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Psicologia USP

versão On-line ISSN 1678-5177

Psicol. USP v.3 n.1-2 São Paulo  1992

 

COMENTÁRIO

 

Provérbios e o inconsciente

 

 

Manuel Laureano de Castro

Faculdade de Medicina — USP

 

 

Cláudio Cohen
Casa do Psicólogo Livraria e Editora Ltda., São Paulo, 1991

Cláudio Cohen faz um estudo pormenorizado do provérbio com o inconsciente freudiano. Não pretendo comentar seu trabalho mas, a partir de sua composição estimulante, enriquecê-lo.

Um ponto central do trabalho é orientado em torno das idéias de Freud a respeito dos processos primários e secundários. O primário é característico do inconsciente; o secundário do consciente. Enquanto no último as idéias são amarradas como num tecido, no primeiro são móveis num processo de deslocamento e condensação.

Embora o significado das palavras esteja fixado em dicionários, o que observamos na prática é que as pessoas, em maior ou menor grau, atribuem significados particulares àquelas palavras, possibilitando o uso destas com conteúdos inovadores, quando utilizadas por pessoas influentes no meio da comunicação. Embora existam símbolos universais, graças ao deslocamento, esses podem adquirir significados grupais, e nos sonhos de um determinado indivíduo, significados pessoais. Graças à condensação é possível a propaganda transmitir um grande conteúdo de significados em uma mensagem curta, porém rica.

Há pessoas que têm o poder de, em poucas palavras, transmitir notáveis sínteses. É a criatividade humana alicerçada no processo primário, a partir de suas experiências, que faz novos usos da linguagem disponível, movimentando o processo comunicativo através de rearranjos da linguagem num encadeamento sem fim. No provérbio vemos em ação este processo primário sendo trabalhado pelo processo secundário, de tal modo a resultar numa durável síntese a transmissão da experiência humana. O processo primário está vinculado à força do desejo; o secundário, a capacidade de ordenar de modo consistente o aprendizado.

Vamos tentar ilustrar com um exemplo este ponto, a partir do provérbio "nem tudo que reluz é ouro". Há uma tendência na criança e nos adultos imaturos de apegarem-se aos desejos e idealizações. Neste processo de pensamento, despido em maior ou menor proporção de realismo, o impulso busca a gratificação. Nesta tendência repetitiva a pessoa parece não aprender da experiência; há uma forte negação da realidade e novos estímulos são interpretados como os antigos, promissores e aparentemente gratificadores significados.

Isto ocorre porque o ser humano geralmente não tem dificuldade de captar os dados imediatos da experiência, isto é, não costuma ter dificuldades em perceber através dos órgãos dos sentidos as estimulações sensoriais. Na percepção sensorial, geralmente todos concordamos que uma casa é uma casa, que o vermelho é o vermelho e assim por diante. As diferenças costumam aparecer na dimensão dos significados. Um mesmo objeto visto sensorialmente como o mesmo, pode no psíquico humano variar emocionalmente em seus significados, de pessoa para pessoa. Não só varia de pessoa para pessoa, mas o mesmo objeto pode adquirir novos ou mesmo significados diametralmente opostos no curso de uma experiência. Assim, uma pessoa pode atribuir significados positivos ao objeto de sua escolha no período do noivado. Num tempo maior ou mesmo de convivência, pode vir a atribuir à mesma escolha significados negativos.

Desta maneira o novo, que ainda não sofreu a impregnação das evidências num contato contínuo com a realidade, presta-se a ser idealizado. Assim, alguém pode ansiar em cada nova descoberta achar desta vez o cobiçado ouro. Chega um dia em que a pessoa pode se dar conta que nem tudo que reluz é ouro. A partir desse dia, a pessoa pode aprender da experiência, fazendo uma integração entre o processo primário e o secundário. Passa a ser mais cautelosa com as aparências, procurando em suas indagações ir além daquelas. Pode iniciar um processo de indagação e reflexão.

O provérbio "nem tudo que reluz é ouro" pode sintetizar de modo condensado o produto de inúmeras experiências vividas durante um extenso espaço de tempo da vida de uma pessoa. Numa dimensão social é o patrimônio de um caminho pontilhado de tentativas e erros, anseios, decepções e capacidade de aprender da experiência, que agora passa de geração em geração.

Freud diz que no processo secundário não é perdido o princípio do prazer; há apenas um novo deslocamento do prazer buscado em outro nível. Mas a busca do prazer persiste como mola propulsora. O homem que aprendeu a não mais confiar nas aparências e passou a valorizar e a levar suas observações para além daquelas, continua buscando o ouro, mas agora não mais o ouro brilhante das aparências, mas um outro tipo de ouro, conquistado com dor e esforço, porém mais confiável e mais próximo à realidade, como esta costuma ser de fato. Passa a valorizar a experiência, isto é, a sabedoria contida no provérbio.

Enquanto que no processo primário o pensamento é feito com uma qualidade onírica na base de imagens, no processo secundário predomina o pensamento conceitual, lógico e articulado na linguagem. Ambas as modalidades persistem mais ou menos diferenciadas, com suas fronteiras móveis oscilando em maior ou menor intensidade, conforme a dinâmica de cada pessoa — se mais permeável ou se mais rígida. Ás vezes, o pensamento subjacente ao comportamento de uma pessoa está mais dominado pelo processo primário, outras vezes, pelo secundário.

É completamente diferente como uma pessoa, quando erotizada por uma situação estimulante, fica tomada por uma excitação e entrega-se à sedução, de quando — frente à mesma situação— uma outra pessoa preserva sua capacidade de observar e pensar. Voltando ao provérbio anterior, aquilo que excita pode ser simbolicamente traduzido em sua aparência por ouro. Evidentemente que alguém seduzido por uma situação, após superar seu estado de ânimo exaltado e se dar conta do real, pode deprimir-se. Uma série de experiências deste tipo pode levar uma pessoa, após sucessivas depressões, a dar conta gradualmente do provérbio: nem tudo que reluz é ouro. Outra pode alcançar repentinamente este conhecimento.

O que queremos assinalar com estas situações supostas não é tanto se o aprendizado é constituído repentinamente ou gradualmente, mas o fato de ele ser conseguido. Quando isto ocorre, a busca da satisfação passa de uma mera descarga instintiva para a busca de um alívio integrado com a realidade. O ouro percebido nas aparências atraentes e estimulantes do fácil e do sonho, desloca-se, por exemplo, para ouro enquanto o valor atribuído à pesquisa e ao trabalho. O valor do provérbio como fonte de satisfação é semelhante à alegria do filho pródigo que, tendo se extraviado pelos caminhos da ilusão, reencontra novamente a satisfação na vida por intermédio de uma orientação menos imediatista: nem tudo que reluz é ouro. O ganho proporcionador de satisfação, após os sustos e o sofrimento dos erros, é ter podido aprender e ir além das aparências e caminhar de um modo mais seguro.

Por isto, achamos que o provérbio ganha a sua maior força e o âmago de sua expressão para alguém, quando este está vivendo uma experiência que tem a ver com aquele. Este, dito na hora certa, embora decepcione o desejo, vem ao encontro e satisfaz os anseios pela verdade e a necessidade de ajustar-se ao real.

Finalmente, gostaria de correlacionar o provérbio com o insight e a interpretação psicanalítica. Quando alguém lê um provérbio distante da experiência, aquele pode parecer significativo, porém frio. O provérbio adquire seu máximo valor significativo e sua maior força como agente de mudança na vigência do auge de uma experiência. Nesta, alguém que estava movido pelo desejo, pôde perceber uma realidade, percepção esta experimentada em seu íntimo, a qual denominamos insight. Este pode ser precipitado por um objeto externo ao transmitir uma formulação que dá novo sentido à experiência que de sonho se transforma numa percepção que transforma aquele numa aquisição de conhecimento. A formulação enunciada no momento oportuno podemos chamar tanto de provérbio, como de interpretação.

Suponhamos um paciente que viva se desvalorizando e desvalorizando tudo que tem. Ao mesmo tempo, vive cobiçando o alheio e idealizando o que não tem. Evidentemente que este paciente estará continuamente insatisfeito. Suponhamos que esta atitude já dure algum tempo e seu analista já trabalhou a situação de diversos modos, em diferentes contextos.

A atitude parece reforçar-se e aproximar-se de um impasse. O paciente pode estar, por exemplo, com medo de deprimir-se e vir a sofrer, envidando todos os esforços para manter seu desejo e evitar cair em si. O analista assinala a situação do medo de deprimir-se e acrescenta: "A galinha do vizinho é mais gorda". Esta frase pode ser considerada uma interpretação analítica apropriada para aquele momento, embora num contexto social seja um provérbio. Se o paciente puder tolerar a depressão de perceber neste momento que tem vivido considerando o desejo como mais gordo e gratificante que a realidade possível, o que o tem feito frustrar-se e perpetuar suas decepções, àquela percepção tanto podemos dar o nome de insight como de provérbio. Nesta experiência o provérbio ganha força de satisfação, enquanto conciliação com o real. O desejo que vinha sendo frustrado na dimensão da fantasia é novamente atendido na dimensão da realidade possível, reencontrando a perdida satisfação por buscá-lo onde seja atingível, agora percebido e aceito num ponto alcançável. Com este exemplo, acredito ter chamado a atenção para a possibilidade de o provérbio ser para ouvinte certo, no momento propício, um equivalente do insight; para o emissor do provérbio, um sucedâneo da interpretação.

É surpreendente a estruturação e a flexibilidade da mente. É notável a descrição de Freud dos mecanismos da não-contradição, do deslocamento e da condensação no inconsciente da mente humana. Consideremos novamente o provérbio "a galinha do vizinho é mais gorda". A "galinha", no inconsciente, pelo princípio da não-contradição, pode ser qualquer coisa, desde um lucro qualquer até uma mulher. Sobre o termo "galinha" pode ser deslocada qualquer experiência emocional. Pelo mecanismo da condensação, experiências, evocações, significados e fantasias complexas podem ser acopladas à frase. "Vizinho", evidentemente, é qualquer possibilidade do não-eu. "Gorda" pode significar qualquer gratificação.

O provérbio desta maneira sintética, porém altamente significativa, cabe num grande número de situações, ganhando num determinado momento sua especificidade. Por seu caráter de verdade independente do lugar e do tempo, ganha, como diz Cláudio Cohen, uma dimensão universal. De fato, em todas as épocas e em qualquer lugar encontramos pessoas que se comportam como se a "galinha do vizinho" fosse mais gorda. Evidente que este provérbio também ensina quanto o homem já aprendeu sobre sua voracidade, sua inveja e seu caráter de inconformismo com as frustrações. Mostra também a tendência de o homem escravizar-se e guiar-se pelas paixões, embora também aponte o que já aprendeu sobre si mesmo.

O apaixonante do provérbio é costurar num enunciado breve, mas denso de significado, o eterno conflito do homem no retorno do reprimido e na elaboração de seus instintos, e repetindo-se de geração em geração, cada indivíduo necessitando refazer inacabados e repetitivos caminhos.

Desde tempos imemoriais, quando por fatores desconhecidos no processo evolutivo, o homem transcendeu sua origem animal e ingressou em sua dimensão simbólica, um novo fator acrescentou-se a necessidade de sobreviver —a necessidade de conhecer-se e aprender a lidar consigo.

A esta altura de seu processo evolutivo, ao conflito externo expresso na luta pela sobrevivência, acrescentou o conflito interno — o constante esforço do homem para civilizar-se. O provérbio transmite isto no piscar de olhos do evocar instantâneo de um flash publicitário.

No provérbio "a galinha do vizinho é mais gorda", ao mesmo tempo que num nível pré-verbal apreendemos na visão de uma cena a composição de suas imagens, compreendemos em nível conceitual próprio do processo secundário o que aquele quer dizer.

Há no provérbio o resultado de um longo processo lapidar, cuja matéria são as experiências de vida e cujo artista é o surpreendente funcionamento mental.