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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.23 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2017

https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2017v23n1p220-236 

ARTIGOS

 

 

BLUMENAU E AS MEMÓRIAS DE MARIA: AS ENCHENTES DA DÉCADA DE 1980 A PARTIR DE EXPERIÊNCIAS DE VIDA

 

BLUMENAU AND THE MEMORIES OF MARIA: THE FLOODS OF 1980 DECADE FROM LIFE EXPERIENCES

 

BLUMENAU Y LAS MEMORIAS DE MARÍA: LAS INUNDACIONES DE LA DÉCADA DE LOS 80 A PARTIR DE EXPERIENCIAS DE VIDA

 

 

Patricia Bieging*

 

 


Resumo

Este artigo traz as memórias de Maria acerca das grandes enchentes de 1983 e 1984 ocorridas em Blumenau-SC. O objetivo é evidenciar os acontecimentos que não estão impressos na história "oficial" da cidade. Esta pesquisa segue metodologia qualitativa com base em história oral. Os dados foram captados por entrevista em profundidade. Como conclusão, percebese que Maria, por vezes, assume o papel de protagonista e, por vezes, de testemunha ocular, trazendo uma memória que imprime não somente os acontecimentos das tragédias, mas o resgate das raízes da cultura alemã. Apesar de Maria evidenciar a dura realidade que viveu no período, em suas falas, parece não fazer parte delas. O sofrimento do outro se mostra maior. Isso é evidenciado quando reproduz narrativas que giravam de boca em boca e pelo rádio, tomando uma dimensão maior do que sua própria experiência em relação às tragédias.

Palavras-chave: Memória individual. Memória coletiva. História oral. Construção social.


Abstract

This paper brings forth the memories of Maria from the great floods, which occurred in the city of Blumenau in 1983-84. Our aim is to put events in the foreground, which as of yet, have not been etched into the "official" city history. This study follows qualitative methods based on Oral History. Data having been collected through in-depth interviews. It is possible to conclude that Maria acts at times as a protagonist and as an eye-witness at other times, bringing a memory that prints out not only the tragedy of the events, but also the later rescuing of German cultural and heritage roots. Although Maria puts forward evidence of the harsh reality she lived through at the time, she seems distanced from them in her discourse. The suffering of others shown as greater. This can be seen when radio and word-of-mouth accounts are reproduced, taking greater dimensions than her own tragic experience.

Keywords: Individual memory. Collective memory. Oral history. Social construction.


Resumen

Este artículo trae las memorias de María sobre las grandes inundaciones de 1983 y 1984 ocurridas en Blumenau-SC. El objetivo es mostrar los hechos que no están impresos en la historia "oficial" de la ciudad. Esta investigación sigue metodología cualitativa con base en historia oral. Los datos han sido captados por entrevista en profundidad. Como conclusión, se observa que María, en ocasiones, asume el papel de protagonista y, otras veces, de testigo ocular, trayendo una memoria que imprime no solamente los sucesos de las tragedias, sino el rescate de las raíces de la cultura alemana. Aunque María muestra la dura realidad que vivió en este periodo, en su narración no parece formar parte de ella. El sufrimiento del otro se muestra mayor. Esto se manifiesta cuando se reproducen narrativas que iban de boca en boca y por la radio, tomando una dimensión mayor que su propia experiencia en relación con las tragedias.

Palabras clave: Memoria individual. Memoria colectiva. Historia oral. Construcción social.


 

 

1. INTRODUÇÃO

O objetivo deste estudo é evidenciar os acontecimentos vividos nas duas grandes enchentes ocorridas na cidade de Blumenau, Santa Catarina, as quais não estão impressas na história "oficial" da cidade. A seleção dessa época se dá por se tratar de dois dos piores acontecimentos na região do Vale do Itajaí, os quais deixaram não somente desabrigados e feridos, mas muitos mortos. A emoção e a tensão no resgate de uma história sofrida não somente para Maria quanto para o povo de Blumenau apresenta momentos da reconstrução da cidade. São pontos em que os moradores da cidade tiveram de mudar radicalmente de vida, sendo um dos destaques o resgate da cultura alemã até então adormecida.

Consideramos, neste trabalho, que a memória individual de apenas uma testemunha é parte importante da memória coletiva (Bosi, 2003), havendo, desta forma, uma relação direta entre as duas.

Este estudo investiga as memórias de Maria,1 uma senhora de 64 anos, católica, de descendência belga, nascida em Ilhota, moradora da cidade de Blumenau e sócia de uma empresa de venda e manutenção de balanças. Maria foi escolhida para esta pesquisa por, na época, ter 35 anos, estar em processo de separação e ainda por enfrentar, sozinha e com três filhos pequenos, tal situação.

Primeira de oito filhos, Maria experienciou desde cedo a responsabilidade da casa, ajudando os pais na criação dos irmãos mais novos. Devido às condições financeiras de sua família, seu pai era marceneiro e sua mãe era costureira, iniciou no mercado de trabalho logo cedo, tendo de deixar os estudos para tornar-se operária numa grande fábrica têxtil da cidade. Sua trajetória é marcada por alegrias, percalços e também tristezas. A fé a acompanha desde a infância e lhe dá forças para seguir em frente e enfrentar as dificuldades da vida. Maria, nesta entrevista, relembra a calamidade em que se transformou a cidade de Blumenau2 nos anos de 1983 e 1984, período em que ocorreram duas das maiores enchentes da cidade, deixando muitos feridos, desabrigados e mortos.

No depoimento, a testemunha relata o que viu e o que sentiu diante da fúria incontrolável da natureza. Sua fala é carregada por um sentimento de solidariedade e compaixão, o qual pode ser percebido também por outros personagens que participaram dessa história e que deixaram suas marcas registradas oficialmente.

2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

O método escolhido para o registro do depoimento de Maria foi a entrevista semiestruturada, e sua fala foi gravada em áudio para que fosse possível a posterior transcrição. A escolha pelo instrumento da memória oral para este estudo dá-se, pois, "longe da unilateralidade para a qual tendem certas instituições, faz intervir pontos e vista contraditórios, pelo menos distintos entre eles, e aí se encontra a sua maior riqueza" (Bosi, 2003, p. 15).

A realização de entrevista em profundidade dá-se pela interação entre participante e pesquisador, uma vez que toda entrevista requer troca e cooperação (Bauer & Gaskell, 2008). O objetivo do uso dessa técnica foi de que a conversa pudesse conduzir a dados qualitativos relevantes. Bauer e Gaskell (2008) explicam que a técnica da entrevista em profundidade é ideal quando a análise da pesquisa se foca em objeto ou situações em que as experiências individuais detalhadas são importantes e, além disso, buscam provocar a sensibilidade dos sujeitos. Seguindo ainda as recomendações de Bauer e Gaskell (2008), a entrevista durou uma hora, sendo que os autores recomendam que a abordagem seja realizada entre 1h e 1h30min.

A pesquisa empírica também levou em conta a presença da pesquisadora no campo, de certa forma, a qual também foi parte do estudo e, mesmo tendo todos os cuidados, sempre vai alterar um pouco o campo estudado. Torna-se necessária a ambientação no campo da pesquisa e também o cuidado e a crítica constante das técnicas e forma utilizadas. "A relação social entre o pesquisado e o pesquisador produz um efeito de censura muito forte, redobrado pela presença do gravador: é sem dúvida ela que torna certas opiniões inconfessáveis (salvo por breves fugas ou por lapsos)" (Bourdieu, 1997, p. 701). Bourdieu (1997) também salienta para a permanente vigilância do ponto de vista. Sabemos, obviamente, que nenhuma ciência é neutra (Bourdieu, 1983), porém a crítica e a reflexão durante todo o desenvolvimento da pesquisa são importantes e indispensáveis. “O sociólogo não pode ignorar que é próprio de seu ponto de vista ser um ponto de vista sobre um ponto de vista” (Bourdieu, 1997, p. 713).

O levantamento e a análise dos dados seguiram a orientação qualitativa, que tem como objetivo ajudar a entender e explicar os fenômenos sociais e conhecer a visão de mundo construída pelos indivíduos por meio de suas interações sociais, tentando manter ao máximo a naturalidade do ambiente pesquisado (Merriam, 1998). Partindo do princípio de que os métodos de pesquisa empírica são flexíveis, buscou-se deixar a testemunha confortável quanto a seus depoimentos, construindo a trajetória da pesquisa conforme a conversa se desenrolava.

Com a transcrição e a seleção dos depoimentos da testemunha, também percebemos como é importante contextualizar seu discurso no contexto da época e, especialmente, com o que a cidade vinha enfrentando nos últimos anos. Mesmo em se tratando de apenas o discurso de uma testemunha, pode-se perceber que ele também traz marcas de uma narrativa coletiva. A singularidade da narrativa de Maria é refletida na Psicologia social que, para Vygotsky (2004, p. 368), deve "conquistar para a psicologia o direito de considerar o singular, ou seja, o indivíduo, como um microcosmo. Como um tipo, como um exemplo ou modelo de sociedade". Considerando os apontamentos de Vygotsky, este estudo justifica-se pelo fato de que o depoimento de Maria é, também, a voz de um povo, da coletividade, no contexto vivenciado.

3. HISTÓRIAS E TESTEMUNHAS: NARRATIVAS ORAIS

Conhecer a história pela visão de uma testemunha é recontar os fatos de uma época ou de um acontecimento vivido de maneira singular e que, acima de tudo, é também uma peça que compõe o grande quebra-cabeça da história de um povo e de suas experiências de vida. A testemunha, em sua relação com a história, ajuda a elaborar o discurso da vida cotidiana, informal, contudo tão importante quanto o que nos contam os relatos oficiais de um tempo. A memória individual, assim, narra os acontecimentos que, mesmo sendo algo particular de quem o conta, é também composto pela história.

Apesar de a memória individual parecer, inicialmente, algo muito particular de cada indivíduo, ela deve ser entendida como uma construção social coletiva (Halbwachs, 2006), considerando suas variações, transformações e mudanças. Ao falar do passado, somos interpelados também pelo presente e pelas nossas referências sociais e culturais. A memória e as representações que temos em cada época são construídas ao longo do tempo. Ocorre aí a seleção dos fatos, dos registros dos sujeitos frente à vivência.

As sensações, as emoções e as interpretações de experiências passadas ganham novos significados conforme nossa memória reinterpreta os fatos. "A lembrança é uma combinação complexa que integra fragmentos registrados do acontecimento, conhecimentos preexistentes, crenças e expectativas que o sujeito traz em relação ao acontecimento" (Schwob, 2005, p. 89). Assim, o lembrar e o esquecer fazem parte da nossa memória e, a cada vez que a ativamos os acontecimentos, eles se mostram diferentes e ressignificados, reconfigurando os discursos e as lembranças. Como nos diz Bosi (2003, p. 62), "recordar é sempre um ato de criação".

O cérebro organiza, reinventa e seleciona as lembranças a partir do ponto de vista de cada sujeito e do lugar que o mesmo ocupa no contexto da história. Apesar disso, a memória individual fala também da memória coletiva, considerando a relação direta que é estabelecida entre as duas.

A importância do testemunho oral pode estar, muitas vezes, não em seu apego aos fatos, mas antes em sua divergência com eles, ali onde a imaginação e o simbolismo desejam penetrar […]. A construção e a narração da memória do passado, tanto coletiva quanto individual, constitui um processo social ativo que exige ao mesmo tempo engenho e arte, aprendizado com os outros e vigor imaginativo (Thompson, 2002, p. 184)

Pela palavra da testemunha, somos levados a outras vertentes e outros olhares para o mesmo fato. São mostradas as conexões com as experiências de vida dos sujeitos. São aspectos da história muitas vezes não contados nos registros, mas que nos levam a um mundo muito mais complexo e, singularmente, posicionado entre o acontecimento e a vida cotidiana (Bosi, 2003).

A recordação de um tempo que marcou a vida do sujeito faz com que este seja remetido ao passado e reconstrua momentos em que foi o protagonista da história ou da qual foi testemunha ocular. O retorno ao passado traz consigo uma nova reflexão dos fatos vividos, não somente pelos acontecimentos diretamente relacionados ao depoente, mas pelo grupo ao qual pertencia.

A comunidade familiar ou grupal exerce uma função de apoio como testemunha e intérprete daquelas experiências. O conjunto das lembranças é também uma construção social do grupo em que a pessoa vive e onde coexistem elementos de escolha e rejeição em relação ao que será lembrado (Bosi, 1993, p. 281, grifo do autor).

Assim, a memória, mesmo que resgatada por apenas um sujeito, é uma construção coletiva repleta dos hábitos e da cultura de um grupo determinado, ou seja, ela é tanto elaborada individual quanto coletivamente. "O conteúdo inicial dessas lembranças, que as destaca de todas as outras, se explicaria pelo fato de estarem no ponto em que se cruzam duas ou mais séries de pensamentos, pelos quais elas se interligam a tantos outros grupos diferentes" (Halbwachs, 2006, p. 48). A memória individual é, então, a união e o ajuste das memórias dos demais membros do grupo ao qual o sujeito pertence, porém, a partir de uma seleção individual, justificando, assim, as lembranças e a seleção diferenciada dos acontecimentos.

4. MEMÓRIA: CATÁSTROFE E FÉ

A enchente de 1983 baixou e, logo em seguida, veio outra [a de 1984], foi bem próximo uma da outra (Maria).

Fundada em 1850, a cidade de Blumenau (Santa Catarina) e a Região do Vale do Itajaí vêm registrando grandes enchentes com um intervalo breve, cerca de um ou dois anos entre cada uma. Em 1880, a cidade registrou o nível da água na marca de 17,10 metros acima do nível normal. Porém duas das grandes catástrofes da cidade, trazendo prejuízos e mortes, ocorreram em 1983 (15,34 metros) e em 1984 (15,46 metros). A primeira enchente deixou 197.790 desabrigados e 49 mortos em 90 munícipios catarinenses, causando pânico, arrastando casas inteiras e deixando, durante 32 dias, moradores ilhados e sem alimentos ou água potável. A segunda durou poucos dias, mas o suficiente para que a população, em relação ao vivenciado no ano anterior, entrasse em pânico.

 

 

As duas enchentes deixaram registrados na memória dos moradores do Vale do Itajaí e, principalmente, dos de Blumenau momentos difíceis, mas também de muito trabalho pela reconstrução da cidade. Quando falamos com blumenauenses, que, de alguma forma, vivenciaram aqueles momentos, percebemos o quanto aqueles anos serviram não somente para marcar a história da cidade, mas também para evidenciar o orgulho por terem resgatado uma região que havia se tornado um grande lamaçal.

Maria, nossa testemunha, apesar de não ter a sua casa alagada por morar em um dos mais altos morros da proximidade do centro da cidade, participou ativamente no auxílio aos desabrigados e na reestruturação da empresa em que trabalhava naquela época.

O noticiário estava sempre falando da enchente e do tanto que ia enchendo, e cada vez ia chovendo mais. Então eles [os noticiários] se baseavam pela chuva que vinha do Alto Vale do Itajaí. Que seria Rio do Sul pra cima. Já tinha a barragem lá e que a barragem estava muito cheia e que as chuvas continuavam. Claro que, na época, o noticiário não era como hoje, né […] imediato. Naquela época, ainda demorava um pouco, mas a gente ficava na expectativa. Daí, quando começou mesmo a encher, né, o rio e alagar lugares que ainda não tinha alagado, daí todo mundo se preveniu. Começamos a levantar tudo, né. A água começou a vir, e o pessoal começou a subir o morro. A gente soube pelo noticiário que ia chegar a 15 metros, eu não lembro direito quanto é que deu, mas acho que chegou de 15 para 16 metros (Maria).

O noticiário acompanhado pelo rádio é, para nossa testemunha, o mensageiro do tempo que estava por vir. Avaliando as informações trazidas, Maria e seus vizinhos organizavam-se para tomar as providências necessárias. Mesmo passando pelo momento mais difícil de sua vida, o divórcio, em 1982, e com três filhos pequenos para criar (7, 4 e 1 ano de idade), Maria abriu sua casa e abrigou as pessoas que subiam o morro pedindo abrigo e ajuda.

Nós, no morro, felizmente, não tivemos problema nenhum de enchente. O que a gente fazia era recolher o pessoal que vinha pra cima do morro. Aqui todos se conheciam e, como moravam aqui, podiam subir o morro, porque, se estava para o lado de lá [falando dos moradores da redondeza do centro da cidade], não conseguiam mais subir. Na Ponta Aguda, inunda com 12 metros e, na Rua Venezuela, inunda com 13 metros. Daí eles vinham pedir socorro. Ficaram aqui na minha casa, também na casa da minha mãe. E, depois que a enchente começou a baixar, as pessoas vinham pedir para lavar as roupas que tinham conseguido salvar. Não tinha água. Daí, como nós tínhamos a cachoeira ali atrás de casa, as pessoas vinham para lavar um pouco de roupa, para ver o que tinham salvado (Maria).

 

 

 

 

Percebe-se, na voz e na narrativa de Maria, a reconstrução da memória coletiva da cidade e dos seus moradores, mesmo diante de sua vivência particular e da situação calamitosa que havia se instalado na cidade. Ela se sentia na obrigação, como cidadã, de abrigar todos os que vinham lhe pedir ajuda.

Eu tinha 35 anos na época e tinha três filhos pequenos em casa. Não foi fácil. É uma coisa que deixa a gente preocupada. A casa estava cheia dos vizinhos que estávamos abrigando… E ainda os três pequenos. Não tem como não se preocupar. Mais (sic) um ajudava o outro, e eram todas pessoas boas e precisando de ajuda. Faz parte! Passamos, pela graça de Deus! (Maria).

Mesmo não se sentindo ameaçada pelas águas que subiam, sua dor transparece em sua fala e em sua entonação enquanto nos narra. Por segundos, o abismo entre a sua realidade, morando em um local teoricamente seguro das águas, e a dos seus amigos, vizinhos e colegas que estavam com suas casas em risco parece desaparecer quando diz que levou um grande susto quando o seu ex-marido lhe enviou mantimentos. Sua amargura e dor, pelo sofrimento do divórcio que passara no ano anterior às enchentes, faz mudar o tom de sua voz.

Sofremos um pouco sem alimento, pois ninguém pensava que ia dar uma enchente tão grande e ninguém se preveniu. Foi difícil suportar mais de uma semana sem energia e com pouco alimento. Não podia comprar alimento perecível, porque também não tinha energia. Então comprava mais farinha, feijão, arroz e coisas que davam para fazer. Foi nessa época que o meu ex-marido, que morava em outra cidade, começou a mandar alimentos e água. De forma direta, foi mesmo o alimento que começou a faltar. Eu tinha três filhos pequenos e foi bem complicado (Maria).

Os valores e as crenças de Maria aparecem muito marcados no seu discurso sobre o passado. De família católica fervorosa, sua visão dos acontecimentos e sua contribuição aparecem delineados por uma força sagrada, a qual é compartilhada também com os vizinhos e com as pessoas abrigadas em sua casa, em uma época tão triste. Mesmo sem ter perdido familiares, o sentimento e a dor são compartilhados. A busca por um final feliz em meio à calamidade em que se encontrava a cidade é implorada ao divino, a Deus.

Os vizinhos vinham aqui pra casa para as novenas, e a gente enchia a casa e rezava para que Deus ajudasse e parasse de chover. Os vizinhos vinham e orávamos bastante. A fé é uma coisa que fortifica a gente. Vai crendo, que, daqui a pouco, a chuva vai parar e a água vai baixar. A gente achava que ia inundar Blumenau inteiro. Orávamos muito mesmo (Maria).

A oração e a crença em Deus são dois fatores presentes em praticamente toda a narrativa de Maria. A base religiosa e o significado de sua crença moldam as suas atitudes em relação ao próximo. As novenas constantes realizadas na casa de sua mãe, que morava nas proximidades, foram intensificadas durante as enchentes na cidade, mostrando-nos aí a força desse fenômeno social (Durkheim, 1989) compartilhado entre todos à sua volta. A crença na força de suas orações parecia, diante do que já havia feito por seus vizinhos, a única ação coerente a ser realizada, além de aguardar a água baixar.

Para Durkheim (2012, p. 27),

A vida religiosa supõe a produção de forças sui generis, as quais elevam o indivíduo acima dele mesmo, que o transportam a um outro meio que não aquele no qual se esgota sua existência profana e que o fazem viver uma vida muito diferente, mais elevada e mais intensa.

Isso justifica o discurso de Maria quando afirma que "a fé é uma coisa que fortifica a gente". Nesse trecho nossa testemunha apresenta essa busca por algo superior, pedindo a Deus que ajude os homens e os fortifique não somente para superar um período de terríveis experiências, mas também que lhes dê forças para recomeçar uma nova vida e superar os traumas vividos. Durkheim nos ajuda ainda a entender o significado do agrupamento das pessoas nas novenas realizadas pela mãe de Maria. Segundo o sociólogo, "As únicas forças morais superiores àquelas do indivíduo, que se encontram no mundo observável, são as que resultam do agrupamento de forças individuais, da síntese delas na e pela sociedade: as forças coletivas" (Durkheim, 2012, p. 28). A força das orações, nas novenas, faladas em coro e em voz alta, não somente acalentavam os corações das pessoas presentes, mas lhes dava forças para continuar.

Blumenau é composta predominantemente pela colonização alemã, tendo as primeiras imigrações ocorrido em 1850. Grandes problemas sociais enfrentados na Europa no início do século XIX e a notícia de fartura de terras no Brasil levaram a um grande processo migratório. Hermann Bruno Otto Blumenau3 foi o responsável pela criação de uma das principais colônias alemãs do Estado de Santa Catarina. Relatos dizem que os primeiros colonos a habitar Blumenau tiveram de desbravar as terras e viviam basicamente da agricultura, fazendo a terra dar frutos com o seu próprio suor. Percebe-se nos moradores de Blumenau um grande orgulho por pertencer à cidade e, principalmente, por ter herdado de seus antepassados a força para o trabalho e para a reconstrução da vida. Isso pode ser percebido na fala de Maria ao citar a reestruturação do povo, a reconquista de seus bens e de sua vida destruída por frequentes catástrofes.

Não sei se é porque é uma cidade de origem alemã, que são pessoas batalhadoras, sempre que tinha uma catástrofe aqui. E lá, naquela época, foi uma enchente muito grande, tanto por falta de água […] Que isso foi mais difícil pra chegar[…] Mas o povo é trabalhador. Um ajuda o outro, e é muita preocupação pelo outro. Mesmo aquele que não sofreu diretamente estava ajudando o outro a se reerguer (Maria).

O pertencimento a uma pátria e a busca por uma identidade trazem na narrativa de Maria a resposta para a força do seu povo diante da perda de suas casas, de filhos, esposas e maridos mortos nas enchentes e na retomada da vida normal. Um exemplo simples do orgulho pela descendência alemã na região é a manutenção do idioma pelas gerações. "A memória construída acerca do pioneirismo dos colonos é uma maneira de se justificar a necessidade de se 'tirar a cidade da lama', tal qual os imigrantes o fizeram por tantas vezes. Esta memória serve de paradigma a ser seguido" (Frotscher, 1997, p. 70). Bosi (1994) explica essa herança familiar e essa força de reconstrução que passa de gerações para gerações, segundo ela: "Na memória dos idosos é possível encontrar uma história social bem definida, pois eles já passaram por certo tipo de sociedade com características bem marcadas e já viveram quadros de referência familiar e cultural também já conhecidos" (Bosi, 1994, p. 60). O valor do trabalho é uma marca muito forte na cidade, mantida com muito orgulho pelos descentes, sendo esta uma ideologia muito forte, carregada e oxigenada ao longo dos anos.

Para construir uma memória que identifique o blumenauense como germânico, ordeiro e trabalhador, o discurso da "laboriosidade blumenauense", retomado durante a reconstrução, também desenterra a história da colonização alemã de Blumenau. Essa memória construída seleciona do século passado alguns elementos, como o pioneirismo dos colonos, para conferir à cidade uma identidade. […] Dignifica-se o papel dos colonizadores alemães que, segundo este discurso, transformaram a selva em sociedade civilizada (Frotscher, 1997, p. 69).

Apesar de Maria demonstrar, em sua narrativa, a força e a coragem diante de tantos desastres vividos pelo povo blumenauense, ela também nos mostra certo cansaço com relação à instabilidade da região, em que nunca se sabe quando alguma calamidade irá se abater sobre a cidade.

Passar por isso é uma coisa horrível. As pessoas que estão dentro de suas casas e conquistam as coisas com esforço, benze e, de repente, a sua própria moradia sendo levada pelas águas, ficando só com a roupa do corpo, às vezes. É uma coisa muito terrível! Não é bom nem a gente pensar. Quando começa a chover em Blumenau, o povo já fica de alerta. Faz até promessa para que não aconteça. Não é fácil passar por uma catástrofe assim (Maria).

Tive uma amiga muito próxima que ajudou muito a gente numa época anterior. Ela perdeu tudo, inclusive, perdeu o marido. Ele entrou na água para ajudar os vizinhos e pegou leptospirose. Foi bem doído pra gente. Ela ficou com os filhos pequenos, viúva, perdeu casa e marido. Como ela, muitos perderam. Mães perderam filhos, esposas, maridos, isso aconteceu bastante (Maria).

 

 

A memória de Maria, longe de ser apenas uma narrativa individual, também mostra um pouco da memória coletiva da cidade. As perdas materiais e as mortes atingiram, somente no ano de 1983, 197.790 pessoas. Mesmo não tendo perdido parentes ou bens materiais, Maria se mostra chocada e calejada com as intempéries que a natureza vem aplicando sobre a cidade. Percebe-se uma importante interligação e confronto entre a memória coletiva e a memória individual, pois, segundo Cardini (1993, p. 326), "A lembrança não se constrói sem a memória coletiva, mas, ao mesmo tempo, a recordação pessoal é uma forma de testemunho que impõe limites à tirania ou à ditadura das imagens coletivas". A convergência feita pelas lembranças da memória de Maria com os fatos particulares e presenciados por ela são essenciais para o resgate da história de um tempo e das relações sociais estabelecidas.

O ponto final dessa viagem pelas memórias de Maria é o momento da reconstrução da cidade e da volta à rotina.

Nessa época, eu trabalhava nas Lojas Americanas. Só não precisei ir lá limpar, depois que a água baixou, pois eu era sozinha e tinha três filhos pequenos em casa. Daí eles disseram que era para eu não ir ajudar. Quando baixou a água, eu fui para ajudar e recolocar os produtos nas prateleiras (Maria).

Eles fizeram a Oktoberfest [em 1984] para dar mais alegria para o povo, pois tinham sofrido, sofrido, sofrido. Já se tinha pensado em fazer uma festa para o povo, pois em Blumenau não tinha nada. Era para trazer mais alegria mesmo (Maria).

Apesar de ter sofrido e se mobilizado para o resgate e acolhimento dos moradores próximos à sua casa, Maria fala como se a criação da Oktoberfest, evento criado para dar alegria à população sofrida da cidade, não se aplicasse também a ela. Mesmo passando restrições quanto a alimentos, água e por ter dividido a casa com outras pessoas que não eram seus parentes, ela coloca os fatos como se tivessem acontecido em outra cidade, que não a dela. Em alguns momentos da narrativa das enchentes em Blumenau nos anos de 1983 e 1984, Maria se inclui e, em outros, exclui-se, criando uma espécie de distanciamento ao que poderíamos chamar de recompensa pelas calamidades vividas em anos anteriores. A Oktoberfest, festa das tradições alemãs, foi inicialmente criada não somente para trazer mais alegria para os moradores da cidade, mas também como uma forma de fazer girar a economia da cidade, ajudando a reerguê-la.

A aproximação e o distanciamento durante a narrativa de Maria chamam a atenção pelo fato de que a "recompensa" parece não lhe pertencer, mas sim ao povo da cidade, pois eles precisavam de alegria. Existe aí a ressignificação de suas memórias e dos fatos vividos, uma tentativa de olhar para o passado de outra forma. A lembrança do passado faz Maria traçar novos caminhos através do distanciamento e da aproximação de suas trajetórias de vida.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Analisamos, neste estudo, algumas das experiências vividas por Maria nas enchentes de Blumenau, nos anos de 1983 e 1984, duas das maiores catástrofes enfrentadas pela cidade. Apesar de a narrativa focar apenas na experiência de Maria, pôde-se perceber, em todo o seu discurso, a memória não somente individual, mas coletiva de sua região. Traz relatos de um tempo difícil para a cidade e para os seus moradores. Numa fala por vezes tensa, por vezes emotiva, a nossa testemunha resgatou e ressignificou algumas lembranças que fizeram parte de momentos importantes para a cidade, como a reviravolta dos moradores após a destruição e o resgate da cultura alemã que, talvez na época, estivesse adormecida. O reforço da ideologia do povo alemão é trazido para solidificar o valor do trabalho árduo de um povo e, especialmente, na retomada da autoestima diante da calamidade em que Blumenau havia se transformado.

Apesar de seu papel de protagonista evidenciar a dura realidade que viveu no período, Maria, como testemunha ocular, parece se transportar para outro mundo, como se tivesse acompanhado os acontecimentos apenas como espectadora. Nesse caso, sua voz reflete o sofrimento do outro como algo muito maior que o dela. Isso é evidenciado quando relata histórias que nem mesmo observou ou vivenciou, mas reproduziu com base em narrativas que giravam de boca em boca ou pela transmissão do rádio. São histórias vistas e ouvidas que, em sua interpretação, ganham uma dimensão maior do que sua própria história.

O orgulho pela cidade e por seu povo foram pontos marcantes na narrativa da nossa testemunha. A fé, presente em sua vida em tempos brandos, é intensificada durante os intermináveis e inesperados dias de chuva. O conforto para seguir em frente vem da força espiritual, do apelo a algo superior e muito mais forte, da amizade e da compaixão. O coletivo mostra-se como uma importante chave para a visualização de um futuro promissor.

REFERÊNCIAS

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Texto recebido em 29 de dezembro de 2013 e aprovado para publicação em 21 de maio de 2015.

 

 

*Doutora em Ciências da Comunicação (ECA-USP), mestra em Educação, na linha Educação e Comunicação (UFSC), especialista em Propaganda e Marketing (Estácio de Sá) e graduada em Comunicação Social, habilitação em Propaganda e Marketing (Unisul).E-mail: pbieging@gmail.com.
1 A entrevista em profundidade foi realizada no dia 20 de outubro de 2013, na cidade de Blumenau-SC. As transcrições das falas são relacionadas ao longo do texto de forma coloquial para garantir a fidelidade dos relatos de Maria.
2 Blumenau é um município da região do Vale do Itajaí, Estado de Santa Catarina, fundada em 2 de setembro de 1850 pelo filósofo e farmacêutico alemão Hermann Bruno Otto Blumenau. Destaca-se pela colonização alemã, tendo o cotidiano e os hábitos dos imigrantes europeus em sua essência. A economia destaca-se pela informática e pelo setor têxtil, com empresas de portes nacional e internacional. Fica a 149 quilômetros de Florianópolis, capital do Estado. Antes mesmo da colonização, a região de Blumenau era habitada por índios caingangues, xoclengues e botocudos. Hermann Bruno Otto Blumenau obteve, em 1850, do governo provincial uma área de terras de duas léguas, para estabelecer uma colônia agrícola (Day, 2013).
3Natural da Alemanha, Hermann Bruno Otto Blumenau, filósofo, administrador e químico farmacêutico, nasceu em 26 de dezembro de 1819, no Ducado de Braunschweig, e morreu em 30 de outubro de 1899, em Braunschweig. Em 1880, sua casa foi totalmente destruída pela enchente. Após viver 34 anos em Blumenau, seu fundador partiu definitivamente para a Alemanha. Em 1974, seus restos mortais foram transferidos da Alemanha para Blumenau e depositados no Mausoléu erguido em sua homenagem (Day, 2008).

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