir, por exemplo, de maneira respeitosa é o único caminho para a garantia da harmonia social e da pessoal. Dessa forma, se o psicopedagogo não acreditar que estudar é algo necessário e produtor de satisfação, como poderá contribuir para a produção de cidadãos interessados e apaixonados pelo conhecimento?

Considerando tais informações sobre a Psicopedagogia ético-construtivista, os executores:

a) organizaram os grupos;
b) construíram materiais para que os temas eleitos pudessem ser analisados;
c) auxiliaram e observaram a consecução do contrato estabelecido;
d) estabeleceram vínculos;
e) escutaram os problemas e as dúvidas apresentadas;
f ) auxiliaram no processo de reflexão grupal sobre a construção de saídas para tais dificuldades; e
g) exerceram o papel de "mediadores" nas situações de conflito.

Quanto à relação, foram realizadas atividades que possibilitaram o vínculo, o envolvimento e a confiança entre os membros do grupo e entre estes e os executores. Em uma delas, utilizou-se uma caixa construída pelos próprios executores, da qual cada membro retirava um pedaço de papel contendo uma pergunta a ser respondida por ele e, depois, pelos demais participantes. As indagações versaram sobre assuntos diversos: idade cronológica, preferência musical e futebolística, leituras e autores prediletos, opiniões sobre temas julgados polêmicos (como a descriminalização da maconha), sonhos profissionais e assuntos relacionados a conflitos individuais (família e namoro).

Na sequência, foi apresentado aos alunos um conjunto de regras, sobre as quais foram trabalhados apenas os motivos de sua pertinência, como não fazer uso de qualquer tipo de violência, respeitar o horário dos ateliês, não faltar e tampouco deixar de se envolver na consecução das ações propostas pelos grupos. Quanto às demais, como as punições, foram estabelecidas pelos próprios membros. Quando um ou outro participante sentia-se contrariado com as regras das quais ele mesmo participou da elaboração (como a de não fazer uso do celular durante o ateliê), elas somente podiam ser modificadas em datas previamente determinadas pelo próprio grupo. Nesse sentido, buscou-se fazê-los refletir sobre a primazia dada aos interesses coletivos e a importância das regras para a garantia do convívio. Além disso, procurou-se oferecer estímulos à compreensão da dignidade da pessoa humana como um fim em si mesmo. Como afirmou La Taille (2005), mais importante do que as regras são os princípios, pois as primeiras, comparáveis aos mapas, dizem aonde se deve ir; já os segundos informam a direção (até mesmo quando faltam as representações cartográficas).

A equipe do projeto considerou a escuta dos problemas e das dificuldades um dos momentos mais fecundos da intervenção. Inicialmente, os educandos se mostraram resistentes e tímidos. Com o fortalecimento dos vínculos com os executores, começaram a perguntar como eles deveriam, por exemplo, agir diante dos limites estabelecidos pelos pais. No início, a demanda deles era pelo oferecimento de respostas sobre como deveriam proceder. Diante do fato de os executores devolverem a indagação ao inquiridor e aos demais membros do grupo, inicialmente, mostraram-se irritados, a ponto de um deles chegar a questionar dois executores acerca do que eles estavam fazendo ali. Explicou-se, então, que o papel destes não era o de dar respostas ou explicar como deveriam agir, mas o de auxiliar os participantes a construir caminhos para a superação de seus problemas. Com o tempo, esse tipo de queixa diminuiu a ponto de estes passarem a discutir suas dificuldades.

Em relação aos conflitos, basicamente o trabalho consistia em fazê-los lembrarse das regras construídas e das estabelecidas pelos executores para a realização da intervenção. Além disso, priorizou-se o desenvolvimento da noção de respeito, ou seja, da ideia de que eles não tinham de amar os demais participantes; todavia deveriam proceder como se os amassem, e isso implicava, antes de tudo, buscar compreendê-los.

Quanto à avaliação da intervenção, foi feita por meio da observação das condutas e falas dos alunos. Os executores verificaram, ainda, a relação estabelecida e a assiduidade aos ateliês. Além disso, os educandos foram entrevistados no penúltimo e último ateliê. Nesses encontros, foram feitas pelos autores indagações do seguinte tipo: "Você acredita que o trabalho executado por nós contribuiu, em alguma medida, para a mudança da sua opinião acerca do bullying?".

3.3 Coleta de informações

Procedeu-se do seguinte modo:

a) entrou-se em contato com a escola com a intenção de conseguir a autorização para a execução dos ateliês;
b) tendo os alunos manifestados interesse em participar, realizaramse atividades visando à formação dos grupos e ao estabelecimento do vínculo;
c) na sequência, os executores buscaram estimular os participantes a apresentar tópicos de interesse (família, por exemplo), os quais foram discutidos tendo-se como parâmetros a articulação com o conteúdo formal, a Psicopedagogia ético-construtivista e os conflitos vividos pelos membros do grupo.

Especificamente quanto à operacionalização dos ateliês, fazia-se um breve relato do assunto trabalhado na sessão anterior. Em seguida, apresentava-se o tema, já selecionado pelo grupo. Seu desenvolvimento iniciava-se por meio do levantamento do que os participantes sabiam sobre o assunto. Depois, procediase à sua apresentação sistemática mediante o emprego de vídeos, textos de revistas e jornais, entre outros recursos. Na sequência, estimulavam-se os educandos a apresentar opiniões acerca do conteúdo. Depois disso, buscava-se articular tais opiniões e o próprio conteúdo com as disciplinas tradicionais (Língua Portuguesa, Matemática, Ciências Naturais e Sociais). Por exemplo: quando se trabalhou a contracepção, explicou-se o efeito de cada método anticonceptivo no corpo feminino e sua eficácia na prevenção da gravidez indesejada e no contágio por doenças sexualmente transmissíveis, além de conteúdos escolares de citologia e de genética.

Os principais temas trabalhados foram: ética/moral, sexualidade (primeira relação sexual, relacionamentos amorosos, o "ficar", contracepção, mudanças biológicas e sociais da puberdade, concepções sobre o sexo), História (Idade Média, Renascimento), diferentes configurações familiares, drogas, Biologia, universidade, bullying.

Realizaram-se, no total, 52 encontros, uma vez por semana, com duração de 50 minutos cada. Os três grupos foram compostos por 2 executores e 8 alunos. Tais encontros foram realizados nas dependências da escola, durante os anos letivos de 2011 e 2012.

3.4 Análise das informações

Em novembro de 2012, entrevistaram-se os sujeitos participantes dos ateliês. Obtidas as informações, foram lidas minuciosamente as respostas dadas à entrevista. Em seguida, elas foram transformadas em dados, assim como as observações feitas, tendo-se como parâmetros os objetivos do estudo.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Os autores deste estudo acreditavam que a primeira proposição a ser tratada relacionar-se-ia à sexualidade humana. Afinal, os estudos de Matos, Carneiro, & Jablonski (2005) e de Amarall & Fonseca (2006) apontaram ser essa uma das principais preocupações dos jovens. Entretanto, estes somente manifestaram tal inquietação quase ao final da intervenção.

Os autores creem que isso deve ter ocorrido por se tratar de um tema ainda revestido de tabu em nossa sociedade. Os adolescentes, quando conversavam sobre esse assunto, somente o faziam entre eles. Tinham receio de, ao falarem com os pais, não serem “escutados”, serem punidos ou verem suas preocupações transformadas em objeto de domínio público e, por conseguinte, de zombaria (Amarall & Fonseca, 2006). Também pode ter se dado em virtude de quase a totalidade dos sujeitos, depois de algum tempo, ter confidenciado aos executores não ter iniciado a vida sexual, indicando que estavam fora ou à margem das pesquisas feitas sobre a iniciação sexual dos jovens no Brasil (Freitas & Dias, 2010). Igualmente, não foi possível desprezar a força de outros temas mais “mobilizadores” no momento.

Foi esse aspecto que, depois de algum tempo, tornou-se significativo para os autores, pois a maioria dos ateliês acabou pautando-se em discussões sobre a família. Afirma-se que se tornou significativo porque, segundo Castorina (1988) e Piaget (1976/1977), determinado evento é apenas um estímulo (fato físico), sendo dada atenção a ele somente quando este se transforma em um fato significativo.

Para efeito didático, os resultados foram divididos em cenas, assim agrupadas:

a) família;
b) professor/escola;
c) futuro;
d) sexualidade; e
e) bullying/violência.

4.1 Família

Aventou-se a possibilidade de que o desejo de falar sobre a família relacionavase ao fato de os sujeitos serem provenientes de lares considerados diferentes do modelo familiar ainda dominante em nosso meio social, isto é, pai, mãe e filhos morando juntos (Samara, 1983). Com o desenrolar do trabalho, tal hipótese se confirmou.

Por exemplo, Nayara6 3 mencionou a existência de problemas com a madrasta. Ela relatou, ainda, que, há muito tempo, seus pais biológicos tinham se separado. Segundo ela, sua progenitora tinha dificuldades para lidar com os sentimentos dos filhos, tornando-se distante do ponto de vista psicológico e físico (residia em São Paulo). Isso ocorria tanto em relação a ela quanto ao irmão. Por causa disso, ambos foram morar com o pai (ele tinha se casado novamente). A jovem acrescentou que, com a atual configuração familiar, ainda vivia uma relação de conflito.

Em outro encontro, Nayara pronunciou-se acerca da relação com a madrasta, pois não aceitava "ser mandada" por ela. Confidenciou, também, que a companheira de seu pai havia tentado suicídio, tendo sido socorrida por ela. A menina, apesar disso, sentiu-se culpada por essa tentativa e somente a salvou para não sentir remorso.

Quando indagada sobre "como deveria ser uma família", Nayara mencionou o desejo de que a sua fosse pautada pela "compreensão, união, felicidade, harmonia, amor entre filhos e pais". Inquirida sobre as mudanças a serem feitas em sua atual família, ela enumerou: "Ter menos brigas, que meus pais sejam mais amigos, que entendam meus sentimentos &%91…]".

Sobre o que ela significava para a sua família, disse: "O que significo pra ela [família] não sei. Mas eles significam tudo. Apesar de muitos acontecimentos de raivas, momentos estressantes, eles são tudo na minha vida e meus amigos".

Na sessão seguinte, Nayara contou que havia se aproximado da madrasta. Para isso procurou ceder um pouco em suas vontades. Notou que a atual esposa de seu pai fizera o mesmo. Por isso, segundo suas impressões, elas tiveram uma semana sem desentendimentos.

Na última sessão, Nayara contou ao grupo que melhorara também a relação com sua mãe biológica: "Hoje, o meu relacionamento com a minha mãe é melhor. Eu e ela cedemos e conseguimos conviver melhor". Depois dessas sessões, Nayara, que tanto se sentira abandonada e magoada, e nutrira ódio e hostilidade, estava pensando em voltar a morar com a mãe biológica.

4.2 Professor/escola

Ficou evidente, a partir das visitas à escola, o quanto o docente é importante para os alunos e, ao mesmo tempo, o quanto eles se julgam ignorados por esse profissional. Por exemplo, todas as vezes que os executores foram atendê-los, estes chegavam à escola e se dirigiam até a sala onde os educandos estavam tendo aulas. Quando um dos executores chamou Gina (um dos sujeitos), a professora falou que ela não estava comparecendo às aulas. Nesse momento, a citada aluna levantou-se e caminhou em direção aos executores. A docente, espantada com a presença da garota, avisou-lhe que ela havia ficado com falta. A aluna lhe respondeu não se preocupar.

A propósito, em outras ocasiões, quando os executores lembravam sobre o relatado nos ateliês, os participantes sempre diziam, com ar de espanto: "Nossa, elas lembram". Os autores inferiram que tal prática era incomum, algo que não ocorria com os educadores.

Outro aspecto foi a forma como os alunos se comportavam em aula. Diante dessa inquietação, perguntaram-se quais os motivos de eles, por exemplo, dormirem durante a aula e, ou, ficarem escutando música nesse recinto. Indagouse ainda se, agindo assim, não estavam incomodando os colegas ou até mesmo os docentes que, por esses motivos, talvez agissem dando a impressão de não se preocuparem com eles (até como forma de se defenderem do descaso). Alguns sujeitos do próprio grupo comentaram que eles se aborreciam com o barulho. Outros disseram não se importar se estavam invadindo o espaço alheio.

No final da intervenção, ocorreu uma mudança. José criticou a colega Leila, cuja conduta no encontro anterior foi a de ficar grande parte do tempo no celular. No encontro em que ele deu essa reprimenda, pronunciou-se: "É chato isso". Os executores já haviam percebido que a garota ficava mexendo no celular. Acreditava-se, contudo, que ela própria abandonaria essa conduta quando se sentisse mais à vontade no grupo. O ocorrido, porém, foi mais surpreendente. Os alunos, entre si, dialogaram com o objetivo de fazer a colega refletir sobre sua atitude, julgada inapropriada para aquele momento.

Outro fato referiu-se à infraestrutura material da escola. Ela era cercada de muitas grades e telas, dando a impressão de ser uma prisão. Além disso, o corredor de acesso às salas de aula era fechado durante o intervalo. O motivo, segundo a inspetora, era impedir os educandos de destruírem ou roubarem os materiais escolares.

Esse aspecto evidencia, conforme a opinião dos autores, o quanto a escola concebe parte dos alunos como indigna de confiança. Conforme os administradores, tal medida era empregada como forma de puni-los por acontecimentos lamentáveis ocorridos na escola, como o de atear fogo às cortinas das salas de aula. Conforme Piaget (1932), esse procedimento é um tipo de sanção expiatória, ou seja, a qualidade do castigo não guarda relação com o delito cometido. Por conseguinte, ele pode até causar dor. No entanto, não tem força para evitar a reincidência, uma vez que não se buscou levar os infratores a se desenvolver intelectual e eticamente a ponto de compreenderem a tolice cometida.

Quanto aos banheiros, estavam em condições precárias, isto é, sujos e sem trancas nas portas, papel higiênico, sabonete e toalha de papel. A quadra poliesportiva estava em péssimo estado, impossibilitando a prática desportiva. A sala de informática não estava diferente (computadores quebrados e obsoletos e apenas uma mesa). No final de 2012, ficou pronta a sala de leitura. No entanto ainda faltava espaço para a realização de atividades artísticas, atendimentos psicopedagógicos e, ou, para a efetivação de outras ações.

Outro conjunto de problemas referiu-se aos recursos humanos. Constantemente, os profissionais eram trocados, desde membros da direção, da coordenação e do corpo docente. Por exemplo: em 2012, vários docentes ocuparam a vaga de Geografia. Especificamente quanto à direção da instituição de ensino, no período de execução da intervenção, passaram pelo cargo de diretora três profissionais. Aconteceu também de alguns dos encontros para a realização dos ateliês terem sido desmarcados. Os motivos eram vários, desde a promoção de gincanas, reuniões ou falta de docentes e a consequente dispensa dos alunos. Esse aspecto evidenciou a falta de planejamento escolar e, ou, de seu cumprimento.

Essa impressão foi comprovada já no primeiro encontro (ocorrido no primeiro semestre de 2011), quando se indagou os alunos acerca do julgamento que faziam da escola. O grupo como um todo se manifestou negativamente. Para esses educandos, a escola não levava o ensino "a sério", isto é, os docentes não eram comprometidos (não explicavam a matéria e, ou, não compareciam às aulas). Segundo Ronaldo, "Aqui [na escola] é mais fácil o aluno vir para a aula do que o professor". Esse fato estava, segundo eles próprios, estimulando-os a pedir transferência para outra instituição onde imaginavam ser possível o aprendizado.

Questionou-se se essas reclamações já haviam sido feitas, pelo menos, aos membros da coordenação pedagógica. Ronaldo respondeu: "Não tem jeito. Os professores só explicam quando comparecem à escola. E isso é algo raro, pois aqui são eles que faltam". Quando um dos executores sugeriu que talvez isso estivesse ocorrendo por causa da conduta dos educandos, Gina não concordou e reagiu: “Os professores desistiram de nós”.

4.3 Futuro

A maioria dos alunos que não manifestava vontade de prosseguir nos estudos universitários, depois dos ateliês, passou a apresentar opinião diferente.

A propósito, em certo encontro, eles perguntaram aos executores: "A escola serve para quê?". A indagação foi devolvida para o grupo e, então, Gustavo disse: "A escola é importante sim" (pois, ele se julgava interessado). Não obstante, sublinhou que esse proveito dependia também do docente. Para Nayara, a escola serve para ensinar algo da cultura que não é aprendido fora dela. Ambos ressaltaram, porém, que a escola nem sempre consegue ensinar, pois educandos e professores não estão interessados no processo de educativo.

Até o segundo encontro, somente três sujeitos haviam manifestado desejo de iniciar os estudos superiores. Já nas entrevistas feitas ao final da intervenção, todos declararam ter essa pretensão. Leila chegou, inclusive, a dizer: "Antes eu não pensava sobre o futuro. Agora, eu quero fazer uma faculdade, fazer Letras".

Jéssica, apesar de ter deixado de participar dos ateliês em outubro (conseguira emprego), compareceu à avaliação. Na oportunidade, pronunciou-se: "Quando crescer, eu queria ser igual a vocês" (os executores da intervenção). Quanto a Nayara, confidenciou que estava refletindo sobre a possibilidade de se mudar e voltar a morar com a mãe biológica na capital paulistana. Nesse lugar, pretendia buscar melhores possibilidades de estudo e de trabalho. Ronaldo estava pensando em começar a trabalhar à tarde e continuar seus estudos no período noturno. Ele acreditava que, desse modo, conquistaria maior autonomia e independência em relação aos pais. Leila falou de seu desejo em terminar o ensino médio e, tomando as executoras como modelo, pretendia fazer uma graduação em universidade pública.

Vê-se, nesses depoimentos, a importância do modelo. La Taille (1999, 2002), Pedro-Silva (2005) e Piaget (1932), a esse respeito, disseram que, sem tais referências, o sujeito não tem onde se amparar para construir sua personalidade moral.

A função do ideal do eu [do modelo] pode estar na origem da delinquência, da inadaptação social e dos distúrbios de caráter do adolescente. [Assim,] pelo que sabemos, é só a partir de uma nova orientação de seu ideal do eu que uma mudança no caráter do indivíduo a-social pode ocorrer. Isto não pode suceder senão pela integração de novos traços de personalidade. O primeiro objeto do qual pode tomar esses traços é o educador, que representa o mais importante objeto a partir do qual a criança ou o adolescente a-social pode recuperar a posteriori as identificações ao pai que não se realizaram ou foram falhas. Pelo educador […], a criança estabelecerá também com seus companheiros as relações afetivas indispensáveis. […] (Millot, 1987, p. 128)

Por falar nisso, a escola montada por A. S. Neill (1883-1973) deu certo em grande medida por causa da contribuição dada por ele próprio: “O dínamo essencial da pedagogia de Neill reside[ia], como em toda educação, no exemplo que ele apresenta[va] às crianças pela força e pelo rigor de sua própria personalidade” (Millot, 1987, p. 146).

4.4 Sexualidade

Eles fizeram várias perguntas aos executores acerca de tal assunto. Por exemplo: "Qual é o tipo de beijo que você gosta e como você define o seu?"; "Para vocês, uma relação entre duas pessoas, para haver uma 'química', tem de ser da mesma idade?"; "Vocês já foram traídas?"; "O que é o orgasmo?"; "Por que falam que as mulheres fingem [o orgasmo]?".

Em outra ocasião, os executores realizaram uma dinâmica com o intuito de dissertar sobre a contracepção. Para isso, estes levaram modelos dos aparelhos reprodutores masculino e feminino; explicaram o efeito de cada um dos referidos meios no corpo feminino; e, por último, orientaram os alunos para que fossem ao médico e utilizassem métodos associados (camisinha e pílula), pois são mais eficientes na prevenção de gravidez indesejada e doenças sexualmente transmissíveis.

Discutiu-se, também, acerca da decisão de ter a primeira relação sexual e como a gravidez não planejada influenciava a vida de um jovem. Eis o depoimento de Joana, que era noiva: "Antes, eu não tomava remédio [pílula]. Agora, depois das oficinas, comecei a tomar".

Os participantes também manifestaram preocupações quanto à virgindade feminina. Para eles, sempre existia a pessoa e o momento certo. No final das intervenções, José falou a esse respeito:

Não pensava nada [sobre a virgindade]. Hoje eu acho que a menina deve se cuidar. Não necessariamente casar virgem, mas saber escolher. Hoje, eu respeito o momento meu e [o] da menina. Se ela quer e eu também, tudo bem. Tem que se prevenir. […] Hoje penso mais em perder a virgindade com a pessoa certa.

4.5 Bullying

Foi reproduzido um vídeo cujas autoras discorrem sobre as consequências do bullying. Depois foram apresentados casos conhecidos por suas repercussões e procurou-se, por meio deles, levar o grupo a refletir a respeito das implicações dessa atitude e sobre os meios a serem empregados com o intuito de não praticar ou reforçar tal conduta. Mesmo assim, frequentemente, o grupo justificava formas de humilhação como sinonímia de brincadeira; portanto, elas não deviam ser levadas a sério (pois visavam apenas a fazer os outros rirem).

Buscou-se, então, levar o grupo a se questionar acerca do estado emocional da pessoa que é objeto de piadas. Os executores foram surpreendidos com a exposição feita por Juliana e Ronaldo. Ambos relataram que, naquele dia, Nayara havia se negado a tirar uma foto com Juliana, pois se achava gorda e feia. Para se explicar, Nayara contou: de tanto as pessoas falarem isso a seu respeito, ela passou a acreditar, usando como exemplo a fala da apresentadora do vídeo (a pessoa, frequentemente, tende a incorporar o falado a seu respeito).

O grupo, no instante em que Nayara falava, tentou animá-la. Os colegas disseram que sequer a julgavam feia, tampouco gorda. Com a continuidade da reflexão, os executores acabaram por obter uma resposta dada de modo unânime: eles passaram a compreender que tais ações não eram engraçadas, mas uma forma de violência com o próximo. Entrementes, permaneceram argumentando que essa era, em algumas situações, a única forma de se defender da violência dos demais colegas. Como explicou Geane: "Você tem que reagir, pois, se não fizer nada, você é presa fácil".

4.6 Outros aspectos

Ao longo da intervenção, constatou-se o aumento do respeito mútuo entre os sujeitos. Em outros termos, os participantes passaram a respeitar os sentimentos explicitados pelos colegas sem fazer escárnio ou brincadeiras inconvenientes.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A intervenção aqui relatada, desenvolvida ao longo de 2011 e 2012, auxiliou os alunos nos seguintes aspectos:

a) os participantes tomaram consciência do modelo familiar idealizado e do efetivamente vivido e passaram a refletir sobre ambos;
b) muitos manifestaram conflitos com os professores, além de questionarem o processo de ensino-aprendizagem. Para eles, os docentes deixaram de se preocupar com sua veiculação;
c) depois da intervenção, a maioria dos sujeitos que não desejava prosseguir nos estudos superiores mudou de opinião. Constatou-se, ainda, que alguns deles tomaram os executores da intervenção como modelos. Isso evidenciou o papel de modelo que o professor pode desempenhar junto aos alunos, direcionando-os ao aprofundamento dos conhecimentos e à escolha profissional, além de impedir que façam uso da violência como forma de resolver seus conflitos intra e interpessoais;
d) a intervenção possibilitou, ainda, o esclarecimento de temas relacionados à sexualidade, principalmente no tocante ao emprego de métodos contraceptivos. Foi possível verificar que os jovens são carregados de preconceitos e visões do senso comum, além de se queixarem da escola por não os auxiliar nesse aspecto. Não se está afirmando que a escola não executa tal ação. Entretanto se a realiza, ela não está transformando-a em fatos significativos para os educandos, e esse aspecto é gravíssimo se considerarmos os casos de gravidez indesejada e doenças sexualmente transmissíveis. Os autores verificaram, ainda, que os alunos apresentavam uma visão arcaica sobre a manutenção da virgindade da mulher antes do casamento. Tal resultado deve ser objeto de reflexão até pelos mass media. A forma como estes estão veiculando tal conhecimento não está “chegando” aos jovens;
e) a maioria começou a refletir sobre o bullying, até então visto apenas como um conjunto de brincadeiras inocentes, sem efeitos maiores para as vítimas.

Quanto aos problemas para a consecução da intervenção, verificou-se que eles residiram, sobremaneira, no fato de a escola não respeitar as regras estabelecidas para a execução da intervenção (por exemplo, dispensa dos alunos no dia da intervenção sem os executores serem informados previamente); o desenvolvimento do referido trabalho no horário das aulas curriculares; a falta de envolvimento dos docentes (alguns chegaram a dizer que não sabiam qual a pertinência do referido trabalho, apesar de todos terem sido informados antes de seu início); e o fato de alguns participantes terem desistido dos ateliês por terem sido obrigados a trabalhar para auxiliar no sustento da família.

Apesar disso, em síntese, os autores verificaram que a intervenção contribuiu em alguma medida para que os sujeitos, ao menos, refletissem sobre assuntos atinentes à vida deles. Acredita-se, todavia, que há muito que fazer, sobretudo pelos profissionais investidos da cultura da paz. É igualmente fundamental que os professores tenham sensibilidade e ofereçam abertura para a discussão de tais temas. O problema é que as péssimas condições de infraestrutura material e humana da escola (sobretudo, a desvalorização econômica e social do docente) têm contribuído para os estudantes pensarem como Gina: "Os professores desistiram de nós".

Os autores não têm condições de afirmar se as mudanças ocorridas foram, de fato, significativas a ponto de terem levado os participantes a se relacionar de maneira diferente com a realidade. Contudo, vários assuntos, até então sequer considerados objetos de discussão, passaram a fazer parte do repertório de tais jovens. Mesmo assim, o fato de se ter certo juízo sobre determinado aspecto, como o do respeito às pessoas julgadas diferentes, não significa a prática correspondente (Piaget, 1932). De qualquer forma, algo é certo: ao tentar desrespeitar tais pessoas, o juízo construído sobre o tema pode funcionar como barreira à concretização de ações incivilizadas.

Por fim, informa-se que esse tipo de intervenção ainda está em curso. Desenvolveram-se três instrumentos cuja finalidade é mensurar tais mudanças: prova de conhecimentos sobre assuntos opinativos, como a descriminalização das drogas, o emprego da pena de morte e a homossexualidade; dilemas morais semelhantes aos apresentados por Kohlberg (1981/1992); e avaliação referente aos conteúdos escolares formais. A intenção dos autores, além de auxiliar os alunos a desenvolver a cultura da paz e apresentar interesse pela construção do saber escolar formal, é reunir subsídios para que se possa refletir sobre os conteúdos tradicionais ministrados no ensino médio. Indaga-se: não seria mais profícuo ajudar os educandos a construir conteúdos como ética, diversidade, trabalho e consumo? Tem-se consciência do significado de uma transformação dessa natureza e de que são necessárias mais pesquisas, feitas em diferentes contextos. Afinal, uma mudança desse porte não deve ser feita com o espírito da ligeireza e da heteronomia, dois aspectos que já tornam inviável qualquer possibilidade de mudança desses "tempos sombrios" (Arendt, 1946/1988) e, ou, “líquidos” (Bauman, 1997, 1999).

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Texto recebido em 2 de março de 2014 e aprovado para publicação em 6 de novembro de 2015.

 

 

* Professor doutor no Departamento de Psicologia Evolutiva, Social e Escolar, Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). E-mail: nelsonp1@terra.com.br.
** Graduanda em Psicologia, Faculdade de Ciências e Letras (Unesp). E-mail: mizao_prado@hotmail.com.
*** Graduanda em Psicologia, Faculdade de Ciências e Letras (Unesp). E-mail: cah.moreno@gmail.com.
1Essa classificação utiliza o critério de “classe econômica”, em vez de “classe social”, e leva em consideração o grau de instrução do chefe da família, a contratação de empregada doméstica mensalista e a posse de bens duráveis (televisão, rádio, automóvel, máquina de lavar, DVD, geladeira e freezer).

2Graduandos do 4º ano do curso de Psicologia de uma faculdade pública localizada na Região Oeste paulista.

 

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