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Psicologia USP
versão On-line ISSN 1678-5177
Psicol. USP v.3 n.1-2 São Paulo 1992
ARTIGOS ORIGINAIS
Grupos de convívio no Rio de Janeiro (século XIX)
Groups of convivial gathering in Rio de Janeiro (Brazil) in the 19 th century
Miriam Lifchitz Moreira Leite
Centro de Apoio à Pesquisa em História Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas USP
RESUMO
A análise da documentação de 153 livros de viajantes estrangeiros, que passaram pelo Rio de Janeiro de 1803 a 1900, favoreceu o estudo da mulher em sua vida cotidiana. Esse estudo permitiu elaborar o conceito de Grupos de Convívio para denominar o agrupamento, numa mesma casa, de pessoas de gerações e camadas diferentes, com ou sem ligações de parentesco. A escolha do parceiro sexual, o problema da amamentação e o da prostituição são alguns aspectos dos grupos de convívio que revelam as marcas sinistras do escravismo no cotidiano familiar, bem como as relações ambíguas e contraditórias, de dependência e repugnância que as condições de vida enraizaram.
Descritores: Família (Brasil). Relações familiares. Grupos Sociais. Mulheres (Brasil).
ABSTRACT
The analysis of one hundred and fifty three travel books written by foreigners who have passed through Rio de Janeiro, from 1803 to 1900, led to the concept of the household group to denominate the set of people of diverse generations and social status, without blood relationships, who frequent the same household. The choice of sexual partners and the problems of breast feeding and prostitution, away others, reveal the sinister marks of slavery and ambiguous and contradictory relations of dependency and repugnancy which the living conditions gave root to.
Index terms: Family (Brazil) Family Relations. Social Groups. Women (Brazil).
Para englobar as relações interpessoais, apresentadas e interpretadas por viajantes estrangeiros, no Rio de Janeiro, do século XIX, fui levada a ampliar o título deste trabalho. Os testemunhos e relatos encontrados não dão conta apenas de núcleos de parentes consangüíneos e afins, ocupando uma unidade doméstica. Apresentam grupos com ou sem ligações de parentesco coabitando, grupos hierarquizados e formados por membros de várias gerações e diferentes camadas sociais. A expressão "grupo de convívio", ainda que imprecisa e ampla, designa de maneira menos estrita tanto diferentes tipos de família, quanto outras formas de coabitação.
Freqüentemente, os trabalhos históricos sobre a família provêm da Demografía Histórica e de modelos quantitativos abrangentes. Nesta, é outra a perspectiva. Falta-lhe o apoio numérico. Contudo, os informes, descrições, comparações e interpretações dos grupos de convívio, feitas por contemporâneos através do século XIX, proporcionam uma visão interna do relacionamento desses grupos e de aspectos da dinâmica desse relacionamento. O exame minucioso e comparativo do material utilizado revela modalidades das relações pessoais e interpessoais, no interior das casas. Ângulos da vida doméstica, da criação dos filhos e da oposição e complementaridade entre a família e a prostituição, em diversas camadas da população. O instrumento utilizado a fim de verificar a validade do material foi uma análise biobibliográfica dos autores dos testemunhos e a comparação entre os vários depoimentos realizados, através do século XIX.
Não se tem a porcentagem de casamentos religiosos, nem a proporção de concubinatos ou de ilegítimos. Nem sequer se tem a certeza se a descrição de como se procurava o parceiro, ou se criava o filho, a que parcela da população corresponderia e se esta se referiria a relações que habitualmente apenas a literatura teve condições de revelar. Obtém-se, contudo, uma trama bem urdida entre aspectos individuais de relacionamento e condições sociais que enriquecem e estimulam a sua compreensão.
Apesar de se estar procurando compreender relações interpessoais evidentes e, de certa forma, comuns à maioria das pessoas, o próprio caráter óbvio das relações tende a torná-las imperceptíveis. Exatamente esse caráter é que fez com que o estranho ao grupo o estrangeiro, recém-chegado ao Brasil tenha sido um observador mais atento, capaz de perceber o que para os contemporâneos era imperceptível, por evidente em demasia.
É possível discutir a escolha e estudo da literatura de viagem como documentação para a compreensão dos grupos de convívio. Essa discussão foi proposta inúmeras vezes no decorrer da pesquisa, focalizando tanto problemas de percepção, quanto de subjetividade ou ainda da superfícialidade da observação individual de relações sociais. Ainda que discutível, essa escolha viu-se confirmada por um conselho do historiador Lewis Hanke em 1941, a seu então assistente Sérgio Buarque de Holanda1, nos Estados Unidos. Disse-lhe o mestre que, se pretendia escrever sobre o país visitado devia fazê-lo nos primeiros três meses de conhecimento; caso contrário, somente após um período de dez anos ou mais estaria em condições de fazê-lo.
Entre os viajantes examinados, o tempo de permanência variou de uma semana a 15 anos. Essa variação não correspondeu ao valor do livro produzido. Mas verificou-se que o ponto de partida da percepção de um cotidiano intrigante e deflagrador de questões resultava do impacto das impressões iniciais, logo após a chegada no Brasil.
Contudo, convém ter em mente uma inadequação inerente a esse tipo de documento. A maioria (não a totalidade, pois existem viajantes portugueses) dos testemunhos foi escrita em espanhol, italiano, inglês, francês, alemão, dinamarquês e russo. Até as ortografias de algumas das traduções sofreram sensíveis modificações de uma para outra edição ou versão; avalie-se a linguagem utilizada no transcorrer de um século. Aos mal-entendidos inerentes à incompreensão de uma realidade social mal ou pouco conhecida, acrescentem-se dificuldades de tradução, incapazes de reproduzir as conotações e as denotações das expressões lingüísticas para representar essa realidade. Ao descrever os grupos de convívio, por exemplo, os viajantes deparavam com uma variedade de condições sociais, raciais e de idade que, às vezes, tiveram dificuldade em reproduzir. Condições e relações como cria, sinhô, sinhá, rapaz, rapariga, moça, moleque, ama, mucama, negrinho, eram usadas de forma pejorativa, afetiva ou ainda com alternâncias, de acordo com o interlocutor.
Em vez de propor a revisão geral dos textos e de suas traduções, pareceu mais proveitoso aceitar que a documentação utilizada era resultante de uma rede crescente de mal-entendidos e que sua contribuição para o conhecimento das condições de vida cotidiana dos grupos de convívio poderia resultar de um esforço de encadear e tentar entender o encadeamento desses mal-entendidos. A possibilidade de fazer isso encontra-se na preocupação de alguns autores de descrever minuciosamente situações testemunhadas ou interpretadas por participantes dos grupos; pela comparação entre aspectos visíveis e invisíveis dos relacionamentos descritos; pela comparação e discriminação da percepção social dos autores dos testemunhos lembrando que estão transferindo para a vida cotidiana brasileira, do século XIX, as relações humanas que conheciam como europeus ou norte-americanos, com uma determinada formação cultural a que profissionais de seu tipo tinham acesso, naquele momento. Há entre os viajantes examinados naturalistas, médicos, diplomatas, oficiais da marinha, missionários, professores e governantas, pintores, artesãos, jornalistas, comerciantes, foragidos, militares e técnicos. Os mal-entendidos encontrados e acumulados podem ainda ser acrescidos pela interpretação acrítica dos limites de percepção, tanto dos testemunhos, quanto dos pesquisadores que deles se utilizaram, como da tendência a supervalorizar fatores individuais e subestimar fatores sociais. Tomados em conjunto, foi possível compor um quadro social de relações correspondentes ao que era dado ao viajante perceber.
O escrivão da marinha inglesa, James Holman (1829), numa viagem de circunavegação, já era cego há 18 anos quando passou pelo Brasil. Sua deficiência física tornou-o mais consciente do significado de suas observações e dos perigos de chegar a conclusões apressadas e errôneas, por ilusão das aparências. Propôs claramente a questão: o viajante realmente vê tudo o que descreve? Não podendo ver, passou a utilizar questionários, sugestões e declarações para não ser iludido e deixa claro que a maioria depende sempre de informações dadas por terceiros, dentre as quais é preciso saber discriminar. O observador conseguiu, por deficiência física, teorizar sobre uma questão que continua a se propor como descrever globalmente uma realidade fragmentada e heterogênea, cuja observação ultrapassa a capacidade de percepção e interpretação do observador.
A tentativa de compreender esses mal-entendidos alterou, às vezes, o rumo da pesquisa, mas permitiu esclarecer condições históricas pouco apreendidas. Uma delas foi reconhecer a extrema dificuldade de distinguir na população local quem eram os brasileiros. Nas primeiras décadas do século XIX, brasileiros são mulatos, crioulos e ciganos. A partir da metade do século, os brancos que falam português não são mais portugueses e podem ser brasileiros. A população negra dificilmente tem reconhecida a condição de livre; a população branca pobre nunca lhe foi equiparada, tendo sempre condições econômicas e sociais superiores, mesmo no exercício da prostituição.
A documentação utilizada neste trabalho provém, em sua maior parte, da pesquisa realizada entre 1978 e 1982, publicada parcialmente através de A Mulher no Rio de Janeiro no Século XIX: um índice de referências em livros de viajantes estrangeiros" (1982) e "A Condição Feminina no Século XIX no Rio de Janeiro: Antologia de textos de viajantes estrangeiros (1984). Não se limita a ela, pois dificilmente um único tipo de documentação dá conta de relações interpessoais tão abrangentes quanto as que se estabelecem no interior dos grupos de convívio. A iconografia difundida pelos livros de viajantes, a literatura na língua do original e em português, que chega a se posicionar favorável ou desfavoravelmente aos viajantes, os almanaques que recolhiam informações e anedotas compõem conjuntos de avaliações e interpretações do cotidiano dos grupos de convívio.
Os testemunhos consultados deixaram claro que o trabalho escravo e as transformações políticas e tecnológicas que atingiram os centros maiores de população foram as questões que mais perpassaram e alteraram as relações no interior dos grupos de convívio.
Á medida que se tomou consciência de que a família brasileira é uma referência a grupos diversos que foram se alterando no decorrer do século XIX, convém explicitar melhor os vários sentidos da expressão. Para os letrados da classe dominante, a família brasileira era a família de pessoas brancas, que se comunicasse em português, fixadas no país há umas quatro gerações. Entre os escritores do século XIX, são portuguesas as famílias brancas e que falam o português, sendo brasileiras as famílias dos índios, ainda bastante próximas e numerosas dos núcleos de população européia. As famílias de negros e mulatos foram tratadas, quase sempre, como africanas, se bem que, da metade do século XIX em diante passam a ser consideradas brasileiras, em oposição às famílias brancas. A população européia dos núcleos urbanizados formava as colônias francesas, alemãs, suíças e inglesas que, na segunda metade do século, passaram a se distinguir das famílias brasileiras brancas, não só pela língua, mas por padrões culturais e religiosos. A miscigenação ocorrida em várias condições não produziu uma homogeneização capaz de superar as impostas pelas condições econômicas e raciais. Acrescente-se que não se contava com uma documentação relativa a como cada grupo se definia. A documentação levantada unicamente faz referência a tipos diferentes de convívio nesses grupos, e permite verificar como foram vistos e interpretados pelos estranhos.
Alguns dos mal-entendidos produzidos por essa documentação só puderam ser compreendidos neste século, após o desenvolvimento dos estudos sobre a mulher. Um segmento desses estudos dedicou-se ao exame e às variáveis que compõem o trabalho doméstico. O interesse pela vida cotidiana e pela História Social dos dominados, que vem se desenvolvendo a partir da década de sessenta do século XX, teve como um dos resultados a verificação de que, ainda que habitualmente considerado improdutivo, o trabalho doméstico é uma atividade indispensável, atribuída à mulher, quase como missão intransferível. O regime de trabalho escravo no Brasil fez com que as mulheres brancas transferissem para as escravas negras essas atribuições, além de outras. Como isso ocorreu até 1888 e depois disso grande contingente de escravas se encaminhou para o trabalho doméstico assalariado, europeus e norte-americanos falaram muito da ociosidade da mulher no Brasil. Somente Mme. Toussaint-Simon (1883), viajante francesa de passagem pelo Brasil, com a família, foi capaz de compreender de onde provinha essa qualificação generalizada de ociosa, atribuída à mulher branca, residente no Brasil. Como a escravidão tornava indigno o trabalho, acentuava os padrões de comportamento da população de origem lusitana, que exigiam uma aparência de tranqüila disponibilidade para receber, dentro de casa, os de fora. A roupa, as palavras, a expressão dos olhos e as atitudes da mulher nunca deveriam demonstrar que ela estivera atarefada ou teria funções prementes a desempenhar. A verdade é que, apesar de os escravos arcarem com a maioria dos afazeres principalmente os pesados e sujos as atividades domésticas, nessa vida semi-rural, exigiam de todos os habitantes da casa um esforço repetido, prolongado e conjugado, numa multiplicidade de tarefas que podiam absorver todas as horas de vigília. Lembre-se que a distribuição de água se fazia até quase o fim do século em pipas carregadas na cabeça ou por carroças. Que, na ausência de esgotos, o recolhimento de dejetos e a higiene das casas, quintais e ruas eram tarefas penosas, indispensáveis e diárias, pois a limpeza e os esgotos só chegaram ao centro do Rio de Janeiro em 1866 e o abastecimento de água em 1880. A lavagem de roupa, a sua confecção, a compra de mantimentos ou a manutenção de horta e criação significavam outros duros trabalhos, assim como a matança de animais, a selagem de bestas, o tratamento de doentes e o cuidado e enterro dos mortos.
A introdução, por volta da década de 1850, do hábito do banho diário impunha, numa casa sem água encanada, todo um processo de transporte de jarras, baldes e bacias. Como todas as demais tarefas da administração doméstica e da distribuição de mercadorias só contaram com máquinas a vapor a partir de 1870, é possível avaliar os esforços necessários para manter o funcionamento das casas.
Como explicitou Adèle Toussaint-Simon;
A brasileira (...) põe o maior empecilho em não ser vista nunca em ocupação qualquer. Entretanto, quem for admitido à intimidade, achá-la-á pela manhã de tamancos, sem meias, com um penteador de caça por vestido, presidindo a fabricação de doces, cocadas, arrumando-os nos tabuleiros de pretos e pretas, que os levam a vender pela cidade, qual doces, qual frutas, qual outro os legumes da horta. Logo que estes saem, as senhoras dão tarefas de costura às mulatas, pois quase todos os vestidos das crianças, do dono e da dona da casa são cortados e cosidos em casa. Fazem ainda lenços e guardanapos de ponto de crivo, que mandam também a vender. Cumpre que cada um dos escravos, chamados de ganho, traga à senhora a quantia designada no fim do dia, e muitos são castigados quando vêm sem ela. É isto o que constitui o dinheiro para os alfinetes das brasileiras e lhes permite satisfazer as suas fantasias (p.66).
Outro mal-entendido transmitido pelos autores-viajantes refere-se à reclusão da mulher. A freqüência com que esse padrão de comportamento foi apresentado fez supor, a muitos leitores, que se tratasse de uma característica específica da população brasileira de origem lusa. As obras das mulheres-viajantes proporcionaram elementos para repensar tal proposição. Nem a reclusão da brasileira foi tão rígida, quanto os autores deram. a entender, nem a situação das mulheres européias, que visitaram o Brasil, diferia tanto quanto a literatura de viagem deixava supor. O que parecia aos autores a reclusão da mulher branca e abastada era antes uma participação social em esferas distintas da vida da comunidade e da família e uma engrenagem diferente entre a esfera doméstica e a esfera pública da população como um todo. Mas para as de cá e as de lá havia essa divisão rígida de esferas, refletindo a oposição entre a mulher de família e a mulher pública. Essa divisão transparece nas expectativas de comportamento inibido, contido e composto, decorrente do espaço abrigado e limitado destinado à mulher doméstica e deve afastá-la de todas as maneiras do destino da mulher pública, de quem se espera comportamento, pensamento e ações perigosas e tentadoras, projetadas num espaço povoado, a que todos os homens têm acesso. Muitas vezes esses comportamentos e espaços se aproximaram e até se confundiram. A ascensão social da mulher pública levava-a a adotar os padrões prescritos para a doméstica e esta, quando reage aos padrões impostos, adota freqüentemente o comportamento e a indumentária características da outra. Observe-se, contudo, que uma e outra se utilizavam da mediação masculina na maioria das passagens do espaço privado para o público. Esse elemento masculino intermediário podia ser o pai, o irmão, o padre, o padrinho, o escravo de confiança ou, mesmo, autoridades consulares.
Ainda que a redução do espaço feminino à esfera privada envolvesse, em alguns casos, a indumentária, a educação, a movimentação e aposentos da casa, do teatro e do templo a que tinha acesso, a verdade é que a participação na vida religiosa e econômica da comunidade fazia com que a mulher rompesse, freqüentemente, essa reclusão (Moreira Leite, 1980).
A atitude com que muitos brasileiros recebiam os viajantes o estranho, cujas intenções nem sempre eram muito claras não deixava de ser responsável pelo ocultamento das mulheres da casa. Os que vinham com uma carta de apresentação oficial ou de conhecidos não eram recebidos com a mesma desconfiança justificável dos nativos.
Ainda que, em alguns momentos, se tenha avançado as descrições e interpretações além dos limites de tempo e espaço, eles devem estar claros como parâmetros do que se tentou conhecer. A pesquisa foi realizada basicamente num Rio de Janeiro que foi capitania/província/estado da federação entre 1801 e 1900. Embora se tenha utilizado essa unidade abstrata e administrativa como meio de confrontar condições rurais, suburbanas e urbanas da vida dos grupos de convívio, a maior parte da documentação reunida focalizou o porto de cabotagem, porto de reabastecimento nas rotas transatlânticas, centro administrativo do Vice-Reinado e capital do Império, depois Distrito Federal a cidade do Rio de Janeiro.
Até certo ponto, a compreensão da estrutura e da dinâmica de grupos de convívio liga-se a essa urbanização crescente do Rio de Janeiro, correspondente a uma reeuropeização da população local, matizada pela infiltração física, comportamental e ideológica do regime de trabalho escravo.
1850 constituiu um momento crítico de alteração do comportamento social. A proibição do tráfico negreiro alterara as condições de avaliação da população escrava, como mão-de-obra escassa. Além disso, é ao redor dessa data que as autoridades da cidade assumiram o controle e o policiamento (Machado, et alii, 1978) da higiene pública, procurando enterrar os mortos fora das igrejas e tentando combater as febres tropicais com medidas de saneamento. A quarentena dos escravos, ao chegar, a inspeção de alimentos, farmácias, açougues, hospitais, colégios, cadeias, aquedutos e oficinas passaram a constituir formas de atuação estatal que, de certa forma, retiravam da família e dos grupos de convívio algumas de suas atribuições tradicionais, provocando nelas alterações de estrutura e de funcionamento. Embora a Medicina Social inicie sua atuação pelas casas, no próprio espaço de produção e reprodução dos grupos, de convívio, acaba desdobrando essa atuação para as ruas e praças, para a colocação de canos, redes de esgoto, mercados e matadouros, fontes e chafarizes, pontos de contatos e trocas entre as diferentes camadas de população da cidade.
É a partir da metade do século XIX, também, que se criam hospitais, onde vai se estabelecer outro tipo de grupos de convívio; os de irmãs de caridade, dedicadas ao tratamento de doentes e à criação de órfãos em núcleos fortemente hierarquizados de trabalho, diferenciados de suas preocupações místicas de conventos e recolhimentos, da primeira metade do século. É também a partir de meados do século que existe documentação específica sobre a prostituição, instalada e difundida em casebres, casas térreas ou sobrados, onde acabam se formando grupos de convívio, com ou sem laços de parentesco.
Antes e depois de 1888, a instituição do trabalho escravo marcou o caráter social e autoritário da quase totalidade dos relacionamentos aparentemente naturais e espontâneos. As indicações são de que a linha da cor cortava os inter-relacionamentos pessoais, nas diferentes camadas sociais. Os preconceitos raciais e os estereótipos que ligavam os negros à escravidão não se superpunham rigorosamente às camadas econômicas da sociedade havia negros e mulatos livres, bem como brancos pobres. As referências aos desregramentos provocados na família branca, pela presença de escravos e escravas em seu interior, são tão numerosas quanto as existentes de ajustamentos e conciliações. A escravidão doméstica, pelo menos através da alimentação e da sexualidade, marcou a família brasileira. A pobreza e a doença acentuaram as condições precárias de vida da população de cor, à medida que as epidemias que assolaram o Rio de Janeiro, no século XIX, levaram as autoridades a mudar seu foco de ação do ar e dos pântanos para a sujeira e o desregramento associados à população de cor despossuída.
As teses e anais de Medicina, reunidos por Roberto Machado para o estudo da Medicina Social e da constituição da Psiquiatria no Brasil, comprovam as ligações, no século XIX, entre as condições das famílias brancas e negras, deixando também explícitas as atitudes dos autores. Os médicos não condenavam propriamente a escravidão. Temiam e acautelavam a população contra sua influência negativa e corruptora sobre a família branca. Embora se pudesse afirmar com mais fundamento ainda que o regime de trabalho escravo exercia efeitos nefastos e até sinistros sobre a família negra, este aspecto do problema foi somente mal e pouco enfrentado por alguns abolicionistas.
Aspectos dos Grupos de Convívio
Escolha do par
Maria Graham (1821), a escritora que foi governanta das filhas de D. Pedro I e da Princesa Leopoldina, referiu-se à inexistência de livre-escolha de parceiro no Brasil, deixando a sugestão de que os casamentos por amor fossem correntes nas cortes européias. Contudo, uma trova, recolhida em meados do século XIX, parece não confirmar tal suposição. A trova canta o rei Alfonso XII que enfrentou razões de Estado e dissensões familiares muito sérias para casar com Mercedes, que sobreviveu apenas cinco meses ao casamento.
Querem hoy com más delírio | |
| (Felipe Teixidor, 1959) |
Ainda que a livre escolha que Maria Graham supunha ser desejável, num país que acabava de se proclamar independente, não fosse exatamente o que veio a ser a escolha por amor (que alimenta toda uma literatura romântica com seus caminhos pedregosos), as escolhas de parceiros, encontradas na documentação do século XIX, obedeciam a regras estipuladas pela camada social da família e por uma racionalidade às vezes explicitada, como se poder ver, a seguir:
Carta nº 77
Rio de Janeiro, o 1º de Novembro de 1814.
Meu prezadissimo Pai e Sr. do C. Apesar de dirigir outra a V.Mce adjunta a esta, contendo diversos objectos, me parece acertado que o objecto desta fosse separado e independente, conforme o uso q. V.Mce determinasse dela fazer.
Em carta com data (se não me engano) de 23 de Dezembro de 1813 e q. daqui foi no Bergantim Venus a 28 do dito mes, participava eu a .V.Mce. assim como à Mãe e Mana estar na resolução de casar-me, obrigando-me a isto razões tão fortes quaes as expunha na dita ma. Carta, todas dirigidas ao socego do meu espírito, e ao meu principal arranjo. Deixo de referir agora, os incomodos, q. tenho sofrido para conservar com airosa decência a minha representação: os q. tantas vezes suportei por ocasiões de minhas moléstias, aceitando por necessidade da minha solidão os favores alheios em meu tratamento: não refiro os modos estranhos, carrancas, focinhos e outros gestos de quem até me devia servir de narizes, ficando eu por hum capricho celibatário cheio de obrigações e dependências; quando pela minha ultima resolução aplicava um saudável remédio à minha vida precária: o que tudo pode V.Mce julgar, olhando para o meu genio, em terra estranha, só, e doente mais ou menos.
V.Mce. se não dignou de me responder àquela minha Carta, assim como tem feito a muitas outras até agora, como na adjunta lhe refiro, porem como fiquei na persuasão de q. V.Mce. fosse por ela ciente, descansei nesse ponto, por ser anunciado com a maior antecedência que me foi possível. Com efeito pus em prática a minha resolução, e me casei com ua Brasileira, por nome Ana Maria de S. Tiago Souza, de idade de 22 anos, filha de José de Souza Mursa, e de Francisca da Chagas de Sta. Thereza: a Mãe é Brasileira mas o Pai é natural da Vila de Mursa, na Província de Traz os Montes, gente muito limpa, honesta e abastada. Este homem vive atualmente de suas posses, q. juntou há muitos anos em negocio para Lisboa e outros portos do Brasil; é conhecido e respeitado de grandes Personagens desta Cidade, e foi o único, com quem contrai amizade e a quem era sumamente obrigado, por me valer nas ocasiões de minhas moléstias com o serviço de seus escravos, e com o préstimo de toda a sua Casa. Os parentes dele todos são de Portugal: sua mulher tem boa ascendência, por seu Avô Tenente Coronel e seu Bisavô Mestre de Campo; tem por linha transversal igual parentela, como é o 1º Médico do Hospital Real desta Corte, por apelido o Leal, outros dois Médicos, q. são também hum Capitão, e outro Tenente Coronel, adidos ao Estado Maior do Exército, o Secretario do Governo da Bahia e Ouvidor de Mato Grosso e outros negociantes desta Praça, & a maior parte com Habitos de Cristo.
Referindo-me neste objeto a outras miudezas, q. vão transcritas nas duas Cartas adjuntas à Mae e Mana; vou a concluir q. me fez Deus o benefício de neste ponto me restituir o meu socego; pois vivo em paz, em abundância, e com aquelas comodidades de q. tanto precisava, com hua boa casa bem arranjada de tudo, e com escravos, e outras conveniencias, sem a menor despesa minha.
Sem me persuadir q. V.Mce. por caprichos políticos leve a mal esta minha resolução, espero q. V. Mce. a aprove, e com a sua aprovação consolide mais a minha fortuna; pois q. alem de eu não fazer voto de celibato, é de refletir que quem espera até os 33 anos de idade, e ao depois se casa, não se casa por vicio; aliás, já o tinha praticado em Lisboa.
Espero q. V.Mce. me honre com a sua resposta, anunciando-me a entrega desta, e com a sua benção dar-me todas as ocasiões em q. eu mostre a minha fiel obediência, pois sou com o maior respeito.
De V.Mce.
Filho muito afetuoso e obrigado
Luiz Joaquim dos Santos Marrocos (Marrocos, 1939)
O autor desta carta era um funcionário da Corte Portuguesa, e manifesta, através de suas cartas à família, todo um processo doloroso (até fisicamente) de horror à população brasileira e às condições de vida que veio encontrar, que se transforma numa aculturação progressiva da qual o casamento com brasileira constituiu-se em importante fator.
No caso dos casamentos dos freqüentadores da Corte, as negociações entre as famílias exigiam intermediários e contratos estipulando condições de moradia e divisão de propriedades. Entre pequenos comerciantes, artífices e trabalhadores livres, as formas de coabitação e de formação de família (menos por casamento do que por concubinato) obedeciam a exigências da divisão de trabalho e de preservação dos grupos mais poderosos. Esta última razão fica muito clara no caso dos escravos. Havia famílias ricas que obrigavam as criadas do serviço doméstico a se casar com seus homens de confiança, para conservar a continuidade dos trabalhos caseiros. Outras impediam casamentos para evitar que outros laços diminuíssem o valor de venda dos escravos, sua produtividade e sua sujeição.
Nem sempre as escolhas eram feitas com a racionalidade com que o mercenário alemão Joseph Hormeyer (1966) as propôs:
... para um imigrante é difícil conseguir uma boa esposa no Brasil. Uma de cor ele não quer, e com razão. Uma branca é difícil conseguir e, se a consegue, ela o auxiliará tão pouco nos trabalhos de campo quanto a de cor, porque isto é contra os costumes do país. E só poderia obter a sua brasileira, quando pudesse falar com ela, isto é, depois de ter aprendido o português (...) Mas precisamente nos primeiros tempos é quando mais a mulher faz falta ao colono, precisamente quando constrói a primeira cabana, mais sensivelmente sente a ausência do ser feminino, indispensável na fundação de um lar doméstico; quando o pobre rapaz volta cansado e só então cozinha a sua comida, ou quando ele próprio tem de descer ao riacho para lavar a roupa em geral muitas vezes prefere casar-se com a avó do diabo a continuar solteiro (...) Se a mulher é uma grande benção, devem os filhos ser considerados uma felicidade; naturalmente, enquanto são pequenos dão muito trabalho e consomem muito tempo; mas, chegando aos cinco ou seis anos de idade já podem ganhar o pão e, desde então, até deixarem a casa paterna, são um grande auxílio, uma vez, decerto, que sejam criados no temor a Deus e na disciplina doméstica, (p. 125,127)
Existem, ainda, as acomodações, como a descrita por outro militar alemão, Schlichthorst (1826):
A moça, de aparência decente, estava desacompanhada. Ofereci-lhe o braço e levei-a para sua casa. Algumas escravas nos seguiam. A esse feliz acaso fiquei devendo minhas horas mais agradáveis no Rio de Janeiro.
Beata Lucrecia da Conceição não era, em verdade, de sangue puro como a Europa exige para sua pretensa fídalguia racial; mas era uma moça boa e simples, de dezessete anos, que vivia com decente liberdade em companhia de sua mãe, uma crioula gorda. A riqueza dessa gente modesta constava de uma casinha e de alguns negros que trabalhavam na Alfândega. O capital crescia com um bando de moleques, de tempos em tempos aumentado pela extraordinária fertilidade das negras ou, como dizia a velha pela benção-do-céu. D. Luiza, mãe de D. Beata, era viúva. A filha, solteira, tinha um amigo tropeiro, que andava com sua tropa de mulas por Minas Gerais e vivia com ela quando vinha ao Rio de Janeiro. Uma encantadora menina nascera dessa união.
Peço ao bondoso leitor que encare essa ligação do ponto de vista brasileiro. Num país onde existe a escravidão; onde a diferença de pele não limita as inclinações, mas põe empecilhos convencionais para o casamento legal entre gente de cor e os que ainda conservam um preconceito trazido às plagas americanas pelo orgulho europeu dos primeiros descobridores; onde a própria Constituição concede aos filhos naturais privilégios sobre os nascidos do casamento legal; e onde mesmo nunca se cogita de nódoas de nascimento no sentido europeu, semelhante ligação não é considerada indecente ou vergonhosa para qualquer das duas partes, e a opinião não a condena, nenhuma lei moral a impede e o termo usual que a designa, a enobrece.
O brasileiro chama sua mulher e sua amante, quando a elas se dirige, da mesma forma: minha Senhora. Apenas, para indicar a espécie de relações que com elas mantém emprega expressões diferentes. Aquela é mulher; esta, moça. Fala de uma e de outra com o mesmo modo despreocupado. Os filhos têm iguais direitos. A mancha de nascimento está na cor da pele e não na sua origem. (p. 77-8).
Estas formas de escolha do par nunca impediram formas de namoro
E quanta moça dotada Só por seu gosto casou? Também quanta malfadada Ouro vil a não comprou? |
como vem transcrito na Folhinha Palpitante para o anno bissexto de 1872, contendo, além da "chronica nacional" notícias curiosas e interessantes, que anuncia um Guia dos Namorados ou Vocabulário das Flores, das Cores e das Pedras preciosas com a Lista Alfabética das suas significações; a Loteria; o Jogo das Finezas; a Loteria e o Telégrafo do Amor; e as várias Poesias sobre o mesmo assunto. A segunda edição aumentada, contém a seguinte epígrafe: "O amor é uma gota celeste que a Providência verteu no cálice da vida para lhe corrigir o amargor". (p.IV e SS).
Como se pode ler na "Revue des Deux Mondes" de 1851.
Um dos principais centros da vida social no Brasil são as igrejas. Antes de entrar numa casa brasileira, entre num dos numerosos templos do Rio de Janeiro, durante uma cerimônia religiosa e terá apreendido um dos lados originais desta população (...) É possível ver as mulheres a trocar olhares compridos e doces com os jovens que passam de um lado para outro ou param mesmo para continuar melhor esse jogo durante todo o ofício religioso!!
Consultando ainda a Folhinha Palpitante,
no tempo antigo as meninas namoravam por procuração, isto é, através dos criados ou criadas da casa, e quando a coisa estava mais avançada recorria-se ao bom préstimo da tia, que era sempre um traste indispensável em casa de sobrinhas. Hoje (1872) isto de namorar por procuração, também já não se usa, cada um e cada uma trata o negócio pessoalmente e com mais economia de tempo e de dinheiro que é o segredo do século.
Outra forma de namoro da segunda metade do século XIX era através de correspondência secreta, através do jornal, por paradoxal que pareça. A escritora Adèle Toussaint-Samson registrou, no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro tramas como estas; "esperei-te ontem e não vieste!" "Aquele que morre de amores por ti, implora-te uma resposta para a sua carta", "Ó virgem! vi o céu em teus olhos!" "Não passes mais pela nossa porta, pois somos espiados".
Coexistem, não se superpõem e muitas vezes colidem modalidades de namoro, diferenciadas conforme a camada social e a escolha do par, que é uma questão social de dimensões mais amplas, que envolve interesses econômicos e políticos de uma ou várias famílias, quando não de toda uma comunidade ainda mais ampla. Esses interesses, às vezes, são impostos de uma a outra camada social, através de meios persuasivos e conciliadores, quando não violentos.
Enquanto Debret (1816) descreve o casamento de escravos domésticos, Burmeister (1850) constata as interdições e as violências contra o casamento de escravos, nas fazendas, por razões econômicas.
Dois outros aspectos dos grupos de convívio em que se manifestam as ambigüidades das relações em seu interior, são: a amamentação dos recém-nascidos e a prostituição. Tanto num, quanto noutro caso, o sistema peculiar de castas que se desenvolveu no Brasil no século XIX acrescenta a um sistema de dominação racial, uma exploração sexual que foi tanto mais sinistra quanto mais deformada e idealizada pelos que a viveram ou testemunharam.
A ama-de-leite
Sabe-se que somente em fins do século XIX os franceses descobriram esse instrumento vital, a mamadeira, para suprir a falta de aleitamento materno. Desde 1817 tem-se informações de que as portuguesas (leia-se: brancas) nunca tinham saúde suficiente para amamentar e compravam ou alugavam para isso uma escrava negra. Também a Roda de Expostos e o Asilo de Órfãos empregavam, para tal função, negras recém-paridas, às vezes obrigadas a amamentar, além de seu filho, até quatro outras crianças. Ao lado das louvações sentimentais à mãe-preta das crianças brancas, vão se avolumando dados referentes à mortalidade infantil dos filhos das escravas, abandonados em favor do aleitamento da criança branca, de camada mais abastada.
Os anúncios de jornal oferecendo à venda e para aluguel as amas-de-leite (Magalhães e Giacomini, 1983) denotam sempre a perspectiva do consumidor. O que os pais brancos esperavam obter de vantagem da escrava negra, deixando transparecer também as suspeitas e ameaças morais e de saúde precária que se lhes inspirava.
As teses e pareceres médicos, do último quartel do século XIX, apresentavam como causas da mortalidade infantil das crianças brancas o costume considerado então como anti-higiênico de entregá-las aos cuidados de ama-de-leite negra.
Tanto os anúncios quanto as teses visam alertar a população livre e letrada para influências perniciosas da escrava, no seio da família branca, ignorando inteiramente a família negra desfeita ou dilacerada e a mortalidade infantil de crianças negras agravada pelas necessidades absorventes e a contaminação da família branca.
A escritora alemã Ina von Binzer (1881) que viveu como governanta de algumas famílias brasileiras, apresenta uma outra perspectiva da questão:
Neste país, os pretos representam o papel principal; acho que no fundo, são mais senhores do que escravos dos brasileiros.
Todo trabalho é realizado pelos pretos, toda riqueza é adquirida por mãos negras, porque o brasileiro não trabalha e quando é pobre prefere viver como parasita, em casa dos parentes e de amigos ricos, em vez de procurar ocupação honesta.
Todo o serviço doméstico é feito por pretos; é um cocheiro preto que nos conduz, uma preta quem nos serve, junto ao fogão, o cozinheiro é preto e a escrava amamenta a criança branca; gostaria de saber o que fará essa gente, quando for decretada a completa emancipação dos escravos.
Na nossa Europa muito pouco se sabe a respeito da lei referente a esse assunto e imaginávamos que a escravidão fora abolida.
Mas não é assim. Foi determinado apenas que do dia de sua promulgação em diante, 28 de setembro de 1871, ninguém mais nasceria escravo no Brasil.
Quem já vivia como cativo nessa época, assim permanecerá até a morte, até o resgate ou até a libertação.
Os pretinhos nascidos agora, não têm nenhum valor para seus donos, senão o de comilões inúteis.
Por isso não se faz nada por eles, nem lhes ensinam, como antigamente qualquer habilidade manual, porque, mais tarde nada renderão.
É difícil dizer qual a situação mais extremada de ambigüidade entre relações de solidariedade e intolerância no interior dos grupos de convívio se os casos em que escravas e agregadas sucediam à senhora como parceira sexual, no que alguns médicos classificaram como prostituição clandestina ou quando se transformavam, ou eram alugadas como amas-de-leite.
Entre os viajantes estrangeiros consultados, o jornalista francês, autor de dois livros sobre o Brasil, Charles Expilly (1853) e o comerciante suíço, Charles Pradez (1866) apresentaram depoimentos controversos e talvez complementares de uma relação aparentemente de caráter biológico como a amamentação do recém-nascido mas profundamente atingida pelas condições de dependência e violência entre as mães brancas e negras e seus filhos.
Charles Expilly, em Le Brésil tel qu'il est, em 1853, expõe a situação da ama-de-leite como uma das opções profissionais da mulher pobre. Já Pradez consegue apreender a perspectiva humana da mãe preta, através do envolvimento crescente com as campanhas abolicionistas.
Com poucas exceções, todas as jovens negras não têm outra preocupação além da de ser mães. É uma idéia fixa, que toma conta de seu espírito desde que se tornam núbeis, e que realizam assim que têm ocasião. Este fato, que o ardor do sangue africano bastaria, talvez, para explicar é, sobretudo então, um resultado calculado. Na verdade, a maternidade não levará, com toda a segurança ao bem-estar, às satisfações do amor-próprio, ao usufruto da preguiça, à coqueteria e à gulodice?
Uma ama-de-leite é alugada por mais que uma engomadeira, uma cozinheira ou uma mucama. Para que dê honra e lucro, colocada numa boa casa, o senhorio durante a gravidez, lhe reserva os trabalhos mais leves. Após o parto, a rapariga vê suas camisas destruídas e suas roupas velhas distribuídas aos companheiros, enquanto seu guarda-roupa é renovado e recebe enxoval novo. É roupa grosseira, mas bem feita, vestidos simples a que a senhora, se os meios lhe permitem, colocou dois ou três metros de renda comum e um vestido branco com seis babados realização do sonho dourado constante das jovens negras eis o primeiro benefício da maternidade. A boa aparência, a roupa nova, as relações importantes do seu senhor lhe abrem a porta duma casa rica, ou que deseja aparentá-lo, o que, para ela, dá no mesmo.
Entre os comerciantes da cidade é questão de amor-próprio ter uma ama-de-leite que ostente um luxo insolente. Não é impossível, também, que seja uma especulação. O luxo da ama exprime a prosperidade da casa, a menos que sirva para tornar pública, a verdadeira situação econômica (...)
Será preciso falar dos cuidados, das atenções que a cercam? do respeito pelos seus caprichos? Um rei absoluto não consegue mais abnegação, dedicação cega da parte dos cortesãos. A cozinheira, a mucama, a engomadeira a obedecem e a própria senhora, muitas vezes, fica às suas ordens. É que, antes de mais nada, é preciso evitar que a ama se zangue, que tenha a menor contrariedade. Uma rusga, um arrufo, uma indisposição, um simples mal-estar tornam-se desgraças sérias, pois podem influir na qualidade do leite. Se a ama franze as sobrancelhas, se faz um muxoxo, o pai e a mãe trocam olhares inquietos (...)
As amas-de-leite, como se vê, têm mil razões para apreciar essa existência dourada durante a qual os papéis se invertem, pois os brancos obedecem e as negras comandam. Também, soa tristemente para elas, a hora da servidão. Na despedida, algumas até podem derramar algumas lágrimas (...) mas o que todas lamentam infinitamente, é a vida indolente, o luxo das vestimentas, a abundância de tudo a que é preciso renunciar, para retomar a coleira da miséria. A ternura dessas criaturas não é desinteressada, está provado; amam o pequeno a que dão o seio, mas por que devem a essa maternidade ocasional, todas as satisfações que a fortuna pode lhes conceder.
Veja agora este trecho, de 1866:
Perto de minha casa, havia uma espécie de maternidade, de uma parteira francesa; recebia como pensionistas escravas, fazia o parto, cuidava delas e se encarregava de alugá-las, de separá-las dos filhos, operações muito desagradáveis para os senhores e pelas quais era fartamente recompensada. Nesse dia, ela anunciara uma ama-de-leite: fui à casa dela e expliquei a razão de minha visita; era uma matrona refinada, que não se intimidava facilmente.
Gritou para o fundo do jardim: "Rose! Rose! venha cá!" Rose apareceu, era uma rosa negra, variedade desconhecida nas florestas de Fontenay e Harlem. "Chegue aqui, minha filha", disse a parteira com um tom carinhoso; "Você pode dizer que tem sorte! O senhor aqui precisa de uma ama e veio buscar você, você vai para uma boa casa, com um belo jardim, todos os vestidos da senhora, alimenta o menino branco, lindo como um anjo e ainda recebe de presente, dinheiro! Que beleza!"
Essa linguagem me pareceu sedutora; contudo, ao levantar os olhos, dei com Rosa transtornada de dor, duas lágrimas silenciosas rolando pelas faces; sorte estranha, pensei, essa que faz rolar lágrimas de desespero!
Após um momento de silêncio, a pobre moça, se armando de coragem, respondeu energicamente: "E meu filho, que vai ser dele? Vou abandoná-lo?"
"Vamos! Vamos! não comece a criar caso, agora, com o seu filho; você sabe muito bem que o senhor tomará conta dele, vai enviá-lo para o campo, onde nada lhe faltará."
Mulheres públicas
O último aspecto de grupos de convívio que será discutido neste artigo é a prostituição de diversos tipos, que está sempre ameaçando as mulheres "de família" puras, trabalhadoras e preocupadas com a saúde dos filhos e do marido. A ameaça à rainha do lar é feita de duas maneiras todo desvio de ação, pensamento ou movimento poderá aproximar e confundir o espaço privado da casa com o espaço público da rua. A janela, como fronteira entre a casa e a rua, foi sempre lugar suspeito e perigoso, havendo muita referência, na literatura de viagem da segunda metade do século XIX, aos namoros de janela e às janeleiras. As referências até mesmo às janelas gradeadas dos conventos e recolhimentos parecem indicar ainda uma atração irresistível das reclusas pelo mundo da rua (Horner, 1845). A outra ameaça, tão velada quanto a anterior, é a de ser substituída pela mulher pública se não se desempenhar a contento das tarefas e funções que lhe são impostas. Existindo e se expandindo como o negativo atraente e ameaçador da família, as mulheres públicas foram descritas com todos os vícios, pecados e excessos que se atribuem a uma profissão exercida e até explorada por algumas mulheres, chefes de família.
Uma série de teses e memórias médicas preocupam-se com a prostituição no Rio de Janeiro, durante o século XIX. Uma análise classificatória de 1873 desce a minúcias espantosas ao traçar os perfis dos diferentes tipos de mulher pública. Ainda que se atendo a uma perspectiva higienista dúbia, os médicos colocam-se contra a prostituição clandestina exercida quase exclusivamente por escravas, dentro das casas, criando famílias paralelas, debaixo do mesmo teto (Rago, 1985)
Um jornalista português, Thomaz Lino D'Assumpção, em seu livro Narrativas do Brazil (1876-1880), concentrou em quatro páginas as condições que pôde observar dessa parte da população:
Se a miséria, porém, quase que não existe no Rio de Janeiro, se a prostituição não é hedionda, nenhuma, porém, se encontra que mais descarada seja e mais atrevida.
Vive no coração da cidade, e rara é a rua onde não tenha assentado os seus arraiais.
O último degrau, vindo de cima, é ocupado pela francesa, quase sempre atriz-cantora no Alcazar.
E digo o último, vindo de cima, porque na escala da prostituição não sei quem tenha direito a figurar como primeiro termo da série se a mulher do capitalista que tem casa nos subúrbios e se prostitui com o tenor por chic e com o ministro por um fornecimento importante para a firma da razão social do marido, se a desgraçada moradora na Rua do Senhor dos Passos dando entrada ao caixeiro da venda que lhe leva a meia quarta de toucinho.
A francesa vive em casa própria, tem carro e criados, insulta a polícia, desautoriza os magistrados e fica sempre impune, graças à proteção do conselheiro tal..., do deputado F... ou do Juiz P...
É esta, por via de regra, quem serve de protetora às outras que vivem dispersas pelos hotéis explorando ceias, jantares, passeios de carro a Botafogo e os anéis de brilhantes dos fazendeiros incautos. Esta gente aparece sempre em todos os espetáculos, ocupando os melhores lugares.
Freqüentadoras assíduas dos botequins, não é raro vê-las cercadas de homens casados, de deputados, senadores, advogados distintos e vadios de profissão.
Desta vida descuidosa acorda-se uma bela manhã o dono do hotel, obrigando-as a sair com a roupa do corpo e sem jóias, que ficam penhoradas à conta de maior quantia.
O Brasil, acostumado a importar todos os gêneros de primeira necessidade por intermédio de terceiros, aplica o mesmo processo à prostituição.
Nas ruas da crápula encontram-se poucas negras, algumas mulatas, grande número das nossas mulheres do Minho e Douro, e abundância das ilhas.
Vivem acocoradas às janelas de casas baixas e insalubres, alumiadas pela luz vermelha dum mau candeeiro de petróleo que satura a atmosfera duma fumaça pesada e sufocante, no torpor da embriaguez da cachaça, de cigarro no canto da boca e chamando os que passam com voz cava.
Quantas vezes não desembarcam nas praias do Rio grupos de dez e doze mulheres formosas, brancas de neve, perfeitos tipos das raças do Oriente, saídas, com promessa de gozo de vida honesta e trabalhadeira, das margens do Vistula, das ruas de Peste ou Viena, dos montes da Geórgia, dos desfiladeiros da Albânia, dos portos de Trieste ou dos plainos da Itália que apenas chegadas ali, em vez do trabalho honesto para que foram contratadas, são levadas à força, sem dó nem piedade, para os alcouces pelo caften!
O caften apodera-se delas e pela sedução, pela fome e até pelos tormentos, obriga-as a uma vida de opróbrio, de que é ele sempre quem lucra. Algumas destas infelizes tentaram reagir: primeiro foram vencidas, mas nestes últimos dois anos têm encontrado enérgico auxílio da polícia. que. ainda assim, apenas se limita a livrá-las da escravidão do caften deportando-o.
Na classe destes miseráveis todas as nações têm ali tido os seus representantes; e até a nós, para de tudo termos no Brasil, nem isso nos faltou. O nome dum dos mais astuciosos eu calo somente para não envergonhar alguns jornais de Lisboa, que das suas colunas o cumprimentavam com a mais grandíloqua da sua prosa todas as vezes que o miserável vinha a Lisboa buscar gênero para o mercado.
Ainda espero tornar a ver este sujeito jornalista em Portugal!
É a essa classe de mulheres que as sociedades carnavalescas vão buscar o elemento feminino para as suas festas.
Parece que até as danças públicas, que durante o ano absorvem as atenções e os dinheiros da classe caixeiral, são expressamente feitas para a exibição dum par composto dum caixeiro e duma dama da vida airada. Seria curioso estudar a este respeito os anais e memórias secretas dos Tenentes do Diabo, dos Fenianos, Democratas, Clube, etc. tantas outras sociedades bem organizadas e largamente providas de dinheiro que todos os anos apresentam espetaculosas mascaradas, críticas dos fatos até então ocorridos.
Essas críticas percorrem a cidade exibindo imensos quadros vivos em mútuo despique do sucesso.
Os moradores das ruas por onde passam decretam-lhe coroas e proclamam-lhes os triunfos. (p. 60-4)
Através de dois outros viajantes, o turista francês o Conde de Suzannet e a embaixatriz da França, a Baronesa de Langsdorf, surgem formas alternativas desse convívio e até da prostituição "clandestina", que talvez pudesse ser chamada de doméstica. Ou então, como sugere a já citada Folhinha Palpitante:
Que moças antes acertam |
A situação moral da população de origem portuguesa corresponde ao que seria de esperar: a corrupção dos costumes no Brasil é coisa por demais conhecida para que eu cite exemplos; aliás, é um assunto de família. Só em circunstâncias especiais o estrangeiro é recebido por brasileiros, sendo assim difícil estudar-lhes a vida privada: tudo se resume numa recepção cerimoniosa. Falo do Rio, onde as mulheres podem tomar parte na vida social. No interior, uma pessoa pode passar semanas inteiras sob um teto sem nem ao menos entrever a mulher e as filhas do dono da casa. As mulheres brasileiras gozam de menos privilégio do que as do Oriente. Relegadas, na maioria das vezes, ao convívio das escravas, elas levam uma vida inteiramente material. Casam-se cedo e logo se deformam pelos primeiros partos, perdendo assim os poucos atrativos que podem ter tido. Os maridos apressam-se em substituí-las por escravas negras ou mulatas. O casamento é, apenas, um jogo de interesses. Causa espanto ver-se uma moça ainda jovem rodeada de oito ou dez crianças; uma ou duas, apenas são dela, as outras são do marido; os filhos naturais são em grande número e recebem a mesma educação dos legítimos. A imoralidade dos brasileiros é favorecida pela escravidão e o casamento é repelido pela maioria, como um laço incômodo e um encargo inútil. Disseram-me que há distritos inteiros em que só se encontram dois ou três lares constituídos. O resto dos habitantes vive em concubinato com mulheres brancas ou mulatas. Muitas vezes acontece que um senhor tendo abusado de uma jovem escrava, vende-a quando engravida; outros, ainda mais desavergonhados, conservam os próprios filhos como escravos, e estes infelizes, quando morre o pai, são vendidos sem se poderem prevalecer da sua origem. (Suzannet, 1845, p. 46-47).
Fui passar a tarde com Mme. de Saint Georges, que me prevenira que trabalharia o dia todo e me diverti muito. Ficamos numa salinha com saída para uma sacada e sobre um belo jardim, e aí, rodeados de papagaios, e beija-flores em gaiolas de junco, de negros e negras deitados no chão, sentamos em poltronas de junco, de balanço, que nos embalavam a qualquer movimento. Era bem estranho o aspecto daquela sala povoada assim. Nunca me senti tão longe da Europa. O que me intrigou foi sobretudo a peculiaridade das relações existentes entre essas pessoas todas. As crianças eram tratadas pela senhora com doçura excessiva, e tinham mais liberdade diante dela, do que teriam as de nossas criadas, diante de nós. As negras maiores também entravam e saíam, com um ar negligente, sem se preocupar se estavam perturbando a senhora. Vestiam um traje comprido, em folhos, tão solto que deixava as costas inteiramente descobertas e, por trás, a fenda exibia todo o dorso. As pernas e os pés estavam nus e, no conjunto, embora na realidade estivessem cobertos, não pareciam. Os cabelos armados pareciam um novelo embaraçado de lã, extremamente espesso e nessa cabeleira estava presa uma grande flor vermelha, com todas as pétalas pesando sobre o pistilo; mas o brilho dessa flor esplêndida não se transmitia à fisionomia melancólica, cujos traços, de uma irregularidade a que não me habituei, pareceram também de profunda tristeza. Ao lado dessas negras havia um jovem branco, que dirige a casa de Mme. de Saint Georges. Aparentava no máximo vinte e quatro anos, com a fisionomia que os brancos daqui adquirem no trato com os negros: um ar de zombaria inteligente, atrevida e petulante. Estava também sentado no chão, brincando com os negrinhos, ordenando com um tom imperioso às negras que avivassem com um pequeno fole, um fogareiro, onde se derrete a cera. Inês, a governanta, também estava é considerada branca, embora pareça mulata, mas sua Senhora, que gosta muito dela, declarou-a completamente branca e tomou-a como companheira inseparável. Não a deixa em casa e, muitas vezes, leva-a ao teatro. (Langsdorf, 1843, p. 72-73)
Antes de outros comentários, convém observar que estes dois autores ostentam títulos de nobreza e vieram ao Brasil, o primeiro para completar sua educação, a segunda, como acompanhante do Ministro Plenipotenciário da França, encarregado de entabular negociações para o casamento de uma das irmãs de D. Pedro II com um príncipe das casas reinantes européias. Talvez essa origem social lhes tenha propiciado contatos mais discriminados e exclusivos com famílias ligadas à Corte e com elementos destacados das colônias estrangeiras. É possível sugerir que as relações de acomodação e conciliação que observaram, na primeira metade do século, alteraram e diversificaram-se com a urbanização e a reeuropeização crescentes do Rio de Janeiro. Convém, contudo, reiterar a partir dos aspectos testemunhados desses grupos de convívio a existência de uma diversidade interna de sua dinâmica, mesmo numa única camada social - apesar de se distinguir nas situações extremas a incorporação idealizada de um modelo de família dominante extensa, branca e patriarcal.
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